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DOMINIQUE MAINGUENEAU i E DISGUISO diScurso TRaDUGAS Sirio Possenti (oye (eee cyecure tule leer eee ie oma eCe le We core eC MeSulereoLGIEaSs humanas. Independentemente da disci- plina, para estudar textos escritos ¢ orais Pace em nine ime elo Peer matie ten career =e nos oferece. Pensando nisso, vem a lume Discurso € Eee eee a Noes) compreender os principais pressupostos Pri nk aie ene eeeate tac) Sra clam Aobra se divide em trés partes: a primei- ra esté centrada no campo de estudos FoleMe val eCOmEEeC Ml Cold re Mec ecto) (Clee TOMRG et Rs MColt Coto as grandes divisées que o estruturam. PMs ne We ee Sa Lie Pet eee a cect otmieene (Teer rll ius 05 analistas do discurso (género, tipo de discurso, formacao discursiva...); em ou- tras palavras, com a construcao de seus objetos. A terceira se esforca para medi, ao mesmo tempo, a unidade e a diver- Ber ee eM aeKeen elem riche Paste ernest skeen eke urs es entrecruzam. Poste ete Nene UU Ceci secu Menon een eens te ae ace Tee) PEs Comtesse aes icicaes Renee uM nere Oneal net IsteKs ReUreK ORs eeM tual one Pate Sie eet ieee nance matique, Histoire” (STIH) da Univer Ee cic eer ma cer ESRB Sete acces neice POEM ce les Ocn em a reClaros peed eeu sec esl eer ei a CeIn ae Cee BTN ECAR odo (oye (eee cyecure tule leer eee ie oma eCe le We core eC MeSulereoLGIEaSs humanas. Independentemente da disci- plina, para estudar textos escritos ¢ orais Pace em nine ime elo Peer matie ten career =e nos oferece. Pensando nisso, vem a lume Discurso € Eee eee a Noes) compreender os principais pressupostos Pri nk aie ene eeeate tac) Sra clam Aobra se divide em trés partes: a primei- ra esté centrada no campo de estudos FoleMe val eCOmEEeC Ml Cold re Mec ecto) (Clee TOMRG et Rs MColt Coto as grandes divisées que o estruturam. PMs ne We ee Sa Lie Pet eee a cect otmieene (Teer rll ius 05 analistas do discurso (género, tipo de discurso, formacao discursiva...); em ou- tras palavras, com a construcao de seus objetos. A terceira se esforca para medi, ao mesmo tempo, a unidade e a diver- Ber ee eM aeKeen elem riche Paste ernest skeen eke urs es entrecruzam. Poste ete Nene UU Ceci secu Menon een eens te ae ace Tee) PEs Comtesse aes icicaes Renee uM nere Oneal net IsteKs ReUreK ORs eeM tual one Pate Sie eet ieee nance matique, Histoire” (STIH) da Univer Ee cic eer ma cer ESRB Sete acces neice POEM ce les Ocn em a reClaros peed eeu sec esl eer ei a CeIn ae Cee BTN ECAR odo Discurso e andlise do HISCUFSO 6 um verdadeiro mapeamento da ana- lise do discurso (AD), pois passa por todas as questées classicas, teori- cas e metodoldgicas acerca da AD, e ainda acrescenta outras. Além disso, © livro expde de forma refinada a relagao da AD com as ciéncias humanas e sociais e ainda analisa as implicages da internet e das redes sociais para a AD. obra de apresentagao, e, assim, expde um conjunto variado de con- ceitos, com destaque para os relativos a construcao de um corpus para analise. Retoma conceitos com larga tradigao no campo — incluindo aqueles que o autor ja expusera em outras obras, que voltam mais bem integrados, como discursos constituintes, paratopia, frases sem texto etc. — e acrescenta outros em pé de igualdade, atento a todas as ques- toes que afetam o discurso. Também faz um balanco dos muitos modos de manifestagao do discur- so — da conversa casual entre amigos @ filosofia, das interagoes orais s interagoes mediadas pela tela do computador —, porque o universo de discurso em que construimos a nossa identidade € damos sentido as nossas atividades nao pode ser unificado apenas em torno do modelo: dominante da comunicagao oral face a face. Titulo original: Discours et analyse du discours— Introduction Dominique Maingueneau, 2014 © Editions Armand Colin, Paris 2014, Armand Colin est une marque de DUNOD Editeur-5, rue Laromiguitre - 75005 PARIS, ISBN: 978-2-200-28996-6 Diregdo: Aone Cusroora Capa e diagramac3o: Tema Cust0210 Reviséo: Kana Mora CIP-BRASIL. CATALOGAGAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ MgiD ‘Malngueneau, Dominique Discurso e analise do discurso ¢ Dominique Maingueneau ; traducéo Sirio Possenti,- 1, ed.~ S80 Paulo :Pardbola Editorial 2015, 92 p.;23 cm (Linguagem ; 64) Tradugdo de: Discours et analyse du discours: introduction Incl bibliografiae indice ISBN 978-88-7934-103-8 1. Andlise dadiscurso. 2. Linguistica. |-Titulo. tl. Série 15.2913 cpp: 401.41 ‘cDU: 81'42 Direltos reservados & PARABOLA EDITORIAL Rua Dr. Mario Vicente, 394 - Ipiranga 04270-000 So Paulo, SP pax: [11] 5061-9262 | 5061-8075 | fax:[11] 2589-9263 home page: wwrrcparabolaeditorial.com.br e-mail: parabola@parabolaeditorial.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obia pode ser reprodu: ida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrénico ou mecinico, incluindo fotocepia e gravacio) ou arqulvada em qualquer sistema fou banco de dadas sem permissao por escrito da Parébola Editorial Ltda. ISBN: 978-85-7934-103-8 ©da edicao brasileira: Parabola Editorial, Sao Paulo, Julho de 2015 Sumario Apresentagao...... Prefacio... PARTE | Estudos de discurso ¢ analise do discurso 1. Alguns elementos de historia 1.1 © Convergéncias ¢ hibridagoes 1.2 + Na Franc 2. Anogio de discurso. 2.1 « Para os linguistas 2.2 © Fora da linguistic 2.3 © Teoria do discurso e andlise do discurso. 3. Discurso, texto, corpus... 3.1 Um discurso para cada texto? 3.2 © Trés eixos principais . 3.3 © Texto e corpu 4. As disciplinas do discurso. 4.1 © As abordagent 4.2 © Dag abordagens as disciplinas 4.3 # Os limites do recorte por disciplinas 5. Uma anilise critica? .. 5-1 © Anilise da linguagem e critica. 5.2 « Diversos tipos de analise critica. PARTE II As unidades da andlise do discurso 6. As unidades t6picas..... 6.1 ¢ Géneros e tipos de diseurso. 6.2 © A valéncia genética . 6.3 © Os agrupamentos por fonte.. 6.4 As singularidades textuais 7. As formagdes discursivas TA © Nas origens da formagiio discursiva . 7.2 © Formacoes discursivas de identidade 7.3 * Formacies discursivas tematicas.. 7.4 © Temas e chaves: o pré-construido ¢ 0 inédito 7.5 © Formacées discursivas plurifocais. 8. Percursos e registros 8.1 © Os percursos.. . 8.2 © Os registros: recursos para a analise do 8.3 © Procedimento integrador procedimento texto-anali PARTE Ill O universo do discurso 9. Unidade e diversidade 9.1 © A diversidade genérica 9.2. Regime instituido, regime conversacional 10. Género de discurso e cena de enunciagao 10.1 © A cena de enunciagao 10.2 * Os modos de genericidade. 10.3 # Os hipergéneros... 11. Enunciagao presa e enunciagdo destacada ‘11.1 © A enunciagao aforizant 112 Enunciagdo destacada . 12. O espago do discurso 12.1 © Pertencimento paradoxal 12.2 © A hierarquia dos géneros 12.3 © A atopia.. 12.4 « Outros problemas 18. O discurso e seus tragos. 13:1 * Dois tipos de tragos 13.2 © A memorabilidade 13.3 © Um arquivamento generali 14. Novas textualidades. 14.1 ¢ A multimodalidade 14.2 © A Web. . 14.3 « As trés formas de textualidade.. 15, Comunicagées de terceiro tipo 15.1 © Conversagio e postagens 15.2 ¢ Novas situagdes de comunii 15.3 * Locutores problemiticos. Conclusao... Bibliografia .. Apresentacao Esre novo livro de Dominique Maingueneau é bastante diferente dos anteriores. Algumas de suas obras foram temiticas, e diversas conti- nham bom ntmero de andlises ou, no minimo, um corpus que sem- pre era mais do que uma ilustragao de suas teses. Trata-se de nova apresentagao da andlise do discurso (AD), depois de varias de carater semelhante, também diferentes entre si, fundamentalmente porque a analise do discurso se move e, assim, nado é a mesma apresentada nos outros “manuais” de Maingueneau. Nao s6 os corpora se multipli- caram. Diversas tendéncias cresceram, e todas, de alguma forma, se alteraram, mais ou menos. : O livro é um verdadeiro mapeamento da analise do discurso, um sobrevoo, que confirma em parte mapas anteriores, mas também deseobre novos morros, rios, cidades, estradas. E sugere meios de ex- plorar tudo, ou, pelo menos, sugere algumas viagens. O livro, de certa forma, passa por todas as questées classicas, tedricas e metodoldgicas, e acrescenta outras, como a proposta de considerar a analise do discurso uma vertente especifica no interior dos estudos do discurso, a discussio sobre se 0 carater critico da AD é eventual ou se é constitutivo das diversas teorias do discurso. Além disso, o livro expe de forma refinada a relagao da AD com as cién- cias humanas ¢ sociais. Vale mencionar também a agudeza do olhar de Maingueneau sobre o que implicam para a andlise do discurso a internet ¢ as redes sociais. Os numerosos temas abordados nao sao tratados em detalhe, mas impOem desafios nada faceis para os real- mente interessados em pesquisa-los. Em suma, o autor faz uma apresentagio do campo da analise do discurso. Por um lado, é obra de apresentagao, e, assim, expde um conjunto variado de conceitos, com destaque para os relativos & construgio de um corpus para analise. Retoma conceitos com larga tradigio no campo, como o de formagao discursiva, acrescenta outros em pé de igualdade, como os de género e autoria, atento ndo apenas a uma questao, seja a do sentido, seja a da circulag&o, mas a todas as que afetam o discurso. Conceitos que 0 autor ja expusera voltam mais bem integrados: discursos constituintes, paratopia, frases sem texto... Sendo obra de introdugao, supde, para que assim funcione, um leitor que ja conhe¢a bastante os detalhamentos do que aqui é expos- to brevemente. Por exemplo, 0 autor publicou ha dois anos um livro sobre Frases sem texto. De certa forma, sua leitura 6 requerida para que a retomada aqui exposta seja de fato significativa. O mesmo se da em relagdo a outros temas, como o leitor vera. Assim, este 6 um livro de introduc&o, mas, paradoxalmente, para que se tirem dele todos os efeitos, é melhor que o leitor ja esteja bastante informado. A tradugao foi a mais literal possivel. Uns acharao que o foi em excesso. Também procurei respeitar o tom do original, que €é, como em outras obras do autor, relativamente informal. Em certos momen- tos, pedi socorro a Lidia L. Maretti e a Luciana Salazar Salgado, as quais agradego por quebrarem alguns galhos. Aproveitei passagens de tradugées existentes no mercado, espe- cialmente no caso de citagées de Foucault, de Pécheux, do proprio Maingueneau, particularmente quando retomava passagens de traba- [hos recentes, alguns dos quais tinham passado por minhas maos. As vezes, modifiquei alguns detalhes, achando que melhorava 0 texto. Que o livro permita debates. E a recepc&o que merece. ‘Sfrio Possenti Campinas, julho de 2015. R niconesa # andlise do diseursa Prefacio Hove xa isroria grandes conjuntos de saberes ¢ de priticas desti- nados ao estudo dos textos: no Ocidente, lembramos logo da retérica e da filologia, que chegaram até nés. Desde os anos 1960, um novo campo de pesquisa se desenvolveu com o nome de “analise do discur- so” ou, mais recentemente, de “estudos de discurso”. Nao se trata de uma simples extens&o da linguistica a dados que até ent&o ela niio levava em conta, como se, para retomar os termos de Saussure, uma “linguistica da fala” tivesse vindo completar uma linguistica da “lin- gua”, Trata-se antes de um empreendimento fundamentalmente trans- disciplinar, para alguns, pés-disciplinar, que, atravessando 0 conjunto das ciéncias humanas e sociais e das humanidades, vai contra a ten- déncia da divisio do saber em dominios cada vez mais especializados. Ei dificil nao associar a aparigdo deste campo a fendmenos como a terceirizagao crescente da economia ¢ o desenvolvimento das mi- dias audiovisuais p6s-internet, que aumentam de mancira inegavel a importancia das interages verbais ¢ multiplicam as téenicas de pro- cessamento dos signos. Essas evolugdes sao acompanhadas, além dis- so, pot uma “tecnologizacio do discurso” (Fairclough, 1992): seja no mundo corporativo ou em setores como 0 da satide, da politica ou da educaciio, pretende-se aumentar sua “eficacia” analisando sua prépria “comunicacao”, interna e externa, a dos concorrentes, incluindo os tunciados produzidos sobre as pessoas comuns. Outra face desse controle é a vigilancia exercida sobre as producGes verbais, seja nos call centers, onde 0 exercicio da fala 6 submetido a normas estritas e se torna objeto de um controle permanente, seja em nome do “politi- camente correto”, da “luta contra o terrorismo” ou “a criminalidade’”, seja em uma perspectiva de espionagem industrial, de marketing, de propaganda... Todas essas atividades mobilizam atores muito diver- sos, obrigados a se apoiarem em técnicas mais ou menos sofisticadas de coleta, de exploracdo e de interpretacio dos dados verbais. Vé-se igualmente multiplicarem-se os espagos destinados ao comentario da fala: programas de radio ou de televisdo que analisam a comunicagao dos politicos nos espagos interativos de “discussiio”, de “reagdo”, de “opiniao”... que a internet propicia, passando pelas instituigdes, parti- cularmente as de ordem psicoterapéutica, que incitam os sujeitos a se exprimirem sob 0 olhar de especialistas, que analisam e avaliam suas falas. Mesmo que nao estejam diretamente a servigo dessas praticas, os estudos do discurso participam, a sua maneira, desse mundo em que nao se cessa de refletir sobre os poderes da fala. O campo da analise do discurso, hoje globalizado e em expansao continua, resulta da convergéncia de correntes de pesquisa provin- das de disciplinas muito diferentes (linguistica, sociologia, filosofia, psicologia, teoria literaria, antropologia, histori: e, em contrapar- tida, exerce sua influéncia sobre elas. Falou-se muito de uma “virada linguistica” na filosofia, na histéria ¢ nas ciéncias sociais na segunda metade do século XX. Poderiamos falar também de uma “virada dis- cursiva”, De fato, nao ha nenhum setor das ciéncias humanas e sociais ou das humanidades que nao possa apelar a suas problematicas, con- ceitos ou métodos. O estudante que necessite ter uma ideia mais precisa desse imen- so campo de pesquisa nao esta diante de uma tarefa facil. Certamente, existe no mundo um numero consideravel de manuais de introdugio, a maior parte deles em inglés, cuja tendéncia é leyar em conta apenas os trabalhos que pertencem a sua prépria area cultural ou mesmo a sua propria corrente, ea privilegiar esse ou aquele tipo de uso do discurso (a conversacao, as midias, a Web, os discursos institucionais, os textos escritos...), ignorando a diversidade das manifestacées do discurso. O livro que apresentamos aqui nao procura substituir tais ma- nuais de introducao, mas completa-los. Seu objetivo é ajudar aqueles que, por uma ou outra razo, se deparam com os estudos de discurso. a melhor apreender as linhas de forca que estruturam esse campo, a identificar as categorias sobre as quais repousam seus métodos de ‘analise, a tomar consciéncia da heterogencidade do discurso. O estu- dante nao vai, pois, encontrar, neste manual, métodos imediatamente operatorios, mas pode recuar o necessario para orientar-se eficazmen- te no labirinto das terminologias e dos métodos. O livro se divide em trés partes. A primeira esta centrada no campo de estudos de discurso: sua histéria, a definig&o de termos como “discurso” ou “texto”, as grandes divisdes que o estruturam. A segunda parte se interessa pelas unidades de base com as quais tra- balham os analistas do discurso (género, tipo de discurso, formagao discursiva...); em outras palavras, com a construgao de seus objetos. A terceira se esforga para medir, ao mesmo tempo, a unidade ea di- yersidade do universo do discurso, para fazer surgir os regimes da fala que nele se entrecruzam. és Em ciéncias humanas e sociais, nao poderia existir, alias, o olhar sobranceiro e neutro, sobretudo quando se trata de refletir sobre um saber recente. Este livro nao é o de um historiador ou de um socidlo- go das ciéncias, mas o de um praticante da andlise do discurso que a viu evoluir consideravelmente desde os anos 1970 e que se esfor¢a para refletir sobre suas condigdes de possibilidade, suas principais categorias e suas tensdes constitutivas. Ele repousa sobre trés pressu- postos principais: * mesmo que as problemiaticas de analise do discurso desenvol- vidas na Franea tenham exercido indiscutivelmente um papel fundador e continuem a apresentar certo ntimero de tragos caracteristicos, atualmente elas se encontram inseridas em um espaco de pesquisa globalizado, no qual as hibridagbes conceituais se multiplicam; * 0 campo dos estudos de discurso deve ser distinguido de ou- tro, mais restrito, o da andlise do discurso, que define um ponto de vista especifico sobre o discurso; * ouniverso do discurso, o material a partir do qual trabalham os analistas do discurso, é profundamente heterogéneo: nao se pode unificd-lo em torno do modelo dominante da comu- nicacao oral face a face. Prefacio 11 Estudos de discurso e analise do discurso Alguns elementos de historia En cerat, quando se apresenta uma disciplina em uma obra de cara- ter didatico, comega-se por fazer um rapido percurso histérico no qual se para em um (as vezes dois ou trés) pensamento(s) fundador(es) que delimita(m) firmemente os contornos do campo de saber em questo. Tratando-se da andlise do discurso, € muito dificil escrever tais rela- tos: ndo existem equivalentes de Newton, Pasteur ou Durkheim, per- sonalidades cujo papel determinante seja reconhecido pelo conjunto da comunidade. Trata-se de um espaco de pesquisa fervilhante e que niio pode ser remetido a um lugar de emergéncia exato. Atribui-se fre- quentemente um papel fundador a pensadores tais como E. Goffman, L. Wittgenstein, M. Foucault ou M. Bakhtin; indubitavelmente, eles tiveram um papel importante, mas a abordagem de cada um deles abrange apenas parte desse imenso campo, e nenhum deles recortou, mesmo com outro nome, um territorio que recobrisse mais ou menos o da atual analise do discurso. $6 poderiamos construir uma historia quase linear se nos restringissemos a determinadas correntcs. 1.1 © Convergéncias e hibridagdes O termo “andlise do discurso” foi introduzido pelo linguista dis- tribucionalista Zellig S. Harris (1909-1992), em um artigo intitulado exatamente “Discourse Analysis” (Harris, 1952), no qual “disewrso” 2 designava uma unidade linguistica constituida de frases; de um tex- to, portanto. Como Harris trabalhava numa perspectiva estrutura- lista, empregava o termo “anélise” em seu sentido etimoldgico, o de uma decomposigio. Seu projeto, que hoje diria respeito a linguistica textual, era, de fato, analisar a estrutura de um texto, fundamentan- do-se na recorréncia de alguns de seus elementos, particularmente dos pronomes e de alguns grupos de palavras. Ele projetava também a possibilidade de relacionar as regularidades textuais assim identifi- cadas a fendmenos de ordem social: A anilise distribucional no interior de um tnico discurso, considerado indi- vidualmente, fornece ensinamentos sobre algumas correlacées entre a lin- gua e outras formas de comportamento. A razo disso ¢ que cada discurso seguido é produzido em uma situagao precisa ([1952] 1969: 11). Nesse ponto, a atitude de Harris se aproximou do estruturalismo literario francés dos anos 1960, que postulava ser necessario comecar por uma analise “imanente” do texto, e depois, fazer corresponder a “estrutura” assim extraida a uma realidade sécio-histérica situada fora do texto. Tal procedimento estava muito longe das problematicas atuais do discurso, que recusam a propria oposigao entre um interior eum exterior dos textos. Assim, a referéncia a Harris esta longe de ter um valor fundador para a analise do discurso de hoje. De fato, as problematicas que hoje participam da analise do dis- curso apareceram nos anos 1960, principalmente nos Estados Uni- dos, na Franga e na Inglaterra. A partir dos anos 1980, se constituiu um espaco de pesquisa verdadeiramente mundial, que integrou cor- rentes teéricas que tinham se desenvolvido independentemente umas das outras em disciplinas e em paises distintos. A publicagéo, em 1986, por T. van Dijk, de uma obra coletiva (Handbook of Discourse Analysis) em quatro volumes, testemunha essa evolugéo: cle agru- pava, de fato, sob o mesmo rétulo (“discourse analysis”) trabalhos extremamente diversos realizados de um e de outro lado do Atlantico. Como o pés-estruturalismo, com o qual ela mantém lagos estreitos, a andlise do discurso participa de um movimento em que “o acento esta posto desde entio sobre a globalizac&io do saber tedrico” e onde “tradigdes tedricas antes separadas fazem nascer culturas cientificas hibridas” (Angermiller, 2013a: 72-73). 16 Parte | - Estudos de discurso ¢ analise do discurso Quando, nos anos 1960, emergitam as problematicas que, em se- guida, entrariam no campo da anilise do discurso, nao se trataya, de forma alguma, de um projeto unificado. Nos Estados Unidos, o estudo do discurso foi alimentado por correntes muito diversas: em particu- lar, pela etnografia da comunicagio! (Hymes [1927-2009], Gumperz [1922-2013)), que era muito préxima da antropologia, da etnometo- (Garfinkel [1917-2011], que se dizia uma teoria socioldgica, da analise conversacional (Sacks [1935-1975]), que, como 0 nome in- dica, propunha um método de analise das interagdes orais. A isso se juntavam os trabalhos de pensadores singulares, tais como Goffman [1922-1982], que estudava os “rituais de interagdo" na vida cotidiana, em particular por meio da “apresentagao de si”®. Essas diversas cor- rentes, a despeito de suas divergéncias, partilharam progressivamente um mesmo espaco de pesquisa. Em seguida, ele foi enriquecido pelos aportes das teorias p6s-estruturalistas do discurso, muito influentes nas ciéncias politicas (M. Foucault, E. Laclau) e nos “Cultural Studies”, particularmente no que diz respeito ao género sexual (cf. J. Butler). De mancira mais ampla, a reflexiio sobre o discurso se beneficiou de contribuigdes provenientes da filosofia ¢ da linguistica. Ao longo do século XX, a filosofia se preocupou com a questao da linguagem. Falou-se de um linguistic turn, de uma “virada linguistica”, baseada na ideia, defendida particularmente por L. Wittgenstein, de que o traba- Iho conceitual da filosofia supe uma andlise prévia da linguagem; os trabalhos de J. Austin sobre os “atos de fala” se inscrevem nessa pers- pectiva. Por sua vez, a linguistica foi sendo cada vez mais impregnada pelas correntes pragmaticas, que abordavam a fala como uma ativida- de e acentuavam o carater radicalmente contextual da construgio do sentido. Paralelamente, a partir dos anos 1960 — isto é, simultanea- mente 4 andlise do discurso — desenvolveu-se uma nova disciplina, a linguistica textual, que, visando encontrar regularidades além da frase, fornecia aos analistas do discurso instrumentos preciosos para a apreensio da estruturacfo dos textos. * Sobre a ctnografia da comunicagio, ver Bachman, Lindenfeld, Simonin (2003). 2 Sobre a etnometodologia, pocem-se consultar Coulon (2002) e de Fornel, Ogien e Queré (orgs.) (2002). * Para uma sintese das principais contribuigdes de E, Goffman, ver Joseph (2002), Nizet e Rigaux (2005) 1 Alguns clementos de historia 17 1.2 ¢ Na Franga A Franca foi um dos principais lugares de desenvolvimento da andlise do discurso, talvez 0 lugar em que, pela primeira vez, a andlise do discurso foi definida, sob esse nome, como um empreendimento ao mesmo tempo tedrico e metodoldgico especifico. Ela se apoiava no estruturalismo, entao no auge*. Se 1966 é 0 grande ano do estruturalismo’, o da analise do dis- curso é 1969. Neste ano, a revista de linguistica Langages, cujo pres- tigio era entéo consideravel, dedica um ntiimero especial (o ntimero 13) a um campo novo, que ele chama de “a andlise do discurso”. No mesmo ano, M. Pécheux publica um livro intitulado Andlise automd- tica do discurso ¢ Foucault, sua Arqueologia do saber, obra que traz a nogao de discurso para 0 centro da reflexao. O mimero 13 de Langages utiliza o termo “analise do discurso” ao mesmo tempo como titulo do conjunto do volume e como titulo da tradugdio francesa do artigo de Z. S. Harris, de 1952, que evocamos an- teriormente. Mas os artigos dos colaboradores desse nimero especial propdem visGes muito diversas do novo campo de pesquisa. Isso pre- figura o que vai se passar a partir dos anos 1980 em escala internacio- nal: a inscrig&o, em um espaco comum, de pesquisas muito diversas. O responsivel por este nimero de Langages é 0 linguista Jean Dubois (nascido em 1920). Para ele, desenvolver a andlise do discur- so éuma forma de ampliar os trabalhos de linguistica para as relagdes entre lingua ¢ sociedade, de renovar de alguma maneira os métodos da filologia. Ele mesmo é autor de uma tese importante sobre 0 voca- pulario social ¢ politico no final do século XIX (Dubois, 1962), Em sua perspectiva, a andlise do discurso aparece como uma disciplina na qual, primeiro, se estudam textos de todos os géneros (0 que rom- pe com as praticas mais restritivas das faculdades de letras, voliadas para corpora prestigiosos, particularmente os literarios); segundo, com o auxilio de ferramentas tomadas de empréstimo 4 linguisti * Nao ha ainda uma histéria detalhada da emergéncia da analise do discur- so na Franga. Encontra-se, contudo, uma apresentagao sugestiva em Angermiiller (2013b: 11-56), que destaca as tendéncias pos-estruturalistas dessas correntes. 5 Nesse ano apareceram, em particular, As palavras e as coisas, de M. Fou- cault, os Escritos, de J. Lacan, Critica ¢ verdade, de R. Barthes, a Semdntica estrutu- ral, de A.J. Greimas, os Problemas de linguistica geral, de B, Benveniste. 18 Parte 1- Estudos de discurso ¢ andlise do diseurso terceiro, com o objetivo de melhorar nossa compreensao das relagdes entre os textos e as situacdes sécio-histéricas nas quais eles séo pro- duzidos. Essa concep¢ao muito consensual da analise do discurso vai se difundir amplamente na Franca. Autor de uma Andlise automdtica do discurso, Michel Pécheux (1938-1983) nao participou do numero especial de Langages; seu pro- jeto é diferente. Ele nio 6 um linguista, mas um filésofo marxista especialista em historia das ciéncias, que pretende contestar os pres- supostos “idealistas” das ciéncias humanas; ele era, entdo, pesquisa- dor em um laboratério de psicologia social. Com Pécheux, a analise do discurso se ancora, a0 mesmo tempo, no marxismo do filésofo L. Althusser, na psicanalise de J. Lacan e na linguistica estrutural, trés empreendimentos que dominam, nesse momento, a cena intelectual. Seu procedimento é 0 de uma espécie de psicanalista do discurso animado por um projeto marxista, cujo aleance é simultaneamente politico e epistemoldgico: procedendo a uma anélise — leia-se “de- composic¢io” — dos textos, procura-se revelar a ideologia que eles estiio destinados a dissimular; significativamente, a palavra “analista” designa igualmente os psicanalistas e “andlise”, a psicanilise. A influéncia de A arqueologia do saber, de M. Foucault, sobre a analise do discurso francesa foi bastante mais indireta que a de J. Dubois ou a de M. Pécheux, mas foi expressiva. Se estes Ultimos pre- tendiam apoiar-se na linguistica, o autor de A arqueologia do saber a recusava. O que ele chamaya de “discurso” nio tinha relag’o direta com o uso da lingua. Estas linhas sao reveladoras: 0 que se descreve como “sistemas de formagdo" nao constitui a etapa final dos discursos, se por este termo entendermos os textos (ou as falas) tais como se apresentam com seu vocabulario, sintaxe, estrutura ldgica ou orga- nizacdo retorica. A andlise permanece aquém deste nivel manifesto, que é 0 da construgao acabada (1969: 100/83). Uma posicdo como esta é dificilmente compativel com os postu- lados de numerosos analistas do discurso, para quem o yocabulario, a organizagao textual e as estratégias interacionais devem. estar no coragao da andlise. Como o sublinha Hart, em Foucault, “discurso” nao éum conceito linguistico: 4 = Atauies eleneneoe depots 19 (1988) e sobre a imprensa escrita (2007), os meus sobre o discurso religioso (1984) ou o discurso literario (1993). Todas essas pesquisas atribuem um papel central 4 nog&o de géneros do discurso e se apoiam macigamente sobre as teorias da enunciagao linguistica, que forne- cem um quadro metodolégico comum. Paralelamente, os trabalhos de inspirac&o norte-americana se difundem na Franca, em particular através dos estudos das conversas (Kerbrat-Orecchioni, 1990, 1992). 1 = Alguins elementos de historia 21 A nocao de discurso A\nsrasiuape do campo da anilise do discurso encontra correspon- déncia na propria nogdo de discurso. Nenhuma obra de introdugéo esquece, alids, de demorar-se neste ponto, seja para deplora-lo, seja para celebré-lo. Circunstancia agravante, “discurso” se emprega de duas maneiras: * como substantivo ndo contdvel (“isto deriva do discurso”, “o discurso estrutura nossas crengas’...); * como substantivo contdvel que pode referir acontecimentos de fala (‘cada discurso é particular’, “os discursos se insere- vem em contextos”...) ou conjuntos textuais mais ou menos vastos (“os discursos que atravessam uma sociedade”, “os dis- cursos da publicidade”. ‘Tal polivaléncia permite que “discurso” funcione, ao mesmo tem- po, como referindo objetos empiricos (“ha discursos”) e como algo que transcende todo ato de comunicagio particular (“o homem é sub- metido ao discurso”). Isto favorece uma dupla apropriagdo da noga por teorias de ordem filos6fica e por pesquisas empiricas sobre o fun- cionamento dos textos. 2.1 © Para os linguistas Para os linguistas, que opdem tradicionalmente o sistema lin- guistico a sua atualizagaéo em contexto, o discurso é¢ comumente 23 definido como “o uso da lingua” (ver, por exemplo, Gee [2005: IX] ou Johnstone [2008: 3]). Alguns acrescentam a isso uma dimensao comunicacional, como B. Paltridge (2006: 2), para quem o discurso € “a linguagem além da palavra, do grupo de palavras e da frase”, agen- ciado de maneira a que a “comunicagao alcance éxito”. Mais precisamente, em linguistica, “discurso” entra em trés oposi- ges principais: entre discurso e frase, entre di: 30 € lingua e entre dis- curso e texto (abordaremos esta tiltima distingao no proximo capitulo). * Quando se opée discurso e frase, o discurso 6 considerado como uma unidade linguistica “transfrastica’, isto ¢, consti- tuida de um encadeamento de frases. Vimos que é neste sen- tido que Harris (1952) péde falar de “discourse analysis”. B também nessa interpretacao de “discurso” que se apoiam hoje os pesquisadores que, em uma perspectiva cognitiva, se inte- ressam pela maneira pela qual um enunciado é interpretado apoiando-se em enunciados anteriores e posteriores. Mas este nao é 0 emprego mais frequente de “discurso”. ¢ A oposigao entre discurso e lingua pode ser apreendida de diversas maneiras, mas todas clas opdem a lingua concebida como sistema a seu uso em contexto. Encontra-se aqui, em certos aspectos, a dupla “lingua’/“fala” do Curso de lingutsti- ca geral de F. de Saussure. A nogio de “language in use”, frequente na literatura anglofona como parafrase de “discurso”, associa estreitamente as duas oposigées que acabamos de destacar: featual (discurso vs. frase) e contextual (discurso vs, lingua): 0 discurso € frequentemente definido de duas maneiras: um tipo particular de unidade linguistica (além da frase) e uma focalizagdo sobre 0 uso da lin gua (Schiffrin, 1994: 20). 2.2 © Fora da linguistica As acepcées de “discurso” ancoradas nas ciéncias da linguagem interagiram com certo namero de ideias provindas de correntes teéri- cas que atravessam 0 conjunto das ciéncias humanas e sociais: a filo- sofia da linguagem ordinaria (L. Wittgenstein) e a teoria dos atos de fala (J. L. Austin, J. R. Searle), a concepgfio inferencial do sentido (H. 24 Parte | - Estudos de discurso ¢ andlise do discurso P. Grice), o interacionismo simbélico (G. H. Mead), a etnometodolo- gia (H. Garfinkel), a escola de Palo Alto (G. Bateson), 0 dialogismo de M. Bakhtin, a psicologia de L. Vigotsky, a arqueologia ea teoria do poder de M. Foucault, ele proprio integrado a uma corrente identifica- da nos Estados Unidos com o nome de “pés-estruturalismo”, em que é associado a pensadores como J. Derrida, G. Deleuze, J. Lacan, E. La- Glau, J. Butler... A nogio de discurso entra igualmente em ressonancia com certas correntes construtivistas, particularmente a sociologia do conhecimento de P. L. Berger eT. Luckmann, autores de A construcdo social da realidade (1966). Quando se fala de “discurso”, ativa-se, assim, de maneira difusa, um conjunto aberto de leitmotiven, de ideias-forga: 0 discurso é uma organizagao além da frase Isto nfo quer dizer que todo discurso se manifeste por sequén- cias de palavras de dimensées obrigatoriamente superiores a frase, mas que ele mobiliza estruturas de outra ordem, diferentes das da frase, Um provérbio ou uma proibigao como “Proibido fumar” sao dis- cursos, formam uma unidade completa, embora sejam constituidos por uma tinica frase, Os discursos, quando sao unidades transfrasti- cas, como é 0 caso mais frequentemente, sio submetidos a regras de organizagio. Elas operam em dois niveis: as regras que governam os géneros de discurso em vigor em um grupo social determinado (con- sulta médica, talk-show, romance, tese de doutorado...) e as regras, transversais aos géneros, que governam um relato, um didlogo, uma argumentacao, uma explicagao... 0 discurso é uma forma de agGo Considera-se que falar é uma forma de agdo sobre o outro, e nao apenas uma representagéo do mundo. Nesse ponto, a linguistica retoma a tradi¢&o retérica, que constantemente acentuou os poderes da fala. A problematica dos “atos de linguagem” (também chamados “atos de fala” ou “atos de discurso”), desenvolvida a partir dos anos 1950 pelo filésofo da linguagem J. L. Austin (1962), e depois por J. R. Searle (1969), mostrou que toda enuncia¢ao constitui um ato (pro- meter, sugerir, afirmar, perguntar...) que visa modificar uma situacao. 2~ Anogao de discurso 25 — — s Num nivel superior, tais atos clementares se integram a géneros de discurso determinados, que séio outras formas de atividades social- mente reconhecidas. Inscrevendo assim o discurso entre as ativida- des, facilita-se relaciona-las com as atividades nao verbais. 0 discurso € interativo A atividade verbal é, na realidade, uma interatividade que en- volve dois ou mais parceiros. A manifestacdo mais evidente dessa in- teratividade € a troca oral, onde os interlocutores coordenam suas enunciagdes, enunciam em fungao da atitude do outro e pereebem jmediatamente o efeito que suas palavras tém sobre ele. Poder-se-ia objetar que existem também tipos de enunciacao oral que nao pare- cem de forma alguma “interativas’: € 0 caso, por exemplo, das confe- réncias, e, @ fortiori, dos textos escritos. De fato, nao se pode reduzir a interatividade fundamental do discurso & conversacio. Qualquer enunciagdo, mesmo que produzida na auséncia de um destinatario ou na presenga de um destinatario que parece passivo, se da em uma interatividade constitutiva. Qualquer enunciagao supde a presenga de outra instancia de enunciagao, em relacéo 4 qual alguém constréi seu préprio discurso. Nesta perspectiva, a conversagao é um dos modos de manifestacao — mesmo que seja sem duvida fortemente dominan- te, do ponto de vista quantitativo — da interatividade fundamental do discurso. Se for assim, um termo como “destinatario” parece insa- tisfatorio, porque pode dar a impressao de que a enunciagao é apenas a expresstio do pensamento de um locutor que se dirige a um destina- tario passivo. & por isso que alguns preferem falar de “interactantes”, de “colocutores”, ou, ainda, de “coenunciadores” O discurso ¢ cantextualizado Nao diremos apenas que o discurso intervém em um contexto, como $e 0 contexto ndo passasse de uma moldura, deum cenatio: fora de contexto, néo se pode atribuir um sentido a um enunciado. Fala-se. frequentemente, a este propdsito, de “indicialidade”. Em filosofia da linguagem, expressdes indiciais (eu, fu, ontem, ai...) tém como carac- teristica serem por natureza semanticamente incompletas, de sé terem referente mediante a enunciagio singular em que sio empregadas. Por extensdo, a indicialidade permite representar a incompletude ra- dical das palavras, que devem ser indexadas a uma situacao de troca linguistica, um contexto particular, para aleangar um sentido que se poderia dizer “completo” (0 que nao implica que esse sentido seja cla- ramente determinavel). O discurso € assumido por um sujeito CO discurso 86 é discurso se estiver relacionado a um sujeito, aum EU, que se coloca ao mesmo tempo como fonie de referéncias pessoais, temporais, espaciais (BU-AQULAGORA) e indica qual é a atitude que ele adota em relagdo ao que diz e a seu destinatario (fenémeno da “modalizac&o”). Ele indica, especialmente, quem € 0 responsavel pelo que ele diz: um enunciado bem elementar como “Chove” é estabelecido como verdadeiro pelo enunciador, que se situa como o responsivel, como 0 fiador de sua verdade. Mas esse enunciador poderia ter modu- lado seu grau de adesao (“Talvez possa chover"), atribuir a responsabi- lidade pelo enunciado a outro (“Segundo Paulo, vai chover”), comentar sua propria fala (“Sinceramente, acho que chove”) ete. Ele poderia até mesmo mostrar ao coenunciador que apenas finge assumir o enun- ciado (no caso de enunciagées irénicas). Mas, de uma perspectiva da analise do discurso, esta dupla assuncaio nao implica que se considere © sujeito como 0 ponto de origem soberana de “sua” fala. A fala é do- minada pelo dispositive de comunicagéio do qual ela provém. 0 discurso é regido por normas A atividade verbal, tanto quanto qualquer comportamento so- cial, é regida por normas. No nivel elementar, cada ato de linguagem implica normas particulares; um ato aparentemente tao simples como uma pergunta, por exemplo, implica que 0 locutor ignore a respos- ta, que essa resposta o interesse, que ele acredite que 0 individuo a quem a pergunta é feita possa respondé-la etc. Existem, além disso, normas (“maximas conversacionais”, “leis do discurso’, “postulados conversacionais”...) que regem todas as trocas verbais: ser compreen- sivel, ndo se repetir, dar informagOes apropriadas a situacao ete. Além disso, como vimos, os géneros de discurso sio conjuntos de normas que suscitam expectativas nos sujeitos engajados na atividade verbal. 2A nogio de discurso 27 Mais fundamentalmente, nenhum ato de enunciacao pode ocorrer sem justificar de uma forma ou de outra seu direito de se apresentar tal como se apresenta. Trabalho de legitimagao inseparavel do exer- cicio da fala. O discurso é assumido no bojo de um interdiscurso O discurso sé adquire sentido no interior de um imenso interdis- curso. Para interpretar 0 menor enunciado, é necessario relaciona-lo, conscientemente ou nao, a todos os tipos de outros enunciados sobre os quais ele se apoia de miltiplas maneiras. O simples fato de orga- nizar um texto em um género (a conferéncia, 0 jornal televisivo...) implica que 0 relacionemos com os outros textos do mesmo género; a menor intervengiio politica s6 pode ser compreendida se se ignorarem os discursos concorrentes, os discursos anteriores € os enunciados que entao circulam nas midias. Algumas correntes defendem o primado do interdiscurso sobre o discurso. E em particular 0 que se dé com os pesquisadores inspi- rados em M. Bakhtin, que inscrevem todo enunciado num “dialogis- mo” generalizado; este principio recusa 0 fechamento do texto, aberto aos enunciados exteriores e anteriores, cada enunciado participando assim de uma cadcia verbal intermindvel. & também o caso de nume- rosos analistas do discurso franceses inspirados em J. Lacan ou em L. Althusser, para os quais qualquer enunciagao é dominada por um interdiscurso que a atravessa sem que ela se dé conta disso; algo que uma formula de M. Pécheux resume bem: “Isso fala sempre alhures € antes”. Nesses dois casos, existe uma relacao estreita entre a afirma- cao do primado do interdiscurso e certa concepgio do sujeito falan- te; a fala nunca é concebida como 0 lugar em que a individualidade se poe soberanamente: ada locutor esta tomado pela sedimentagaio coletiva das significagSes inscritas na lingua (Bakhtin), 0 sujeito esta submetido a um descentramento radical, ele néo pode ser a origem do sentido (Pécheux). 0 discurso constrdi socialmente o sentido Este postulado diz respeito tanto as interages orais entre duas pessoas quanto as produgoes coletivas destinadas a um publico amplo Ae a 2 pitndan da dicouren @ andlise do discurse O sentido de que se trata aqui nfo é um sentido diretamente acessi- vel, estavel, imanente a um enunciado ou a um grupo de enunciados que estaria esperando para ser decifrado: ele é continuamente cons- truido e reconstrufdo no interior de praticas sociais determinadas. Essa construcdo do sentido é, certamente, obra de individuos, mas de individuos inseridos em configuracGes sociais de diversos niveis. Segundo a perspectiva que the é propria, cada corrente, ou cada pesquisador, vai por em primeiro lugar um ou outro dos leitmotiven associados ao termo “discurso”, sem com isso excluir os outros, que ficam em segundo plano. A nocao de discurso constitui, assim, uma espécie de involucro comum para posic¢des as vezes fortemente diver- gentes. Estamos mais numa légica do “clima familiar” do que na de um ntcleo de sentido que seria comum a todos os usos. Mas, mesmo sendo muito instavel, 0 uso de “discurso” é carre- gado de desafios. Ele permite que os pesquisadores se posicionem, tracem uma fronteira com os procedimentos concorrentes. A natureza dessa fronteira varia, evidentemente, conforme as correntes implica- das. Por exemplo, os adeptos de psicologias de inspiragéo discursiva (Potter e Vetherell, 1987; Bronckart, 1996) rejeitario as concepgoes da psicologia que, centradas no estudo dos estados mentais de indivi- duos, marginalizam os processos de comunicagao: A anilise do discurso € uma perspectiva radicalmente nova que tem implica ges sobre o conjunto das questdes psicossociolégices [...] os outros métodos se recusaram a levar em conta ou mascararam o carter ativo, construtor do uso da linguagem na vida cotidiana (Potter e Wetherell, 1987: 6) Ve-se que o emprego de “discurso” tem um duplo aleance. Permite, ao mesmo tempo, designar objetos de analise (“o discurso da impren- sa”, “o discurso dos médicos”...) e mostrar que se adota um determina- do ponio de vista sobre eles. Dizer, por exemplo, que esse panfleto ou aquele jornal sdo um discurso é também mostrar que cles sao consi- derados como discursos, mobilizadores de certas ideias-forga. Falando do “disctrso do panfleto”, indica-se que néo se vao analisar somen- te contetidos, uma organizacgao textual ou procedimentos estilisticos, mas que se vai relacionar este enunciado a um dispositivo de comuni- cacao, 4s normas de uma atividade, aos grupos que dele extraem sua legitimidade etc. Da mesma forma, quando se olha para a literatura 2A nagao de discursa 29 a como discurso (Mainguencau, 2004), é-se levado a contestar a divisao tradicional dos estudos literarios em duas vertentes: uma que se volta para 0 texto, encarado em si mesmo, e outra para o contexto (a vida do autor, um ou outro aspecto da época na qual ele viveu). Para dar uma medida da plasticidade do termo “discurso”, con- vém evitar duas atitudes que poderiam ser qualificadas, uma de “céti- ca’, outra de “terapéutica”. A atitude cética consiste em renunciar a dar a menor consisténcia semantica a palavra “discurso”, em contentar-se com 0 registro de seus usos, explicando-os pelos interesses dos que a utilizam. A atitude terapéutica, por sua vez, acaba por desqualificar os empregos de “discurso” que nao seriam definidos rigorosamente e univocos. De fato, é inevitavel que, nas ciéncias humanas e sociais, mil- tiplas correntes ou disciplinas se alicercem sobre diversas “palayras- -chave”, cujo significado os pesquisadores nao possam controlar to- talmente. E isso é ainda mais evidente quando se trata de uma nogao que atravessa multiplos campos do saber. Da mesma mancira, nos anos 1960, a nocdo de “estrutura” oscilava entre os usos relativamente técnicos, particularmente em linguistica, e os usos pouco controlados no conjunto das ciéncias humanas e sociais ¢ na filosofia. O que nio © impediu de renovar as abordagens de varias disciplinas. 2.3 © Teoria do discurso e analise do discurso Quem se considera filiado 4 problematica discursiva associa in- timamente lingua (mais amplamente, os recursos semidticos dispo- niveis em uma sociedade), atividade comunicacional e conhecimento (os diversos tipos de saberes, individuais e coletivos, mobilizados na construgao do sentido dos enunciados). Fazendo isso, a analise do discurso se distingue de outras disciplinas, que privilegiam uma s6 das trés dimensdes: os socidlogos acentuam a atividade comunica- cional; 0s linguistas privilegiam 0 estudo das estruturas linguisticas ou textuais; os psicdlogos enfocam as modalidades e as condigdes do ¢onhecimento. Refletir em termos de discurso é, ent&o, necessariamente, articu- lar espacos disjuntos, como ja o sublinhava Foucault em A arqueolo- gia do saber, quando situava seu empreendimento entre “realidade” € “lingua”, “as palavras” e “as coisas”: 30 Parte | - Estudos de discursy € anilise do discurso Gostaria de mostrar que o discurso nao é uma estreita superficie de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma lingua, o intrincamento entre um léxico € uma experiéncia; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os discursos propriamente ditos, vemos se des- fazerem os lacos aparentemente tao fortes entre as palavras e as coisas, € destacar-se um conjunto de regras, propria da pratica discursiva. Essas regras definem nao a existéncia muda de uma realidade, nao 0 uso canénico de um vocabulario, mas o regime dos objetos, [...]. Tarefa que consiste em nao — nao mais — tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteUdos ou a representagées), mas como pra- ticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente, os discursos sio feitos de signos; mas o que eles fazem € mais do que utilizar esses signos para designar coisas. Aqui, o “discurso” no é apresentado como um territ6rio cireuns- crito, mas como um espaco incerto entre dois macicos, lA onde se “desfazem os lacos aparentemente tao fortes entre as palavras e as coisas”, entre a linguagem ¢ 0 mundo. A proliferagao incontrolavel da nogao de discurso aparece como o sintoma de uma abertura, nas Ultimas décadas do século XX, desse espago incerto. A situagao dos “discursivistas", dos especialistas em discurso, esta longe, ent&o, de ser confortavel. Eles tém de fazer esforgos cons- tantes para ndo reduzir o discursivo ao linguistico ou, inversamente, para nao deixé-lo ser absorvido pelas realidades sociais ou psicolégi- cas. Essa posic&o constitutivamente desconfortivel nado deixa de evo- car o estatuto singular da filosofia. Nao por acaso alguns dos princi- pais inspiradores da anélise do discurso sao filosofos, ou pensadores que nado podem ser encerrados em uma disciplina. Como a anilise do discurso, a filosofia é um espaco de alguma maneira suplementar em relacdo As disciplinas que tém um objeto circunscrito; 0 que lhes confere ao mesmo tempo um potencial critico consideravel e as expde A suspeita daqueles que operam no interior de territérios delimitados. Nao é de se estranhar que se tenha desenvolvido uma “teoria do discurso” — distinta da andlise do discurso propriamente dita — que participa da discussao filosofica. Esta “teoria do discurso” agrupa projetos intelectuais que com- binam de diversas manciras preocupagdes advindas do pds-estrutu- ralismo, dos “cultural studies" e do construtivismo. Eles questionam 2~Anogéo de diseurso 31 os pressupostos das ciéncias humanas e sociais, em particular sobre a subjetividade, o sentido, o poder, a diferenga sexual, a escrita. < dissidéncia, 0 pés-colonialismo... A principal referéncia, nesse senti- do, é, sem divida, Miche] Foucault. Podem-se também mencionar o= trabalhos de J. Butler (1990, 1997) ou de G. C, Spivak (1987, 1990 1999) que, no cruzamento da filosofia, do feminismo e do marxis mo, se dedicam a criticar os paradigmas ocidentais. No dominio das ciéncias politicas, evocaremos a teoria pés-marxista da “hegemonia” defendida por EB. Laclau e C. Mouffe (1985), muito influenciados por L. Althusser e J. Lacan. Essa orientacao filos6fica critica esta presente desde as origens dos estudos de discurso. Vimos que, na Franca, no final dos ano: 1960, coexistiram abordagens de orienta¢ao linguistica e abordagens como a de M. Pécheux, que visava fundar “uma teoria do discu: so como teoria da determinagio historica dos processos semanticos” (Pécheux e Fuchs, 1975: 8), uma teoria que nao se deixava encerre: em nenhuma disciplina ou teoria constituida, mas que pretendia i tervir nelas. Pode-se igualmente aproximar dessa “teoria do discurso” a filosofia da comunicagao de J. Habermas, que desenvolve, com bas< em uma pragmatica transcendental, uma “ética da discussao” no que- dro de um “agir comunicacional” (1981). Mas a maioria absoluta dos discursivistas nfo trabalha no cam- po da teoria do discurso; sio analistas do discurso, que, com auxilic de miltiplos métodos, estudam corpora. Sio os que me interessa: nesta obra. Eles podem ser distribuidos em duas populagdes com objetivos distintos. Para a primeira, a andlise do discurso ¢ somente uma caixa ferramentas no vasto conjunto dos “métodos qualitativos” das cién- cias humanas e sociais. Esses pesquisadores trabalham no interior ¢ quadros definidos para a disciplina A qual pertencem: sociologia, h toria, ciéncias politicas, geografia... Eles apreendem o discurso com: o que Ihes oferece indicios que franqueiam ao pesquisador 0 acess a “realidades” fora da linguagem. Tal procedimento tende a atenuar = fronteira entre as abordagens propriamente discursivas e outros méto- dos qualitativos, especialmente as técnicas de “analise de contetido” "Neste dominio, a obra de referencia ¢ a do especialista americano da com nicagio B. Berelson, Content Analysis in Communication Research (1952). Ver t= bém o manual de 1. Bardin, b'Analyse de contenu (PUF, 2007, 1977). 32 parte | - Estudos de discurso ¢ andlise do diseurso que extraem sentido dos documentos criando categorias ligadas a seu contetido ou ao contexto de sua produgiio (a data ou o lugar de pro- ducio, 0 sexo dos produtores etc.). Isto levanta dificuldades; de fato. as problematicas do discurso se legitimaram frequentemente por opo- sicdo aos pressupostos da analise de contetido. Bo caso, por exemplo, _ de M. Pécheux, que a recriminaya por pretender “ter acesso ao senti- io de um segmento do texto, atravessando sua estrutura linguistica” (1969: 4), ou de N. Fairclough, para quem a analise de conteddo tem “tendéncia a considerar a linguagem transparente, [...] a crer que 0 contetido social dos dados linguisticos pode ser lido sem prestar aten- do a linguagem propriamente dita” (1992/2001: 20). A segunda populac&o agrupa os analistas do discurso que se pode dizer que so “candnicos”, os que se interessam pela maneira pela qual, em uma sociedade determinada, a ordem social se constréi por meio da comunicagio. Eles se esforgam para manter um equi- librio entre a reflexio sobre o funcionamento do discurso e a com- preensao de fendmenos de ordem sécio-historica ou psicologica. A maioria desses pesquisadores se ancora fortemente nas ciéncias da linguagem. Sua pesquisa pode visar esclarecer uma questao estrita- mente discursiva (sobre a definigdo ou a tipologia dos géneros de dis- curso, a pertinéncia de tais métodos ete.), mas pode também ter como propésito responder a problemas sociais (em particular de ordem edu- cacional, politica, sanitaria) ou de questionar outros campos de saber (por exemplo, o que é a filosofia quando apreendida como discurso?) (Cossutta, 1995). 2 Anogdo de diseursa 33 Discurso, texto, corpus Sr, nas opras de introdugao, a nogio de discurso é discutida, mesmo que seja para desenredar sua polissemia embaracadora, o mesmo nao ocorre com a nogao de texto. No entanto, embora os analistas do discurso se concentrem naturalmente no termo “discurso”, constata-se que empregam sem cessar o termo “texto”, que interfere com “discur- so” de uma forma nem sempre controlada. Alguns nao consideram ne- cessario estabelecer uma diferenga entre eles: “Neste manual, os dois termos, discurso e texto, podem em geral ser considerados sinénimos” (Dooley, Levinsohn, 2001: 3). Outros 0 empregam para designar os dados a partir dos quais eles trabalham: “O material com o qual tra- balham os analistas do discurso é constituido de dados efetivos de discurso, que sdo as vezes designados como textos” (Johnstone, 2008: 20). Mas, por mais eémodas que sejam essas solugSes, elas n&o estio A altura da complexidade das relagdes entre os dois termos. 3.1 © Um discurso para cada texto? A relacao entre texto e discurso 6 muito diferente se associamos um s6 discurso a um conjunto de textos (1), ou um diseurso a cada texto (2). (1) No primeiro caso, os discursos existem para além dos textos particulares dos quais sao compostos. Isto é mais nitido para 35 os pesquisadores que se situam em uma perspectiva préxima da de M. Foucault; 0 “discurso da psiquiatria”, por exemplo, recobre um conjunto mais ou menos vasto de textos de gé- neros muito diferentes (obras tedricas, regulamentos de hos- pitais, manuais...). Neste tipo de emprego, “discurso” pode corresponder a entidades de natureza muito diversa: © uma disciplina (“o discurso da geografia’, “da astronomia”. © um posicionamento em um campo (“o discurso comunis- ta”, “o discurso surrealista’.. * uma tematica (“o discurso sobre a seguranga’, “o discurso sobre a Africa”... © a producao associada a uma Area determinada da socieda- de (“o discurso jornalistico”, “o discurso administrativo”...); © producées verbais especificas de uma categoria de locuto- res (“o discurso das enfermeiras”, “o discurso das maes de familia”...). (2) O segundo caso é aquele em que a um texto corresponde um discurso. Nesta passagem, por exemplo, o discurso é apresen- tado como o que “subjaz” a um texto: ‘As pessoas produzem textos para fazer passar uma mensagem, para exprimir ideias e crencas, para explicar algo, para levar outras pessoas a fazer certas coisas ou a pensar de certa maneira, e assim por diante. Pode-se designar este conjunto complexo de objetivos comunicacionais como o discurso que sus- tenta o texto € € o motivo principal de sua produgo. Mas, finalmente, sao os leitores ou os ouvintes que devem construir 0 sentido a partir do texto, para fazer dele uma unidade comunicacional. Em outros termos, eles devem inter- pretar o texto como um discurso que faca sentido para si (Widdowson, 2007: 6). Encontra-se aqui uma forma corrente de gerir a relacio entre os dois termos, condensada na formula: Discurso = Texto + Contexto. Mas, para J.-M. Adam, que, em um primeiro momento, contribuiu amplamente para difundi-la, esta formula é enganosa: Ela da a entender uma oposigdo e uma complementaridade dos conceitos de texto ¢ de discurso, quando, na verdade, seria preciso dizer que esses dois conceitos se sobrepdem € se recobrem em funcao da perspectiva de anélise escolhida (2011: 38). 36 Parte | - Estudos de discurso ¢ andlise do diseurso 3.2 © Trés eixos principais Os usos de “texto” podem ser agrupados em torno de, efetiva- mente, trés cixos principais, que interessam A anilise do discurso por razoes diferentes: © Encarado como texto-estrutura, 0 texto é objeto da linguistica textual, disciplina que estuda as regularidades além da frase. O texto é entdo apreendido como uma rede de relagGes frase a frase (com a ajuda, por exemplo, das retomadas pronominais) ou de agrupamentos de frases (a narragdo ou a descri¢ao, por exemplo, incidem sobre sequéncias textuais que podem ser mais ou menos longas). J.-M. Adam (2011: 103-160) agrupa em “cinco grandes tipos” as operacdes que asseguram essa coes&o: “Cruzamentos do significado” (anaforas, correferén- cia, isotopias), “cruzamentos do significante” (aliteragdes, pa- ralelismos gramaticais), “implicag6es” (elipses, pressupostos, subentendidos), “conexdes” (conectores, organizadores espa- ciais e temporais, marcadores enunciativos), “sequéncias de atos de discurso” (narragao, argumentacio....). ¢ Encarado como texto-produto, o texto é apreendido como o trago de uma atividade discursiva — oral, escrita, visual — relacionado a dispositivos de comunicagao, a géneros de dis- curso: desde os mais elementares (uma etiqueta numa merca- doria) as mais complexas (um romance). Um jornal diario, por exemplo, é constituido de uma multidéo de artigos que s&o outros tantos textos-estruturas, mas pode- mos consideré-lo como um s6 texto-produto, o jornal, unida- de de comunicagao resultante de um género de discurso. Reci- procamente, pode ocorrer que um texto-produto, constituido de uma so frase, ndo seja um texto-estrutura: por exemplo, placas de trinsito nos quais se encontram frases como “Dirigir ou beber, é preciso escolher” ou “Homens trabalhando”. © Como teato-arquivo, o texto no esta associado a uma ativi- dade de discurso, mas é considerado como algo permanente, pela fixac&o em um suporte material ou na memoria: pode ser transmitido, modificado, comentado, reempregado... Deste ponto de vista, se os enunciados sao “raros’, como o sublinha Foucault (1969: 155), nao é somente porque, a partir da gra- matica ¢ do léxico de que dispomos em uma época dada, ha, 4) = Discurso, texto, carpus 37 no total, poucas coisas que séo ditas, mas também porque poucas coisas entre as coisas ditas sio conservadas ¢ entre elas poucas perduram'. A nogfio de texio-arquivo recobre de fato dois fendmenos muito diferentes: © os textos materiais, inscritos em um suporte. Trata-se de reali- dades historicas cuja materialidade depende dos recursos tec- nologicos disponiveis na época considerada: tabuletas de argi- la, pergaminho, escAner, gravador, base de dados digitais...: © os textos considerados independentemente de um ou outro su- porte fisico particular. Quando se diz “este texto de Stendhal”, pode-se estar designando com isso um objeto particular, de- terminado livro, mas também uma obra, apreendida sem levar em conta sua existéncia material (“é um texto de grande pro- fundidade”, “um texto que se comenta ha um século”...). As relacdes entre esses dois tipos de texto-arquivo estao longe de ser simples, como 0 gublinham Adam e Viprey, tomando como exem- plo o conto de Perrault, A bela adormecida, para 0 qual dispomos. desde o comeso, de diversos modos de existéncia editorial: Trata-se de substituir 0 conceito de texto concebido como unidade fechads sobre si mesma e acabada por um conceito de texto em variacdo, submetido a diversas edicdes das quais resultam estados sucessivos, identificaveis e rea~ grupaveis em corpus. Para A bela adormecida, ser publicado no Mercure ga- lant de fevereiro de 1696 (12) € aparecer em um. co(n)texto sociodiscursivo (D2) muito diferente de A bela adormecida (T1), primeiro conto do sofistica- do manuscrito dos Contes de Ja mére Loye de 1695, enviado a sobrinha do rei da Franca: contexto (D1) ele proprio muito diferente daquele de A belo adormecida (T3), primeiro conto das Histoires ou Contes du temps passe publicado por Barbin em 1697 (D3) (Adam e Viprey, 2009: 20). Além disso, neste caso, a variagao é limitada; ela pode ser Te ferida a iniciativa do proprio autor, no caso, Charles Perrault. Mas quando se trata de textos recopiados, reeditados, adaptados... duran te longos periodos e que circulam por areas muito vastas mediante géneros muito diversos, as coisas se tornam muito complexas: qual é + Retomaremos esta questiio na terceira parte, no capitulo 15. 3B parte | - Estudos de discursa ¢ andlise do discurse texto que corresponde aos milhares de edigdes de A bela adormecida ou de Cinderela, surgidas no planeta desde 0 século XVII, quando se sabe que esta contagem nfo cessa de ser modificada? Ha casos piores: a propria nocdo de “texto” é historicamente variavel: O conceito de texto, ligado ao participio passado do verbo texere (textus: 0 que ¢ tecido, trancado), possui uma conotagao de fixidez € de fechamento estrutural que nao corresponde nem a realidade da escrita medieval nem & das obras do Renascimento (Adam e Viprey, 2009: 11-12). Como veremos (infra, parte II, capitulo 14), 0 pressuposto de que 0 texto constitui uma unidade fechada e estavel ¢ atualmente posto em questio pelo funcionamento da Web, por razdes completamente diferentes. O desenvolvimento de técnicas de registro da imagem e do som a partir do final do século XIX levou essas dificuldades ao paroxis- mo. A materialidade do texto se tornou plural. Hoje, um pronuncia- mento politico pode se manifestar ao mesmo tempo por uma forma impressa, por um enunciado em um site da Web, por uma gravacao em 4udio veiculada por uma radio, por um video em um site de com- partilhamento, por um pvp... Sem falar das verses em numero inde- terminado que foram realizadas por cimeras ou gravadores desse ou daquele espectador ou ouvinte. 3.3 © Texto e corpus Destacamos trés grandes areas de emprego de “texto” que, por razées diferentes, interessam, todas trés, A andlise do discurso. Esta nao pode estudar textos, a nao ser que sejam convertidos em corpus. Um corpus pode ser constituido por um conjunto mais ou menos vas- to de textos ou de trechos de textos, até mesmo por um Unico texto. A diferenga entre texto e corpus é essencial. Ela marca a fronteira entre, de um lado, as praticas de comentario tradicionais que tentam interpretar textos legados por uma tradigio ¢, de outro, as aborda- gens em termos de discurso, que se pretendem resultado das ciéncias humanas e sociais. Os analistas do discurso nao estudam obras; cles constituem corpora, eles retinem os maieriais que julgam necessarios 3. ~ Discurso, texto, corpus 39 para responder a esse ou aquele questionamento explicito, em fun- ao das restricdes impostas pelos métodos aos quais recorrem. Desse modo, analistas do discurso se afastam do modelo da leitura empa- tica, do “contato vivo” com um texto conereto, que seria rico de um sentido inesgotavel. Aqui, se impde uma distingdo entre os corpora que agrupam tex- tos previamente existentes e os corpora que resultam de uma trans- cricio. Uma carta, um jornal impresso, um livro... sio textos pré- vios; por outro lado, uma conversa, um debate na TV sé existem como textos em um corpus porque foram recortados e transcritos segundo certas convengoes. E o que sublinha B. Johnstone: Capturando textos escritos instaveis em um momento particular ou gra- vando ¢ transcrevendo discurso nao escrito, nds [hes damos caracteristicas de livros ou de outros textos prototipicos: fazemos deles objetos fisicos; fixamos sua estrutura; nds os convertemos em escritos, quando se trata de discurso oral; damos-Ihes fronteiras, Textos desse tipo no existem indepen- dentemente da escolha dos analistas do discurso em relagao a forma de os “textualizar" (2008; 20). Em fungao de seus objetivos e dos meios de que o pesquisador dispée, a mesma atividade verbal pode, assim, dar lugar a um nti- mero ilimitado de “textos” diferentes, isto é, a transcrig6es distintas, destinadas a entrar em um corpus. Essas préprias transcricSes podem se tornar textos-arquivo, objetos de estudo, por exemplo, no quadro de uma pesquisa que incidiria sobre as praticas desses ou daqueles analistas do discurso. Com a utilizago crescente da informatica, distanciamo-nos cada vez, mais de uma concepgao dos textos como totalidades dadas que poderiam ser apreendidas por uma leitura atenta e justapostas nas bibliotecas. O crescimento incessante da poténcia dos computadores e da capacidade de armazenamento possibilita a integracdo de quan- tidades gigantescas de textos em enormes bases de dados, material a partir do qual muitos corpora podem ser elaborados pelos pesquisa- dores. Cada vez mais, estes so levados a trabalhar com dados selecio- nados e tratados para se tornarem corpus. O estatuto de intermedia- tio incontornavel assim conferido as bases de dados, situadas entre os textos produzidos no interior de atividades discursivas e os corpora 40 Parte | - Estudos de discurso ¢ andlise da discurso de pesquisa, levanta problemas quanto 4 escolha dos textos selecio- nados, ao processamento a que os submetemos para armazené-los ¢ classificd-los, a maneira pela qual so disponibilizados. Nesse nivel, intervém inevitavelmente questdes politicas, como o mostram, por exemplo, os debates provocados pelo arquivamento sistematico dos impressos ao qual o Google se dedica em escala planetaria. A dupla formada por discurso e texto remete a uma polaridade constitutiva de todo estudo da comunicagao verbal: a fala se apresen- ta ao mesmo tempo como uma atividade e como uma configuragaio de signos a analisar. Bastam transformagGes ideolégicas ou inova- des tecnolégicas (as duas estao, em geral, associadas) para modificar profundamente as condigées da textualidade e, consequentemente, a relacaio entre texto e discurso. Ela deve ser levada em conta em cada tipo ou género de discurso que se estuda, em fungéo das questOes que 0 pesquisador se pde e de suas escolhas metodolégicas. Discurso, texto, corpus 41 As disciplinas do discurso Awxris mismo de analisar 0 espaco de pesquisa consagrado ao discur- so utilizando categorias como “disciplina”, ‘abordagem’, “corrente”..., é preciso nomeé-lo. Ora, nesse ponto, a situacao € confusa. Em es- cala internacional, nos manuais de introdug&o ou nas antologias, € claramente o termo “andlise do discurso” (“discourse analysis") que domina. Mas vimos desenvolver-se também, com base no modelo dos “studies” anglo-saxOnicos (“gender studies”, ‘gay studies” etc.), 0 uso do termo “discourse studies’, cujo plural abrangente permite agrupar pesquisas extremamente diversas. Para analisar essa diversidade, procede-se em geral de duas maneiras: ou se enumera um grande nimero de “abordagens” do discurso, apoiando-se em uma concep¢ao muito pouco restritiva do que seja uma “abordagem”, ou se estrutura o campo em torno de alguns grandes principios de divisio: é a segunda opgao que vamos privilegiar. 1 Bsse é, alids, o titulo de uma das principais revistas da area: Discourse Studies, dirigida por T. van Dijk e publicada pela Sage (Londres), Na América Latina, os discursivistas se agrupam na ALED (Associacio Latino-Americana de Estudos do Discurso). No momento, em eseala internacional, é “analise do discurso” que domina amplamente; uma pesquisa no Google (12 de maio de 2015) da 315.000 ocorréncias para “discourse stuiies” © 2.990.000 para “dis- course analysis” 43 4.1 ¢ As abordagens A primeira maneira de gerir a diversidade desse imenso campo con- siste, como dissemos, em estabelecer uma lista aberta de “abordagens”. £0 caminho mais comumente empregado pelos manuais. Por exemplo: Este livro ¢ uma introdugao a uma abordagem da andlise do discurso (analise do uso da lingua). Ha numerosas abordagens em andlise do discurso [...]; nenhuma, esta incluida, é a Unica "verdadeira’. (Gee, 2005: 5) Mais que em “abordagens”, alguns preferem falar de “abordagens metodologicas”, outros, de “métodos”, cujo sentido é equivalente. Assim, o manual de S. Titscher, M. Meyer, R. Wodak e E. Veter (2000), Methods of Text and Discourse Analysis, transforma os “mé- todos” anunciados no titulo em doze “abordagens”. Por sua vez, M. Stubbe et al. (2003) testam cinco “abordagens” (“conversation analy- sis”, “interactional sociolinguistics” [Gumperz], “politeness theory” [Brown e Levinson] “critical discourse analysis”, “iiscoursive psycho- logy” [Potter e Wetherell] a partir de um mesmo fragmento de con- versacado: nove minutos de uma entrevista entre um homem e uma mulher em seu local de trabalho na Nova Zelandia. Mas esses autores também evocam a possibilidade de recorrer a outras “abordagens”, entre as quais a pragmatica, a teoria dos atos de fala, a linguistica sist¢mico-funcional®, a semidtica, a proxémica® e “diversos tipos de anilise retérica, estilistica, semAntica e narrativa” (2003: 351). Este modo de apresentagao segundo abordagens tem o mérito de nao ser dogmatico, mas ele suscita dificuldades. De fato, * ele induz a uma concepeio discutivel dos estudos de discur- so: a de um vasto mercado em que seria proposta aos pesqui- sadores uma multiplicidade de “abordagens”, entre as quais eles fariam suas escolhas em fungao de suas necessidades; 2 Trata-se do modelo de lingua elaborado pelo linguista britanico M. A. K. Halliday (nascido em 1925) nos anos 1960-1970. A proxémica é 0 estudo da proxémia, isto 6, da distaneia fisica variivel segun- do as culturas, que se estabelece entre as pessoas envolvidas numa interagao. Suas bases foram propostas pelo antropdlogo Edward T. Hall (1966). Distinguem-se ha- bitualmente quatro “zonas” de proximidade: intima (para beijar, cochichar), pessoal (para os amigos), social (para os conhecidos) e publica. 44 Parte | - Estudos de discurso € andlise do discurso © pode dar a impressio de que existiria um objeto estavel — os da- dos — analisivel por meio de diversas “abordagens” que enfati- zam um ou outro aspecto. O problema é que os “dados” nao sao independentes das abordagens que os estudam; cada aborda- gem contribui de maneira decisiva para construir seus corpora: * essas “abordagens” recobrem, de fato, realidades muito he- terogéneas. Na lista proposta pelo manual Methods of Text and Discourse Analysis, por exemplo, encontram-se as vezes verdadeiras disciplinas (como é 0 caso da semiotica ou da es- tilistica), correntes de estudos do discurso (etnografia da co- municacao, andlise eritica do discurso...), modelos do funcio- namento da lingua (caso da linguistica sistémico-funcional), componentes de toda interagao verbal (proxémica, polidez, atos de fala...), concepgdes da linguagem, que nao sao pro- prias de uma corrente (a pragmatica). 4.2 © Das abordagens as disciplinas Parece-nos, entio, mais de acordo com a realidade da pesquisa no submeter tudo ao termo muito pouco especificado de “aborda- gem”. Pode-se, assim, explorar a distingao entre “estudos de discurso”, que designa o conjunto das pesquisas vinculadas as problematicas do discurso, e “andlise do discurso”, conferindo a esta ultima um sentido mais restritivo. Numerosos especialistas apoiam-se nessa distingao entre estudos de discurso e analise do discurso, mas nem todos eles tém a mesma concepeao da especificidade da andlise do discurso. A maneira mais simples de marcar esta especificidade é sublinhar que a analise do discurso confere uma atengo particular aos fatos de lingua. 0 que distingue a andlise do discurso de outros tipos de estudo que inci- dem sobre a linguagem e a comunicagao nada tem a ver com as questdes que os analistas do discurso formulam, mas com a maneira pela qual eles se esforgam para responder a elas: analisando 0 discurso — isto €, exami~ nando aspectos da estrutura ¢ da func3o da lingua tal qual ela é utilizada Uohnstone, 2008: 4). Mas tal caracterizagao da analise do discurso ¢ pouco especifica- dora. Ela nfo diz nada sobre a perspectiva adotada pelo pesquisador 4 ~ As disciptinas do discurso 45

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