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3. Trauma e simbolizacao Olé, caro colega, sobre o que gostaria de conversar hoje? Sobre um tema que vem aparecendo desde a nossa primeira con versa: 0 trauma e seus efeitos psiquicos. Sei que o sentido de trauma para a psicanalise ndo & 0 mesmno do senso comura Tem raziio, No senso comum, a gente diz “fiquei traumatizada” com muita facilidade, As vezes, tem a ver com a definigio psica- nalitica de trauma; as vezes, no. Na definigao oficial, met \égica, dada por Freud em 1920, trauma é um afluxo excessivo de energia que rompe 0 escudo protetor, invade 0 aparetho psiquico 0 desorganiza. Conhego essa definigiio. Mas receio que seja um conkecimento dissociado da clinica Voce quer saber quais sio os efeitos clinicos do trauma, isto é + que tipo de softimento psiquico ele produz? © aparelho psiquico pode ser pensado como tum aparelho de digestao e metabolizagio 82 TRAUMA B sinMoLIZAgAD de nossas experiéncias nocionais, que funciona 24 horas por di (ainda que de maneira incompleta). Bssa fungao, chamada simbo- lizante, se da em dois tempos: +O primeiro impacto da experiéncia (a experiéncia em estado bruto, seus dados sensoriais, perceptivos, aletivos e motores, chamados tragos mnésicos ou matéria prima psiquica) pre cisam ser transformados em imagens mentai Essa primeira inscrigdo psiquica da coisa, na qual a matéria-prima psiquica é transformada em representagio-coisa, é simbolizagao primé ria (ROUSSILLON, 1999). + O segundo tempo da simbolizagio, a simbolizagao secundaria, -nlagao-coisa em representagio-palavra: la ¢ inscrita no aparelho de linguagem e pode ser comunicada transforma a repre verbalmente. Pois bem: 0 efeito clinico do trauma ¢ interromper esse pro- ccess0 em algum ponto, Roussillon diferencia o trauma prima que impede a simbolizagao priméria, do trauma secundério, que impede a simbolizagao secundaria Enquanto voce explicava, me veio d imagem as duas etapas en volvidas na preparagiio de po, A primeira transforma as espigas de trigo em farinha. A segunda, farina em pao. Seria algo assim? Sua analogia ¢ étima, muito didatical Se me permite, gostaria de usé-la nos meus cursos ~ naturalmente dando os créditos a vocé. (Risos.) Espigas podem virar comid as espigas. Nao da para la, mas a gente nao pode comer pao com espigas, Da mesma forma, © psiquismo nao pode trabalhar com @ materi prima em estado bruto. f preciso transformar os tragos mnésicos da experiéneia, as espigas, em farinha, que correspondem as representagbes-cois a simbolizagao priméria. MARION MuMERRO 8S Farinha jé é comida, tanto que a gente pode comer massa de bolo crua. A representagao-coisa jé € psiquica. Mas para ser ins ta no aparelho ce linguagem, a representagao-coisa precisa se ligar 4 uma representacio-palavra. &a simbolizagio secundaria Note que, do ponto de v diferentes envolvidos nisso: o primeiro é debulhar e moer os grios a da técnica, hé dois processos bem de trigo; o segundo ¢ fazer uma massa e colocar no forno. © sanalista também trabatha com “técnicas" diferentes para pro piciar a simbolizagao priméria e secundéria? Sim, definitivamente. Em seu livro Le jew et Ventre je(w), Roussillon (2008b) diferencia claramente dois modelos para o tra- balho analitico. A simbolizagao primaria exige que o analista tra balhe de acordo com 0 modelo do jogo. Ele tem uma postura mais, implicada ¢ participa ativamente do processo por meio do qual a compulsio repeticao vai sendo transformada em repetigio sim- bolizante. Para a simbolizagao secundaria, o analista trabalha se: gundo o modelo do sonho, em que o paciente produz associages livres interpretadas por um analista, cuja postura é mais reservada, mais discreta, Vou Ihe trazer dois casos que ilustram como esses dois modelos se articulam, Por enquanto, vale sublinhar que 0 trauma primétio é © que impede a transformagao de espigas em farinha, ¢ 0 secundério, da farinha em pao. Isso quer dizer que o traunta primdrio bloqueia a simbolizagao pri “miria ¢ 0 trauma secundério impede a simbolizagdo secundaria, Vou precisar mesmo da ajuda dos dots casos linicos para entender iso. Ideias novas nos dio trabalho, mas valem a pen evei um, tempo para entender que o trauma primério leva a constituicéo de niicleos psicéticos, enquanto o secundario, de niicleos neurstices. 84 TRAUMA siNBOLIZAGRO Se eu tivesse que resumir em uma frase o objetivo do trabalho ana. litico, seria oferecer condigdes para que o paciente possa realizar seu trabalho de simbolizagao do traumatico. Freud comegou falando de trauma em 1895 (FREUD, 19750), quando relacionow a histeria com o trauma da sedugdo. Era algo , real, que tinha acontecido com a criana, Mas depois, em 1892, aca bow se convencendo que ndo era possivel que fantas criangas tives sem sido seduzidas. A sedugdo ndo tinha acontecido na realidade, ‘mas era uma realidade para 0 psiquismo, criada pelo desejo e pela sexualidade infantil. E como vocé mencionou, em 1920, le voltou a falar dle trauma como um acontecimento que rompe o escudo pro: letor. Afinal, o que é interno e o que é externo nesse acontecimento? Como vocé ja deve ter percebido pelas conversas anteriores, no sou muito chegada a revis6es histdricas do tipo académico, HA excelentes trabalhos nessa linha que vocé pode consultar. Eu me interes 30 mais por autores que extraem da bibliografia os prandes movimentos do pensamento psicanalitico, fo caso de um artigo do Roussillon (2002), que mostra os pontos de inflexio mi fleativos da teoria do trauma. Como voc? disse, 0 pontapé inicial foi dado por Freud nos Es sudos sobre histeria, publicado em 1895 (FREUD, 19750). Naquele momento, ele vé o trauma da sedug3o como um acontecimento externo, pensado em termos absolutos, independente do psiquis: mo que o sofre. Mais ou menos na mesma época, na parte II do projeto, Freud (1975n) mostra, com o caso Emma ~ que desde a adolescéncia apresentava fobia 20 entrar em lojas ~, que o trauma se dé em dois tempos. O tempo I do acontecimento sexual se cié quando ela tem 8 anos, em uma confeitaria, aparentemente sem deixar marcas. Mas cos 12 anos, quando entra em uma loja, a risada dos vendedo- ado, A fobia comega esa deixa aterrorizada e ela sai corre! Por que aquela risaila a aterroriza? Porque 86 agora, no tempo II, com a puberdade, ela esté em condiges de atribuir um sentido ao que aconteceu aos 8. © trau ma aqui no é apenas o acontecimento externo, mas uma articula ao entre elementos internos ¢ externos. F, por isso, que o que tem valor traumatico para uma pessoa nio tem, necessariamente, para ao de cada outta. Ou seja, ele € relativo & capacidade de simboliza psiquismo a cada momento. Um terceiro ponto de inflexiio se dé em 1920. Freud fala do tra ma como aquilo que produ efragio psiquica, mas nao especifica a sarmos que © natureza do acontecimento, Isso abre espaco para pe trauma no precisa ser de natureza sexual para produzir esse efeito. Nessa linha, Ferenczi (20116) afirma que 0 traumatico nio era gacao por parte aperas 0 abuso sexual, mas principalmente sua n dios adultos Bem lembrado. No texto que estou citando, Roussillon (2002) assinala dois novos pontos de inflexio que devemos a ele: + Ble inclai na cena traumitica um adulto cujo modo de pre a € téxico em si mesmo, pois quando nega que algo ter rivel aconteceu, quando protbe a crianga de falar sobre isco, bloqucia sua possibilidade de elaboracao. + Mostra que 0 trauma sexual produz softimento narcisico e efeitos patogénicos na constituigio do eu, jé que a ctianga ten- * dea atribuir a culpa do que aconteceu a si mesma. Surge a no- go de trauma narcfsico. 86 TRAUMA E siMaoLIZAGAo Ferenczi (201 Ic) foz wirias outras contribwigdes importantes ¢ teoria do trauma. 7 ‘em razio. Nao entendi por que Roussillon “passou batido” por elas. Talver. porque ele sé queria chegar & nosso de trauma narefsico, ponto de partida para sua propria contribuigao a teoria do trauma Em A crianga mal acolhida e sua pulsto de morte, de 1929, Ferenczi (2011a) mostra que 0 bebé mal narcisado pelo ambiente desenvolve micleos melancélicos, ¢ relaciona certos distirbios na constituigdo do eu ao trauma precoce. Em Confusao de linguas, pu: blicado emocionais so transfor madas em “psiquiatras” ¢ passam a cui- 1 na impossibilidade de metabolizarem ssional ~ erétiea ou violenta — do adulto. 1932, ele afirma que as criangas submetidas a choques dar de “adultos enfurecidos, de certo modo loucos” (FEREN 2011b, p. 105). 1580 sem f a linguagem p: Sendo me engano, foi Klein (1996a) quem trouxe importantes ideias para a teoria da simbolizagéa em A importancia da formagao de simbolos no desenvolvimento do ego, publicado em 1930. Fxatamente, Bla afirma que a angistia moderada gerada nas relacgdes de objeto obriga 0 ego a procurar substitutos nos abjetos do mundo, colocando em marcha 0 processo de simbolizagio. Ja a anguistia excessiva, como no caso Dick, mobiliza defesas que blo- ‘queiam esse processo, Mas ela nao ligou explicitamente esse exces: 50 de angiistia situagao traumatica Roussillon, que vern estudando a metapsicologia da simboliza: ao ha muitos anos, fez uma contribuigdo que me parece essencial. Ble afirma que a situagdo traumatica bloqueia o proceso de simbo. lizasio, porque ela “mata” a possibilidade de haver prazer no vineulo primério entre a mie e o bebé. Vou falar disso daqui a pouco. MARION MiNEREO 87 Por enquanto, ainda com Ferenczi, o traunvitico tem a ver com al, a varias formas de inaclequagio e de toxicidade da figura pare ¢ clas sio agravadas quando 0 adulto nao asreconhece ou quando ‘as desmente. Mas por que ele as desmente? Eu acho que o desmentido se deve ao fato de que 0 adulto esti atuando questées que sio inconscientes para ele, Por isso, ele ndo tem como reconhecer a toxicidade de certo modo de presenga. f importante lembrarmos disso para nao ficarmos com raiva dos pais. (Riscs.) Seja como for, depois de Ferenczi, o trauma nao pode ser redu- zido a um acontecimento Ginico, com dia ¢ hora. Ele € cumulativo. 1 simplesmente " que parece algo Nesse sentido, a expressio “situagao traumitica’ “o traumatico’, soa mais precisa do que “traun mais pontual Como voce sabe, Winnicott também toma em consideragio 0 papel factitador ou patogenico do ambiente e aprofunda a ideia de trauma narcisico com a nogdo de agonia psiquica Como ele define agonia? (0 tempo X éaquele em que o aparelho psiquico usou e esgotou seus recursos para lidar com o excesso de excitagao: autoerotismo, capacidade de ligagao, de descarga, de adaptacao, agressividade ¢ fuga. A stuagio € apenas potencialmente traumatica, mas acaba se tornando realmente traumatica em fungao das respostas inade: _quadas do ambiente nos tempos y ¢ ” No tempo X + ¥ ha duas possibilidades. No melhor dos ca 808, 0 sujelto encontra um objeto de socorro e consegue firmar um? contrato nareisico com ele: “Voce me salva e eu pago 0 prego que 8S TRAUMA H statMOLIZAGAO océ pedir”. Conhecemos bem, na clinica, as aliangas francamente patoligicas que o sujeito estabelece com o objeto visto como “sal- vador’. No pior dos casos, 0 sujeito espera encontrar um objeto de socorro, mas no consegue firmar um contrato narcisico com ele: 4 porque o objeto simplesmente nao aparece; ou porque exige um prego impossivel de ser pago; ou porque, quando aparece, torna as coisas piores. A res o de raiva impotente sinaliza a entrada no terceiro tempo X + Y +Z, que é de franca agonia, No tempo X + Y + Z, 0 estado de sofrimento se prolonga por lum tempo além do suportével. O sujeito j6 nao tem esperanca de ser salvo pelo objeto e entra em estado de agonia. A raiva impoten. te cede lugar a um estado de desespero existencial, em que 0 su- jeito sente uma vergonha imens de ser/existir, sente-se culpado ¢ responsdvel por nio ter conseguido resolver a situaglo traumatica Reconheco claramente esse efeito do trauma na minha dlinica, Se é que entendi, hd dois elementos que compdem a situagio traw ‘miética: 0 que se passa e a impossiilidade de ilar sentido ao que se passa, seja porque o ambiente nao consegue prover as condigdes para a simbolizagao da experiencia, seja porque o psiquismo nao estava preparado para o que acontecen. ‘Em 1920, Freud (19754) jé havia percebido a importincia do susto ‘ou terror na situagao vivida como traumitica. O fato é que a angistia sinal (FREUD, 1975b) prepara a pessoa para o perigo, possibilitando «que ela tenha mais condigbes de reagir ao que ameaga sua integri fisica ou psiquica. Mas quando a situagio parecia familiar, tranquila,a pessoa babea a guarda erelaxa,ficando vulnerével, passive de ser pega de surpresa, Quando isso acontece, o eu é invadido pela angtstia au- tomitica. fla que bloqueia, pelo menos temporariamente, o trabalho de simbolizagdo e, por isso, desorganiza o psiquismo. Lembro-me de uma vez em que fui assaltado, Bstava voltando de um restaurante préximo d minha casa, ao qual vou sempre jantar com minha filha. Do nada apareceu um motoqueiro, que apontow uma arma enorme na cabeca dela, exigindo dinheiro e celulares. Na hora, fiquei aterrorizado, senti um n6 nas tripas, para usar unt fer- ‘mo popular que descreve bem essa invaso pela angristia automnética ‘Mas depots, durante uns dois meses, 0 mundo parecia outro, diferen- te, ameagador, nada estava direito no seu lugar. £ dificil descrever a sensagao de absoluta estranheza do mundo; é como carsinhar sobre tum chao que mais parece uum colchao de dgua, vendo as coisas de sempre como se estivessem turvas, fora de foco, inquietantes. Bexatamente a experiéncia subjetiva que se tem coma ruptura do para-exsitagio, o escudo protetor do aparelho psiquico descrito por Freud. A sensagio que voce descreve € 0 estado de sideragio ‘pés-traumitica, No seu caso, a angistia psicética durou uns dois ‘meses, tempo necessirio para a reconstituigio da pele psiquica 1 imagine agora o que acontece com o tenro escudo protetor de uma cranga pequuena, cujos pais amorosos se transformam, de repente, em gigantes furiosos porque ela fez alguma coisa que nao devia, Bla fica aterrorizadal 2 quando cenas desse tipo se repetem diariamente Bion (1962) fala em terror sem nome. Deve ser mais, bem mais aterrorizante do que um assalto, que. pelo menos tem nome, Lembro que passe varios dias contando do assalto as pessoas priximas, Acho que fazia parte do meu trabalho de elaboracao. O ambiente ajudow, jd que, feliz ow infelizmente, vérias pessoas tinham passado por si- tuagto semelhante e, por isso, se identificavam comigo. oferecendo © ambiente favorece a simbolizagéo primé “objetos” que interpretam para a crianga 0 que ela esté vivendo. 90 TRAUMA # simBoutangao Primeiro ¢0 psiquismo da me que faz isso, Depois, o brincar eriat- voe as histérias infantis. O neto de Freud inventow 0 jogo do carretel para tornar perceptivel e “domindvel” a experiéncia de auséncia e © retorno da mae. 4 historia da Chapeuzinho Vermelho interpreta para erianga os desejos e 0s conflitos da crian a edipiana. E ali, com isso, pode elaborar eintegraro que sent. jo exemplos do ‘que Bollas (1992) chama de objetos transformacionais Os adultos também usam objetos culturais para ajudar a trans: formar sua experiéncia psiquica cotidiana. Quando a fungio sim. bolizante exercida pelo ambiente € internalizada, 0 sujeito pode sonhar, de modo que a simbolizacao primaria passa a ser realizada de maneira autonoma por seu proprio aparelho psiquico. Nesse sentido, o sonho é autossimbolizante (ROUSSILLON, 2012b). O bloqueio mais ou menos extenso do proc «90 de simboliza «ao primdria tem muito a ver com a miséria simb ica do ambien- te. Note que uma familia pode ser rica ¢ viver em estado de miséria simbélical Como eu disse, o primeiro ambiente simbolizante é o psiquismo materno. F ele que permite a crianga fazer as prime ras liga da pulsionalidade em estado bruto. Quando isso no acontece, a pulsio pres jona em diregao a descarga. Ha uma tenta- tiva de ligi-tas “fora” do psiquismo, por meio do recurso a drogas, compulsoes, fanatismos de todos os tipos ou, quando nada disso funciona, por meio de atuagées violentas. Eu acho que o mundo esté cada vex mais violento por causa da miséria simbélica que ca racteriza essa nossa civilizagao (MINERBO, 2013b). E assustador! Voltando a idteta de trauma em dois tempos, voce estenderia essa nogao também para o trauma narcisico? Sim. Vamos primeiro entender direito a ideia de trauma em dois tempos (FREUD, 1975n). Como jé disse, Emma conta a Freud MARION MOMERBO 9 da vendedor da confeitaria. E, aos 12, em que um vendedor tie ela dois acontecimentos: um aos 8 anos, em que ela € bolinada j foge aterrorizada. Depois disso desenvolve a fobia a lojus. A pri- meira vista, no conseguimos perceber 0 que hé de tao aterrori- zante em uma simples risada. A equagio nio fecha. A genialidade de Freud foi perceber que, aos 8 anos, ela sentiu prazer— tanto que cla voltou a loja depois disso — e que esse prazer foi recalcado. A equagao 36 fecha quando incluimos o retorno do recaleado, desencadeado pela risada dos vendedores ~ ¢ esse & 0 segundo tem po do trauma, Emma a interpreta inconscientemente, como se os vendedores soubessem de seu “segredo vergonhoso". Qual? Que ela sentiu prazer ao ser bolinada aos 8 anos, Nesse sentido, a risada é a situuagao atual, que “acorda” o que foi recalcado no primeiro tempo, ce que “retorna’ para assombri-la. a anilise que vai colocar em co: (0 0 prazer que sentiu aos 8 anos, quando © vendedor da con- feitaria tocou em seus genitais, ¢a risada do vendedor da loja. Para usar aquele seu modelo das espigas, farinha € pao, aqui o analista, usa uma “técniea” que propicia a transformagio da farinha em pao. Eo trabalho de simbolizagao secundaria do que estava recaleado. Isso mesmo. Agora vou dar um exemplo de como um acon- tecimento Lardio, atwal, “acord: © trauma narcisico, que tam bém retorna para assombrar o paciente. S6 que, em ver de fa lar em retorno do recaleado, vamos falar em retorno do clivado (ROUSSILLON, 1999). A defesa priméria que o psiquismo mobi “liza para sobreviver frente ao traumatico é a clivagem. O sujeito se retira da experiencia, age como se ela nao tivesse acontecido, Ela deixa de estar disponivel psiquicamente para ele, Na sua analogia, as espigas sto colocadas m um canta ¢ nao sio levadas para 0 moinho para serem transformadas em farinha. Parte do processo de simbolizagio primaria € bloqueado. ‘RAMA # SiMBOLIZAGAO Imagino que 0 retorno do clivado se da, clinicamente, de uma maneira diferente do retorno do recalcado, Exatamente, Se vocé se lembra de nossos dislogos anteriores, tenho me referido com frequéncia a uma paciente, Marcia, que & tomada por um ddio quase sassino quando o m ido deixa sua calga sobre a cama em ver de penduré-la no armirio. Lembro, sim. Mas que exagero! De fato, essa equagao ndo fecha, a menos que a gente suponha que a visio da calga sobre a cama a retraumatiza, assim como a risada dos vendedores retraumatizou Emma. Precis que ela vé quando a calga est sobre a cama. mos saber 0 em essa informagio, no vamos entender nada, Pois bem: ela vé um marido que empur- ra para ela uma tarefa que caberia a el. E dal? Precisa ficar com tanto ddio po* causa disso? No caso dela, sim, Porque a leitura que ela fax da calga sobre cama toca em Im nervo exposto, consequéncia do trauma pre la se sente abusada pelo marido da mesma forma que se sentia abusada pelo objeto primairio, que Ihe empurrava a conta do trabalho psiquico que cabia a ele. Naturalmen ela foi uardei essa construgio para mim mesma. Mas ria para que pudes intonizar com seu sofri- mento psiquico, em vez de achar que & um exagero. Enfim, acabei entendendo que a calga na cama ¢ viv ia como abuso porque atua ‘io de abuso anterior, que est cli yada. Isso acontece porque ambas tém 0 mesmo jeitio: algo como ‘alguém forte abuisa de fraco” O alu retorno das espigas, isto 6, do clivado, liza alucinatoriamente uma situ 6rio & uma das formas do Hi outras? ‘Sim. Outra forma de retorno do clivado € a atuagao das identi fica ss cam 0 objeto agressor Ah, este conceito é de Ferenczi! Ele era um excelente clinico, Percebeu que, inconscientemente, Co outro, inclusive o analista, como foi tratado, F nos o sujeito tra sa chance de tentar ajudar o paciente a transformar essas espigas em farinha, Enfim, cabe lembrar que o retorno do clivado em suas duas formas (alucinatorio e atuagdes) apontam para um funciona. mento psicético da mente Entendi bem que o trauma precoce bloqueia o processo de sim bolizagac primdria, mas nado entendi como ou por que isso acontece. [A diivida & mais do que pertinente, Na verdade, € a idela mais importante desta conversa, Preste atengio, Como se sabe, ao ma mar, o bebé tem um prazer ligado a autoconservacao: 0 ato enche a barriga e mata a fome, £ um “a mais de prazer” ligado & estimu- a boca. A novidade introduaida por ue, além destes prazeres experimen: lagao de uma zona erdgena, Roussillon (2008a; 2008b) ¢ tados unicamente pelo bebé, hi um prazer, ou melhor, uma satis- facio — 0 termo prazer tem a ver com descarga ~ ligada 4 comuni: cagao corporal € emocional entre a mae e o bebe, Essa satisfacao é compartilhada por ambos, tamentar, a mae tern prazer, no Pouco se fala de como, a0 « ‘apenas erdtico, mas também narcsico - basta ver como 0 ganho de ‘peso do eb & omportante para sua autoestima. Fala-se menos ainda no prazer envolvido na troca de olhares, no ritmo compartilhado, no ato de que hié uma profunda conexiio emocional entre eles, enfim. ‘no fato de que eles estao se entendendo, MW TRAUMA & SIMNOLIZAGAO De fato, a experiéncia & muito mais complexa do que parece. M 1 para nds, adultos, encher a bacriga & bem diferente de um jantar especial com amigos queridos. Alids, a comida nem precisa ser especial: o jantar se torna especial por causa do clima afetivo e da conversa significativa Em relagio a amamenta \c40, 0 seio pode ser substituido pela mamadeira ou pela chupeta ~ nesse sentido, o objeto é contingen: fe, qualquer um serve, Mas a comunicagao primi nao aconte ce com qualquer um. ‘Tem que ser a mae, porque é ela quem est profunclamente conectada as nevessidades fisicas e emocionais do beba Fm geral, a dupla acaba criando uma linguagem prépria, na qual eles se entendem. & isso que vocé estd chamando de comunica ao primitiva? Exatamente! Este termo foi criado por Roussillon. Quando os corpos se comunicam bem, hé uma coreografia primitiva que flui Mas ha situagdes em que, pr \cipalmente por questoes inconseien- tes da mie, hi um desencaixe e um estranhamento no corpo-a corpo inicial: um pisa calos do outro! Enfim, & muito chato dangai no acha? No lugar do prazer necessétio, eles ficam assim, enganchados em uma relacdo que é fonte de sofrimento para am. bos. A auséncia de prazer vai prejudicar o processo de simboli zagio, que comega justamente no seio da comunicagdo primitiva (ROUSSILLON, 1999; 2001; 2008a; 20086). Quer dizer que o sofrimento dos calos pisadas, dia apés dia, aca 6a funcionando como traunta cumulative? Sim. © traumatico coloca ‘Tanatos em movimento, porque 0 aparelho psiquico te 4 como tarefa primordial defender o sujeito da MARION mineERRa 95, experiéncia dolorosa em que se transformou a coreografia primi tiva, A clivagem ea evacuagao das experiéncias dolorosas seguem na contramao do processo de simbolizs trauma e bloqueio da simbolizagio? . Percebe a relagio entre ‘Mais ou menos. Gostaria que voce fosse mais clara. Faltou dizer que o processo de simbolizagio depende de um funcionamento mental pautado por Eros, que ¢ a energia erdti ca. ou libido, que permite ao sujeito fazer as ligagoes psiquicas, de modo a reter as experiéncias emocionais no interior do psiquis- mo. Reter para ligar, ligar para reter: & nesse nivel microscépico da fisiologia do aparelho psiquico que se estabelecem as con fundanentais para transformar, digerir e integra. A libido é a eniergia necessiria para que 0 psiquismo tolere a complexificagio da vida psiquica, no lugar da simplificagio; para ‘que ele consiga digerir em ver. de evacuar; para estabelecer novas relagées internas ¢ externas, no lugar da tendéncia ao Zero, a0 Nirvana, a desobjetalizagao, como propos (1988a), Esse €0 regime psiquico pautado por Eros, que precisa predominar sobre “Tanatos. A simbolizagao tem que produzir algum prazer, caso con- trdrio sera odiada e at da, Vocé ja deve ter lido Bion, para quem ‘© funcionamento psicético se caracteriza por um vinculo ~ K, con- mento da experi¢ncia emocional dolorosa. um funcionamento tanatico, Como voct vé, é a libido produzida no vinculo primétio ~ no nivel da autoconservagio, do prazer erdgeno e da satisfac ligada A comunicagéo corporal/emocional bem-sucedida ~ que “instala” ( simbolizante no psiquismo, para usar uma terminologia bem atual 96 TRAUMA B siMMOLIZAGAO. Agora entendi, Quer dizer que sem libido, nada de trabalho psi- quico, Exato, Sem libido, nada de trabalho psiquico. E como 0 trauma produz sofrimento psiquico em vez de prazer, coloca em movimento unt regime de funcionamento mental defensi- vo, no qual as experiéncias dolorosas tender a ser evacuadas. A ex- periéncia deiva de estar disponivel no interior do aparetho psiquico para ser transformada ¢ integrada. Perfeito! Acho que agora podemos passar aos exemplos que voce me pro meteu para ilustrar as duas formas do retorno do que foi clivado para defender 0 sujeito do trauma primério. Primeiro, vou resumir para vocé um trabalho maravilhoso de uma psicanalista belga, Marie-France Dispaux (2002), que ilustra, com 0 caso de R rio, em como 0 pracesso de simbolizacao primaria, Depois, vou mencionar mais rapidamente o trabalho de um casal de analistas belgas, Jaqueline e Maurice Haber (2002), que traz Francine para |, retorno do elivado por meio do alucinaté. ilustrar o retorno do clivado na forma de uma atuagao, bem como a simbolizagao primiria que fot possivel naquela situagio, Sow todo ouvidos! Rafael chega atrasado na primeira entrevista porque "se per dew", Tinha mostrado este receio j4 a0 telefone. la percebera a inseguranga em sua vor. Veio por indicagao do psiquiatra. ‘Tem vontade de morter. © tom de vor é frio, cindido da mascara de softimento que Se vé em seu rosto. ua linguagem ¢ barroca, arti: culada, autossuficiente ¢ fria, mas, curiosamente, cle ndo des os olhos dela enquanto fala. ruda Conta que foi mandado a trabalho para outro pais ha seis anos, onde teve de lidar com um chefe exigente que s6 0 criticava. Poi se encolhendo até ndo conseguir mais fazer nada, ‘Travou. Voltou a sua cidade, onde nao consegue fazer nada, apesar da medicagio que esté tomando. No final da entrevista, a analista percebe que ele td esgotado, tal foi o esforgo emocional que ele fez, Na hora de ir mbora, cle leva muito tempo para conseguir sair do consult6rio. ‘A analista escuta 0 “tenho medo de me perder a caminho do consultério’ assim como se percleu no pais estrangeiro, como ex pressdo de um eu A deriva ~ o sofrimento narcisico-identitiio. Percebe a arrogincia defensiva que se expressa por meio de stia linguagem preciosa e fria. Percebe também que Rafael nao pode perdé-Ia de vista, nem antes, nem durante a entrevista, mostrando a necessidade que 0 eu te de um apoio sensorial para se manter do, minimamente orgai Junto com tudo isso, a analista se percebe tendo que se im: plicar de forma diferente com esse paciente, Logo de cara, a con. tratrans‘eréncia havia sido mobilizada pela inseguranga brutal de Rafael. Normalmente, ela conduz o paciente sua frente até a sala deanilise. Mas Rafael pede para ir atrés dela, Ela hesita um pouco, ‘mas pressente que é impor nte e faz. 0 que cle pede, Bla aceita ser ‘um pouco desalojada de sua zona de conforto e, com isso, fay con tato com 0 paciente, que esti totalmente desalojado da dele. A histéria de que Rafael conta é pobre ¢ tende a ser factual Pouguissimas lembrangas. O estilo muito formal, muito composto, deixa a analista perdida, Tem 38 ano: ditatorial,o pai era um alto funcionsrio desse regime. Quando tem -eu em pais em regime seis anos, a familia se muda para Bélgica e, li, o paciente é alfabe. tizadotem um francés empolado. Quando o regime muda, 0 pai perde o cargo oficial e nao pode voltar para seu pais. Tornam-se 98 TRAUMA F SIMBOLIZAGAO imigrantes comuns, sem dinheiro, Ele €bem-sucedido nos estudos, se casa, tem um bom emprego ¢ é enviado ao exterior a trabalho, quando descompensa. O tom de seu relato ¢ frio, desencarnado. Na terceira entrevista, ele fala com a mesma frieza sobre seu 6dio aos militares. O clima é pesado, opaco. Acompanhando-o & saida, a analista o “vé" vestido em um paleté tipo militar, verde, com botées dourados. Quando se despede, ela tem a sensagio de queele esta “habitado por outro”, No entender da analista, esse mo- mnento alucinatério (0 paleté nao tinha botdes dourados) indica uma clivagem no eu: uma parte do eu est invadido, habitado e colonizado pelo objeto traumatizante (representado pelo militar). combina Da mesma forma, a angustia do paciente esté clivada, com seu discurso tio articulado, mas é captada pela contratranste réacia da analista ‘A andlise comega no inicio de janeiro. A analista propde um_ enquadre de uma vez. por semana, face a face. Ue? Por que tao pouco para um paciente que esté tao fragilizado? Era um enquadre minimo para uma situagio tao grave, mas 0 tinico que ele conseguiria utilizar e do qual poderia se apropriar O face a face é porque ela havia percebido que ele precisava poder olhar para ela. Uma sesso apenas porque, como naquele momen- to ele estava muito desorganizado ¢ sem nogdo de tempo e espago, mais sesses semanas se fonte de tensio do que de ajuda, Mas cla deixou aberta a possibilidade de aumentar o néime- ro de sessdes quando ele pudesse fazer uso delas. A alteragao no enquadce viria de dentro para fora. Rafael passa a descrever naquela linguagem preciosista 0 va de seus dias, a dificuldade em se levantar da cama, sua errancia pe- Jos corredores do lugar em que trabalha, Fle nao consegue sequer MARION MIMERBO 99 ficar sozinho na sua sala, nem estar com as pessoas. Mesmo em sua casa, ndo consegue ficar na sala, no escritérios fica entre 0 quarto e a cozinha, ¢ evita 0 quarto dos filhos. Cotforme ele vai falando, a analista tem fantasma errante e impressio de ver um um mundo afetivamente desértico, Na sesso, Wo desgruda 0 olhar, mas quase néo aguentaas manifestagoes da presenca e da escuta da analista. Ape- Imosfera & parecida: € sar disso, nunca falta, As vezes, a analista tem a impressio de ver uum fio essociativo naquilo que ele diz, Se ela faz uma ligagaio entre uma coisa ¢ outra, ele ime * le se protege, iatamente a destrdi com um “e dai que gela o sangue da analista. Ela ve pergunta do qu ou nos protege, com a violéncia terrivel desse “e daf Um mes e meio depois, em meados de feverciro, Rafael diz.que teve um sonho bizarro antes de adormecer. “Estou em um mun do de fogo ¢ sangue’ Ble descreve a guerra, 0 barulho, o furor, © sangue 2 08 gritos com grande precisio, mas com sua linguagem afetada. O abismo que ha entreo que ele conta e como o faz. langa a analis em um mal-estar quase intoleravel. E, entao, para surpresa a analista, cle diz: “depois de ter imaginado tudo isso, por incrivel «que pareea, consegui dormir bent’ Aquilo era um sonho? Nao exatamente. Era uma das formas de retomo do elivador © alucinatério, que é uma forma de apresentagao do traumatico. f um material pré-psiquico, ainda em estado bruto; séo espigas que ele prec sara transformar em farina, E-como a analista o ajudou nesse processo? Ela nos conta que, durante muitas sessdes, eles entraram jun tos nese mundo de fogo ¢ de sangue, Nota que Rafael est mais TRAUMA E SIMROLIZAGRO animado, Ela sente que ha mais vida no meio do barulho, da fitria, do fogo e do sangue do que no deserto afetivo anterior. Inicialmen: te, 0 paciente fala desse horror como se estivesse dentro de uma bolha sozinho, Depois, a mulher € 0s filhos estao junto-com ele, Surge, entdo, a imagem da arca de Noé. Dispaux ji nao sabe di zer quem ~ cla ou ele ~ foi o “autor” dessa associagao, 0 que mostra que o trabalho vai sendo feito em coautoria. A imagem que surgi {alava simultaneamente do desamparo em meio tempestade e de ‘um lugar protegido, em que possivel sobreviver. Um tecido asso. ciativo, que ndo era nem aquela frieza do discurso altamente orga- nizado, mas defensivo, nem a violéncia bruta do mundo de fogo e sangue, vai sendo criado em torno dessa imagem. f uma primeira forma de interpretagao, ‘Mas essa conversa em torno da arca de Noé é uma interpretagao? Nao uma interpretagao classica, daquelas que propicia a sim bolizagdo secundaria. Mas é uma interpretagao se vocé ampliar 0 sentido do termo para qualquer intervengio do analista que gere novas associagbes, promovendo © proceso de simbolizagio pri miiria, Pois a imagem da arca jé é uma primeira transformagio do material alucinatério que se apresentava em estado bruto, ‘Veja, uma interpretagao que fizesse a conexio entre a arca de Noé ¢ a andlise poderia levar o paciente a dizer “é mesmo”: Mas 0 proceso associativo que estava apenas comegando seria interrom- pido quando ele concordasse com a analista. Em ver. disso, eles uusam 0 mito da arca de Noé de forma insaturada, para ir criando tum tecido psiquico, no qual havia um buraco de simbolizagio pri mitia, es falaram da devastagao do dilivio, do espaco protegido da arca e foram se lembrando, juntos, das variagdes desse mito nas diversas civilizagdies. Esse trabalho mediatizado por um elemento a cultura no era ameagador para ele; era algo que ele podia usar Manion wanexno 10 No fim de marco, Rafael traz uma primeira figura positiva: a av, Forte viva, espago de paz e liberdade, uma democrata, En quanto ele fala da avé, a analista “se vé" avangando lentamente na diregdo dele, com pequenos pasos. Na semana seguinte, ele co- menta umsonho de verdade: um sonho com sta av6. Bla se aproxi- ‘ma dele devagarzinho. Ele se emociona quando diz que ela morreu ha seis anos, Hi uma experiéncia emocional verdadeira, vivida em anilise, resultado do trabalho analitic. Ba coreografia primitival A avé-analista da pequenos passos, com cuidado; Rafael é sen- sivel a essa sintonia profunda e responde com outros passos. No meio de junho, ele volta a falar da vb. Trax uma lembranga de infaincia muito prazerosa, Lembra que falet que a energia psiquica priméria vem de Eros? ff isso que necesséria para a simbolizag esta acontecendo na coreografi ferencial. A lembranga de in fancia apenas confirma isso. Ele se lembra que ia com ela de trem para a praia, que gostava de viajar na parte aberta do trem, a sen sagio do vento na cara, da liberdade, Diz. que queria ser “motor ta de trem’, Surge uma primeira figura masculina admirada, Fala também de sua familia, da mulher, dos filhos. A esposa est sendo rregi-lo, No trabatho, comega a tima, cuida de tudo sem sobr se sentir melhor, dando conta de algumas tarefas. Chega agosto, més daslon em setembro, gostaria de ter duas sess0es por semana. as férias de vero, Rafael se angustia e diz.que na volta, Até aqui, Marie terpretagio classica. Nao faria sentido tentar desvelar contetidos trance Dispaux diz que no fez nenbuma in- latentes. Era preciso construir um continente psiquico, efetuar ligagdes primrias por meio de uma trama narrativa tecida com palavras'do paciente e da analista, Essa narrativa permite con ter a pulsionalidade bruta e violenta (tipicos de um regime de 102 TRAUNA K SHMBOLIZAGAO funcionamento mental tandtico), que aparecia tanto nas imagens do mundo de fogo e sangue quanto na maneira gelada com que cle destruia a fala da analista com seu terrivel “e dai?” A reconstrugéo do continente psiquico Ihe permite reencontrar wm sentimento de continuidade de ser, sentir-se contido por um envelope 56 entZo ele consegue fazer seu primeiro sonho por conta prépria, quer dizer, a partir de seus proprios recursos psiquicos, 0 sonho iquico. da arca de Noé ainda era um sonho a dois. Em setemibro, Rafael mostra prazer em retomar tanto 0 traba- Iho analitico quanto seu trabalho, Estrutura sua semana em torno das duas ses transferéncia, a angiistia diminui, A analista sente que Rafael vai des, que funcionam como referéncias. Na contra ganhando espessura psiquica. Na sessio, o clima esti diferente. A ‘rar’: faz, uma interpretagao prematura, mas analista ji pode até apesar da raiva dele, a situagio € reversivel. Nesse periodo, ele comega a trazet contetidos mais clissicos, ‘epresentagées de seus conflitos internos. Para usar a sua analo- gia, jah’ farinha disponivel para um trabalho de simbolizagao se cundiria, Fala do conflito do pai, que era democrata, mas servi ditadura de seu pais. Fala da sensagao de estar entre um pai exces: sivamente critico e uma mae deprimida, que se apoiava sobre seus filhos “perfeitos” para se sentir mais viva. Fala também da angistia que sente em certos ambientes de sa casa, de onde pode ver muro rachado do jarditn; tem medo que a casa inteira desmorone. ‘A imagem do muro rachado, ao contrério do mundo de fogo simbolo primério. $6 agora a sangue, jé,é uma imagem onirica, interpretagao clissica pode funcionar, fazendo a conexao entre 0 muro rachado, o medo do colapso ea catéstrofe primitiva, abrindo ‘caminho para a simbolizagio secundaria. Agora ele tem palavras Je desmorona quando vai para falar do que The aconteceu. Afinal, MARION MINERBO 103 trabalhar em outro pais, quando ele perde suas raizes, vepetindo a imigragio forgada da infancia eo desmoronamento do pai, que se vé obrigado a trair seus ideais para depois perder tudo ¢ ficar na miséria, (Com a gjuda da analista, ele pode usar a farinba para fazer seu pao, Belissimo trabalho! A ideia de que a simbolizagio priméria transforma 0 alucinatério ~ que é uma das formas do retorno do traunnitico que foi clivado ~ em sonho fica muito clara com esse relalo.‘iumbém fica claro que 0 trabalho analitico para passar de espiga para farinha é diferente daquele que promove a passagem de farina para pao, texto de Marie-France Dispaux conti esse trecho é suficiente para ilustrar nosso tema de hoje, Agora, vou te contar tum pouco do segundo caso, que lustra 0 retorno do traumiético clivado por meio de uma atuagao da paciente na situagio transfe- rencial (HAB! R; HABER, 2002). Esse tipo de atuagio € perigoso, porque a atualizagio do trauma retraumatiza © paciente ¢ pode levé-lo a interromper a analise, A atuago é sempre nao subjetiva da, isto é, nao € o proprio sujeito, \ alguém-no-paciente quem estd falendo ou agindo, Isso acontece quando, além da clivagem, a crianga usou outra defesa contra 0 traumético: cla se identificou com 0 agressor. Ao aluar essa identificagdo, temos a sensacio de que € © proprio “agressor” quem fala por sua boca, Por isso, € a outca ferma de retorno do traumtico. A anilise de Francine ia indo bem, sem incidentes de percurso, até que ela comeca a se queixar de que nio tem com quem deixar 9s filhos, esta com dores nas costas, esté dif pedir com i de vir ¢ passa a isténcia para passar de quatro para trés sessGes por semana. A analista tenta interpretar s0 € aquilo, mas, desta vez, as inter stetagdes rodam em falso. A paciente, que costumava estar aberta a associar a partir do que Ihe diz. analista, se aferra do 104 rRaDMA x srmnoLIZagao nivel concreto do ndmeto de sessdes. Por outro lado, ela nao tem a sensagao de que a paciente vai chegar e dizer que, em vista das dificuldades atuais, viré apenas trés vezes, Portanto, a questio nio € realmente o mimero de sessbes. Ao contririo, ld pelas tantas, a analista percebe que a forma chata, insistente ¢ tirdnica com que la se queixa sessio apds sesso € o material clinico em si mesmo. E.uma forma de agir sobre a analista e, por isso, deve ser entendido como material c 0 ainda em estado bruto: espigas. Nao é dle admirar que as interpretagdes rodem em falso: nito dé para transformar espigas diretamente emt pio! Pois é! Fela nao vai parar de se queixar enquanto nao houver simbolizagao primaria, porque esse material est4, de alguma forma ainda desconhecida, ligado ao trauma narcisico. Imagino 0 sofrimento da analista na contratransferéncial Jé me viem situagdes parecidas. mal- Conhecemos bem esse tipo de situagio! Mas note que, gum momento, seri preciso pensar que essa é a maneira que a pa- ciente tem de contar para a analista o sofrimento que a crianga-ne la viveu no vinculo primari Enquanto esse momento no chega, a contratransferéncia entra em cena de maneira muito sada. A analista comega a se sentir atormentada pela paciente, que a acu- sa de ser fria, insensivel, rigida e tirdnica. Fica em diivida: estar mesmo sendo rigida? Ou é melhor no mexer no enquadre en quanto nao entender 0 que esta em jogo na transferéncia? O fato & que hd uma geande pressio sobre ela. A t insferéncia psicética esta se atualizando nao apenas sobre o enquadre, mas sobre a andlise como um todo. Nao é 4 toa que a analista sente que a continuidade da anilise esia ameagad Bapressio da identificacao projetiva? Exatamente! Para nfo ser tio hostilizada, a analista se vé ten- I com a paciente, Essa contra-atuagio, ou contra o projetiva, mostra que, por enquanto, esta totalmente ando ser g identificagi identificada com aquilo que a paciente esté projetando nela, eten- \der dessa violéncia como pode, Mas que violéncia é tando se de essa? De onde vem? Com “quem” ~ que aspecto do objeto interno da pacente~a analista estd identificada? “Quem” esta falando com ‘a analista pela boca da paciente? A tinica coisa que d para afirmar é que essa situagdo tem a ver com 0 clivado. Por qué? Porque, como disse antes, a comunicagio por identificagio projetiva, que é uma comunicacia psicética, indica que estamos li dandoce Jo quea paciente far 1 espigas e nao com farinha. A pres: sobre a analista é, de algum modo, a mesma pressio que cla sofreu quando crianga. Os tracos de um modo de ser na relagdo com @ outro, que estao clivados, esto sendo atualizados na transferéncia. Quer dizer que quando algo esté sendo atuado é porque algo da ordem do traumitico nao pode ser transformado e integrado? m, € vice-versa: o que nao pade ser transformado pela simbo- nisso, aconteceu de a analista precisar de uma tarde livre naquela semana para ir ao médico ¢ decide desmarcar uma tarde em que Francine tinha uma de suas quatro sess6es! Esse incidente ~ que (08 autores entenderam como uma interpr ‘ago selvagem ~ inter romp a rede de comunicacio agida subterranea, ativa o potencial de simmbolizagio contido na atuagio ¢ possibilita a transformagio do agir em palavras. 106 TRAUMA H SIMBOLIZAGAD Primeiro, Francine reclamou muito de ter sido privada de uma de suas quatro sessées. Depois, o que acabou aparecendo foi que a paciente estava atuando um aspecto traumatico da figura materna Surgiram lembrangas de uma mae que passava o dia atormentando 0 filhos, queixando-se de que nfo aguenta mais, que as criangas sao tum fardo, que nao tem tempo para nada, as costas doem, o ma- rido nao ajuda em nada etc. A analista descobre, entao, que havia sido colocada, pela identificaca projetiva, no lugar dessa crianga traumatizada, Veja, a lembranga j indica a retomada da simboli zagio secundaria Espero que tenha ficado claro que uma anilise serve, essen- cialmente, para criar as condigbes de retomada do trabalho de simbolizagao bloqueado. Aos trancos e barrancos, a analista deu um jeito de recolocar o traumStico em jogo. A atuagao da analista abriu caminho para transformar a atuagio da paciente em sentido. Muito bons esses dois trabathos! O primeiro mostra a simbol 0 primdria do retorno alucinatério do traumético, e este, do re- orto agido do traumatico. Ambos também mostram como é preciso eriar condicies para que o trabalho de simbolizacdo secundeia seja posstvel e faca sentido para o paciente, Gostei muito de como os au tores que vocé me apresentou pensam sua clinica Eu também gosto do pensamento clinico deles. Vamos falar sobre esse tema na nossa proxima conversa?

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