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AS VELHAS

Lourdes Ramalho
AS VELHAS

SUMÁRIO

Peça original nordestina, enfocando as frentes de trabalho de


emergência, formadas pelo governo, por ocasião das secas. Denúncia
de roubos efetuados pelos políticos, quando vendem, nos barracões, as
magras rações de mantimentos destinadas gratuitamente aos
flagelados.

CENÁRIO – Toda a ação se passa em três planos: a oiticica, onde se


arrancha a família dos retirantes; a casa de Vina e uma nesga de mato,
ponto de encontro ou espécie de esconderijo.

PERSONAGENS

MARIANA – sertaneja de 40 anos


CHICÓ – seu filho, 20 anos
BRANCA – filha de 16 anos
TOMÁS – mascate de 30 anos
VINA – mulher de 45 anos
JOSÉ – seu filho, 22 anos
Música que abre e encerra o espetáculo AS VELHAS
Letra de Lourdes Ramalho
Música de José Cláudio Batista

Bate o sol e assola a estrada


Caminheiro a palmilhar
Como é longa a caminhada
Como é tristonha a jornada
-Segue a leva, sem parar...
Bate o sol e assola a estrada
Bate o sol e assola a estrada...

Da quentura a labareda
Vem do do chão – desce do ar
Cadê o atalho ou vereda
Que nos leve a um bom lugar
-Bate o pé comendo estrada
Na esperança de chegar...

Bate sola – pé cansado


Que teu destino é correr
Come terraq – boca triste
Antes dela te comer
Do céu limpo – faca afiada
Bate o sol e assola a estrada
Bate o sol e assola a estrada
CENA 01

CHICÓ, MARIANA E BRANCA, COM PEQUENA BAGAGEM ÀS


COSTAS, PROCURANDO ABRIGO

CHICÓ – Mãe, vamo parar com essas andança e ficar aqui até chegar po
inverno. A senhora já viu que todo lugar, nesse tempo, é como cantiga de
perua – de pior a pior.

MARIANA – Num é os lugar que me desinquieta, meu filho, é os serviço


pesado que botam pra riba de você, como se fosse qualquer flagelado
acostumado a pegar no eito.

CHICÓ – Tá certo que eu nunca fui flagelado, mas chega tempo em que
a situação dá para isso – e quem é homem tem que enfrentar toda
versidade de trabalho.

MARIANA – Mas lhe castigarem desse jeito na picareta, botando serrote


abaixo pras estrada passar – Pensa que num vejo o seu sofrer, se
virando a noite inteira na tipóia, sem poder pegar no sono – as mãos
inchada de fazer dó?

CHICÓ – Ora, mãe, aos mãos é minha... E a senhora, por que num
dorme?

MARIANA – Acha que posso pregar os olho vendo você num serviço que
só satanás aguenta? – Aquilo tira a sustança de qualquer cristão.

CHICÓ – Besteira, Mãe – com esse cabra aqui ninguém pode não.
(RETIRANDO DUM SACO UM GANZÁ QUE SEGURA CARINHOSAMENTE,
COMEÇA A SACUDI-LO CANTANDO) Pode chover canivete/ quem ta
falando é Chicó/ fio de dona Mariana; macho nascido nas brenha/ do
sertão do Piancó.

BRANCA – (QUE OBSERVAVA O LOCAL, ABSORTA) – Deixa de tua


leseira, Chicó, e resolve se a gente fica aqui ou não... Eu tou é cansada
– e quando a gente ta enfadada só quer mesmo é canto pra sossegar...

CHICÓ – Enfadada? Quem fala. – Vinha passando de grande na boléia


do caminhão. – Avalie quem vinha sacolejando no lastro, bolando mais
que xexo em ladeira...

BRANCA – Tou cansada de viver pra riba e pra baixo, os cacareco na


cabeça, como se a gente tivesse sido a vida toda retirante...
CHICÓ – E você pensa que é o que? – A princesa Cesarina ou alguma
baronesa? Ai que essa mocinha agora ta que nem o sol – tudo lhe fede a
sangue real.

BRANCA – Ora, a gente sempre teve onde morar, com que passar,
sempre foi considerado – e agora deu pra correr mundo... Podia ter
ficado em casa, como gente decente...

MARIANA – (QUE ESCUTAVA) E que diabo você queria ficar fazendo


naquele desterro? – Comento lagartixa assada ou fazendo vida de
santa?

BRANCA – Se a gente num tivesse saído aparecia um jeito – Das outras


vez ninguém saiu e escapou tudo – até as criação.

MARIANA – Mas isso foi das outras vez. – Mas dessa feita – num tem
jeito que dê jeito. (VEEMENTE) – Será que você num via a urubuzada
nas carniça dos bicho morto, as ossada coarando no sol, nem a
derradeira rês, que, pra num morrer de fome – tive que vender por
pouco mais que nada?

CHICÓ – (Limpando o ganzá, a quem dedica um carinho todo especial) –


Isso já passou, minha gente. È meter os peito de novo. Pra que tamo
vivo? – Só tenho um prazer – tamo de retirada com os piquáio no
lombo, mas nunca baixemo o cangote. Sempre seguimo o conselhoda
velha que toda vida diz: - “Quem se abaixa de mais... o cu aparece”.

BRANCA – Chicó fala se opando todo, como se fosse o dono do mundo...


Ô xente. Já vi torres mais alta cair...

MARIANA – (IRRITADA) – Larguem de bate-boca sem futuro e venham


coidar da vida que o tempo ta passando.

CHICÓ – E num já tamo coidando?

MARIANA – (SURPRESA) – Então a gente fica aqui mesmo?

CHICÓ – Pra que melhor? – Uma oiticica com um sombrão de fazer


gosto, toda cercada em redor de marmeleiro – quem fez esse rancho fez
caprichado – e tem a vantagem de ficar em riba da cacimba e até perto
do barracão, uma meia leguinha só... Parece até coisa prometida por
Deus...

BRANCA – (AINDA INCRÉDULA) – Como é, a gente fica aqui mesmo?


MARIANA – (SEMPRE IRRITADA) – Vocês num já resolveram?
(SUSPIRANDO) – Fica-se até quando Jesus quiser...

BRANCA – (DESCONFIADA) – Ih, tas escutando essa, Chicó?

MARIANA – Arre, menina, o futuro a Deus pertence. – Você acha que


agora a gente vai tirar galé numa beira-de-estrada? – Fica-se enquanto
der certo – quando num der...

BRANCO – (COMPLETANDO O PENSAMENTO DA MÃE) - ... pernas pra


que te quero, num é mãe? – É como das outras vez – a senhora na
frente, feito zelação, e nós no rastro.

MARIANA – (AMARGURADA) E quem me fez virar zelação? – Vocês. –


Será por gosto? Ta esquecida do que aconteceu no Rio Grande?

BRANCA – Ô mãe, e o que aconteceu também no Ceará, no


Pernambuco... – Em todo canto a senhora arranja uma conversa mole
pra dar o pira...

CHICÓ – Que gosto vocês duas tem de desenterrar defunto, heim? –


Vamo tratar da vida, botar os terém nos canto antes que chegue outros
e tome conta do rancho. – Branca, vigie aí uns garrancho e faça uma
vassourinha pra ir limpando o terreiro... E a senhora, mãe, que é velha,
se assente ali e vá tomar o seu deforete...

MARIANA – (CEDE À FORÇA AO CARINHO DO FILHO E SENTA SOBRE O


ÚNICO CAIXOTE EXISTENTE E QUE FAZ AS VEZES DE MÓVEL) – Essa
sua irmã tem o costume ruim de passar as coisas na cara da gente...
Diz cada uma que me fica atravessada aqui. (GESTO NA GARGANTA).

BRANCA – Ora, a senhora quer me culpar de ter saído do Seridó...


Enquanto a gente foi pequeno até que se ficou quieto num canto, mas
quando se cresceu, a senhora jurou tanto que afinal deu pra correr
mundo – atrás de que num sei...

MARIANA – (MISTERIOSA) – Mas sei eu... É um causo comigo mesma,


que num tem nada a ver com vocês...

BRANCA – Mas a gente é que paga o pato. Por que foi que se saiu do
Juazeiro?
MARIANA – Ali foi aquele desgraçado que começou com zonzeira com
seu irmão. Duro com duro num dá bom muro... Vivia se jurando um ao
outro. Se a gente ficasse lá eles acabavam se esfaqueando.

CHICÓ – (QUE FAZIA A ARRUMAÇÃO) – Mas pia mesmo. Aquilo era um


frouxo. Na primeira vez que eu cantei o bicho ele correu com a sela.

MARIANA – Num é o que eu digo? Você mesmo gosta de comprar briga,


meu filho. É você na valentia e sua irmã na...

BRANCA – Lá vem mãe com a inticança de novo. A senhora mesmo


inventa.

MARIANA – Inventa? Minha filha, eu num tou caduca, num sou doida e
nem bebo cachaça pra num saber do que se passa. – Você quer dizer
agora que nunca deu cabimento aquele pilantra?

BRANCA – Agora sim. Eu num digo que tou mole mesmo?

MARIANA – (ZANGADA) – E num fique aí dando muchocho e se fazendo


de inocnete não. Eu ia lá aguentar ver aquele papangu de novena
passar de vez por dia no meu terreiro, passando e quebrando,
quebrando em ponto de torcer o percoço, até se encobrir na curva?

BRANCA – (DESDENHOSA) – Pra mim é que ele num quebrava...

MARIANA – Se num era pra você, era pra mim ou pra Chicó, pois só
tinha nós três em casa.

CHICÓ – Pra mim, vôtes. Tenho lá cara de veado!

BRANCA – Tá bom, tá bom, num já viemo embora, num tá tamo aqui?


Agora é cuidar de ficar e pronto. Mas ficar mesmo, viu?

MARIANA – É sua irmã que pega com as animação dela com qualquer
catraia – e ainda vem com pilerinha, como se eu fosse qualquer troço
que num merecesse respeito...

CHICÓ – Mãe, já que ninguém quer ajeitar nada – vou na cacimba ver
água... pode ser que assim esse comer saia... (pega o pote) – E façam
logo o fogo, já quero sair pro serviço armoçado! (Sai dizendo coisas)
BRANCA – (ASSUSTADA) – Taí, Chicó afobou-se. Vamo logo botar as
coisas no canto, mãe. (CONCILIATÓRIA) – Eu faço a cozinha desse lado
porque ali tem galha boa de armar rede, num é?

MARIANA – (AINDA AMUADA) – Faço do jeito que quiser... (NOUTRO


TOM) – Eu, que já estou assentada, vou fuxicando os calção de trabalho
dele. (BRANCA COMEÇA A VARRER. MARIANA COSTURA, PENSATIVA) –
Ai que dor nas cruz. (FALA SÓ) – Tou mais banida que couro-de-pisar-
fumo. – Também, viver que nem judeu errante... Mas, já comecei vou
até o fim... Esperei a vida inteira por isso – andar, andar até achar
aquele ingrato. (SUSPIRA) – Talvez fosse melhor ter morrido tudo em
casa, numa ruma feito tapuru... Mas as leis de Deus tem quer ser justa,
tem que fazer ela pagar tim-tim por tim-tim todo o mal que me fez.

BRANCA – (QUE VARRIA E ESCUTAVA) – Mãe parece que tá aluada,


falando sozinha... (CONTINUA VARRENDO E ESCUTANDO).

MARIANA – Eu toda vida fui injicada com cigano. Parece até que
advinhava a desgraça que uma tinha pra me trazer. Quando era
pequena, que avistava uma bicha daquelas, as saiona arrastando, chega
me dava um baticum no coração. Quando moça, nunca dei a mão pra
lêr – mesmo assim uma me disse: “Ganjona, deixe eu cortar o mal que
uma do meu sangue tem pra lhe fazer”. Se eu tivesse acreditado... Mas,
nesse tempo era muito pegada com o meu padim Ciço e ele
excomungava quem andasse com essa qualidade de gente...

BRANCA – (PARA SI) – Isso é sina que a gente traz e tem de cumprir...

(TOMÁS APARECE E FICA MEIO OCULTO, ESCUTANDO TAMBÉM)

MARIANA – (AINDA EM SOLILÓQUI) – Que vida tenho levado! Isso é


baião pra doido. Queria ver se com Tonho a gente tinha desandado a
esse ponto... Tinha nada! Tonho era aquela moleza, aquela queda pelas
feme – mas era homem – e homem de todo jeito é respeitado. Se num
fosse aquela cadela prenha ter se atravessado na vida da gente... Tirou
o pai de meus filhos, o sossego da família... Foi que nem a outra disse,
ah, praga dos seiscenteos diabo, fiquei sem meu Tonho e quem quiser
que pense o que é uma mulher nova, forte, viçosa, caçar nos quatro
canto da casa o seu homem e só achar a saudade dele... Dá vontade da
gente desabar no meio do mundo e fazer tudo o que num presta... Isso
eu num fiz, sei mesmo que num fiz pela obrigação dos filho, mas ele
merecia. Tem nada não, tudo, vem a seu – e agora... (SENTE A
PRESENÇA DE ESTRANHOS) – Ô xen, quem é o senhor?
TOMÁS – (APARECENDO) – Bom dia, Dona.

MARIANA – Que é que o senhor quer?

TOMÁS – (TENTANDO EXPLICAR) – Dona, eu ia passando...

MARIANA - (AGRESSIVA) – O senhor sabe que é muito mal prometido


chegar assim, na casa alheia, de chapéu de sol armado, como se já
fosse conhecido antigo?

TOMÁS – (DESCULPANDO-SE) - ...ia passando e vi gente arranchada


aqui...

MARIANA – E isso era motivo pro senhor embocar sem mais nem menos
nos canto, confiado como se já fosse amigo do peito?

TOMÁS – (QUERENDO AGRADAR) – Sabe, Dona, eu ando mascateando


e vim saber se tão precisando de alguma coisa.

MARIANA – (FERINA) – E por isso vem se chegando todo de bandinha,


todo mansinho... Isso é lá procedimento de gente de vergonha! Se
tivesse negoço, aparecesse logo, batesse palma, chamasse pelo povo –
assim é que faz quem tom boa tenção, meu senhor.

TOMÁS – (ENLEADO) – Dona, adisculpe, eu num sou malfazejo não,


sempre soube entrar e sair em toda parte sem deixar fama de
desordeiro ou atrevido.

MARIANA – 0 senhor num obrou bem, usando de moitim como acabou


de usar...

TOMÁS – Num ignore, dona, é que por volta de dez légua todo mundo
me conhece e eu penseil...

MARIANA – Pois todo penso é tordo e num lhe conheço e nem o senhor
a mim, do contrário já tava sabendo que num sou mulher de prosa nem
de braço no pescoço – e mais – pra ter minha confiança a pessoa tem
que, primeiro, comer uma sada de sal mais eu...

TOMÁS – (REAGINDO) – Até aqui nunca tive malquerença com ninguém


– o que ouço num canto lá mesmo deixo, nunca fuxiquei e sempre fui
benquisto – se a senhora quiser saber quem é Tomás Mascate é só
especular.
MARIANA – (CORTANDO) – Num tem precisão. Nessa terra num
conheço ninguém, nem tenho vontade de conhecer – eles pro canto
deles e eu pro meu, tá ouvindo?

TOMÁS – De qualquer jeito, se a dona precisar de mim é só dizer...

MARIANA – Agradecida, mas num vou precisar e tamos conversado...

BRANCA – (QUE ESCUTARA O DIÁLOGO ANSIOSA, INTERCEDE) – Mãe,


Chicó já vem chegando, num era bom o homem esperar por ele? – O
senhor espere um tiquinho que meu irmão pode querer alguma coisa...
– Se assente ai...

TOMÁS – (AINDA RESSENTIDO) – Não, moça, eu vou-me indo...

BRANCA – (APRESSADA) – Pronto, meu irmão chegou. Chicó, esse


homem veio aqui se oferecer... e mãe... você sabe...

CHICÓ – (ENTRA E PÕE O POTE NO CHÃO) – Bom dia, amigo, eu tinha


ido ver água... É limpa que nem cristal, mãe, só tem que é meio pesada
– de cacimba e nesse tempo, já se viu... Branca, vá botar o comer no
fogo, faça aí um caldo-de-caridade pra gente enganar a fome... (A
TOMÁS) – E o amigo, que é que manda?

TOMÁS – Eu sou vendedor ambulante e vim me oferecer à dona, mas já


tou de saída – até loguinho...

CHICÓ – Já? Só porque eu cheguei? Demore uma coisinha pra esfriar o


corpo – um seção desse... O sol mal sai e a quentura já torrando tudo...
Encoste aí... A gente acabou de chegar, ta tudo à toa... – Então, você
mascateia?

TOMÁS – (ANIMANDO-SE) – É... também levo encomenda, trago


encomenda... Tempo ruim...

CHICÓ – O tempo ta com cara de hereje. – Bernardo Cintura anda


acochando muita gente.

TOMÁS – Se anda! A coisa ta tão vasqueira que às vez a gente tem o


dinheiro e num acha o que comprar.

MARIANA – (QUE COSTURAVA) – Por falar em vasqueira, Chico, o feijão


Zinho que tem mal dá pra quebrar o jejum...
CHICÓ – Pois é se arrumar com o que tem e pronto que eu num vou,
mal chego, enterrar a unha no barracão, pra nunca mais me livrar. É se
arranjar com o que tem, já disse – o pouco com Deus é muito – e o
muito sem Deus é nada... Tou ou num tou certo, amigo?

TOMÁS – Por falar nisso, a senhora num tome por desfeita – tenho aqui
uma mucutinha de feijão e até um taquinho de jabá – tinha comprado
pra uma comadre me fazer o almoço, mas tou avexado pra voltar pra
rua... (ESTENDE O PACOTE A MARIANA, QUE FICA IMÓVEL).

CHICÓ – Ora, rapaz, caiu a sopa no mel. É misturar tudo e fazer uma
panela só. Pronto, mãe, deixe de apocamento e vá preparar a bóia.
Largue de besteira, o rapaz num deu com tanto gosto? Pegue duma vez,
eu sei que a senhora ta qurendo...

MARIANA (RECEBE) – Dê cá, você ta mandando... (EXAMINA) – Virge


Maria, é mais gorgulho que caroço de feijão.

CHICÓ – Deixe de léria – gorgulho é carne de pobre. Leve e faça um


comer gostoso como só a senhora sabe fazer.

MARIANA – Pela amostra logo se vê o que tão vendendo nesse barracão.


Só deve ter o que num presta – e pela hora da morte. (SAI).

CHICÓ (A SÓS COM TOMÁS) – Viu? Pra viver com mãe é preciso jeito.
Ela é arisca por vida, e muito desconfiada com desconhecido. Mas,
enquanto a gororoba apronta, vamo nós conversando – eu calço esse
enxadreco e você me conta as coisas daqui... me dá umas informação...
Me diga – tem muita moça bonita nesse lugar?

TOMAS – Depende... Moça é como chita...

CHICÓ – Lá isso é... E as diversão. Tem sempre um samba ou um


forrozinho pra gente balançar o esqueleto?

TOMÁS – Foi num foi, eles faz um furdúncio – é Quinta da consertina ou


Zé do Fole aparecer...

CHICÓ – Ô belage... E as moça. Deixa a gente dançar agarrado?

TOMÁS – Podia até deixar... A família é que num deixa...

CHICÓ – Abe emboança, né?


TOMÁS – O cabra aqui meteu-se a besta já ta armado o esternegue.

CHICÓ – E as briga é de homem pra homem ou eles pega na traição?

TOMÁS – Nessa terra tem de tudo. Aqui vive toda nação de gente. Mas
rapaz, você parece que é meio terra-quente, heim?

CHICÓ – A gente tem que viver – quem passa a semana toda no eito
tem que ter seu refrigério. Mas, venha cá e fique lá mesmo – esse
negócio de mulher aqui... mulher pra... você entende, né?

TOMÁS – Homem, isso aqui é um causo meio difícil... Na redondeza


mesmo num tem uma só, nem pra meizinha...

CHICÓ – Ô xen, e os home daqui, como sr arremideia?

TOMÁS – Os homem? Bom, tem os que se vira por eles mesmo... Outros
procura nos campo... e os mais luxento vai nas rapariga da rua, se bem
que na outra semana já teja nas garrafada de Maria Roxinha – ou no
Cibazol, que trago aqui comigo...

CHICÓ – Votes! E por perto num se arranja nem uma neguinha pra um
namoro achambregado?

TOMÁS – Só se for lá na Pitombeira, praqueles lado.

CHICÓ – E como se vai lá – tem algum festejo?

TOMÁS – Tem novena, mas só no mês de Maria, São João e Santana.


Agora mesmo teve a procissão de São José – quando num chove o povo
rouba os santos e faz penitença.

CHICÓ – As reza também dá ingresia? Rapaz, eu tou precisando me


desforrar dum tempão que passei sem ver nem cara de mulher, quanto
mais o resto... Desde que a seca começou que a gente vira mundo. Já
se andou por tudo quanto é canto. Eu mesmo quase fico enterrado em
Catolé do Rocha, terra em que se mata gente no meio da rua por
brincadeira. Entrei lá numa fria...

TOMÁS – Por isso sua mãe é carrasca – você é metido a cavalo-do-


cão...

CHICÓ – Ela é carrasca mesmo. Sustenta a gente no cabresto curto... O


cabra estremeceu ela já ta ali, no pé do loro...
MARIANA (ENTRA) – A panela já abriu fervura. Num é que depois de
bem escaldado o comer ta tomando gosto? Só falta tempero, mas, a
Deus querer, a gente vai ter aqui uns caquinho de verdura...

TOMÁS – Por falar em verdura, tenho aqui até umas sementinha de


coentro que me pediram pra plantar – se a dona quiser...

CHICÓ – Chegou em boa hora. Dê a mãe e você vai ver do que essa
mão dela é capaz... A gente inda vai fazer muita bóia junto e var ver
que mulher como essa aí só nascendo, porque num existe outra...
Vamos comer que já dando uma biloura de fome... (CANTA COM O
GANZÁ) – Minha mãe me dê comida/ já num agüento a fome/ tripa seca
faz mofino/ O mais valente dos home/ faz chorar que nem menino/ todo
e qualquer cangaceiro, até galo bate o pino vira capão de terreiro.

CENA 2

NO CAMINHO – ENCONTRO DE JOSÉ E TOMÁS

TOMÁS – Boa, José, em casa tá tudo em paz?

JOSÉ – Se você chama aquilo de paz. O velho encaranguejado pra um


canto e mãe pra outro, entrevada com o reumatismo... Assim mesmo a
gente assenta ela no batente da cozinha, e dali, tanto ela determina a
luta de casa, como dá conta da vida de quem vai e quem vem...

TOMÁS – Vina é uma graça e eu sempre digo: quando aquele morrer, o


corpo vai numa caixa de fosco... e a língua num caminhão.

JOSÉ – Mãe toda vida foi linguaruda – mas disposta. Só agüentar o


banzeiro da doença de pai todos esses anos... Vai lá em casa, ela tem
um montão de encomenda pra lhe fazer.

TOMÁS – Eu já tou indo, mas, primeiro, me faça um favor: arranje uma


vaga pra um rapaz que chegou faz 15 dias... ele tava engajado na
turma dos Moitas, mas num se deu bem o feitor... que, cá pra nós, pois
num quero intriga com ninguém, tem uma cara de arroto choco da
molesta...
JOSÉ – Eu tou com medo de botar gente desconhecida na minha turma
por causa do fusuê das lista e da fuxicada do barracão, mas, um pedido
seu... Quem é esse sujeito?

TOMÁS – É desse pessoal que ta arranchado nas oiticica. É gente boa e


que num engole as safadeza do Dr. Procope... de vez em quando ta
abrindo a boca e a mãe fica nervosa...

JOSÉ – Ah, o povo das oiticica...outro dia passei e vi uma mocinha


aguando uns caquinhos de planta. Já sei quem é o rapaz – ele gosta de
tomar bicada e cantar verso. Mas você num perde tempo – já ta de
cama-e-mesa lá, heim?

TOMÁS – Que é isso, menino? Ali é gente pobre, mas carrega o seu
rócio. Uma família cheia de precato...

JOSÉ – Nem parece... o rapaz é rede rasgada...

TOMÁS – Mas as mulher tem preceito. Homem tem passagem livre...


Chico já andou articulando com gente do barracão – ladroeira no peso e
num ta sendo visto com bons olhos... Você arranja a vaga?

JOSÉ – Você num pede – manda... E, agora, vá vê Mãe, que ta


esperando...

(SAI. TOMÁS SEGUE CAMINHO ATÉ A CASA DE VINA)

CENA 3

VINA E TOMÁS

TOMÁS – Ô de casa. Licença pra um pobre ambulante entrar?

VINA (SENTADA NO BATENTE DA PORTA) – Lá vem o freguês da má


notiça. Até que enfim apareceu. Aposto que as novidades que trás é
fome, carestia e safadeza.

TOMÁS – Ô língua de prata. Só falo disso quando encontro pareceira.


Que me compra hoje?
VINA – Tudo o que tiver no matulão... E como quem num tem com que
pague já pagou...

TOMÁS – Paga com boas conversa...Como vai essa força?

VINA – Num vou bem como você que tem uma vida boa...

TOMÁS – Vida boa... Um pobre que vive de malote às costas, levando


fora dum, calote de outro, pra juntar meia pataca na ponta do lenço...

VINA – Sente, homem, pra descançar as pernas...

TOMÁS – É as perna descançando e o trazeiro tendo trabalho...

VINA – Castigo é o meu, com o mucumbu atolado nessa esteira, inturida


que num há remeido que desarrollhe...

TOMÁS – Ô xen, e a pílula que eu trouxe da rua?

VINA – As pílula? Aquilo é água do pote. Também umas porqueirinha


pichititinhas assim... E pior é que me apareceu uma dor de cabeça,
encasquetada do caroço do olho aqui pra cova-do-ladrão... Ontem , já
ao cantar do galo, José te que ir atrás de uma café aspirina que foi com
que ainda dormi uma madorna...

TOMÁS – Você já ta de pés virado pra cova, criatura. Arrependa-se dos


pecados e entregue a alma a Deus. Quem ta na luta da casa?

VINA – Rita de Oleriana dá uma ajuda, mas ali, você conhece, é “olho
viu – mão andou”... A raça toda é rato puro – ta no sangue...

TOMÁS – A culpa é sua. Foi botar Zé Mutuca pra fora...

VINA – Aquilo era cabra trabugueiro e preguiçoso. Só aparecia na hora


do comer e era enchendo o rabo e virando a perna pra tomar fresca e
roncar... e tanto roncava pelo norte como pelo sul... Só queria vida
grande, e, como sabe ler, já botaram como apontador nas listas de
cassaco...

TOMÁS – Virge. Agora é que a safadeza vai engrossar...

VINA – Se vai... É desses traste que os políticos precisa pra fazer


robalheira. Cadê que chamam José? Por muito favor deram o emprego
de feitor – e ainda num tomaram com medo da minha língua... Quem se
atreve a bulir com Ludovina? Respeitam tudo o que é meu – até o
Melado. Sim, senhor, o Melado.

TOMÁS – Falar em Melado, eu me lembrei. Vê se prende ele uns dias...


O bicho ta dando o maior trabalho ao pessoal que se arranchou nas
oiticica... Foi num foi ele aparece lá e é um destempero...

VINA – Ah, é os retirante que você anda parido por eles. Pois lhe
informaram mal, Melado num sai de redor de casa. Eu num digo – só
terá de bode nessa terra ele?

TOMÁS (INSISTENTE) – Que num sai de casa, Vina? Toda vizinhança


vive se queixando. Nem roupa se pode mais deixar nas cerca que ele
come tudo.

VINA – Pois é num deixar. Quem lavar seus pano que fique pastorando.

TOMÁS – Ele arranca até dos couro da pessoa. Num viu Maroca? Saiu de
casa vestida e voltou com as vergonha de fora.

VINA (DIVERTIDA) – Ali foi bem feito. Numa seca dessa, vestir roupa
verde é pra quem quer ficar nu mesmo...

TOMÁS – Você pra desculpar o que é seu é na hora, mas pra julgar mal
os outros...

VINA – Eu num intento nada de ninguém, agora se me contam, boto pra


frente – aplaudir safadeza alheia nunca foi pecado... Pra que é que fico
o dia todo estatelada nesse batente? – É colhendo as ruindade e abrindo
a boca no mundo.

TOMÁS – É, você da corda a quem vai e quem vem, e, depois, vai


emprenhar os ouvidos de José. – Ele já ta ficando mal visto, viu?

VINA – Mal visto por quem? – Pelo grande que ta enchendo o rabo às
custas dos miseráveis? – A gente tem que rasgar a safadagem, se num
quiser morrer de fome. Eu Já descobri cada coisa – (EM TOM DE
CONFIDÊNCIA) – Se lembra de Pirrita, o jumento de Zé Catota? Ta de
nome assentado na lista dos cassaco, ganhando dinheiro.

TOMÁS – Isso é conversa do povo...

VINA – Conversa? Me diga, cadê o finado Pedro Bota?


TOMÁS – Ah, já entregou a alma a Deus há muito tempo...

VINA – Pois ta na lista da emergênça. E o defunto Minervino?

TOMÁS – Peraí, num vai dizer...

VINA – E eu brinco? Noutra lista, trabalhando no eito. E assim, todo o


cemitério anda agora dando duro nas estrada. É as tal lista-fantasma,
donde o Dr. Procópe enraba rios de dinheiro. Tem casa que, além das
alma penada, até os gato e cachorro ta alistado, pra essa canalha de
gravata embolsara os cobre.

TOMÁS (DE CHOFRE) – E na turma de José?

VINA – Na do meu filho num tem disso não, ta com a gregena pra
pensar uma coisa dessa? – José é carne-de-galo, por isso tão danado
com ele. Outro dia colocaram nome de um magote de menino-de-cueiro
– mas ele cortou na hora. Tenho até medo de uma traição, do jeito que
aqui, por qualquer besteira, mandam um pra cidade-de-pé-junto...

TOMÁS – (OLHANDO O CAMINHO) – Ô xen, José já deu com Chico? –


(DIRIGINDO-SE AOS QUE CHEGAM) – Vocês dois já vem assim, de
parelha?

CENA 4

JOSÉ E CHICÓ CHEGAM A CASA DE VINA

JOSÉ – Você num conhece o dito: “falou do mau, prepare o pau”? – Pois
assim que nós se deixemo, eu fui logo dando de cara com o rapaz – aí
entremo no assunto da mudança de turma, e o resultado é que amanhã
mesmo ele vem pra cá.

CHICÓ – Graças a Deus me livrei de matar ou ser morto, porque viver


junto com um bando de ladrão daqueles... Valeu porque peguei toda a
patuscada – se de tudo o que robalheira...

JOSÉ – Foi bem ter encontrado Chico – o que eu faltava saber, descobri
agora...
TOMÁS – Vocês tão sabendo de tudo, mas é bom ficar na moita. Cabra
falador aqui, entra logo nas leis de Chico-de-Brito – metem a macaca
pra cima.

VINA – E você acha que ainda se deve cobrir o sol com uma peneira? O
causo dos caminhão de mantimento...

JOSÉ – Dando com a língua nos dentes, mãe?

VINA – Eu num sou saco de segredo de ninguém... Pra que me deram


água-de-chocalho pra beber, em pequena?

TOMÁS – Ta desconfiando de mim, José?

JOSÉ – Ta doido? – É que a gente precisa de prova pra poder abrir a


boca.

CHICÓ – VocÊs tão falando dos mantimento que o governo manda pros
flagelados e os políticos desvia pro barracão? – Eu já me escondi e
peguei... À meia-noite chegou um caminhão, eles descarregaram – era
leite em pó, jabá, feijão, farinha e rapadura. Enquanto, no escuro, eles
botavam pra dentro, eu entrei na boléia e surrupiei as notas. Ta tudo na
minha mão, nota fiscal do que veio pra ser dado de graça e os
desgraçado tão vendendo. Só tou esperando a hora pra denunciar...

TOMÁS – O que foi que eu lhe disse, José? – Esse era o rapaz que você
procurava. Mas tenha cuidado – seguro morreu de velho...

CHICÓ – Pode contar comigo pro que der e vier. Quero ver como vai
ficar a cara desses grandão... Calçada de vergonha, se
tiverem...(LEMBRANDO-SE) – Ah, é essa a casa do bondinho? – Mas ele
fez uma amizade tão grande com minha irmã... Mãe é que implica,
porque o bichinho caga por todo canto, se atrepa pra comer os caco de
verdura, e ela, ave Maria, num sabe fazer comer sem as folhinha de
coentro e cebola, pra dar gosto...

JOSÉ – Chico, guarde lá suas provas que eu aqui já tenho também as


minhas – listra com nome de defunto, gato, cachorro, jumento, bebê e
velho aposentado... Dessa feita o Dr. Procope vai responder por tudo,
até pelas ossada dos pobre que ele mandava matar e enterrar na
fazenda.
VINA – Ô José, você diz que eu falo demais – parece é que macaco num
olha pro rabo. – Eu escolho com quem falar e você pega qualquer
cabuleté do oco do mundo e dá toda confiança.

CHICÓ – Se a dona ta dizendo isso comigo ta redondamente enganada.


Eu nunca fui do oco do mundo, sou sertanejo de vergonha na cara,
tenho minha mãe e minha irmã pra sustentar e ninguém é o que a dona
ta maginando não...

VINA – Mãe, irmã – mas pai, que é o chefe da família – por certo o gato
comeu...

CHICÓ – O gato, não, foi o destino, dona e qualquer um peça felicidade


a Deus, que ninguém ta livre de sofrer o que a gente sofreu...

TOMÁS – Vina, você é ferina demais – esse povo tem terra, tem gado, é
porque a seca quando vem num pede licença – desembandeira ricos e
pobres. – Que mulher mais perigosa...

CHICÓ – Deixe, Tomás, cada um dá o que tem. Até amanhã vocês...


(SAI)

VINA – (Para os dois que haviam ficado silenciosos) – Que cara de


jumento-sem-mãe é essa? – Parece que viram visagem? Em vez de
ficarem aí, apatetados, me ajudem a levantar que ta no hora de botar a
ceia... (OS RAPAZES, SILENCIOSOS, LEVANTAM VINA E A LEVAM PARA
DENTRO).

CENA 5 – EM CASA DE MARIANA

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