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ra Os Contetidos Culturais, a Diversidade Cultural e a Fungao das Instituigdes Escolares colocam-nos ante o perigo de ignorar as verdadeiras fungdes do en- sino. Esta situag&io complica-se devido aos processos de desquali- ficacdo e requalificagao do corpo docente (Torres Santomé, 1991). E preci- so ressaltar também o processo de intensificagao ao qual esta sujeito o papel docente; solicita-se constantemente de professores e professoras que prestem atencio a novas metas educacionais, a novos contetidos, etc. Au- mentam cada vez mais as finalidaces educacionais que a sociedade preten- de deixar a cargo da instituigao escolar. A concretizagao das finalidades da escolarizacio € 0 eixo principal que nos permite revisar de maneira continua as diferentes propostas da fungio e atividade docentes. Uma das finalidades fundamentais que toda intervengao curricular pretende desenvolver ¢ fomentar é a de preparar os alunos para serem cidadiios ativos e criticos, membros solidarios e democriticos de e para uma sociedade similar. Uma meta deste alcance requer, conseqiientemen- te, que recursos e experiéncias de ensino ¢ aprendizagem que dia-a-dia caracterizam a vida nas salas de aula, formas de avaliagio ¢ modelos organizativos promovam a construgio dos conhecimentos, habilidades, i valores, normas, etc., necessirios para ser um bom cidadiio e cida- ld, | divistio de fungdes e a hierarquizacao no atual sistema educacional 130. Juro Torres Santomé desenvolvimento de tal responsabilidade implica em que os aly pritiquem e se exercitem adequadamente para viver e participar de : ‘comunidade, Uma instituicio escolar que trabalha nessa diregio ae planejar projetos curriculares nos quais os estudantes sejam obtigadoe entre outras coisas, a tomar decisées, solicitar a colaboragao de seus Cole. gas, debater e criticar sem temor a serem sancionados por opinar ¢ defen, der posturas contrarias as do professor de plantio; devem envolver-se co, tidianamente na realizacio de agdes baseadas em um conhecimento ade, quado, suficientemente comparado, sobre aspectos da sociedade da qual fazem parte: seu grau de desenvolvimento cultural, politico, cientifico ¢ tecnoldgico, seus costumes, valores, etc. As tinicas limitacdes nesta partic). pacio ativa, na tomada de decisdes € nos comportamentos subseqiientes devem ser as impostas pela ética que rege toda situacio democritica. — Oprojeto do curriculo e sua aplicagio para conseguir tais metas estig muito afastados de uma visio acumulativa, bancdria, de contetidos a serem adquiridos por alunos e alunas, como se estes fossem um gravador. Muitas propostas de escolarizagio ainda conservam uma forte estrutura “fordista’, no sentido de que seu modo de funcionamento é semelhante ao da linha de montagem de uma grande fabrica; assim, os estudantes ficam perma. nentemente em suas carteiras e pela sua frente vao passando disciplinas ¢ professores a um ritmo determinado; s6 aspiram a acabar 0 quanto antes com suas obrigacées e, deste modo, conseguir uma recompensa extrinseca, como um determinado conceito ou nota; o menos importante € 0 sentido, utilidade e dominio real daquilo que devem aprender. Temos um exemplo deste fendmeno “fordista” quando ouvimos os estudantes avaliar sua expe- riéncia nas aulas dizendo que obtiveram’esta ou aquela qualificacao, sem anunciar que aprenderam tal ou qual coisa, ou a fazer algo concreto, etc. 0 que importa € a recompensa extrinseca a um trabalho que muitas vezes pode ser rotulado de alienado. Um operdrio ou operaria alienados também comunicam apenas 0 salério que recebem, no o que produzem nem seu interesse e envolvimento com o trabalho. Ao contrario, um projeto curricular emancipador destinado aos mem- bros de uma sociedade democratica e progressista, além de especificar os principios de procedimento que permitem compreender a natureza cons- trutiva do conhecimento e sugerir processos de ensino e aprendizagem em Consonincia com os mesmos, também deve necessariamente propor metas educacionais e blocos de contetidos culturais que possam contribuir da melhor maneira possivel com uma socializagao critica dos individuos. Portanto, a aio educacional pretende, além de desenvolver capaci- dades para a tomada de decisdes, oferecer aos estudantes ¢ ao proprio corpo docente uma reconstrucio reflexiva e critica da realidade, tomando como ponto de partida as teorias, conceitos, procedimentos, costumes, etc., que existem nessa comunidade e aos quais se deve facilitar 0 acesso. Neste trabalho de formagio de pessoas criticas, ativas € solidirias © de 131 ajuda a reconstrugio da realidade, é imprescindivel prestar atencio prioritaria aos contetidos culturais, bem como, naturalmente, as estratégias de ensino, aprendizagem e avaliagao necessarias para realizar tal missio. Nao podemos esquecer que 0 corpo docente atual € fruto de modelos de socializagao profissional que exigiam apenas que se prestasse atengiio 4 formulagao de objetivos e metodologias, nao considerando objeto de sua incumbéncia a selecdo explicita dos contetidos culturais. Esta tradi¢’io con- tribuiu decisivamente para deixar nas mos de outras pessoas (geralmente as editoras de livros-texto) os contetidos que devem integrar 0 curriculo e, o que € pior, sua “coisificagio”. Em diversas ocasides, os contetidos sio contemplados pelos alunos como férmulas vazias, e mal chegam a com- preender seu sentido. Ao mesmo tempo, criou-se uma tradigio na qual os contetidos dos livros-texto aparecem como “os tinicos possiveis”, os “tini- cos pensaveis”, fazendo com que um professor, quando se detém a pensar em outros contetidos que poderiam ser incorporados ao seu trabalho, te- nha dificuldade em pensar em outros diferentes dos tradicionais. Conse- qiientemente, a esta altura j4 existem muitas vozes ausentes e/ou deforma- das na maioria dos curriculos planejados e desenvolvidos nas instituicdes e salas de aula. VOZES AUSENTES NA SELECAO DA CULTURA ESCOLAR Quando analisamos detalhadamente os contetidos que sio objeto de atencao explicita na maioria das instituigdes escolares e nas propostas curriculares, chama nossa aten¢&o a presenca abusiva das denominadas culturas hegemGnicas. As culturas ou as vozes dos grupos sociais minoritarios e/ou marginalizados, que nao dispdem de estruturas importantes de poder, costumam ser silenciadas, ou mesmo estereotipadas e deformadas para anular suas possibilidades de reacio. Entre estas culturas ausentes pode- mos destacar as seguintes: * As culturas das nagdes do Estado espanhol. As culturas infantis e juvenis. As etnias minoritarias ou sem poder. O mundo feminino. * As sexualidades lésbica e homosexual. * Acclasse trabalhadora e o mundo das pessoas pobres. * O mundo rural e ribeirinho. a * As pessoas portadoras de deficiéncias fisicas e/ou psiquicas. * Os homens e mulheres da terceira idade. As vozes do Terceiro Mundo. cee 132 — Jurjo Torres Santomé As Culturas das Nagées do Estado Espanhol Algo que praticamente nao € considerado parte importante dos con. tetidos e tarefas escolares nas instituigdes educacionais é a preocupacig pelas diferentes culturas nacionais. Em €pocas muito préximas, especial. mente no perfodo da ditadura do generalissimo Franco, a existéncia de uma preocupacio obsessiva por “reconstruir” 0 conceito de nagio espa- nhola trouxe consigo um forte silenciamento e/ou ataque 4 idiossincrasia €, portanto, aos direitos de cada um dos povos ou nagGes que integram 9 Estado Espanhol. Esta repressiio das identidades nacionais espanholas era acompanha- da de um silenciamento e desfiguragao das diferentes culturas nacionais existentes em qualquer um dos outros Estados plurinacionais reconheci- dos. Assim, por exemplo, nos materiais curriculares oficiais durante a dita- dura franquista € impossivel encontrar qualquer alusdo existéncia das diferentes nagGes que integram Estados como a ex-Uniao Soviética, os Estados Unidos, 0 Reino Unido, o Canada, a Iugoslavia, etc. Quando algu- ma vez aparece a denominacao de algumas dessas na¢Ges, isso acontece de modo similar ao conceito mais folcl6rico de “regiao” sustentado pelos defensores da ditadura. e Entre suas linhas de a¢ao mais urgentes, a ditadura do general Franco realizou uma forte repressao das culturas, especialmente dos idiomas pré- prios das nacionalidades; esta repressio foi ainda mais sentida naquelas comunidades nacionais que careciam de uma burguesia autéctone com- prometida com a defesa da identidace nacional, como a Galicia; ao contra- rio, a Catalunha e o Pais Basco, contando com o apoio de sua prdpria burguesia, conseguiram conservar acesa a tocha da defesa de suas identi- dades nacionais. Quantos preconceitos e estereétipos negativos sobre comportamen- tos e caracteristicas do povo galego, basco, catalio, andaluz, etc., nao pas- sam da tradugio de atitudes de ataque, negacao ou silenciamento dos seus sinais de identidade? Os periodos ditatoriais no Estado espanhol podem ser caracterizados pela construgdo de uma mentalidade chovinista espanhola. Os livros de textos aprovados por esses governos para serem utilizados nas instituigdes escolares, especialmente nas areas de Ciéncias Sociais, dedicavam-se a enumerar todas as facanhas bélicas “gloriosas” realizadas por grandes ho- mens (nunca mulheres) em defesa da “raga e nago espanhola”. Implicita- mente contribufa-se, assim, para gerar um forte sentimento de ddio com relacao a tudo aquilo que recordasse ou fizesse alusao 4s idiossincrasias nacionais negadas. Atualmente estes sentimentos ainda nao se diluiram nem anularam totalmente. E possivel ver a reafirmacio de um notivel sentimento antinacionalista, na medida em que € propagada uma mensagem explicita Globalizagio e tnterisci 133, e implicita sobre apenas uma concepgio de nacionalismo, a da dircita |itica ou de totalitarismos fundamentalistas, impregnada de manifesta- goes xenéfobas. Nao podemos ocultar que hoje em dia, para muitas pes- s0as, nacionalismo € a mesma coisa que racismo, egoismo e intransigéncia, Eninguém se detém para analisar as diferentes concepgdes de nacionalis- mo existentes. Da perspectiva da esquerda democratica, a defesa da identidade nacio- nal nunca se aliou a posturas de racismo; pelo contririo, sua atitude foi solidaria, respeitando e valorizando as diferengas, A nacio é 0 espago no qual é forjada a identidade social dos diferentes grupos humanos. A aceita- ao da prépria identidade € uma das principais condigdes para saber valo- rizar a dos demais. A transformacao da consciéncia nacional em patologia, elaborada com base em uma consciéncia de superioridade, de total auto- suficiéncia, € o que explica a apari¢io de uma consciéncia e comporta- mento racistas. Como ressalta Benedict Anderson (1983, p. 136), “o pesadelo do racis- mo origina-se em ideologias de classe mais do que nas de nagio". Nio é raro escutar argumentos baseados em pretensdes a ter direito a um destino mais importante gracas a intervencdes da divindade, a escolha realizada por esta de seus governantes, 4 posse de sangue “azul” ou “branco” de seus membros, ou 4 transmissio por “heranca genética” de determinadas condigées e privilégios. Um curriculo democratico, que respeite a diversidade politica, cultural e lingiiistica, tem de oferecer a possibilidade de que todos os alunos ¢ alunas compreendam a hist6ria, tradi¢do e idiossincrasia da sua propria comunidade. Isto implica necessariamente em conhecer também a dos demais povos do Estado, no marco de uma filosofia de respeito, colabora- ao e solidariedade. As Culturas Infantis e Juvenis Outra das grandes auséncias e ocultagdes com relagao aos préprios alunos so os modos de vida dos grupos infantis e juvenis, tanto de hoje como de ontem, em nosso pais e em outros lugares da terra. E isso sucede apesar de numericamente ‘eles representarem wma parte importante da humanidade. O adultocentrismo de nossa cultura leva-nos a uma grande ignorfncia sobre o mundo idiossincratico da infincia e da juventude. Meninas e meninos desconhecem por que 0 sio, qual é o significaclo desta etapa de desenvolvimento, quais sio seus direitos e deveres. Todo seu mundo de relagdes, gostos, interesses, brincadeiras e brinquedos pra- ticamente nao é objeto de atencio, reflexao e critica no Ambito das institui Ges académicas. Apesar de se dizer, 4s vezes insistentemente, que a brin- 134 __Jurjo Torres Santomé 134 _Jujo Tores Sinomé 9 SE cadeira € a principal atividade durante a etapa infantil, como atividade escolar, poucas vezes sio oferecidas possibilidades de refletir e analisar as razdes de cada brincadeira infantil, das peculiaridades e significados dos brinquedos, etc. Um notivel grau de sentimentalismo dos adultos provoca 0 desejo de colocar a infincia em um mundo paradisfaco. Neste periodo de desenvol- vimento, os sujeitos sao considerados ingénuos, inocentes, desprotegidos, etc., €, portanto, no teriam maiores preocupacoes, interesses € desejos. Esta filosofia causa o silenciamento cle outras infancias “mais reais”, fazendo com que no perfodo de escolarizacio obrigat6ria nao exista uma clara intencionalidade de estudar, como contetidos escolares, as condi¢des é modos de vida da infincia pobre, de meninos e meninas de um mundo rural e ribeirinho, das condig6es de vida infra-humanas dos habitantes do Terceiro Mundo, etc. Através de qualquer meio de comunicagao de massa, podemos constatar que atualmente existem muitas zonas de guerra, luga- res onde existem guerras civis, insurreigdes, disputas de fronteiras, etc., que afetam seriamente a infancia; entretanto, tais problemas nao existem quando relemos a maioria dos livros-texto escolares. Nao podemos deixar de frisar que a propria guerra significa coisas diferentes para distintas pes- soas. Para muitos jovens pode ser identificada como “aventura”, para ou- tras pessoas traduz o desejo de gléria; para outros nao passa de simbolo de perda e dor; e também pode ser o caminho que determinadas pessoas utilizam para enriquecer. Nao podemos esquecer que muitas industrias e mesmo paises vivem as custas do armamento que fabricam para guerras alheias. Nos paises afetados por situacdes de guerra, fome e pobreza, a infan- cia que neles vive e sofre nao se parece de forma alguma com a de outros paises e lugares. Em um mundo que definimos como “aldeia global”, o conhecimento destas injusticas € imprescindivel para gerar a solidariedade suficiente que permita acabar com as desigualdades e injusticas causadoras de tais contflitos. Nossa sociedade e, conseqiientemente, os espacos obrigados a refletir criticamente sobre nosso mundo, isto é, as instituigdes escolares, nao po- dem ignorar situagGes de injustica que afetam a infaincia. Assim, nao pode- mos silenciar que existem meninos e meninas objeto de trafico de orgios e vitimas de “Esquadrdes da Morte”, como sucede no Brasil e em muitos outros paises sul-americanos ou, em geral, nos paises do Terceiro Mundo. Os assassinatos de criancas pobres, as agress6es e torturas fisicas e sexuais, os trabalhos desumanos, etc., sio uma triste realidade que praticamente nao merece a atencio das instituicdes de ensino. Os alunos devem adquirir consciéncia destas tristes realidades e com- Prometer-se com essa infancia maltratada, na medida de suas possibilida- des e forcas. Uma forma de preparar as novas geracGes para a vida e para Globalizacio ¢ Inter iplinaridade 135 “gobreviver” é informando-as claramente sobre as peculiaridades do mun- do no qual vivem. Nesta tarefa de ajuda da reconstrugao da realidade realizada conjunta- mente por alunos, alunas e corpo docente nas institui¢des escolares, preci- samos centrar a aten¢4o na realidade e na cultura que definimos como tal; naquilo que assumimos que existe e vale a pena, naquilo que precisamos transformar, etc. Os programas escolares e, portanto, os professores e professoras que rejeitam ou nao reconhecem a cultura popular e, mais concretamente, as formas culturais da infancia e da juventude (cinema, rock n’ roll, rap, hist6- rias em quadrinhos) como veiculo de comunicagio de suas visdes da rea- lidade e, portanto, como algo significativo para os estudantes, esto per- dendo uma maravilhosa oportunidade de aproveitar os contetidos cultu- rais € OS interesses que estas pessoas possuem como base da qual partir para o trabalho cotidiano nas salas de aula. Uma instituicao escolar que nao conseguir vincular essa cultura juvenil que os jovens vivem t&o apaixo- nadamente em seu ambiente, em sua familia, com seus amigos e amigas, etc., com as disciplinas mais académicas do curriculo, esta deixando de cumprir um objetivo assumido por todo mundo, que é 0 de ligar as institui- Ges escolares ao ambiente, como tinica maneira de ajudar os estudantes a melhorar a compreensio de suas realidades e a comprometer-se com sua transformac¢ao. Uma das missdes-chave do sistema educacional é a de contribuir para que alunos e alunas possam reconstruir a cultura que essa sociedade con- sidera mais indispensavel para poderem ser cidadaos e cidadas ativos, so- lidarios, criticos e democratas. Por isso, é 6bvio que nao podemos partir de uma ignorancia daqueles conhecimentos, destrezas, atitudes e valores cul- turais apreciados e defendidos acima de todas as coisas pela juventude. Os curriculos planejados e desenvolvidos nas salas de aula pecam de grande parcialidade na hora de definir a cultura legitima, os contetidos culturais que valem a pena. Entre outras coisas, isto faz com que determi- nados recursos sejam ou nio utilizados, meregam nossa-atengdo ou nossa displicéncia. Costuma haver coincidéncia no fato de que as instituigdes educacio- nais si0 um dos lugares mais importantes de legitimag’io dos conhecimen- tos, procedimentos, habilidades e ideais valorizados por uma sociedade, ou pelo menos pelas classes e grupos sociais que possuem parcelas decisi- vas de poder. Todos os contetidos e formas culturais considerados relevan- tes por tais grupos facilmente serio encontrados em alguma disciplina ou tema de estudo nas salas de aula. Ao revisar as disciplinas dos diferentes cursos e niveis do sistema educacional e seus correspondentes temas, per- ceberemos rapidamente 0 tipo de cultura que a escola valoriza e contribui para reforcar, enquanto notamos as auséncias, isto é, tudo aquilo que essa mesma instituic&o nao considera digno de ocupar sua atengio.

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