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| CORI Sore | CORTEZ (Si €DITORA M. Cecilia P. de Souza e Silva Ingedore Villaga Koch Lingiistica Aplicada ao Portugués: Morfologia Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagdo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Silva, Maria Cecilia Pérez de Souza e. Linguistica aplicada ao portugués: morfologia / Maria Cecilia Pérez de Souza e Silva, Ingedore Grunfeld Villaga Koch — 17. ed. ~ Sao Paulo : Cortez, 2009. Bibliografia. ISBN 978-85-249-0307-6 4, Linguistica estrutural 2. Portugués — Morfologia 1. Koch, Ingedore Grunfeld Villaga. II. Titulo. CDD -469.5 410 83-0152 indices para catalogo sistematico: 1. Linguistica estrutural 410 2. Morfologia: Portugués: Linguistica 469.5 a. Maria Cecilia P. de Souza e Silva Ingedore Villaga Kock Linguisitica Aplicada ao Portugués: Morfologia 17 edigao SESioRA pitulo referente a estrutura e formagao dos vocabulos, assunto que, na obra de Mattoso, encontra-se apenas de modo embrio- nario; excluimos o capitulo sobre os pronomes, cujo tratamento julgamos mais adequado em uma obra que trate da sintaxe do enunciado e, especialmente, da sintaxe do discurso. Nosso livro tem, portanto, a seguinte organizagao: no capi- tulo 1, encontra-se uma breve revisdo dos principios basicos da lingiistica estrutural pertinentes para o desenvolvimento dos capitulos posteriores. No capitulo 2, explicitamos os principios da analise mérfica e classificamos os diferentes tipos de morfemas existentes em portugués; no capitulo 3, mostramos como se estruturam os vo- cabulos e como se processam as formacées vocabulares. O capitulo 4 6 dedicado a flexéo nominal de género e nu- mero; na parte referente ao género, propusemos uma nova clas- sificag&o com base nos tipos de morfemas. No que diz respeito ao numero, adotamos uma posigao parcialmente diferente, na medida em que, ao contrario do autor, nao estamos pressupon- do a existéncia de algumas formas teéricas em que esteja pre- sente a vogal tematica. No capitulo 5, caracterizamos rapidamente as nogoes gra- maticais expressas através da flexdo verbal e passamos a des- crigdo do padrao geral e de seus desvios, os quais, por apresen- tarem uma organizagao imanente, passam a constituir um outro padrao denominado especial. Cada um dos capitulos 6 seguido de exercicios diversifica- dos, visando a melhor fixagao dos assuntos tratados. Nesta par- te, bem como na leitura critica da obra, contamos com a compe- tente colaboracao da colega Lais Furquim de Azevedo, a quem, de ptiblico, registramos nosso reconhecimento. Lingiistica Aplicada ao Portugués: Morfologia preten- de, pois, atingir professores e estudantes que atuam no campo da ciéncia da linguagem, bem como aqueles que, sem interesse profissional especifico, se interessem por uma informagao aces- sivel nesse dominio. As autoras aguardam criticas e sugestdes. 12 4 Revisao dos principios basicos do estruturalismo Até fins do século XVIII, os estudos lingiiisticos eram basea- dos na gramatica greco-latina, que partia de principios légicos e através deles procurava deduzir os fatos da linguagem e estabe- lecer normas de comportamento lingiiistico. Pressupunha-se uma fixidez da lingua; conseqiientemente, as descrigdes gramaticais tinham um cardter essencialmente normativo e filosdfico.' Contra essa concepgao estatica, os estudiosos da lingua- gem rebelaram-se no século passado, enfatizando entéo a mu- danga incessante da lingua, através de um processo dinamico e coerente. . Originaram-se, assim, a gramatica comparativa e a lingiis- tica hist6rica: a primeira, comparando entre si os elementos de linguas distintas com o objetivo de depreender-Ihes as origens comuns e de reconstituir a protolingua de que se originaram e a segunda, procurando explicar a formagao e evolugao das lin- guas. As mudangas lingilisticas eram consideradas como fené- menos naturais em contraposicao a fixidez preconizada pela gra- matica greco-latina. Ainda no fim do século XIX e comego do século XX, embo- ra dominasse o ponto de vista histérico-comparativo, alguns lin- gilistas j4 se preocupavam com a idéia de que, ao lado de um 13 estudo evolutivo da lingua, deveria haver também um estudo sincr6nico ou descritivo. Quem realmente rompeu com a visdo historicista e atomista dos fatos lingliisticos foi F. de Saussure, ao conceituar a lingua como sistema e ao preconizar o estudo descritivo desse sistema. Nasce, assim, o estruturalismo como método lingiistico. Saussure foi quem definiu, pela primeira vez, e com maior clareza, 0 objeto da lingiiistica “stricto sensu”, isto 6, a lingua. Considerando a linguagem como um fenémeno unitario no qual os varios elementos se interrelacionam, o autor estabeleceu, do ponto de vista metodolégico, dicotomias basicas (lingua/fala, sin- cronia/diacronia, sintagma/paradigma) em funcao das quais se criaram escolas e teorias mais recentes. 1.1. Lingua e fala A lingua 6 ao mesmo tempo um sistema de valores que se opdem uns aos outros e um conjunto de convengdes necessa- rias adotadas por uma comunidade lingiistica para se comuni- car. Ela esta depositada como produto social na mente de cada falante de uma comunidade, que nao pode nem crid-la, nem modifica-la. Assim delimitada, ela 6 de natureza homogénea. A fala é a realizagao, por parte do individuo, das possibili- dades que Ihe sAo oferecidas pela lingua. E, portanto, um ato individual e momentaneo em que interferem muitos fatores extralingiifsticos e no qual se fazem sentir a vontade e a liberda- de individuais. Apesar de reconhecer a interdependéncia entre lingua e fala, Saussure considerava como objeto da lingUistica a lingua (por seu cardter homogéneo), procurando entendé-la e descrevé-la do ponto de vista de sua estrutura interna. De acordo com A. Martinet (1960), a oposigao entre lingua e fala pode também exprimir-se em termos de cddigo e mensa- gem: o cédigo representa a organizac&o que permite enunciar a mensagem, e a mensagem limita-se a concretizar a organizagao do cédigo. 14 Um dos princfpios essenciais propostos por Saussure 6 a definigdo da lingua como um sistema de signos? e de leis combi- natérias. O autor ilustra essa idéia através de uma comparagao com 0 jogo de xadrez: se substituirmos as pegas de madeira por pegas de marfim, a troca é indiferente, mas se diminuirmos ou aumentarmos o ntimero de pegas, essa mudanga atinge a gra- matica do jogo... O valor respectivo das pegas depende de sua posigao sobre o tabuleiro, da mesma forma que, na lingua, cada termo tem seu valor por oposigao a todos os outros termos. (Saussure (1967)). 1.2. Sincronia e diacronia Embora a lingliistica historica do século XIX tenha reconhe- cido a especificidade dos estudos diacrénicos, Saussure foi o primeiro lingiiista a estabelecer uma distingdo nitida entre sin- cronia e diacronia. A fim de melhor salientar a diferenga entre os dois pontos de vista, o autor tragou dois eixos, um horizontal (A — B) e outro perpendicular (C — D), representando o primeiro, 0 eixo das si- multaneidades, ou seja, a sincronia, e 0 segundo, o eixo das sucessividades, ou seja, a diacronia. O eixo das simultaneidades representa relagGes entre fe- némenos existentes, das quais se exclui toda a intervengao do tempo. A lingua é considerada como um conjunto de fatos esta- veis, estudados como elementos de um sistema que funciona num determinado momento do tempo. O eixo das sucessividades representa os fenédmenos que foram se modificando numa sucessdo no tempo; tais fendmenos no s&o isolados, mas acarretam modificagdes no sistema, de- terminando a passagem de um estado de lingua a outro. Do ponto de vista metodolégico, Saussure reivindicou a autonomia para a pesquisa sincrénica, utilizando a imagem ja citada do jogo de xadrez. Durante uma partida, a disposigao das pecas muda a cada lance, mas em cada um deles a disposigéo 15 pode ser inteiramente descrita a partir da posig&éo em que se encontra cada pega. Pelo andamento do jogo, num momento dado, nao é necessario saber quais foram os lances jogados anteriormente, em que ordem eles se sucederam: o estado par- ticular da partida e a disposigao das pegas podem ser descritos sincronicamente, isto 6, sem nenhuma referéncia aos lances anteriores. O mesmo ocorre com as linguas: elas se modificam constantemente, mas podemos explicar 0 estado em que elas se encontram num momento dado (Saussure (1967)). Por exem- plo, o futuro do presente e do pretérito se constituiram pela com- binagao do infinitivo do verbo principal mais uma modalidade do indicativo presente e pretérito imperfeito do verbo haver funcio- nando como auxiliar. A explicagao diacrénica nos da, pois, cantar(h)ei, cantar(h)ia. No entanto, do ponto de vista sincrénico, essa aglutinagdo tornou-se obscura mediante uma nova distri- buigao de constituintes que nos permite descrevé-los como mar- cados pelas desinéncias modo-temporais /-re/ e /-ria/, sem qual- quer referéncia & sua evolugao. 1.3. Sintagma e paradigma As unidades lingiiisticas relacionam-se umas as outras de dois modos distintos. Por um lado, temos as relagées sintagma- ticas que ocorrem dentro do enunciado e que sao diretamente observaveis (relagdes “in praesentia”). Tais relagdes decorrem do carater linear e temporal da linguagem humana. Por outro lado, temos as relagdes entre unidades capazes de figurar num mesmo contexto e que, pelo menos nesse con- texto, se excluem mutuamente. Essas relagdes decorrem do fato de um elemento poder figurar em lugar de outro, em um dado contexto, mas nao simultaneamente. Denominam-se paradigma- ticas e ocorrem com os elementos que nao est&o presentes no discurso (relagdes “in absentia”). Os paradigmas consistem em inventarios de elementos linglisticos, agrupados de acordo com critérios pré-estabelecidos.° 16 Considerando-se a frase: “O PMDB propée coalizdo” PDT uniao PTB jungao as relagdes entre: propée e seus vizinhos contextuais PMDB e coalizéo sao sintagmaticas. Nessa mesma frase existem, em cada ponto, possibilidades de substituigao: PDT, PTB, por exemplo, podem figurar no mesmo contexto de PMDB; o mesmo sucede com os substantivos unido e jungao, suscetiveis de aparecer no lugar de coalizdo. As dicotomias saussureanas tém sido objeto de varias in- terpretagées e criticas que sao importantes para a complemen- tag&o desta exposigao, mas dispensaveis para a compreensao da analise descritiva a que nos propomos. 1.4. A dupla articulagao da linguagem Adupla articulagao,* na hipdtese funcionalista de A. Martinet, consiste em uma organizag&o especifica da linguagem humana, segundo a qual todo enunciado se articula® em dois planos. No primeiro plano, ou primeira articulagaéo, o enunciado divide-se linearmente em unidades significativas: frases vocabulos e morfemas. Assim, 0 enunciado Nos faldvamos bem, articula-se, isto é, divide-se em trés vocabulos: nés-fal4vamos-bem. Enquanto nés e bem sao indivisiveis em unidades menores, faldvamos decompée-se em quatro morfemas fal - 4 - va - mos. Cada uma dessas unidades significativas’ pode, no mesmo ambiente, ser nos substituida por outras no eixo paradigmatico 4 eu ou pode, vocés, num ambiente diferente, achar-se combinada no eixo sintagma- tico: Nés chegamos. Dirigiu-se a nds. Falou sobre nds calma- mente. No segundo plano, ou segunda articulagdo, cada morfema, por sua vez, se articula em unidades menores desprovidas de 17 significado: os fonemas, de numero limitado em cada lingua. Assim, 0 morfema nés, divide-se em trés fonemas /n/ /6//s/, cada um dos quais pode ser substituido por outros no mesmo ambien- te /v/ /6/ /s/, /v/ [al /s/ ou combinar-se com outros para formar um morfema diferente: ano, nao. A dupla articulagdo evita sobrecarga da memoria e permite economia de esforgos na produgao e compreensao da lingua- gem verbal; sem ela, seria preciso recorrer a morfemas e fonemas diferentes para designar cada nova experiéncia. A terminologia usada para designar as unidades de primei- ra articulagao varia muito. A. Martinet designa-as monemas, dis- tinguindo, ainda, os lexemas, monemas que se situam no léxico e morfemas, os que se situam na gramatica. Ja a lingilistica nor- te-americana, de modo geral, denomina os monemas de morfemas, distinguindo os morfemas lexicais /cant/ dos grama- ticais /-a-/ /-va/, terminologia que adotaremos neste texto. 1.5. Descritivo e normativo A partir de Saussure, os estudos lingi isticos concentraram- se no estudo do mecanismo pelo qual uma dada lingua funciona como meio de comunicagao entre os seus falantes e na descri- cdo da estrutura que a caracteriza. A abordagem descritiva fica melhor caracterizada em opo- sig&o & normativa. A primeira explicita, enumera e classifica a estrutura das frases, dos morfemas que constituem as frases, dos fonemas que constituem os morfemas e das regras de com- binagao dessas diferentes unidades. Trata-se de um trabalho de definigdo, classificagdo, interpretag&o e nao de julgamento ou legislacdo. A Ultima procura prescrever as normas, discriminan- do os padrées lingiiisticos e elegendo um deles como de “bom uso”, muitas vezes a partir de critérios de ordem social e nao lingiiistica. Ao longo dos anos, as gramaticas normativas foram estabelecendo preceitos avaliativos, isto é, instrugdes que mui- tas vezes se resolvem em diga x, nao diga y. 18 Frente a essa disting&éo, uma questdo tem sido colocada com freqiiéncia: deve a gramatica normativa ser abandonada? Pensamos, como Mattoso Camara Jr. (1970), que a falha nao esta no fato de as gramaticas serem prescritivas, mas sim no de basearem-se em descrig6es inadequadas e falsas. Cabe a lingiistica descritiva descrever os padrdes em uso nos quais a gramatica normativa possa basear-se, de tal modo que a norma nao seja uniforme e rigida, mas se mostre eldstica e contingen- te, adaptando-se as diferentes situagdes. Este trabalho visa contribuir no sentido de se atingir tal obje- tivo, apresentando uma descrigdo sincrénica da estrutura morfo- légica do portugués em sua modalidade escrita. NOTAS 1. As graméticas do portugués, seguindo a orientagéo da época, limitavam-se de modo geral, a apresentar normas para bem falar e bem escrever. 2. Entende-se por signo lingUistico, conforme Saussure, um conjunto formado de duas partes: uma perceptivel, o significante ou imagem acistica e uma int vel, 0 significado. O significante 6 o complexo sonoro audivel que encerra o signif cado ou conceito. Ex.: “cravo” — significante: /Kravu/ — significado: a idéia da flor que 0 complexo sonoro desperta no ouvinte @ no falante, quando se produz esta combinagao de sons CO signo 6 0 resultado da unio entre um significante e um coneeito e nao entre uma coisa e um nome. 3. Os critérios para os agrupamentos paradigméticos podem ser morfolégicos (por ex. as classes de palavras), sintéticos (por ex. as fungdes gramaticais), seman- ticos (por ex. as sinonimias e antonimias) etc. 4. Este item 1.4, referente & dupla articulagdo, foi calcado em Dubois, Jean (1973), p. 67 @ 68. 5. Articulagdo significa, também, em lingiifstica, 0 ato de produzir os sons da fala através do aparelho fonador. 6. O conceito de unidades minimas significativas apbia-se no fato de nao se- rem possiveis outros desmembramentos, sob pena de os segmentos nao terem significado na estrutura em exame. 19 EXERCICIOS Bloco 1 1. Imagine uma situag&o em que haja quatro jogadores, pedras de seis cores diferentes e as seguintes regras obrigatérias e opcionais: a) combine sempre para a direita as pedras azuis e as ama- relas; b) pode-se intercalar entre a pedra azul e a amarela, pedras verdes e vermelhas, desde que elas sejam colocadas sem- pre juntas; c) as pedras verdes e vermelhas podem ser substituidas por cinzas e laranjas. 2, Imagine as seguintes jogadas e verifique quais dos jogado- res seguiram as regras estabelecidas: a) o jogador A no pée entre a pedra azul e a amarela as pedras verdes e vermelhas; b) 0 jogador B pde uma pedra amarela entre a verde e a ver- melha; c) © jogador C combina pedras azuis com amarelas a es- querda; d) 0 jogador D poe uma pedra amarela ao lado direito de uma azul, intercalando pedras cinzas e laranjas. 3. Estabelega agora um paralelo entre o jogo e as nogdes lin- giiisticas de lingua e fala: 0 que corresponde, na descri¢ao acima, a lingua? E a fala? Bloco 2 Distinga e justifique, nas afirmagdes a seguir, as nogdes lingiisticas em jogo (sincronia — diacronia; sintagma — para- digma) e a abordagem (normativa ou descritiva) utilizada pelo autor: 20 . “Na fala popular do Rio de Janeiro, ha uma tendéncia para a supressdo das semivogais de certos ditongos... Consideremos em primeiro lugar os ditongos crescentes. HA um grupo de pala- vras para as quais 6 grande a tendéncia & redu¢do do ditongo: Padrao Popular paciéncia pacienga policia poliga salario salaro contrario contraro armério armaro edificio edifigo escritorio escritoro antincio anungo” (Lemle, Miriam (1978). “Heterogeneidade Dialetal: um Apelo A Pesquisa Lingiiistica e Ensino do Vernaculo”. Tempo Brasi- leiro, n° 53/54, p. 57). . “O infinitivo pessoal emprega-se obrigatoriamente num sd caso: quando tem sujeito préprio, distinto do sujeito da ora- ao principal.” (Rocha Lima, p. 429). . O pronome eu é empregado na lingua como sujeito de um verbo, Em qualquer outra fungao é substituido por me (objeto direto e indireto) nao precedido de preposi¢ao ou por mim, se for precedido de preposicao. . “Quanto a colocag&o ou procedéncia dos pronomes na frase, 6 de boa norma, nao propriamente gramatical, mas de distin- Ao e elegancia, dar prioridade a primeira (eu), quando se trate de alguma coisa menos agradavel, ou que importe res- ponsabilidade, ou, ainda, nas manifestagdes de autoridade e hierarquia; em caso contrario, por modéstia e delicadeza, a primeira pessoa, a que fala, coloca-se em Ultimo lugar... (Ro- cha Lima, p. 310). . “Na linguagem arcaica, era freqiiente 0 uso das formas téni- cas do objeto indireto em fungao objetiva direta.” (Rocha Lima, p. 302). 21 6. “Como é sabido, o plural, em -aeis, -eis (= ees), -is (= iis ou ies), -0es e -ues dos nomes terminados em -al, -el, -il, -ol, -ul é devi- do & queda do / intervocalico; a terminagao -iles deu, quando ténica, -ies, que passou para -iis e depois se reduziu a -is, e, quando atona, -ees, que mais tarde, por dissimilagao ou devi- do ao lugar ocupado pelo ultimo e, se tornou em -eis, evolugao que igualmente sofreu a ténica -e/es...” (Nunes, J. J. (1945). Compéndio de Gramatica Histérica Portuguesa (Fonética e Morfologia). Lisboa, Livraria Classica Edit. p. 236 e 237). 7. “Posto que a instituig&o dos ordculos e agouros estivesse morta desde muito tempo, perdurou na era medieval, e ainda na idade moderna, a crenga de que o éxito dos atos humanos dependia da hora em que eram empreendidos. Daj o costu- me de se acrescentar a frases optativas ou imperativas, por sinceridade, ou mera cortesia, a locugao em boa hora... Fun- diu 0 uso as trés palavras em uma s6, embora, sendo adota- da sem o minimo escripulo pela linguagem literaria. Tornou- se usual acompanhar a forma imperativa de ire vir dos votos de bom éxito. Esta nogao, compreendida no advérbio embo- ra, desluziu-se da consciéncia hodierna, que confusamente descarrega nele o conceito de afastamento como se os ver- bos nao dissessem ja a mesma coisa.” Bloco 3 Aplique nos exercicios abaixo, as nogées lingiisticas estu- dadas neste capitulo: 1. A palavra estudantes pode ser dividida de duas formas, de acordo com o principio da dupla articulagaéo da linguagem. Quantos segmentos teria, se subdividida em unidades de pri- meira articulag&o? E em unidades de segunda articulagao? Responda as mesmas questées a respeito das palavras: a) lingiistica; b) indiretamente; c) possibilidade; d) significativas. 22 2. Construa conjuntos de palavras que se agrupem por paradig- mas de acordo com os seguintes critérios: a) seméantico: palavras que indicam acao, estado, sentimento; b) sintatico: termos que exercem as fungdes de sujeito, obje- to e modificador; ¢) morfolégico: elementos gramaticais que ocorrem como: pre- fixos, sufixos formadores de nomes, sufixos formadores de adjetivos. 9 Determine os critérios que possibilitaram os agrupamentos obtidos nas colunas A e B; em seguida, combine de modo diferente as palavras de cada uma delas, indicando os crité- rios utilizados. A B teatro automével tréleibus cinema testemunha advogado 4. Observando as relagées sintagmaticas, construa trés frases, utilizando elementos pertencentes as classes gramaticais in- dicadas: a) dois substantivos, um artigo e um verbo; b) trés substantivos, dois artigos, uma preposi¢ao e um verbo; c) um substantivo, um artigo, um adjetivo e um verbo. 5. Complete o vazio com outros contextos: sui - cida com - portar com - portar cida com portar cida com portar 6. No texto abaixo, procure detectar os paradigmas seguintes: a) de palavras relacionadas 4 religiosidade; b) de termos que exprimam oposig&o de idéias; c) de elementos gramaticais indicadores de oposigao ou con- traste entre outros elementos pertencentes aos diversos paradigmas da lingua: 23 “Pequei Senhor: mas n&o porque hei pecado De vossa alta cleméncia me despido Porque, quanto mais tenho delingiido Vos tenho a perdoar mais empenhado” (Guerra, Gregorio de Mattos. “Obra Sacra n° 1 — A Jesus Cristo Nosso Senhor.’ in A Literatura Brasileira através de textos. Massaud Moisés. Sao Paulo, Cultrix, (1971), p. 4). 24 2 Principios da andlise mérfica 2.1. 0 Vocdbulo Formal Mattoso Camara Jr., baseando-se em Bloomfield (1933: 160), define 0 vocdbulo morfoldgico ou formal em portugués, tendo em vista o seu funcionamento a nivel de frase. De acordo com o lin- gilista americano, as unidades formais de uma lingua sao livres e presas. As primeiras constituem uma seqiiéncia que pode funcio- nar isoladamente como comunicag&o suficiente, conforme livros no enunciado: “O que vocé vai revender?” “Livros”. As formas pre- sas s6 funcionam ligadas a outras, como o prefixo re em revender ea marca de plural em livro-s. O vocabulo formal ou morfolégico apresenta-se, entdo, como a unidade a que se chega quando nao 6 possivel nova diviséo em duas ou mais formas livres. De modo a abranger as particulas prociiticas e encliticas, em portugués (artigos, preposigdes, pronomes atonos etc.), Mattoso Camara Jr. introduziu um terceiro conceito, o de formas dependentes as quais funcionam ligadas as livres, conforme se observa em: “As noticias da falsificagao do jornal espalharam-se rapidamente.” Tais formas distinguem-se das livres e das presas: das primeiras, porque nao podem funcionar isoladamente como comunicagao suficiente; das segundas, pelas possibilidades de intercalag&o de novas formas e de variagao posicional na frase. 25 Modificando-se parcialmente o enunciado anterior: “As no- ticias verdadeiras e chocantes da falsificagao do jornal se espa- Iharam rapidamente” e comparando-se as duas versoes, verifi- ca-se que dois vocdbulos foram intercalados entre noticias e da @ que o pronome se passou para a posigdo proclitica. Nesse mesmo enunciado, as formas presas (por ex.: -s e -mente) apre- sentam-se intimamente ligadas as livres e as dependentes. Introduzindo a nog&o de forma dependente, Mattoso Ca- mara ampliou 0 conceito de vocdbulo formal: 6 a unidade a que se chega quando ndo é possivel a diviséo em duas ou mais for- mas livres ou dependentes. Tanto as formas livres como as dependentes ora apresen- tam-se indivisiveis (sol, a), ora so passiveis de diviséo em unida- des menores (in-feliz-mente, im-pre-vis-i-vel, a-s). Em infelizmen- te, a forma livre feliz esta combinada com formas presas; em im- previsivel, a forma livre compde-se apenas de formas presas. Recordando a distingdo estabelecida no capitulo 1 entre morfemas lexicais (que se situam no léxico) e morfemas grama- ticais (que se situam na gramatica), no vocabulo infelizmente tem- se um morfema lexical e dois gramaticais, e no vocdbulo imprevi- sivel tem-se um morfema lexical e trés morfemas gramaticais. Ainda, 0 vocabulo as, citado anteriormente, 6 composto de dois morfemas gramaticais, um funcionando como forma dependen- te, outro como forma presa. Portanto, nado se pode confundir o conceito de formas /i- vres, dependentes e presas com o de morfemas.' Trata-se de conceitos estabelecidos a partir de critérios diversos: os primei- ros, definem-se a nivel de frase, isto é, do funcionamento das unidades lingliisticas no enunciado; os segundos, a nivel de vo- cabulo,? ou melhor, da possibilidade ou ndo de sua di menores unidades significativas ou de primeira articulagao. Nossa anilise consiste justamente a depreensdo e funcio- namento dos morfemas lexicais e gramaticais que constituem o vocdbulo formal em portugués. 26 2.2. A Andlise Mérfica: principios basicos e auxiliares A analise morfica consiste na descrigaéo da estrutura do vocabulo mérfico, depreendendo suas formas minimas ou morfemas, de acordo com uma significagéo e uma fungao ele- mentares que Ihes sao atribuidas dentro da significagaéo e da fungao total do vocabulo. A significagao global de um vocabulo como cantariamos, por exemplo, 6 de que pessoas — entre as quais 0 falante — poderiam, no momento da enunciagao lingtiistica, estar empe- nhados na emissao vocal peculiar que se entende pelo morfema, lexical ou radical / cant- /°. Depreende-se tal morfema utilizando- se 0 princfpio basico da andlise mérfica, a comutagao, que con- siste em uma operagao contrastiva por meio de permuta de ele- mentos para a qual sao necessérias: a) a segmentagao do voca- bulo em subconjuntos e b) a pertinéncia paradigmatica entre os subconjuntos que vo ser permutados. Visualizemos como ope- ra este principio: morfema lexical: cant. (a pertinéncia paradigmatica esta no grit ar fato de cada um dos segmentos ca- fal racterizarem usos da voz humana) vogal tematica: jog a riamos (0 confronto de verbos de conjuga- beb e riamos des diferentes possibilita evidenciar ped i riamos a vogal tematica) marca de modo e tempo: joga ria mos (depreende-se ria como marca do joga va mos futuro do pretérito em oposigéo a va joga re mos do pretérito imperfeito, re do futuro do presente etc.) 27 marca de numero e pessoa: (depreende-se mos como marca de jogaria mos primeira pessoa do plural em oposi- jogaria s Gao a s que indica segunda pessoa jogarie is do singular e a is que indica segun- da pessoa do plural). Ao lado da comutagao, existem dois outros principios da andlise mérfica: a alomorfia e a mudanga morfofonémica. Os di- ferentes morfemas de uma lingua nao estao obrigatoriamente ligados a um segmento fénico imutavel: por exemplo, o segmen- to /-s/ marca, de modo geral, o plural dos nomes em portugués mas outros segmentos como /-es/ tém essa mesma fungao. Do mesmo modo, /-ria/, que marca o futuro do pretérito, tem uma variante /-rie/.* Também os morfemas lexicais apresentam va- riantes: /ordem/, /orden-/, /ordin-/ tem a mesma significagéo em ordem, ordenar e ordindrio, respectivamente. A essa possibilida- de de variagdo de cada forma minima da-se o nome de alomorfia> A alomorfia pode ser ou nao fonologicamente condiciona- da. A nao-condicionada implica variag6es livres, que indepen- dem de causas fonéticas, como as alternancias vocdlicas em faz, fez, fiz. A fonologicamente condicionada consiste na agluti- nag&o de fonemas, nas partes finais e iniciais de constituintes em seqiiéncia, acarretando mudangas fonéticas. Trata-se, pois, de uma mudanga morfofonémica, porque, operando entre fonemas, afeta o plano mérfico da lingua. Sao exemplos de mu- dangas morfofonémicas a redugao de /in-/ a /i-/ diante de con- soante nasal da silaba seguinte: incapaz / imutavel; o apare« mento de uma semivogal na forma passeio ao lado de passear; a troca de consoantes em duvida indubitavel. Conforme se pode verificar pelos exemplos dados, a mudan¢a morfofonémica é fonte constante de alomorfia. A consideragao da variag&o morfofonémica dentro do voca- bulo 6 muito importante na derivagao vocabular, principalmente nas flexées nominais e verbais, porque simplifica a descrigao gramatical, suprimindo falsas irregularidades. 28 Outro fenémeno importante na andlise mérfica 6 o da neu- tralizagdo, que consiste na perda da oposigao entre unidades significativas diferentes. Como a alomorfia, ela pode se dar ape- nas no plano mérfico ou ser resultante de condicionamento fonolégico. Como exemplo do primeiro caso, tem-se a neutrali- zagao entre a primeira e a terceira pessoas gramaticais em va- trios tempos verbais: cantava - cantava; cantaria - cantaria etc. Como exemplo do segundo caso, tem-se, em alguns tempos verbais, uma neutralizagao entre a segunda e a terceira conju- gagao em decorréncia da perda de tonicidade da vogal tematica, isto 6, a oposigao entre essas conjugagées, caracterizada pelas vogais -e e -i, respectivamente, desaparece quando a vogal te- matica é atona final: temes, teme, temem; partes, parte, partem. 2.3, Tipos de Morfemas Os morfemas gramaticais em portugués podem ser enqua- drados em quatro tipos: classificatérios, flexionais, derivacionais e relacionais. Os morfemas classificatorios sao constituidos pelas vogais tematicas cuja fungdo 6 a de enquadrar os vocabulos em classes de nomes (substantivos e adjetivos) e de verbos. Dai a sua subdi- viséo em nominais /-a, -e, -o/ e verbais -a, -e, -.. A auséncia de vogal temética em alguns nomes cria as formas atematicas, que se circunscrevem as palavras terminadas em consoantes e vo- gais t6nicas. Incorporadas aos morfemas lexicais, as vogais tema- ticas formam a base para a anexagao dos morfemas flexionais. Os morfemas flexionais “fletem’, ou alteram, os morfemas lexicais, adaptando-os a expressdo das categorias gramaticais que a sua classe admite: (nos nomes, género numero; nos verbos, modo e tempo, numero e pessoa). Séo cinco os morfemas flexionais em portugués: aditivos, subtrativos, alternativos, morfema zero, morfema latente. Aditivos: resultam do acréscimo de um ou mais fonemas ao morfema lexical. Considerando os pares: rapaz - rapazes, pro- 29 fessor - professora, tem-se os segmentos /-es/ e /-a/ indicando respectivamente as nogGes gramaticais de género e numero. Ha, ainda, um tipo especifico de morfemas que se agrupam nessa classe: os cumulativos, que resultam da acumulagao de mais de uma nogdo gramatical numa forma lingiistica indivisivel. Tais morfemas sdo constantes nos verbos portugueses. Em amdra- mos, bebéramos e partiramos, por exemplo, nos segmentos /-ra/ e/-mos/ a indicagao de modo se acumula com a de tempoe ade numero com a de pessoa. Subtrativos: resultam da supressdo de um segmento fénico do morfema lexical. No conjunto drfao - 6rfa, a nogao de feminino, em vez de aparecer indicada através da adig&o de um morfema a forma masculina, processo basico de formag&o do género em portugués, decorre da prépria subtragao dessa forma. Alternativos: resultam da alternancia ou permuta de um fonema no interior do vocabulo. Entre os nomes, a vogal t6nica /-6/ do masculino singular pode alternar com um /-6/ no feminino e no plural, conforme demonstram os exemplos a seguir: povo - povos; formoso - formosa. A alternancia nos nomes é um trago morfolégico secundario, porque ela complementa as flexGes de género e numero. Os exemplos citados, além das marcas /-s/ e /-a/, carregam na formagao do numero e género, respectivamen- te, a alternancia vocalica /-6/ — /-6/ como trago redundante. Em portugués é mais adequado considerar-se tais alternancias como morfemas redundantes, dada a sua fungado unicamente subsi- didria, e enquadra-los como uma subclasse dos alternativos, excegao feita ao par avé-avo e seus derivados. Nesse par, a marca sufixal de feminino esta ausente e a distingdo de género é indi- cada unicamente pela alternancia que passa, no caso, a ser tra- go primario, distintivo e a ocorrer no fim do vocabulo, constituin- do 0 verdadeiro morfema alternativo.® Morfema-zero: resulta da auséncia de marca para expres- sar determinada categoria gramatical. S6 ocorre quando ha opo- sig&o, isto 6, quando o morfema lexical isolado assume uma signi- ficagaéo gramatical em virtude da auséncia do morfema que ex- pressa a significagéo oposta. No morfema lexical mar, a auséncia 30 da marca de plural /-es/ indica a nogao de singular. Também em professor, a auséncia do morfema /-al expressa a nogéo de masculino. Em portugués, o mecanismo gramatical de género e n&mero, baseia-se, essencialmente, em morfemas aditivos que ficam em oposigéo a morfemas O. Morfema latente ou alomorfe @: embora tenha em comum com o morfema zero a auséncia da marca, distingue-se daquele porque no apresenta morfema gramatical proprio para indicar qualquer categoria, isto é, nao traz em simesmo o contraste entre as categorias gramaticais. Os vocabulos lapis e artista, por exem- plo, funcionam isolados e inalterados para indicar as significagoes gramaticais de singular-plural e de masculino-feminino, respecti- vamente. A designagao /atente provém do fato de que essas signi- ficagdes revelam-se indiretamente no contexto. Trata-se dos morfemas basicos de plural /-s/ e de feminino /-a/ que se realizam algumas vezes como © na qualidade de alomorfes. Por exemplo: o lapis caiu - os lapis cairam; o artista chegou - a arti8ta chegou. Resta ainda falar acerca de dois outros tipos de morfemas: ‘os derivacionais e os relacionais. Os primeiros criam novas pala- vras na lingua: a partir do morfema lexical /ivr-o, tem-se livr-eiro, livr-aria, livr-inho etc. Tais morfemas, ao contrario dos flexionais, n&o obedecem a uma sistematizagao obrigatoria: assim é que uma derivagdo pode aparecer para um dado vocabulo (de cantar deriva-se cantarolar), e faltar para um vocdbulo congénere (nao ha derivagées andlogas para falar e gritar). JA os morfemas flexionais estao concatenados em paradigmas coesos e com pequena margem de variagao; compare-se a série sistematica: cantévamos, faldvamos, gritavamos, que ocorre toda vez que a atividade expressa no verbo é atribuida ao locutor e a mais al- guém em condigées especiais de tempo passado. Na derivagdo encontram-se, via de regra, idiossincrasias ao lado de regularidades, porque os morfemas derivacionais nado constituem um quadro regular, coerente e preciso. Nem todos os verbos portugueses, como se exemplificou ha pouco, apresen- tam nomes deles derivados e, para os derivados existentes, os 31 processos sdo desconexos e variados: fala para falar; consola- ¢4o e consolo para consolar; julgamento para julgar, e assim por diante. Também nem todos os substantivos portugueses tém um diminutivo correspondente e os que existem podem ou nao ser utilizados, numa frase dada, de acordo com a vontade do falante. Logo, morfemas como: -¢ao, -mento, -inho, entre ou- tros, nao tém a mesma fungéo em portugués que elementos como /-s/, /-a/, ou /-va/, caracterizadores de ntimero e género nos no- mes e de modo e tempo nos verbos. Os primeiros formam pala- vras que enriquecem o léxico, servem como base para deriva- gdes posteriores e possibilitam ao falante a escolha de uma for- ma vocabular; os segundos s&o elementos de caracterizagao exclusiva e sistematica impostos pela propria natureza da frase (que nos faz colocar, por exemplo, um substantivo no plural ou um verbo na primeira pessoa do pretérito imperfeito) e nao po- dem servir de base para formagées derivacionais posteriores. O resultado da derivagdo é um novo vocabulo. Entre ele e os demais vocdbulos derivados similares ha esse tipo de rela- goes abertas, que caracteriza o léxico de uma lingua em con- traste com a sua gramatica. Nesta, o que se estabelece sao rela- gdes fechadas, como, por exemplo, a que vigora entre cantdva- mos e todas as demais formas do verbo cantar, ou entre lobos ou /oba e o nome basico singular lobo. A flexdo caracteriza-se, portanto, pelo alto teor de regularidade de seus padrées, ainda que estes possam ser de grande complexidade, conforme vere- mos ao tratar dos verbos chamados “irregulares”. Por se tratar de relagdes abertas, na derivagao, as idiossin- crasias constituem a regra e a nao previsibilidade 6 uma cons- tante, enquanto, na flexao, a regra é a previsibilidade e as idios- sincrasias constituem a excegao. Além disso, as formas deriva- das podem assumir extensdes de sentido de tipos variados, en- quanto as flexionadas mantém o mesmo sentido ou fungao, de modo que as extensdes, quando existem, ocorrem em termos globais, para todos os itens de uma determinada classe.’ Portanto, apresenta-se como uma das incoeréncias de nos- sas gramaticas a inclusaéo dos morfemas caracterizadores de 32 grau, aumentativo e diminutivo, como flexionais. Trata-se, na rea- lidade, de um processo derivacional. Finalmente, os morfemas relacionais ordenam os elemen- tos da frase, possibilitando a concatenagdo dos morfemas lexicais entre si, como as preposig6es, conjungdes e pronomes relativos A manipulagao desses morfemas pertence a sintaxe, motivo pelo qual nado serao abordados aqui. NOTAS 1. Nao ha sequer coincidéncia nas classificagées. Em lisboeta, por exemplo, encontra-se um morfema lexical que no ocorre como forma livre na lingua: lisbo. Evidentemente, se se considera o grau de autonomia e as regras de combinagao dos morfemas, ter-se-4 de admitir que os morfemas lexicais tam maior tendéncia a se constituir em formas livres, enquanto os gramaticais apenas sao atualizados como formas livres, quando lexicalizados e, portanto, deixando de ser gramaticais. Exemplo: 6 0 -s do plural, trata-se do -inha de casinha. 2. Parece procedente considerar 0 termo palavra equivalente a vocdbulo, toman- do por base a classificagao das formas em livres e dependentes. Isto porque, se se pedir a diversos falantes que reproduzam lentamente as palavras que compéem 0 enunciado ‘0 livro da biblioteca”, perceber-se-4 a exist€ncia de quatro pausas corres- pondentes a quatro palavras diferentes. Se este enunciado for transposto para a lin- gua escrita, obter-se-4 0 mesmo resultado, visto que 0 principio usado para se iden- tificar 0 nimero de palavras ¢ a existéncia de espagos em branco entre as unidades. Ora, tal critério corresponde exatamente aquele estabelecido por Mattoso Camara J. para definir vocabulo, critério este que propomos abranja também a nogo de palavra. Mesmo partindo desse principio, ha casos de andlise duvidosa. Em baixo e embaixo correspondem a duas combinagdes de morfemas diferentes ou apenas a duas repre- sentagoes graficas de uma mesma combinacao de morfemas? Trata-se de uma ou de duas palavras? Em co-ocorréncia qual o valor do hifen? Equivale a um espago e entéo hé af duas palavras? Para um entendimento maior da questo, consultar: “Mor- fologia da Lingua Portuguesa’, in Revista da Universidade Catdlica de Sao Paulo, (1979). Parte significativa deste capitulo baseia-se no referido artigo. 8. Adotar-se-do os termos morfema lexical e radical como equivalentes; este Ultimo, desvinculado da sinonimia com raiz, a fim de evitar interferéncia entre pro- cedimento sincrénico e diacrénico. O radical mais a vogal tematica constituem 0 que se costuma designar de tema. 4, Alguné linglistas restringem a terminologia morfema ao nivel de lingua, con- siderando-o como valor abstrato da estruturagao linguistica; em nivel de fala esta- riam os morfes, realizagao dos morfemas. De acordo com esses lingUistas, existe, por exemplo, um morfema correspondente & significagéo gramatical de plural /PV/ que se atualiza através dos mortes /-s/ /-es/ etc. Cada um desses morfes 6 um 33 alomorfe. Do mesmo modo, hd um morfema correspondente a significagao grama- tical do futuro do pretérito no indicativo /IdFtJ, que se atualiza através dos morfes /-tial, /-riel, Do ponto de vista pedagégico, parece mais adequado considerar morfema © significante mais usual e sistematico na lingua (forma basica) e os demais como variantes ou alomorfes. 5. Em portugués existe também o fendmeno contrario, isto 6, 0 da homonimia: uma mesma forma, indicando diferentes significagdes gramaticais: /-s/ indicando plural nos nomes e a 2 pessoa gramatical nos verbos. 6. Além da alternancia de fonemas segmentais, também se encontra a de fonemas supra-segmentais. Em portugués, hd uma oposigao entre formas verbais paroxitonas e formas nominais proparoxitonas: fabrica-fabrica, exército-exercito, etc. Nestes casos, morfema lexical enquadra-se numa determinada classe de palavra, de acordo com a incidéncia do acento de intensidade na pentitima ou na antepe- nultima silaba. O acento de intensidade também indica uma oposigao entre tempos verbais, mais especificamente entre o mais-que-perfeito do indicativo e o futuro do presente, Por exemplo: cantara, vendera, partira/cantard, venderd, partira. 7. Para um maior aprofundamento da questo, consulte-se Margarida Basilio (1981), EXERCICIOS Bloco 1 Se vocé concordar com cada uma das afirmagées a seguir, coloque ao lado um exemplo que a comprove; caso contrario, deixe 0 espago em branco: 1. tem-se a alomorfia quando a forma é a mesma, apenas 0 sig- nificado varia 2. as particulas encliticas e procliticas em portugués nao séo vocabulos mérficos .. 3. em portugués ha uma grande ocorréncia de vocabulos forma- dos de uma forma livre e uma ou mais formas presas... 4. para dividir 0 vocabulo em cada um dos segmentos que o constituem, baseamo-nos no principio da comutagao ... 34 5. 0 morfema lexical, além de funcionar como base de significa- do, serve para formar outras palavras do idioma .. 6. 0 morfema gramatical tem a fungdo de enquadrar o morfema lexical dentro de categorias da lingua . Bloco 2 1. Considerando as frases abaixo: a) indique o numero de vocabulos mérficos e classifique-os em formas livres e dependentes; b) assinale todas as formas presas e, a seguir, indique os morfemas lexicais e gramaticais que constituem as formas livres: As cartas estéo rasuradas novamente. Nao refiz 0 artigo de lingijistica. O rosto da acusada parecia transfigurado. Casas extraordinarias! 2. Decomponha as palavras reconsolidar e encruzilhada em uni- dades significativas. 3. Para cada palavra abaixo, indique outra que contenha alomorfe do morfema lexical: a) felicidade; b) petig&o; c) duvida; d) visdo; e) bandido. Bloco 3 Linguas hipotéticas 1. Observe os dados da lingua A: ikalveve — casa grande petatsosol — capacho velho ikalsosol — casa velha petatcin — capacho pequeno ikalcin — casa pequena ikalmeh — casas petatveve — capacho grande petatmeh — capachos 35 a) segmente os vocdbulos; b) quais os elementos que significam “grande”, “velho”, “pe- queno”? ¢) quais os elementos que significam “casa” e “capacho”? d) quais os morfemas indicativos do numero e do género? 2. Observe agora os dados da lingua B: filkas — forte mafikas — fortalecer kelad — fraco mekelad — enfraquecer batar — surdo mabatar — ensurdecer fusat — escuro mufasat — escerecer pesal — velho mepesal — envelhecer a) qual o afixo que aparece nos dados? b) que idéia encerra? ¢) esse afixo apresenta variantes (alomorfes), como aconte- ce com in-, im-, i- em portugués? d) dada a palavra posas (pobre), como vocé diria empobrecer? Bloco 4 Classifique os morfemas flexionais encontrados em cada par de vocabulos. a) fregués - freguesa b) bisavé - bisavo c) 0, a pianista d) cirurgiao - cirurgia ) sogro - sogra f) mao - maos g) 0, os pires h) compraremos - venderemos. 36 3s Estrutura e formacao de vocabulos em portugués 3.1, Estrutura No capitulo anterior, considerou-se a vogal tematica como morfema classificatorio, dado o seu valor gramatical. Mas, ao lado dela, existem, em portugués, certos fonemas que aparecem no interior dos vocdbulos sem qualquer valor mérfico. Sao as vo- gais e consoantes de ligagao, ocorrentes na jungao dos morfemas lexicais e derivacionais e cuja Unica fungao consiste em evitar dissonancias na juntura daqueles elementos,’ conforme os exem- plos gasogénio e chaleira entre muitos outros. O primeiro des- ses vocdbulos é formado por dois morfemas lexicais ligados pela vogal o sem valor significativo e 0 segundo é constituido do morfema lexical cha e do sufixo -eira entre os quais aparece a consoante nao significativa -/-. Esses elementos de ligagao, dado seu carater puramente eufénico, devem ser considerados como constituintes dos morfemas aos quais se ligam. Tem-se, assim, casos de alomorfia fonologicamente condicionada: o morfema lexical gas apresen- ta uma variante gaso- em gasogénio e o morfema derivacional -eira apresenta uma variante -/eira, em chaleira. 37 Considerando-se essas observacgoes iniciais e partindo-se das delimitages ja estabelecidas no capitulo anterior, isto 6, a de que a andlise mérfica restringe-se 4 decomposigao dos morfemas em lexicais e gramaticais (flexionais, derivacionais e classificaté- rios) tem-se condigdes para determinar a estrutura dos vocdbulos em portugués’, os quais podem ser constituidos de: 1, apenas um morfema lexical: azul, mar, sol, feliz. 2. morfema lexical (+ vogal tematica) + morfemas flexionais: ; Menin-o-s;? part-i-sse-mos; not-a-ra-m. 3. morfema lexical + morfemas derivacionais (+ morfemas flexionais): 3.1. prefixo(s) + morfema lexical (+ vogal tematica) (+ morfema flexional): in-feliz; des-em-palh-a-r; in-apt-o-s; 3.2. morfema lexical + sufixo(s) (+ vogal tematica) (+ morfemas flexionais): mur-alh-a; cant-eir-o-s; habitu-al; levanta-ment-o; arre- pendi-ment-o; menina- zinh-a-s. Nas jungées especificadas no item acima, cabe ao sufixo marcar a classe gramatical e as flexdes do vocabulo ao qual se agrega.‘ E 0 que ocorre, por exemplo, em /evantamento e meni- nazinhas, nos quais a vogal tematica existente no vocabulo pri- mitivo - levant-a-r e menin-a - perde o valor de morfema ao sofrer © acréscimo do sufixo.° 3.3. prefixo(s) + morfema lexical (+ elemento de ligag&o) + sufixo(s) (£ vogal tematica) (+ morfemas flexionais): in-felizmen- te; re-prova-gao; des-contenta-ment-o-s. 4. morfema lexical (+ vogal tematica) (+ morfemas flexio- nais) + morfema lexical (+ vogal tematica) (+ morfemas flexionais); couv-e—flor; guard-a—chuv-a-s; terg-a-s—feir-a-s; pé-s—de— molequ-e. alun~ 3.2. Formagao A partir desses varios tipos de estrutura, torna-se possivel determinar os processos de formagéo dos vocdbulos em portu- gués. Os vocabulos indicados nos itens 1 e 2 sao formas simples 38 e primitivas e aqueles contidos no item 3 (com as respectivas subdivis6es), constituem vocabulos simples, mas derivados, fi- nalmente, os vocabulos incluidos no item 4, os quais contém mais de um morfema lexical, sao vocabulos compostos. Portanto, para uma andlise sincrénica dos mecanismos uti- lizados na formagao de palavras, levar-se-4 em conta a existén- cia de palavras simples e compostas, conforme contenham um ou mais morfemas lexicais. As simples podem, pois, ser primiti- vas e derivadas. As primitivas sao as que nao se originam de outras e servem de base para a formagao das derivadas. Os principais processos de forma¢&o de novas palavras, isto 6, os de mais alta produtividade sao a derivagao e a compo- sigao. A derivagao consiste na formagao de palavras por meio de afixos agregados a um morfema lexical. Para que haja deriva- Go, duas condigdes devem ser preenchidas. A primeira delas consiste na possibilidade de depreensao sincrénica dos morfe- mas componentes. Considerar derivadas, palavras como sub- misso, perceber conduzir, admitir, a partir de uma pseudo forma livre -misso-, -ceber-, -duzir-, -mitir-, com 0 acréscimo dos prefi- xos sub-, per-, com- e ad- representa um critério diacrénico va- lido apenas no estudo histdrico, j4 que no estagio atual da lingua esses morfemas lexicais inexistem. Assim, tais vocdbulos devem ser tratados como palavras primitivas.® A segunda condigao implica na possibilidade de 0 afixo como forma minima, estar & disposigao dos falantes nativos, no siste- ma, para a formagdo de novos derivados. Por sua vez, a maior ou menor produtividade’ do afixo auxilia o falante ndo s6 a for- mar ou aceitar determinadas palavras, rejeitando outras, como também a interpretar determinados vocdbulos como morfologi- camente complexos ou simples.® Preenchidas as condigées explicitadas, pode-se falar na existéncia de quatro tipos de derivagdo: a) prefixal: acréscimo de prefixos ao morfema lexical: reter, jlegal, subtenente, compor; 39 b) sufixal: acréscimo de sufixos ao morfema lexical: sa- boroso, ponteira, grandalhao, barcaga, vozinha, toquinho.® c) prefixal e sufixal: acréscimo tanto de prefixos como de sufixos ao morfema lexical: deslealdade, infelizmente; d) parassintética: acréscimo simultaneo de um prefixo e um sufixo ao morfema lexical: entardecer, esfare/ar. A derivagao parassintética distingue-se da anterior’? por- que 0 prefixo e o sufixo sao acrescentados a um s6 tempo ao morfema lexical, constituindo, portanto, um unico morfema gra- matical, de carater descontinuo"’. Observe-se a diferenca entre: feliz - infeliz - felizmente - infelizmente e tarde - “tardecer - *entarde - entardecer, no primeiro conjunto, todos os vocabulos sao atua- lizados em portugués, enquanto no segundo, o nome “entarde e © verbo “tardecer nao sao lexicalizados, portanto, entardecer decorre de afixagao simultanea. A parassintese consiste, basicamente, em um processo de formagao de verbos, em especial daqueles que exprimem mu- danga de estado, tais como engrossar, amadurecer, rejuvenes- cer, mas encontram-se também, na lingua, adjetivos formados Por parassintese como desalmado (des + alma + ado). Nos tipos de derivagdo até aqui verificados, a palavra nova resulta de acréscimo de afixos aos morfemas lexicais; neles ha, pois, uma constante: a palavra derivada amplia a primitiva. Existe no entanto, um processo de criagéo vocabular — a derivagao regressiva — que 6 feita justamente ao contrario, pela subtragao de morfemas. Isto ocorre, por exemplo, com as palavras caga (de cagar), corte (de cortar), descanso (de des- cansar) em que a desinéncia verbal do infinitivo e a vogal temati- ca do verbo sao substituidas pelas vogais tematicas nominais -a, -@, -0, formando, por esse processo, nomes abstratos de acao, denominados deverbais.'* Resta, ainda, referirmo-nos & derivagao imprdpria, isto 6, ao processo de enriquecimento vocabular ocasionado pela mu- danga da classe de palavras. Por ele explica-se a passagem de substantivos a adjetivos: manga-rosa, colégio-modelo; de adjeti- 40 vos a advérbios: ler alto, falar baixo, custar caro etc. Trata-se, na realidade, de um processo sintatico-semantico e nado morfolégi- co, motivo pelo qual nao o incluiremos entre os diferentes tipos de derivagao. A composi¢ao é 0 processo de formagao de palavras que cria novos vocabulos pela combinacao de outros ja existentes, dando origem a um novo significado. Através desse processo combinam-se dois morfemas lexicais, operando-se entre eles uma fus&o semantica, que pode ser mais ou menos completa. Assim, por exemplo, em guarda-chuva, 0 significado de cada elemento persiste com certa nitidez; ja em pé-de-moleque, este significa- do praticamente desaparece para dar lugar a outro. A composigao pode dar-se por justaposi¢ao ou por aglutina- ¢4o, conforme a fusdo mais ou menos intima dos elementos com- ponentes. Na justaposicao, os vocabulos que se combinam sao colocados lado a lado, mantendo a sua autonomia fonética, isto 6, 0 acento e todos os fonemas que os constituem. Sao grafados ora unidos, ora separados, com ou sem hifen"*: passatempo, girassol, pé-de-vento, amor-perfeito, Nossa Senhora. Ja na aglutinagao, os vocabulos se fundem num todo fonético, com um Unico acento, ocorrendo também a perda ou alteragao de algum de seus ele- mentos fonéticos (acento ténico, vogais ou consoantes), confor- me os exemplos pilanalto, pontiagudo, aguardente, etc... Do ponto de vista sincrénico, s6 se leva em conta a agluti- nagao quando, através da andlise mérfica, for possivel a depreensdo de dois morfemas lexicais. Nos casos em que 0 fa- lante nativo nao tem consciéncia da existéncia desses dois morfemas, nao se pode falar em composicdo. E 0 que acontece com palavras como fidalgo (filho de algo), agricola (habitante do campo), aqueduto (condutor de agua). O que representam hoje, por exemplo, os morfemas lexicais agri e cola? Quem, senao 0 estudioso da histéria da lingua, pode descobrir aglutinagao nes- sas palavras? Embora a divisao entre derivagéo e composigao, apresenta- da neste texto, seja comum para a maioria dos gramaticos, ha divergéncias que merecem atengao, como a incluso da prefixa- a Gao na composigao com base no critério da independéncia voca- bular, dado que grande numero de prefixos correspondem a pre- posi¢6es: compor, contradizer, decrescer e a advérbios: alentejado. No entanto, ao lado desses prefixos, existem outros que nao sdo usados como palavras na lingua atual ou jamais 0 fo- ram, conforme os exemplos respectivos: ob-ter, re-tomar, ex-por- tar, in-feliz. Se ob-e ex-j4 foram formas preposicionais, no latim, © mesmo nao se deu com re e in como assinala Said Ali (s/data). E facil afirmar que dis-, re-, in- representam particulas insepara- veis que sdo ou foram advérbios. Nada se sabe da existéncia de tais vocdbulos independentes nem em latim, nem em outra lin- gua indo-européia. Por toda a parte ocorrem estes elementos, funcionando sempre como prefixos. Desta forma, o argumento baseado na independéncia voca- bular de preposigdes e advérbios ndo justifica a exclusao da pre- fixagdo do &mbito da derivagao. Além do mais a relativa indepen- déncia verificada entre alguns prefixos poderia também ser ob- servada em pelo menos um sufixo: -mente, tipico da formagao de advérbios de modo, correspondente na lingua a um substantivo. Embora haja diferengas entre o sufixo e o prefixo — como por exemplo, o fato de o primeiro, nao o segundo, marcar a clas- se gramatical do vocdbulo ao qual se agrega — nAo se justifica, a partir dos contra-argumentos levantados, a inclusdo da prefi- xagao como processo de composi¢ao."* Além da derivagao e composigao, dois processos basicos de formag&o de palavras, encontram-se, em portugués, outros recursos para incorporar palavras a lingua: a abreviacao, a reduplicagao ou a onomatopéia e as siglas. A abreviagao, ocasionada por economia, isto é, pela lei do minimo esforgo, consiste no emprego de uma parte da palavra pelo todo, até limites que nado prejudiquem a compreensao. Eo que sucede, por exemplo, com os vocabulos longos e, em parti- cular, com os compostos greco-latinos de criagdo recente: auto (por automével), foto (por fotografia), moto (por motocicleta), pneu (por pneumatico). A forma abreviada passa a constituir uma nova palavra e, nos dicionarios, tem um tratamento a parte, quando 42 sofre alteragao de sentido ou adquire matiz especial em relagao aquela de que procede. A reduplicagao, também chamada duplicagao sildbica, con- siste na repetigaéo de uma silaba na formagao de novas palavras como Zezé, Juju etc. Quando a reduplicagao é imitativa, isto 6, procura reproduzir aproximadamente certos sons ou certos rui- dos, tem-se as onomatopéias: tique-taque, Zas-trds, zum-zum etc. As siglas consistem na redugao de longos titulos as letras iniciais das palavras que as compdem: PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), PMDB (Partido do Movimento Democratico Brasilei- ro). No entanto, uma vez criadas, passam a ser sentidas como palavras primitivas que possibilitam a formagao de novas pala- vras: petebista, peemedebista etc. Quanto ao hidridismo, combinagao de elementos de linguas diversas como autoclave (grego + latim), sociologia (lat. + gr.), goleiro, futebolista (ing. + port.), televisao (gr. + port.), monéculo (gr. + lat.) e bicampedao (lat. + port.), nao o consideramos um novo processo de formagao vocabular. Tal colocagaéo baseia-se na justificativa de que o falante nativo, excegao feita ao estudio- so da lingua, nao consegue depreender sincronicamente a ori- gem da palavra. Mesmo percebendo a existéncia de dois morfemas lexicais diferentes, como em auto-clave, ou de um morfema lexical e um sufixo, como em futebolista, ou, ainda, de um prefixo e um morfema lexical, como em bicampedo, o falante nao tem condigdes de determinar a lingua de origem. Além do mais, numa descrigao sincrénica, parece dispensavel cogitar-se da procedéncia deste ou daquele morfema; essa distingao sera feita num estudo diacrénico ou num levantamento etimoldgico."® Assim, parece mais adequado considerar-se 0 chamado hibridismo nao como um processo a parte, mas enquadra-lo en- tre os casos de justaposi¢ao, quando resulta da jungao de dois morfemas lexicais ou entre os de derivagao, quando é formado pela combinagao de afixo e morfema lexical. Concluindo, a definigao deste ou daquele processo como formador de palavras depende da possibilidade de se decompor os vocdbulos em menores unidades significativas operantes na lingua atual. 43 NOTAS 1.Ndo 6 conveniente designar de infixos esses elementos puramente eufénicos, como oportunamente lembra Mattoso Camara Jr. (1964: 197) porque a intercalago no ocorre no radical e o fonema nao tem valor gramatical préprio. 2, Esta andlise limitar-se-4 & estrutura e formagao das formas livres. 3. Em meninos, 0 0 6 vogal temética e em alunas, 0 a 6 morfema flexional resul- tante de uma mudanga morfofonémica: supresséo da vogal tematica 4tona, quando do acréscimo do morfema de género. Esse ponto sera retomado no préximo capitulo, 4. Posigao diferente 6 assumida por Rolim de Freitas (1979: 99). Segundo o autor “as modalidades tematicas de género e de ntimero podem aparecer duas vezes: no nticleo @ no elemento periférico: corpo, corpozinho” Também C. Pedro Luft (1976: 135) aceita duas vogais teméticas, mas apenas nas formas nominais do verbo, uma do proprio verbo e outra do nome (partido, partindo, partir 2). 5. Também ocorrem mudangas morfofonémicas como a supressao da vogal &tona do morfema lexical (mur-alha) ou a fusdo, quando o sufixo comega pela mes ma vogal (desalma + ado). 6. Rolim de Freitas (1979: 104) faz um levantamento dos verdadeiros prefixos existentes na lingua portuguesa, delimitando-se a uma visdo sinerénica e procuran- do reformular os critérios tradicionais das gramaticas que, em extensas relacdes de exemplos, incluem formas que se prefixaram no latim. 7. Os sufixos -mente, -¢40, -inho, entre outros, so de grande produtividade, a0 passo que -e0, (tJura, etc., apresentam rendimento mais baixo. 8, Para um maior aprofundamento da questo, consulte-se Bastlio (1982). 9. Incluiram-se na derivagao sufixal os afixos caracterizadores do grau aumentativo e diminutivo dado que eles formam palavras e possibilitam ao falante a escolha de uma outra forma vocabular, conforme se evidenciou no capitulo anterior. 10. Muitas das nossas gramaticas néo distinguem entre esses dois tipos de derivagao. 11. A descontinuidade consiste na manifestagéo de um mesmo significado gramatical em posigdes separadas; no caso, en- est anteposto ao morfema lexical € -ecer est posposto, mas ambos indicam parassintese. 12, Embora nossas gramaticas limitem 0 processo de formagdo regressiva a nomes de aco derivados de verbos, Basilio (1982) evidencia ser ele bem mais pro- tivo, No entanto, mesmo em se tratando de nomes deverbais, parece-nos que a derivagao regressiva ndo fica clara para o falante nativo que, geralmente, é levado a considerar 0 nome como primitive, por analogia com 0 que ocorre com os nomes compostos, como arma e prego, de que se derivam armar e pregar, respectivamente. 13, Se fosse possivel utilizar 0 hifen como critério, seria mais fécil a identifica- 40 na linguagem escrita das ocorréncias de justaposigao; no entanto, a utilizagéo aleatéria deste sinal ndo permite uma identificagéo segura. 14, Para uma discusséo mais detalhada, consulte-se Cintra, Anna M. M. 6 Souza e Silva, M. Cecilia P. de (1979). 44 18, Para uma discussao mais detalhada, consulte-se Rolim de Freitas (1979), capitulos: A Derivagao Prefixal e Formagao Erudita e Linguagem Técnica, em que 0 autor se posiciona acerca do hibridismo e das palavras que provém de fontes erudi- tas ou que pertencem a linguagem técnica das ciéncias modernas. EXERCICIOS 14. No texto abaixo, grife os vocabulos formados por derivagao e/ ou composicao, explicando o(s) processo(s) usado(s): “Oswald de Andrade foi um vagamundo que tentou bandeira- nacionalizar a arte de seu tempo e, tendo chegado aos ses- senta anos, declarou-se um sexappealgenario. No comeco do século, Martins Fontes, poeta pré-vinte e dois, queria cons- truir o brasilirismo. Hoje, na era da informagao, diante do paralé- paracaparlar (Guimaraes Rosa), é preciso ser um anarquiteto como Augusto de Campos, para se viver efetivamente, com a informagao adequada, acabar com as formas gastas pelo tem- po e fazer com que a realidade possa brotar de uma nova for- ma — como uma constelagao de palavras-montagem”. (Firpo, Julio. Revista Diners, 8/68, in Soares e Rodrigues 1975, p. 43). 2. Determine, conforme o modelo, as regras de derivagaéo das palavras abaixo, especificando 0 tipo de morfema e a classe de seus componentes. Use os simbolos: N para substantivo, V para verbo, Adj. para adjetivo e Adv. para advérbio. Modelo: juramento = [[morf. lex.-]y + sufixo] jy, abstr, [furar]y + mento] Abstr. a. festejar i. eficazmente b. lavagem j. heroismo c. simbolista |. escorrer d. canil m. crueldade e. preferéncia n. saltitar f. poeirenta o. refazer g. alimenticio p. esperanga h, orgulhoso 45 3. Determine, nas palavras abaixo, as diversas etapas da deri- vagao, seguindo o modelo: inexistente [in [existente] lagi) Adj. [lexistirly + -nte] Adj. a. descolorir i. apunhalar b. proclamagao j. deslocamento c. ilegalidade |. cooperagao d. antevisao m. progressivamente e. empobrecer n. transposigao f. intrometimento ©. imigrante g. revisionismo p. retroceder h. recrudescer 4. No grupo de palavras abaixo, criado pelo escritor Dias Go- mes, para as falas do personagem Odorico Paraguacu, cida- dao ignorante mas apreciador de vocabuldrio rebuscado (Sucupira: Ame-a ou Deixe-a. Civilizagdo Brasileira, 1982): 1. dé as formas corretas dos itens utilizados, consultando, se preciso, 0 dicionario; 2. determin 2.1, as formas que violam as regras de derivagao, por mo- dificarem as classes de palavras-base; 2.2. as formas que nao violam as regras de derivagado mas que so paralelas a outras formas da lingua e por isso impedidas de aparecer (ou bloqueadas). a. de repentemente b. providenciamentos c. gente excomunguenta d. comprovamento e. valentosa delegada f. 9. h, i, i. esquerda badernista . dama de muitas merecendéncias . como digo, repito e trepito manifestanga subversiventa lavagem e enxaguagem 46 4 A Flexdo Nominal Embora, nas gramaticas do portugués, 0 adjetivo e o subs- tantivo sejam considerados como duas categorias distintas, a flutuagao categorial entre eles é grande.’ Funcionalmente, muitos dos nomes podem ser, conforme o contexto, substantivos (termos determinados) ou adjetivos (ter- mos determinantes). Assim, no enunciado um diplomata mexi- cano, 0 segundo vocdbulo é substantivo e 0 terceiro adjetivo, ja em um mexicano diplomata da-se o inverso. Ha, entretanto, al- guns nomes que sao essencialmente adjetivos (triste, grande, etc.) e outros que s&o essencialmente substantivos (homem, ti- gre, etc.). Mesmo assim, a disting&o funcional nao é absoluta: um homem tigre designa aquele que tem a ferocidade de um tigre e corresponde a um homem feroz. Formaimente, a diferenga entre essas duas classes grama- ticais 6 também muito pequena. Por um lado, tanto os substanti- vos como os adjetivos sao marcados por vogais tematicas (crian- ga, mestre, medo, agricola, verde, cinzento) ou por formas atematicas terminadas em vogais tonicas e consoantes (fild, gibi, urubu, inspetor, cru, nu, burgués, tentador). Por outro lado, os adjetivos estéo quase exclusivamente distribuidos nas formas em -e, -o e em consoantes, enquanto os substantivos encon- tram-se distribuidos em todas as formas. 47

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