You are on page 1of 19
Biografia: do estado da arte a pratica da escrita da vida em Jornalismo Monica Martinez! Resumo: O artigo discute, a partir da etimologia, os conceitos de biografia em areas distin- tas do conhecimento, como Ciéncias Sociais ¢ Literatura, enfocando as narrativas biografi- cas na perspectiva do Jornalismo. Neste ambito, descreve as concepgdes jornalisticas atuais de perfil, memoria, biografia, ensaio pessoal e narrativa de viagem, exemplificando-as. Em seguida, aborda a necessidade de aprofundamento da compreensfio humana na construgao biografica, resgatando a nogao de missao da cultura antiga grega ¢ sua contraparte atual por meio da tcoria do fruto do carvalho. Delineia também as visdes psiquiatricas freudiana € junguiana, complementando-as com a questo da memaria do ponto de vista da Mitologia, ‘Neurologia ¢ da Psicologia Social. As discussdes sio propostas no ambito do tempo escalo- nado da Nova Historia. Para finalizar, dada a complexidade da reconstru¢ao das narrativas biograficas, propée-se 0 conhecimento de novas metodologias, como Jornada Humana, Biografia Humana ¢ Teoria do Caos ¢ dos Fractais. Palavras-chaves: Comunicacio; Jornalismo Literario; Biografia; Biografia Humana; Jor- nada do Heréi Abstract: From an etymological starting point, the article aims to discuss the biographical concept in different areas of knowledge, such as Social Sciences and Literature, emphasi- zing the Journalistic approach, defining as well as giving examples of the present concepts of profile, memory, biography, personal essay, and travel writing. It suggests the need of a deeper understanding of the human being to the construction of biographical narratives, retracing the notion of mission from the antique Greek culture and its present version, Hillman’s acorn theory. The paper briefly considers Freud’s and Jung’s Psychiatric pers- pective, complementing them with Mythology, Neurology, and Social Psychology studies about the memory. The time issue in the field of the biographical narratives is pointed out in the French New History context. Due to the complexity of the biographical narrati- ves construction, the paper recommends the use of advanced methodological proposals, such as the Hero Journey, Human Biograply, and the Chaos and Fractal Theory applied to the writing of life stories. Keywords: Communication; Literary Journalism; Biography; Human Biography; Hero Journey. 1 Monica Martinez é pos-doutoranda do Poscom da Umesp. Doutora em Ciéncias da Comunicagio pela FCA-USP, é autora de Jernada do Heri estrutura narrativa mitica na construsio de historias de vida em jornalis- mo (Fapesp/Annablume, 2008). E titular de Jornalismo Literitio (UniFIAMFAAN) ¢ responsivel pelo curso de Memiria, Perfile Biegrafia SJSP). E-mail martine2 monica@uol.com.br 78 A palavra biografia contém um vasto aporte de reflexdes sobre a atte de registrar, por meio da escrita, historias humanas. Para comecar, ela principia com bio, do grego bies, que significa vida. Tal anteposto, ou seja, particula que inicia uma palavra, € ricamente representado nas linguas ocidentais — so 400 deles em portugués, de bioaeracio a bioturbar. Sem contar os interpositives — como abio- génese ~ € os pospositivos — caso de micrdbio. Ha, portanto, uma explosao de vitalidade em torno do conceito bio, vida, que a rigor é 0 periodo compreendido entre 0 nascimento ¢ a morte de um ser. Mas a palavta, claro, nao se resume a este breve ciclo biolégico. Tanto que meia coluna é a ela dedicada no Diriondrio Honaiss de Lingua Portuguesa. De acordo com a obra, vida também se refere a0 modo de viver, a habitos. Além do fator sociobiolégico, a palavra vida também esta relacionada a0 aspecto psicofisico, portanto ao entusiasmo e ao prazer. Dizemos que uma pessoa cheia de vida é automotivada. Alguém ou algo vivaz é aquele ou aquilo que nos toca, que tem alma, entusiasmo, algo a mais. © que vem antes e depois da vida tem sido alvo de especulagdes ha pelo me- nos 80 mil anos, época a que remontam as primeiras tumbas surgidas na Galiléia, Oriente Médio (De Masi, 2005). Como espécie, somos histérica ¢ profundamente apaixonados em tentar provar ou refutar a hipdtese de que ja fomos, somos ¢/ou continuaremos sendo um ser, numa multiplicidade criativa de configuracdes que remonta aos povos africanos ¢ indo-europeus ¢ atinge sua plenitude na contempo- raneidade, com a habilidade do homes consumidor de misturar tradigdes ¢ montar a propria, de forma customizada. Essa busca por um sentido surge ha milénios. Contudo, seu boom comega ha cerca de 1 000 a. C., quando os povos gregos gradualmente passam a enfatizar me- nos o pensamento mitico, que brota da mentalidade coletiva (Eliade, 1989, 1992), em detrimento do histérico. Comeca naquele momento um longo caminho em diego ao racionalismo ¢ ao individualismo humano, que atinge o 4pice em nos- sos dias. Nao por acaso, esse processo de transi¢io ocorre concomitantemente 20 surgimento da escrita, ou graphia, pospositivo que completa a palavra biografia. 1. Breve estado da arte Da mesma forma que as reflexdes sobre a vida no sio novas, 0 termo biografia também nfo 0 é. Ainda de acordo com 0 Dicionério Homaiss de Lingua Portuguesa, a palavra em grego, Biagraphia, ‘relato de vidas’, j4 é empregada pelo neoplaténico Damiscio (462 - $38 d. C.). O filésofo € historiador francés Charles du Fresne, também conhecide como Du Cange (1610-1688), cita o grego tardio 79 biograpbos , ‘esctitos de vidas’. De 1721 datam os primeiros registros da palavra em francés, biograpbie, ¢, sessenta anos mais tarde, 1781, em inglés, biography? O termo aparece, com mais semelhangas do que diferengas, em varios ramos do conhecimento cientifico. Em Ciéncias Sociais, que congrega areas do saber como sociologia e antropologia, hé grande preocupacio metodolégica. Neste contexto, 0 método biografico recebe uma denominacio mais ampla: historias de vida. A antropéloga brasileira Mirian Goldenberg explica que a expressio da his- totia pessoal sintetiza de forma individual ¢ ativa uma sociedade, reapropriando © universo social € historico no qual a pessoa vive. De acordo com a pesquisa- dora, “é possivel ler uma sociedade através de uma biografia”, conhecer o social partindo-se da especificidade irredutivel de uma vida individual (Goldenberg, 1999: 36-37). Essa dimensao social também é encontrada em outras dreas, como a Psicologia Social Na literatura, a “narraco oral, escrita ou visual dos fatos particulares das varias fases da vida de uma pessoa ou personagem”® é considerada um género literitio, Em Comunicagio Social, as reflexdes académicas sobre o tema sao emer- gentes, sobretudo em Jornalismo. O motivo é que a pritica de biografias por jor- nalistas € recente. Autor de Biografismo: reflacies sobre a escrita da vida, 0 pesquisador brasileiro Sérgio Vilas Boas (2008) ressalta que a chegada dos jornalistas a0 campo data de 1982, quando Alberto Dines langa Morte no paraiso: a tragédia de Stefan Zweig pela Nova Fromteira. A biografia sobre o escritor austriaco de ascendéncia judaica, que deixou a patria sob ocupacio alemi e auto-exilou-se no Brasil, onde se suicidou em 1942, abriu um campo promissor. Tanto que 2 década de 1990 é cenatio de um boom biogrifico, com © susgimento de grandes jornalistas-bidgrafos, como Ruy Castro ¢ Fernando Morais, para citar apenas dois exemplos. Dada a importincia do tema, sobretudo em Jornalismo Literirio, o pesqui- sador brasileiro Edvaldo Pereira Lima propée 0 género narnativas bingrificas que, segundo 0 autor, consiste em seis subgéneros. Destacamos cinco’: perfil, meméria, biografia, ensaio pessoal e narrativas de viagem, que Lima chama de jornalismo literétio de viagem (LIMA, 2008). 1.1. Perfit: narrativa biografica curta presentificada. Dentre estes cinco formatos biograficos, o mais empregado no jornalismo brasileiro € 0 perfil: “tipo de entrevista que utiliza aspectos biogrificos e pessoais 2 Disponivel em: <_hetp://houaiss.vol.com.br/busea,jhtm?verbete=biografiaéestype=k>. Accesso tem: 5 nov. 2008, 3 Idem, 4 Na visio de Lima, 0 sexto subgénero das narrativas biogrificas¢ a reportagem temitica (Lima, 2008: 424), 80 para mostrar 20 piiblico caracteristicas, idéias, opiniGes, projetos, comportamento, gostos ¢ tracos do entrevistado” (Barbosa; Rabaca, 2001: 560). Na pritica jornalistica, o termo tem origem na revista estadunidense The New Yorker, que se no 0 inventa, 20 menos 0 introduz na linguagem jocnalistica € eleva essa forma de narrativa biogréfica curta a condicio de arte: Ic used to be said around the New Yorker offices that our founding edi- tor, Harold Ross, invented the Profile. But if a Profile is a biographical piece — a concise rendering of a life through anecdote, incident, inter- view, and description {or some ineffable combination thereof) -, well, then, it’s 2 little presumptuous to stick Ross at the front of the queue, ahead of Plutarch, Defoe, Aubrey, Strachey, or even The Saturday Evening Post. And yet in 1925, when Ross launched the magazine he liked to call his “comic weekly”, he wanted something different — something side- long and ironical, a form that prized intimacy and wit over biographical completeness or, God forbid, unabashed hero worships. Ross told his writers and editors that, above all, he wanted to get away from what he was reading in other magazines ~ all the “Horatio Alger” stuff. James Kevin McGuiness, a staffer in the earliest days of the magazine, suggested the rubric “Profiles” to Ross. By the time the magazine got around to copyrighting the term, it had entered the language of Ameri- can journalism (Remnick, 2000: is Convém ressaltar que o perfil aprofundado, uma tradigio de longa data nos Estados Unidos, ressurge na atualidade beasileira. Depois da experiéncia do Jornal da Tarde e da revista Realidade, (Faro, 1999), volta a ser encontrado em publicacdes como as revistas Piaué, Brasilzire e Brav Mais comum no restante da midia € uma forma mais superficial de perfil, que Muniz Sodré ¢ Maria Helena Ferrari chamam de miniperfil. “Nesse caso, co- mo 0 destaque é dado 20s fatos, & aco ou 20 levantamento de dados, os persona- gens sio secundatios: o relato é interrompido para dar lugar a um enfoque rapido sobre eles, sob forma de narrativa ou entrevista curta (Sodré; Ferrari, 1986: 139). 5 Costurna-se dizer nas redagies da New Yorker que nosso fundador, Harold Ross, inventou o Perfil. Mas se 0 Perfil é uma pega biogréfica ~ uma versio concisa de uma vida por mcio de relatos particulares, incidentes, centrevistas e descrigdes (ou alguma combinzeio incfivel disso) ~ bem, entio, € um pouco presungoso colocar Ross no inicio da fila, & frente de Plutarco, Defoe, Aubrey, Strachey ou mesmo do The Saterday Evening Post, Ainda assim, em 1925, quando Ross Inngou 4 revista que ele gostava de chamar de “semanario cimico™, ele queria algo diferente ~ algo & margem irénico, uma forma que premiasse 4 intimidade e inteligéncia espirituosa mais do que 2 complerude ou, Deus me live, a adorago desearada de herdis. Ross falow a seus escritores ¢ editores que, acima de tudo, ele queria Fugis do que lia nas outras revistas ~ todas as coisas (exemplares) de “Horatin Alger" James Kevin McGuiness, funciondtio nos primeiros dias da revista, sugeriu a nibrica “Perfis"a Rost Na época em que a tevista pediu os direitos autorais do termo, ele jé havia entrado na linguagem do jornalismo americano, (Tradugio livre da autora), 81 Como narrativa biografica curta, o perfil tende a ser presentificado e cos- tuma surgir na midia em funcio da evidéncia do individuo por algum motivo, como quando um ator ou diretor lanca um filme ou um executivo empreende um negécio diferenciado. Por isso, o perfil sempre esti alinhado com o contetido ou linha editorial do veiculo, E 0 caso do perfil escrito por Ricardo Kotscho (2008) sobre o historiador ¢ jor- nalista Herddoto Barbeiro. O Monge da Noticia, publicado na revista Braslires, acompanha uum dia de trabalho do profissional para relatar seu cotidiano cheio de atividades: Falar com ele para combinar a matéria até que foi facil. Em seu estilo objetivo ¢ direto, deu o endereco de onde mora e avisou: ~ Entio, na quarta-feira, espero vocés 14 em casa. As 5 da matina. Tio cedo nio havia nem porteito na area social. Para subir ao apar- tamento do nosso personagem, foi preciso descer até a garagem do velho prédio da Avenida Higiendpolis, encostado no Pacaembu, um clissico dos anos 1950 com pastilhas na fachada, que ja abrigou a aristocracia paulistana, No horirio combinado, ele apareceu todo lépido ¢ sorridente, ainda ajeitando a gravata, na sala de visitas. Ao ver a nossa cara derrubada naquela hora precoce da manha, os dois em pé admirando uma imagem de Buda que domina o ambiente, achou graca. — Pensei que voeés tivessem desistido... Ainda estava em tempo, até pensei nisso, mas valia a pena encarar 0 desafio de acompanhar um dia na vida dessa figura incomum no jorna- lismo brasileiro para tentar desvendar um mistério, Como ele agiienta esta rotina, que comeca no estiidio do Jornal da CBN, as 6 da manhi, ¢ s6 vai terminar ld pelas 11 da noite, quando volta para casa depois de apresentar o Jornal da Cultura do outro lado da cidade? (Kotscho, 2008; 55-56). Presente nos jornais, sobretudo nos encartes especiais e nas edigdes domini- cais, o perfil ocorre com freqiiéncia nas revistas de todos os tipos e, nas midias cle- tténicas, em magazines ou programas temiticos, caso do Globo Rural. Tem grande incidéncia na midia digital: quase dois milhdes de paginas resulta da busca com o termo perfil and jornalismo lancado no mecanismo de pesquisa Google. 1.2, Memé6ria: narrativa biografica baseada em recordacées. O formato meméria (“exposigio escrita ou oral de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos seqiienciados; relato, narracio”)°, 6 Dispontvel em: < http://housiss.uol.com br/busca htmPverbere=mem%FSriagestype=k>. Acesso em: § nov 2008. 82 também conhecido como antobiografia (“narracio sobre a vida de um individuo, es- crita pelo proprio, sob forma documental ou ficcional”, tem tido uso crescente. Difere do perfil (mais voltado ao presente) ¢ da biografia (preocupada em con- tar a trajetéria de um individuo em sua totalidade) por ter a opgio de se ater a parte da vida. Em geral & desenvolvida a partir de lembrangas de uma época distante. O enfoque principal da meméria so as reminiscéncias, dai em geral serem esctitas de forma intimista, em primeira pessoa. Esse formato pode levar 0 leitor a acreditar que se trata de trabalho escrito de préprio punho, quando muitas me- mérias sfo na verdade biografias, isto é, escritas por terceitos. Seu suporte midiitico por exceléncia € o livro, como os langados por jor- nalistas que cobrem guerras, mas também podem aparecer em revistas. Um bom exemplo & a matéria Ew Estive ne Guerra, onde o jornalista brasileiro José Hamilton Ribeiro faz um dramitico relato da perda de parte da perna esquerda ao pisar numa mina terrestre na cobertura da Guerra do Vietna (Ribeiro, 1968). Para nao cair, rodopiava sobre mim mesmo, em circulos € aos saltos. Instintivamente, levei as duas maos para “acalmar” a minha perna es- quetda, ¢ foi entio que a vi em pedagos. A calga no lado esquerdo tinha desapatecido, A visio foi terrivel. O sangue brotava como de torneiras. Depois do joelho, a perna se abria em tiras, ¢ um pedago largo de pele retoscido estava no chao. Olhei em volta ¢ nio achei meu pé. Fiz. um balanco rapido da situagio. Senti a cabega muito quente ¢ um fio de sangue no rosto. A perna direita, empapada de sangue, parecia ferida, mas estava com a perna da calca e com a bota ~ senti certo alivio. A mao direita, muito queimada, minava sangue. Nao senti absolutamente nenhuma dor. © que mais me incomodava era o incrivel retesamento dos miisculos da perna esquerda. Shimamoto chegou-se a mim, puxou violentamente a minha cabega para o seu peito ~ numa posigio em que nao mais podia ver a perna esquerda — ¢, chorando, beijava seguidamente os meus cabelos: José, oh José, oh José, como € que foi acontecer isso? Uma idéia veio-me entio bem nitida: = Vou morrer! Relembrei uma brincadeira de estudantes, quando combinamos que eu devia morrer com 32 anos. - E, vou morrer. De repente, ganhando espaco, devagar mais implacivel, veio a dor. Uma dor aguda, sufocante, que me fazia suar 20s borbotées. Gritei: = Ajudem-me, ajudem-me. Preciso de morfina... (Ribeiro, 2008: 184-185). 1 Disponivel em: < hrep://hovaiss.vol.com.br/ busca jhem?verber ‘em: 5 nov 2008, sobiografiadestype=k>. Acesso 83 No ambiente digital, é presenca cativa dos sites cooperativos, caso do Sao Paulo Minha Cidade, iniciativa da Sao Paulo Turismo, Orgao municipal que convida cidadaos paulistanos a contar causos relacionados 4 capital do Estado (www.saopaulominhacidade.com.br). 1.3. Biografia: narrativas integrais sobre vivos ou mortos. O formato biografia é um dos mais destacados no caso brasileiro. Sérgio Vilas Boas lembra que os jornalistas atuam ha menos de 30 anos neste segmento Gesde 1982), feito até ento por historiadores e homens das letras. A proposta do bidgrafo é a de “contar toda a vida de uma pessoa, viva ou morta (Lima, 2008: 425). Ha jornalistas consagrados na area, como Ruy Castro, defendem que a segunda categoria é a ideal: Quanto 4 necessidade de o sujeito estar morto para ser biografivel confiavel, os motivos me pareceram dbvios. Com o biografado vivo, 0 autor tem a obrigagio de ouvi-lo e de usé-lo como fonte. Supondo que © biografado tenha concordado com a biografia ¢ se mostrado disposto a colaborar com o autor, “contando tudo”, pode-se garantir que ele mentiré para o bidgrafo. Talvez no o faa por mal, mas, como dizia Nelson Rodrigues, “todo mundo se olha no espelho ¢ se enxerga num vitral” (Castro, 2007: 96). A posigio do bidgrafo de Nelson Rodrigues (1992), Garrincha (1995) e Car- mem Miranda (2005) deve-se ao fato de que ele ¢ a editora Companhia das Letras foram processados pelos herdeiros do falecido jogador de futebol, Gartincha. O livro ficou 11 meses proibido de circular, sendo liberado somente em outubro de 1996. O processo, contudo, encerrou-se apenas em 2006, 11 anos depois do langa- mento, mediante acordo entre as partes (Castro, 2007). Caso semelhante, porém com desfecho diferente, ocorreu com a biografia do cantor brasileiro Roberto Carlos: Paulo César de Aratijo, seu bidgrafo, escreveu um livro em que s6 faltou chamié-lo de santo, ¢ teve o dissabor de ver seu livto proibido, destruido ¢ enxovalhado ~ apenas porque Roberto Carlos no gosta que falem de sua vida, nem a favor. Imagine se Paulo César tivesse contado 0 que realmente sabia. (Castro, 2007: 96) Apesar de a opinido do jornalista ser compreensivel, no contexto do Jorna- lismo Literatio entende-se que uma biografia desenvolvida a partir de um perso- nagem vivo permite uma riqueza de captagao ¢ nattacio impar. Um dos diferenciais da produgio biografica sem diivida € 0 estilo autoral, que imprime sabores tinicos ao texto, Com estilo denso, construido a partir de 84 intensa pesquisa, o jornalista Fernando Morais é bidgrafo de Assis Chateaubriand (1994), de Olga (1995), dos fundadores da agéncia W/Brasil, Washington Oliveto, Lluss4 Ciuret ¢ Gabriel Zellmeister (2005), do Marechal Montenegro (2006) e de Paulo Coelho (2008). Deste ultimo livro, destaca-se a abertura, com reconstrucao primorosa da chegada do escritor no aeroporto de Ferihegy, em Budapeste, para © lancamento de livro. 1.4. Ensaio pessoal: tipo emergente de narrativa biografica. Autobiografia reflexiva é uma definigao para este formato derivado do en- saio tradicional, que discute um tema a pastir de leituras ¢ vivéncias do autor, em narrativa rica de ponderagées e digressdes. A versio mais moderna desse género, no jornalismo literario atual, mescla nartativa e reflexdo, sempre com forte conotacio pessoal. Signi fica que 0 autor escreve sobre um tema por que ha um motivo individual muito forte que o impele a fazer isso, de carter emocional ou intelectual, ‘ou ambos. Ha uma necessidade premente de compreensio. (..) O ensaio pessoal exige, portanto, muita coragem do autor. Disposigio para despir-se por inteiro para o leitor. A humanizacio que se destaca nesse caso é a do proprio escritor, sua vulnerabilidade diante de aconte- cimentos sumamente tocantes. Revela-se fragil ov tomando consciéncia de seus limites, diante dos paradoxos da vida. Ele é o protagonista da sua propria historia, mas nio a conta, apenas. Filosofa. Mas faz isso de um patamar de necessidade organica profunda. O movimento para ex- por seu mundo interior procede das entranhas (Lima: 2008: 431-432) © livto No Ar Rargfite, do escritor ¢ jornalista norte-americano Jon Krakauer, pode ser assim classificado. Em marco de 1996, ele é enviado pela re- vista Ondsider 20 Nepal para participar de uma expedigio ao monte Everest. Ao término da escalada, nove alpinistas, de quatro grupos diferentes (cinco dos quais companheitos da equipe de Krakauer), estavam mortos. A matéria de para a revis- ta foi feita, mas ele explica na introducio da obra que: Cumprida esta parte, tentei tirar o Everest de minha cabega e da minha vida, mas foi impossivel. Em meio a um nevoeiro de emogées confusas, continuei tentando dar um sentido 20 que acontecera li em cima ¢ a martelar as circunstancias em que meus companheiros morreram. (..) principalmente porque o que houve na montanha estava me roendo as entranhas, Pensei que, escrevendo o livro, poderia expurgar o Everest de minha vida, (Krakauer: 1997: 11-12). Da mesma forma que o perfil, ha ensaios pessoais menores em tamanho, que podem ser clasificados como mini-ensaios pessoais. 85 1.5. Narrativa de viagem: transforma¢do por meio da interagdo. A principio, este item pode parecer deslocado nesta lista. Contudo, uma andlise mais atenta revela que um ntimero significativo de relatos de viagem tem natuteza biografica, pois: ‘Apresenta um grau de aproximagio ao ensaio pessoal ¢ aos textos de memaérias porque € também, em esséncia, um texto biografico. As viagens fazem parte de nossas vidas como um processo de descoberta do mundo ¢ de nés mesmos. Quando vamos para lugares diferentes, especialmente aqueles onde encontramos pessoas de costumes muito distintos dos nossos, estamos também mergulhados num processo de definicao de auto-identidade. Descobrir 0 outro é de certa forma desco- brir facetas desconhecidas de nds prdprios. Conhecer 0 outro, diferente de nés, é conhecer a todos nés, como membros da espécie humana. Por isso a viagem e sua expressio narrativa sio processos de transformagio (LIMA, 2008: 433). O reporter Charles Martin Kearney, do The Missouri Review, natra este pro- cesso de autoconhecimento em Maps and Dreams (Mapas e Sonhos): Night in New Delhi Suzanne and I were nearing the end of a journey together that had taken us overland through Turkey, Iran, Afghanistan, Pakistan, and India. On the front steps of a hotel in New Delhi, I waited for a taxi among shirtless, mostly sleeping baggage men, My documents and be- longings were packed. The hotel restaurant had air conditioning, and moneychangers — the grafters and hawkers who made Asia possible and impossible — had already grouped together close to its locked entrance, smoking cheroots, aloof, edgy, and as watchful and nervous as birds, An oxcart stacked with bundles of cotton scraps passed us in the street. Early morning cooking fires, tended by squatters, tribes of sick and poor, provided checkpoints of light close to ground. Overhead, slow blue clouds hid the moon. (Kearney In: Kincaid, 2005: 201)*. 8 Suzanne € eu estivamos quase ao fim da viagem que nos tinha levado através da Tarquia, In, Afega- nistio, Paquistio e {ndia. Nos degraus da frente de um hotel em Nova Delhi, eu esperava por um téxi entre carre- _gadores sonados e sem camisa. Meus documentos e pertences estavam guardados nas malas feitas. O restaurante do hotel tinha ar condicionado ¢ os cambistas — trapaceiros ¢ mascates que tornam a Asia possivel impossivel — jé tinham se agrupado préximos a entrada trancada, furnando charutos com duas pontas cortadas, distantes, insitados, tio alertas € ariscos quanto passaros. Um carro de boi com sacos de algodiio empilhados passou por n6s. ‘na rua. Fogos, acesos bem cedo para cozinhar, langavam sua fumaga em ditegio as pessoas agachadas, tribos de doentes ¢ pobres, provendo pontos de luz préximos ao solo. Acima, muvens azuis lentas encobriam 2 lua. (tradu- ‘io livre da autora), 86 A partir da descricdo dessa noite em Delhi, 0 jornalista descreve nao apenas sua experiéncia de viagem, mas também o desfecho de um relacionamento amo- roso de férias. 2. A matéria da memoria: ser humano, espaco e tempo Mas qual é a base a partir da qual so criadas as narrativas biograficas? Segundo 9 historiador francés Jacques Le Goff, a matéria memorivel esta baseada no triplo problema do homem, do tempo e do espago (Leroy-Gourhan apud Le Goff, 2003: 429). Nio por acaso, qualquer que seja a estrutura da narrativa biogrifica, a com- preensio do ser humano é¢ vital para os interessados em se aventurar na arte da escrita da vida, Salutar, portanto, a visio transdisciplinar, que acolhe saberes de outras areas do conhecimento. Provém da mitologia grega, por exemplo, a nogao de destino, imutavel pois que gravado em ferro e bronze. Cabia as Moiras depois Parcas para os romanos) as circunspectas ¢ implacaveis irmas Cloto, Laquesis e Atropos — respectivamente fiar, tecer € cortar 0 fio da vida, dando forma e limite 4 existéncia dos humanos. (Commelin, s/4) Conforme evolui, a cultura grega incorpora esta nogio de missio, que permeia o imaginario humano até nossos dias. Quando a deusa Atena incita Te- lémaco a buscar o pai, ela nao esté apenas dando ao jovem uma tarefa concreta, mas um compromisso psicoldgico: o de descobrir suas origens ¢ assumir seu papel. Com a volta de Ulisses ¢ 0 fim dado aos pretendentes da mie, a paz volta a ftaca (Homero, 2002). Esse conceito de missio aflora em varias configuracées e épocas, como nos cruzados na Idade Média, nos puritanos que emigraram para 0 Novo Mundo e nas levas imigratorias americanas que aportaram no Brasil no século 19 Oliveira, 1995), entre outros. O psicélogo junguiano James Hillman, idealizador da psicologia arquetipi- ca, chama este conceito de teoria do fruto do carvalho: “Mais cedo ou mais tarde, alguma coisa parece nos chamar para um ca- minho especifico. Essa “coisa” pode ser lembrada como um momento marcante na infancia, quando uma urgéncia inexplicdvel, um fascinio, uma estranha reviravolta dos acontecimentos teve a forga de uma anun- ciagio: isso € 0 que devo fazer, isso é 0 que preciso ter. Isso € 0 que sou (Hillman, 1997: 13) ‘A compreensio do ser humano é revolucionada por Sigmund Freud (1856- 1939) ¢ seu método da psicanalise (Pena, 2008). Em adi¢ao 4 nogao de consciente, 87 o neurologista judeu-tcheco propée o conceito de inconsciente pessoal, depositirio de recalques e repressdes que o individuo, em estado de vigilia, no tem acesso. A ponte entre as memérias consciente ¢ latente setia feita por meio dos sonhos, entre outros recursos. Freud atribui grande importincia a infincia, em particular aos traumas desta fase da vida, ¢ a sexualidade na teconstituicio desta memiéria suprimida. Um de seus contemporineos, 0 psiquiatra sui¢o Carl Gustav Jung (1875- 1961), tem visio diferente, porém, no meu entender, complementar a de Freud. Jung acolhe a proposta freudiana do inconsciente pessoal, mas entende-a como a parte mais superficial do inconsciente coletivo: O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que nao deve sua existéncia a ex- periéncia pessoal, ni sendo portanto uma aquisigao pessoal. Enquanto 0 inconsciente pessoal é constituido essencialmente de conteiidos que j4 foram conscientes € no entanto desapareceram da consciéncia por terem sido esquecidos ou repritnidos, os conteiidos do inconsciente co- letivo nunca estiveram na consciéncia e portanto no foram adquiridos individualmente, mas devem sua existéncia apenas a hereditariedade (Jung, 2000: 53). Por paradoxal que seja, a emergéncia das midias digitais permite, por ana- logia, compreender a proposta epistemolégica de Jung. Hoje o internauta mantém em seu computador pessoal apenas uma fragio do contetido compartilhado na rede. O conceito, que em biologia é compreendido como mente expandida, é defen- dido pelo inglés Rupert Sheldrake, atual diretor do The Perrott Warrick Research Project, do Trinity College, em Cambridge, UK (Sheldrake, 1991). Para Jung, o inconsciente coletivo é formado pot arquétipos: O conceito de arguétipo, que constitui um correlato indispensével na idéia do inconsciente coletivo, indica a existéncia de determinadas formas na psique, que estio presentes em todo o tempo e em todo o lugar. A pesquisa mitolégica denomina-as “motivos” ou “temas”; na psicologia dos primitivos elas correspondem ao conceito de représentations collectives de Levy-Brith! e no campo das religiées comparadas foram definidas como “categorias de imaginagio” por Hubert ¢ Mauss. Adolf Bastian designou-as bem antes como “pensamentos elementares” ou “primor- diais”. A partir dessas referéncias torna-se claro a minha representagio de arquétipo ~ literalmente uma forma preexistente — no é exclusiva- mente um conceito meu, mas também é reconhecido em outros campos da ciéncia (Jung, 2000: 53-54) 88 Um exemplo é 0 arquétipo materno, que pode se configurar em iniimeras formas, da propria mie ¢ avé & madrasta ¢ sogra, passando por babas ou transfe- réncias mais elevadas, como deusas e santas, como a Virgem Maria dos cristaos. Embora Jung atribua importancia 4 fase inicial da vida, a énfase do psiquia- tra suico recai sobre a maturidade. Isso porque a psicologia analitica visa a com- preensao do processo de individuacio, entendido como a integraio das varias instancias psiquicas do ser humano, Aluna de Jung, a psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1906-1999) explica 0 conceito: Todo ser tende a realizar o que existe nele, em germe, a crescer, a completar-se. Assim para a semente do vegetal e para o embriio do animal. Assim € para o homem, quanto a0 corpo € quanto 4 psique. Mas no homem, embora o desenvolvimento de suas potencialidades seja impulsionado por orcas instintivas inconscientes, isso adquire um carater peculiar: o homem é capaz de tomar consciéncia desse desenvol- virento e de influencié-lo. Precisamente no confronto do inconsciente com 0 consciente, no conflito como na colaboragio entre ambos é que os diversos componentes da personalidade amadurecem e unem-se nu- ma sintese, na realizagio de um individuo especifico e inteiro. Essa confrontagio “é o velho jogo do martelo ¢ da bigorna: entre os dois, © homem, como 0 ferro, é forjado num todo indestrutivel, num in- dividuo. Isso, em termos toscos, ¢ 0 que eu entendo por processo de individuagio (Jung). (Silveira, 2000: 77). processo de individuagio permite a ativagdo plena do Self, o centro da personalidade. Para isso, devem ser integradas, por meio da conscientizagio, ou- tras instancias psiquicas, como a persona (mascara util para o ser social, mas que pode predominar sobre as outras instincias, se enfatizada) ¢ a sombra (parte ani- malesca , primitiva ¢ nao aceita do ser, projetada no outro). A biografia de Jung sintetiza a jornada pessoal do psiquiatra Nio concordo quando dizem que sou um sabio ou um “iniciado”. (..) A diferenga entre a maioria dos homens ¢ eu reside no fato de que em mim as “paredes divisérias” sao transparentes. E uma particularidade minha. Nos outros, elas sio muitas vezes tao espessas, que Ihes impe- dem a visio; cles pensam, por isso, que no ha nada do outro lado. Sou capaz de perceber, até certo ponto, os processos que se desenvolvem no segundo plano; isso me da seguranga interior. Quem nada vé nao tem seguranga, nfo pode tirar conclusio alguma, ov nao confia em suas conclusdes. Ignoro 0 que determinou minha faculdade de perce- ber o fluxo da vida, Talvez tenha sido o préprio inconsciente, talvez ‘0s meus sonhos precoces, que desde 0 inicio marcaram meu caminho (jung, 1989: 307). 89 Outra particularidade do psiquiatra suigo era sua notavel meméria: suas psimeiras lembrangas remontam aos dois ou trés anos de idade (Jung, 1989: 21). 2.1 O espaco da memoria Os estudos das narrativas biogrificas perpassam pela questiio da meméria coletiva ¢ individual, como sugere Le Goff: Em todas sociedades, os individuos detém uma grande quantidade de informages no seu patriménio genético, na sua meméria de longo pra- 20 ¢ temporariamente, na memoria ativa (Le Goff, 2003: 421). Nas sociedades primevas, mergulhadas no pensamento mitico, predomina a meméria coletiva, Esta se ordena por trés grupos de interesses principais: mitos de origem @que lidam com a idade coletiva do grupo); prestigio das familias domi- nantes (com a énfase nas gencalogias) ¢ transmissio do saber técnico (em geral por meio de formulas ligadas 4 magia religiosa (Le Goff, 2003: 427). Na mitologia, 0 estadunidense Joseph Campbell identifica quatro fungdes dos mitos: pedagégica, cnsinando o ser a vivenciar a vida humana sob qualquer circunstincia; sociolégica, dando suporte e validando a determinada ordem so- cial; cosmolégica, mostrando os mecanismos ¢ a forma de funcionamento do universo; ¢ mistica, funcionando como um portal para a transcendéncia, a di- mensio do mistério (Campbell,1990:32). Com a transicio do pensamento mitico para o histérico, contetdo das memorias deixa de ser coletivo, migrando gradualmente para o individual, O re- gistro das visdes das elites continua preponderante, porém, dando surgimento aos registros reais e urbanos (Le Goff, 2003), depois ao das elites burguesas, muitos destes apoiados pela nascente midia. Do ponto de vista cerebral, 0 neurologista argentino Ivan Izquierdo, do Centro de Meméria do Instituto de Pesquisas Biomédicas da PUC-RS, explica que ha basicamente dois tipos de memoria. A meméria de curto prazo ou de trabalho permite informacio instantinea, que sobrevive 0 tempo necessario para set uti- lizada. Mais importante pata os estudos das natrativas biogréficas, a memoria de longo prazo armazena informagdes de forma mais duravel (Izquierdo, 2002). Ambos sistemas sio ligados, transferindo dados um pata 0 outro, ¢ 0 ca- minho para a meméria de trabalho se tornar uma meméria de longo prazo é seu valor. Sem ele, a informagao é descartada. Trata-se de sistema digital-analdgico: a meméria como um todo é digital, porém sua fixacio é analégica. O processamento fisioquimico abre ou reforca caminhos abertos por meio das sinapses neuronais. E © uso que fixa e renova o sistema. E importante ressaltar que em narrativas biograficas no estamos traba- Ihando na esfera da primeira realidade, biofisioguimica, mas no da segunda re- 90 alidade, portanto o bidgrafo atua na reconstrucio de uma realidade simbélica, cultural, nascida da relacio entre a objetividade e a subjetividade, a imaginagao € a razio, como propde © comunicdlogo brasileiro José Eugenio de Oliveira Mene- zes, do programa de Mestrado da Faculdade Casper Libero, a partir da visio do semioticista tcheco Ivan Bystrina: Ivan Bystrina, a partir da antropologia, esta preocupado em descre- ver raizes, em localizar fatores “fundadores” da Segunda Realidade Assim, descreve a cultura como “conjunto de atividades que ultra- passam a mera finalidade de preservar 2 sobrevivéncia material” € garantem a “superacao do medo existencial”. No universo dos “textos imaginativos ¢ criativos”, conseguimos cuidar de nossa sobrevivéncia psiguica ou, em outras palavras, superar o constante desafio da morte (Menezes, 2007: 32). Talvez a questio mais instigante sobre meméria seja nao 0 contetido que lembramos, mas 0 que nio lembramos. “O pensador italiano Norberto Bobbio di- zia que ‘somos aquilo que lembramos’, Eu costumo acrescentar ‘e também somos © que decidimos esquecer’” (Izquierdo, 2004: 3). ‘Ou optamos por omitir. Ao pesquisar as memérias de Carl Jung, 0 pesqui- sador inglés Sonu Shamdasani ressalta que a obra, comercializada desde seu langa- mento em 196lcomo uma autobiografia, € na verdade uma biografia realizada por Aniela Jaffé, ex-paciente ¢ secretaria de Jung na fase final de sua vida, Ela teria tido uma participagio muito maior do que apenas a de compilar os dados e prefacia- los, como aparece na capa do livro (Shamdasani, 2008). Jaffé teria suprimido fatos comprometedores a imagem pablica de Jung, ji octagenario na época Quanto 20 acervo da meméria, € importante lembrar a existéncia de pato- logias que altcram nao apenas o acervo, mas também a percepgio de realidade, como explica o neurologista estadunidense Oliver Sacks: Cada um de nés é uma biografia, uma historia. Cada um de nds é uma narrativa singular que, de um modo continuo, da por nds, por meio de nés e em nés — por meio de nossas percepgdes, sentimentos, pensamentos, acdes ¢, no menos importante, por nosso discurso, nossas narrativas faladas. Biologicamente, fisiologicamente, nao somos muito diferentes uns dos outros; historicamente, como nar- rativas, cada um de nés é tinico (Sacks, 1997: 129). nconsciente, é constr A questio da identidade, a consciéncia de si mesmo, é vital na contempora- neidade. E essa nogio emerge no proceso de vinculacao, ou seja, na relacio com © outro. A filésofa brasileira Marilena Chaui lembra que o tempo da meméria é 0 social, “nao s6 porque € 0 calendario do trabalho ¢ da festa, do evento politico € do fato insélito, mas também porque repercute no modo de lembrar: 91 Descrevendo a substéncia social da meméria — a matéria lembrada—vo- cé nos mostra que o modo de lembrar ¢ individual tanto quanto social: © grupo transmite, retém e reforca as lembrangas, mas o recordador, ao trabalhé-las, vai paulatinamente individualizando a meméria comu- nitaria e, no que lembra e no como lembra, faz com que fique © que signifique (Chaui, 1999: 31). Assim, individuais ou comunitarias, as lembrangas esto inseridas no espa- ¢0 social, mas também no temporal. 2.2 O tempo da meméria Desde 0 surgimento da Histéria, hé quase 2.500 anos, o tempo tem sido considerado linear, gradual e progressivo. Contudo, ha outras formas mais ade- quadas & producio de narrativas biograficas de compreendé-lo. Uma delas é a proposta da Nova Historia Francesa, surgida nos anos 1950, também conhecida como Escola dos Annales por estat ligada ao periddico académi- co Revue des Annales. O historiador francés Fernand Braudel (1902-1985), um dos expoentes do movimento, defende a idéia de que, como no mar, ha trés camadas hist6ricas e nio apenas uma. A superficie representaria os acontecimentos coti- dianos, répidos € buligosos; 0 leito do mar as décadas, que mudam lentamente e, Portanto, sio mais faceis de serem percebidas pelo sujeito histérico; jé as abissais camadas maritimas as grandes transformacdes sociais, que levam séculos ou milé- nios para ocorrerem e serem notadas. Assim, chegamos a uma decomposicio da histéria em planos esca- lonados. Ou, se quisermos, 4 distingio, no tempo da histéria, de um tempo geografico, de um tempo social, e de um tempo individual (Braudel, 1992: 15). Convém lembrar que ainda so raras as narrativas biogrificas que mergu- Tham no profundo tempo geografico, que permitiria ao leitor a compreensio do ser humano dentro da complexa aldeia cada vez mais global ¢ cheia de teias rela- cionais. Dos autores contemporaneos, talvez o que mais se aproxime deste tempo seja 0 jotnalista estadunidense John McPhee, uma referéncia em Jornalismo Lite- ratio (McPhee, 1996). Afinal, por que a énfase nas narrativas biograficas, numa sociedade midiati- zada ¢ digital em que impera o espago do aqui e o tempo do agora? Uma possivel resposta esti no filme estadunidense Blade Runner, dirigido em 1992 por Ridley Scott e aqui traduzido por Caradores de Andriiides, Passado num futuro sinistro, os humanos criam replicantes para as tare- fas pesadas de colonizagio espacial. A instabilidade emocional ¢ falta de empatia 92 destes robés sofisticados os deixa agressivos ¢ a vida desses seres € limitada a quatro anos. Um motim contra esse curto prazo de validade leva os replicantes a invadirem uma zona proibida, a Terra, para negociar o aumento da vida com seu criador. A invasio leva a criacao de uma forca tarefa policial, os blade runner's do titulo, para exterminé-los. Uma das cenas mais fortes do filme é a fala do replicante interpretado pelo ator Rutger Haver, inconformado porque sua vida esta acabando. Angustiado, ele lamenta que as maravilhas que havia visto nas galaxias mais distantes, que nem colhos humanos poderiam visualizar, nao teriam duragao no espaco ¢ no tempo. Perder-se-iam. A dor do andréide se explica. Seja no campo das narrativas fic- cionais ou nas nio-ficcionais, esquecer € morrer. Se a morte ceifa a vida fisica, 0 esquecimento mata a simbélica. A necessidade de manter os registros da espécie humana, sobrerudo 0s andnimos ¢ cotidianos, talvez seja uma das razdes da ex- plosto de blogs ¢ outras ferramentas midiaticas digitais. Como fazer este resgate em tempos de tamanha complexidade? Seja de cele- bridades ou de herdis do cotidiano, o fato é que a reconstrugio de vidas humanas contemporaneas, com a dignidade que merecem, pode se beneficiar com as metodo- Jogias compreensivas ¢ aprofundadas que esto sendo pesquisadas ¢ usadas na praxis jornalistica. E 0 caso da Jornada do Heréi, da Biografia Humana (Martinez, 2008) ¢ da teoria do Caos e dos Fractais aplicadas & construcio biogréfica (Pena, 2003). 93 Referéncias O CAGADOR DE ANDROIDES (BLADE RUNNER). Diregio: Ridley Scott. Roteiro: Hampton Francher e David Webb Peoples, baseado em livro de Philip K. Dirk. Com Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Edward James Olmos, M. Emmet Walsh e Daryl Hannah. Estados Unidos: 1982. Cor. (118 min). Legendado. Port. BARBOSA, Gustavo Guimaraes; RABACA, Carlos Alberto. Diciondrio de Conunicagio. Sio Paulo: Campus, 2001. BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a Histiria. Sio Paulo: Perspectiva, 1978. CAMPBELL, J. (com Bill Moyers) O Pader do Mito, Sao Paulo: Palas Atena, 1990, CASTRO, Ruy. O Biografado dos Sonhos Precisa Ser... filho unico, drfio, solteirio, estéril e brocha — nica maneira de o bidgrafo ficar a salvo de encrencas. Revista Brasileiros. Sio Paulo, n. 6, p. 95-98, dez 2007. CHAUI, Marilena. Os trabalhos da meméria. In: BOSI, Ecléa. Meméria ¢ Sociedade: lembranca de velbos. Sio Paulo: Companhia das Letras, 3a. edicio, 1999. COMMELIN, P. Nova Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeito: Edigdes de Ouro, s/d. DE MASI, Domenico. Criatinidade ¢ Grupos Criatives. Rio de Janeiro: Sex- tante, 2005. ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. Lisboa: Edigdes 70, 1989. —————. Mito do Eterno Retorno: Cosmo e Histéria. Sio Paulo: Mercuryo, 1992. FARO, J.S. Revista Realidade 1966-1968: tempo da reportagem na imprensa brasiles- ra, Porto Alegre: AGE, 1999, GOLDENBERG, Mirian. A Arte de Pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Citncias Sociais, Rio de Janeiro: Record, 1999, HILMANN, James. © Cédigo do Ser: uma busca do catiter ¢ da vocacio pessoal. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Diciondrio Houaiss de Lin- ‘gia Portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva 2001. HOMERO. Odisstia. Sao Paulo: Nova Cultural, 2002. IZQUIERDO, Ivan. Meméria. Sio Paulo: Artmed, 2002. A Mente Humana. Outubro de 2004. Disponivel em . Acesso em: 4 nov. 2008. JUNG, C. G. Os Arquétipos ¢ 0 Inconsciente Coletivo. Petrdpolis: Vozes, 2000. _———. Membrias, Sonbos ¢ Reflexies. Compilacio e prefacio de Aniela Jaffé Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 1989. KINCAID, Jamaica (editor). The Best American Writing New York: Hou- ghton Mifflin Company, 2005, KOTSCHO, Ricardo, O Monge da Noticia. Revista Brasileiros. Sao Paulo, 1n. 8, p. 55-63, mar 2008. 94 KRAKAUER, Jon. No Ar Rarefeite: um relato da tragédia do Everest em 1996. Sio Paulo: Companhia das Letras, 1997. LE GOFF, Jacques. Histiria ¢ Meméria. Campinas/SP: Unicamp. 2003. LIMA, Edvaldo Pereia. Paginas Ampliadas: 0 Livro-Reportagem como Ex- tensio do Jornalismo « da Literatura/Jornalisure Literéria, 4°, edigao revista e ampliada. Barueri/SP: Manole, 2008 MAILER, Norman; MAILER, John Buffalo. O Graude Vagio. Sio Paulo: Companhia das Letras, 2008. MARTINEZ, Monica. Jornada do Herd: Estratura Narrativa Mitica na Constra- tio de Historias de Vida em Jornalismo. Sao Paulo: Annablume/Fapesp, 2008. MCPHEE, John. The Second fobn McPhee Reader. New York: The Noonday Press, 1996. MENEZES, José Eugenio de O. Reidio e Cidade: Vineulos Sonoros. Sio Paulo: Annablume, 2007. MORAIS, Fernando. O Mago. Sao Paulo: Planeta do Brasil, 2008. MORIN, E. et al. A Inteligéncia da Conpplexidade. Sto Paulo: Peirépolis, 2000. OLIVEIRA, Ana Maria Costa de. O Destino (nda) Manifesto: os invigrantes norte- cmerizanas no Brasil, Sio Paulo: Unite Cultural Brasil-Estados Unidos, 1995 PENA, F. “Biografias em. Fractais”: multiplas identidades em redes flexi- veis ¢ inesgotiveis. Anais do XII Encontro da Associacao Nacional dos Progra~ mas de Pés-Graduagao em Comunicacio. Recife/PE, 2003. . O Jornalisoo Litenivio nas imagens de Frend e Lacan: por uma teoria poitana- Mica do jortalismo. Anais do 31°, Congresso Brasileiro de Ciéncias da Comunicacao Natal-RS, setembro de 2008. Sao Paulo: Intereom, 2008. [cd-rom]. REMNICK, David edited by. Life Stories: profiles from The New Yorker. New York: Random House, 2000. RIBEIRO, José Hamilton. Bu Estive na Guerra. Revista Realidade. Sio Pau- Jo, maio de 1968 a O Reporter do Sérilo, Sto Paulo: Geragio Editorial, 2006 SACKS, Oliver. O bomen que canfundin sua muller con une chapéu. Sio Paulo: Cia das Letras, 1997. SHELDRAKE, Rupert. O Renascimento da Naturexa: O reflorescinento da ciéncia ¢ de Dens, Sio Paulo: Cultrix, 1991 SILVA, Diana Cristina Damasceno Lima. “Entre miiltiplos eus: 0 espagos da complexidade”. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PUC, 1999. SILVEIRA, Nise da. Jung: Vida ¢ Obra. Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 1997. SODRE, Muniz; FERRARI, Maria Helena. Técnica de Reportagem: notas sobre «a narrativa jornalistica, Sto Paulo: Summus, 1986. SHAMDASANI, Sonu, Memérias, Sonhos ¢ Omissdes. In: . Acesso em: 4 nov. 2008. 95 VILAS BOAS, Sergio. Biggrafias & Biigrafos: jornalismo sobre personagens. Sio Paulo: Summus, 2002. ———- Biografismo: reflexes sobre a exerita da vida. Sto Paulo: Unesp, 2008. . Perfis:¢ con escrevé-los. So Paulo: Sammus, 2003. 96

You might also like