You are on page 1of 6

AGRUPAMENTO DE ESCOLAS AURÉLIA DE SOUSA

Ano Letivo 2022 / 2023


2
Português 12º ano

NOME: _____________________________________________ TURMA: ___________

FICHA INFORMATIVA

PESSOA ORTÓNIMO – A DOR DE PENSAR

Análise do poema “A Ceifeira”

Esta composição poética pode ser dividida em duas partes lógicas. Na primeira
parte, constituída pelas três primeiras estrofes, o eu lírico descreve a ceifeira e
sobretudo o seu canto, canto instintivamente alegre. Esta descrição seria objetiva, se o
sujeito não introduzisse aqui a sua perspetiva: o canto da ceifeira era “alegre” porque
talvez ela se julgasse feliz, mas ela era “pobre” e a sua” voz cheia de anónima viuvez”.
Por isso, “ouvi-la alegra e entristece”: alegra se atendermos às razões instintivas da
ceifeira, entristece se a virmos na perspetiva total do eu lírico. Há, pois, já, nesta primeira
parte, um grau de subjetividade do sujeito que vai adensar-se no segundo momento.
Na segunda parte, o eu poético exprime a sua emoção perante a canção
inconscientemente alegre da ceifeira. Podemos, ainda, subdividir esta segunda parte em
dois momentos. Primeiramente, é lançado um apelo à ceifeira para que continue a
cantar a sua canção inconsciente, porque esta emoção o obriga a pensar, e a desejar ser
ela, sem deixar de ser ele, e ter a sua “alegre inconsciência e a consciência disso”. Note-
se que o sujeito aspira ao impossível, pois ter a consciência da inconsciência é deixar de
ser inconsciente!
O sujeito lírico, ciente desta impossibilidade (a ciência pesa tanto!), lança uma
apóstrofe ao céu, ao campo, à canção, personificados, pedindo-lhes que entrem dentro
dele, o transformem na sombra deles e o levem para sempre. Paira aqui aquela dor de
pensar tão habitual nos poemas de Fernando Pessoa. Mais um paradoxo do grande
poeta, o qual, tendo sido o que mais se serviu da inteligência, se sentiu um ser torturado,
por ser um ser pensante, daí a sua aspiração pela alegre inspiração da ceifeira.
A nível morfossintático, nas três primeiras estrofes, o tempo verbal
predominante é o presente, que projeta a voz doce da ceifeira, deslizando suavemente
na imaginação do eu poético que nela medita. A própria repetição das formas do
presente (canta - três vezes; ondula) sugere a imagem da ceifeira a cantar a deslizar na
imaginação do eu.
Na segunda parte do poema, predomina o imperativo para traduzir o apelo do
eu poético, em nítida função apelativa da linguagem, e também o infinitivo com valor
optativo. Note-se a expressividade do gerúndio, na frase apelativa: "Derrama no meu
coração a tua incerta voz ondeando" (o sujeito lírico desejava a voz da ceifeira ondeando
perpetuamente na sua imaginação).
Na primeira parte do poema, por ser essencialmente descritiva, há mais adjetivos
que na segunda, na qual predominam os nomes, pronomes e verbos, de harmonia com
a função apelativa da linguagem que aí é predominante. A repetição do verbo "cantar "
(sete vezes), do nome voz e canção, o uso do verbo ouvir, colocam a sensação auditiva
no âmago emocional do poeta.
O vocabulário do poema é todo ele simples, não ultrapassando em si os limites
da norma. Mas o sujeito soube carregar de sentidos subtilmente sugestivos as palavras
mais simples. Assim, observemos a expressividade dos adjetivos: “pobre ceifeira”,” feliz
talvez”,” voz cheia de alegre e anónima viuvez”. Notemos os dois pares antitéticos:
“pobre” /” feliz”; “alegre” /” anónima”. Estas relações justificam-se porque cada um dos
pares tem de um lado a visão parcial da ceifeira, e por outro a visão total do sujeito
poético: a ceifeira era feliz e alegre como uma ave pode ser feliz e alegre, inconsciente
do seu mal; o eu via a sua pobreza, duvidava da sua felicidade (“feliz talvez”) e sentia na
sua voz uma “alegre e anónima viuvez”.
Note-se que o signo “viuvez” é vulgarmente tomado como símbolo de
desamparo e tristeza. É evidente a amarga ironia que a expressão antitética "alegre e
anónima viuvez" e o advérbio talvez posposto a feliz, projetam sobre a ceifeira e o seu
canto, na primeira quadra.
Os dois adjetivos da segunda quadra (ar limpo e enredo suave) não se podem
desligar um do outro: o ar é limpo para que nele perpasse a voz suave de ceifeira; a voz
cristalina da ceifeira volteia o céu igualmente cristalino. Atente-se na expressividade
plurissignificativa do adjetivo incerta, na expressão " incerta voz". O adjetivo está
carregado de subjetividade do eu, pois para ele a voz era ao mesmo tempo alegre e
triste. O adjetivo alegre ("a tua alegre inconsciência"), apontando para a parcialidade do
conhecimento que a ceifeira tinha da sua vida, está carregado de amarga ironia: o eu
desejava a inconsciência da ceifeira por ser (para ela) a única causa da sua alegria. Note-
se finalmente, a subtil expressividade do adjetivo leve (“a vossa sombra leve”, sugerindo
leveza, a quase imaterialidade desta visão-sonho que o eu teve da pobre ceifeira). Para
exprimir a imaterialidade, a subjetividade dessa visão poética, há ainda comparações e
metáforas. A comparação: "a sua voz...ondula como um canto de ave" aponta não
apenas para a suavidade da voz, mas também para o muito de instintivo, de inconsciente
que tem a alegria da sua voz. "No ar limpo como um limiar" acentua a pureza do ar, do
céu em que o sujeito imagina a voz da ceifeira volteando: a pureza da voz da ceifeira
projeta-se no ambiente em que ela se propaga.
Notemos, agora, a expressividade das metáforas: "...a sua voz ondula" (como se
ela enchesse o ar e este fosse o mar); "Na sua voz há o campo e a lida" (como se o
perfume do campo e a grácil agitação do seu trabalho enchessem a sua); " E há curvas
no enredo suave do som" (a sugerir a melodiosa harmonia da sua canção. "Derrama no
meu coração"(como se a sua voz fosse um líquido delicioso de que o eu queria ser
alagado); "a ciência pesa tanto" (conotando com a dor de pensar).
Para exprimir a contradição entre a alegria da ceifeira e o seu trabalho duro, e as
consequentes sensações opostas que ela operava nele, o eu emprega várias antíteses:
“pobre” / ”feliz”; “alegre” / ”anónima”; “Alegre/entristece”, e os paradoxos "Ah! Poder
ser tu, sendo eu!"; "Ter a tua alegre inconsciência e a consciência disso". Repare-se
quanta emoção e expressividade há nas personificações "voz cheia de alegre e anónima
viuvez", "Ó céu, ó campo, ó canção!"; o sujeito serviu -se, também do pleonasmo "entrai
por mim dentro". Note-se a beleza da última estrofe: depois da referência ao peso da
ciência e à brevidade da vida, sugere-se muito subtilmente, o desejo de se evolar na
sombra leve da ceifeira, que também desaparece.
A nível fónico, foi usada a quadra, desta vez de harmonia com o assunto simples,
embora intelectualizado, notando-se várias vezes o transporte entre pares de versos e
entre estrofes à maneira da atafinda trovadoresca. A rima é sempre cruzada, segundo o
esquema rimático ABAB, rima sempre consoante, com exceção dos versos lº e 3º da
primeira estrofe, em que se verifica rima toante. Note-se o som aberto da rima na última
estrofe, sugerindo talvez a limpidez e a claridade do céu a que o eu. A comprovar a
variedade sonora do poema, de harmonia com o canto da ceifeira, há ainda os
frequentes casos de aliteração.
Os versos são de oito sílabas, notando-se, no entanto, uma certa fluidez na sua
medida: há uma certa dificuldade em considerar alguns dentro da métrica de oito
sílabas. O ritmo, no geral binário, apresenta-se repousado, de harmonia com a
suavidade do canto da ceifeira.

Análise do poema “Gato que brincas na rua”

À semelhança do que faz em "Autopsicografia", Pessoa parte de uma imagem,


de uma cena do quotidiano, neste caso um gato a brincar na rua. Além disso, o poema
recorda-nos "Tabacaria", nomeadamente o momento em que a sua atenção se centra
na rapariga que come chocolates, absorta do resto do mundo. Ora, sucede que é esta
ausência de preocupação que o espanta, intriga e lhe desperta a «inveja» que espelha
no poema em análise.
O assunto da composição poética é o seguinte: o sujeito poético interpela um
gato e constata que este é feliz porque é inconsciente / irracional.
O tema do poema é, mais uma vez, a dor de pensar, motivada pela
intelectualização do sentir, do qual decorrem outras temáticas caras ao poeta: a
felicidade de não pensar; o isolamento do «eu» face às «pedras e gentes»; a inveja
sentida pelo sujeito poético relativamente à inconsciência do animal; o
desconhecimento, a sensação de estranheza do «eu» em relação a si.
O poema abre com a apresentação da referida situação de um gato que o
sujeito poético observa a brincar na rua como se fosse na cama (comparação que
enfatiza o à-vontade e o conforto que o gato sente na rua, a sua casa; salienta também
o caráter intuitivo do animal, que não lhe permite ter consciência das inconveniências e
dos perigos que corre). Esta circunstância coloca-nos desde logo na presença de um
animal feliz (porque está a brincar) e ao mesmo tempo tranquilo, despreocupado,
indiferente e inconsciente do perigo (novamente a comparação «como se brincasse na
cama») por ser irracional, não pensar. Por outro lado, sugere-se que o gato age no
exterior e no contacto com os outros («na rua» - v. 1) com a mesma naturalidade com
que brinca na cama, na sua «intimidade». Assim, o sujeito poético sugere que o gato
não age segundo quaisquer convenções, antes vive apenas de acordo com a sua vontade
e os seus instintos próprios de animal irracional. Além disso, tem «sorte», a sorte de ser
inconsciente dos perigos, de ser irracional e não pensar, por isso cumpre o seu destino
sem se lhe opor minimamente, não o questionando (v. 5), cumprindo assim, no fundo,
a ambição de Ricardo Reis, que é a de sentir o destino como algo inevitável.
O verso 4 (“Porque nem sorte se chama”) sublinha a ausência de intelecto no
gato: só o facto de atribuirmos um nome ou fazermos um juízo acerca de uma realidade
pressupõe o uso do pensamento, capacidade que o gato não possui, logo “nem sorte se
chama”.
Como não pensa, é o «nada», mas é-o plenamente e é feliz, porque não se
conhece, regendo-se pelos seus «instintos gerais». «Todo o nada» que o gato é, porque
não pensa no que é, pertence-lhe, já que depende exclusivamente dos seus sentidos. Ao
contrário do que sucede com o sujeito poético, no gato predomina o sentir sobre o
pensar: o animal não tem consciência do que sente, limita-se a sentir (v. 8). Em suma, é
feliz «porque [é] assim», isto é, irracional, inconsciente, porque age por instintos. De
facto, o gato rege-se por “leis fatais”, tem “instintos gerais” e apenas usa os sentidos (“E
sentes só o que sentes”). Assim, ao andar ao sabor do destino, orienta-se pelos seus
instintos, sem intervenção da razão.
O gato aceita calmamente o destino (v. 5), age apenas por instintos gerais (v.
7), isto é, comandado apenas pelos sentidos (v. 8), assim conseguindo ser feliz (v. 9).
Por seu lado e perante este quadro, o sujeito poético não esconde a sua
admiração e inveja relativamente à sorte do gato, ou seja, da sua liberdade, da sua
felicidade, da sua irracionalidade, de ser inconsciente, de viver sem preocupações e
poder brincar sem pensar em (mais) nada, o que é equivalente a dizer que inveja o gato
pela felicidade simples resultante da vivência plena das coisas sem pensar, isto é, por
causa da sua irracionalidade. O sujeito poético inveja a sorte do gato que, na realidade,
nem «sorte se chama», isto é, não se trata de sorte, dado que são as leis da natureza
que permitem ao felino ser um ser inconsciente feliz. Pelo contrário, ele tem a
consciência plena de que é infeliz, ideia que é acentuada pela observação do gato e do
seu comportamento, pois pensa-se, ao contrário do animal, daí que revela também
angústia, tristeza e desolação por não conseguir abolir o pensamento (= porque se rege
pela consciência e pelo pensamento) e, dessa forma, ser igualmente feliz. De facto, ele
é um ser dominado pela racionalização, em busca constante de autoconhecimento, tudo
racionaliza, transforma as sensações em pensamentos, daí a sensação de estranheza
face a si mesmo.
Nos dois versos finais, o sujeito poético constata que se diferencia do gato por
não se dominar completamente, uma vez que transforma permanentemente as suas
emoções em pensamentos. Por isso, sente-se estranho face a si mesmo. O paradoxo
neles presente remete para a complexidade e confusão interiores e para a
despersonalização: ao ser muitos, o sujeito poético acaba por se desconhecer a si
próprio. A permanente auto-observação e a necessidade de se conhecer conduzem-no
à fragmentação e à despersonalização.
Podemos, em suma, afirmar que o sujeito poético inveja o gato por três razões:
1.ª) Tem "instintos gerais" e sente só o que sente, ou seja, não pensa sobre o que está a
sentir, limita-se a sentir;
2.ª) É "um bom servo das leis fatais", isto é, não tenta contrariar as etapas inevitáveis da
existência: nascimento, crescimento e morte;
3.ª) "Todo o nada que és é teu", ou seja, ao contrário do sujeito poético, o gato não
pensa, não se questiona.
Assim, esta dor de pensar que o tortura leva-o a desejar ser inconsciente como
a ceifeira e como o gato, que não pensam.
Por outro lado, podemos sintetizar a caracterização do gato da seguinte forma:
▪ Age por instinto / é instintivo.
▪ É livre e feliz, vivendo despreocupado, porque se rege pelo instinto e pela inconsciência
e irracionalidade.
▪ “Bom servo das leis fatais”, cumpre o seu destino sem se lhe opor minimamente, não
o questionando.
▪ Vive só por viver, sem saber por que vive, limitando-se apenas a sentir.
▪ Vive de acordo com as leis da natureza.
▪ Não se questiona.
Por sua vez, o sujeito poético:
▪ Admira e inveja a “sorte” do gato, isto é, a sua felicidade, a sua irracionalidade, a sua
inconsciência.
▪ É infeliz, porque pensa, racionaliza, é consciente.
▪ Reflete sobre si mesmo e é vítima da dor de pensar, o que gera nele angústia.
▪ É dominado pela racionalização, em busca permanente de autoconhecimento.
▪ Por isso, sente-se estranho relativamente a si mesmo, acabando por afirmar que se
desconhece.
▪ A permanente auto-observação e a necessidade de se conhecer conduzem-no à
fragmentação e à despersonalização.
O contraste entre o sujeito poético e o gato é claro: o animal é feliz porque é
inconsciente e irracional (“Todo o nada que és é teu”), enquanto o «eu», devido à sua
racionalidade e introspeção (“Eu vejo-me”; “Conheço-me”) mostra-se fragmentado,
despersonalizado, revelando angústia, infelicidade e sofrimento. O pensamento, a
racionalidade provoca dor e angústia, daí a inveja sentida pela vida do gato e o desejo
desse evadir de si próprio.
É possível relacionar (intertextualidade) este poema com “Ela canta, pobre
ceifeira”. De facto, ambos os poemas possuem o mesmo tema: a dor de pensar. Por
outro lado, tal como o sujeito poético gostaria de ser inconsciente como a ceifeira para
poder ser feliz, também desejaria ser feliz como o gato, que apenas sente (“sentes só o
que sentes”), ao contrário do que se passa consigo próprio, que racionaliza e, por isso,
sofre.
A nível formal, o poema é constituído por três quadras, num total de 12 versos
de redondilha maior (versos de 7 sílabas métricas). A rima é cruzada, segundo o
esquema ABAB.
Morfologicamente, predominam o nome e o verbo no presente do indicativo
(traduzindo a factualidade da situação apresentada), escasseando os adjetivos («fatais»,
«gerais», «feliz»).
Estilisticamente, a apóstrofe e a comparação dos versos 1 e 2 («Gato que
brincas na rua / Como se fosse na cama») traduzem a despreocupação do gato por se
tratar de um animal irracional, que se comporta “na rua”, ou seja, no exterior e no
contacto com os outros, com a mesma naturalidade com que procederia “na cama”,
realçando-se assim a ausência de convenções na atuação do bicho, que vive apenas
segundo a sua vontade e os instintos próprios de animal irracional. A personificação do
gato acentua o contraste entre a inconsciência do animal e a consciência do sujeito
poético, que lhe provoca dor – a dor de pensar. A metáfora «Bom servo das leis fatais»
remete para a inconsciência do gato, o seu caráter instintivo e a aceitação calma do
destino. As antíteses são diversas e giram todas em torno da oposição gato (guiado pelos
instintos, livre e feliz) / sujeito poético (angustiado, infeliz e torturado pela dor de
pensar, porque guiado pelo pensamento): consciência / inconsciência, pensar / sentir;
prisão / liberdade, angústia / alegria, felicidade / infelicidade. Todas elas apontam para
as diferenças entre o sujeito poético e o gato. O paradoxo que finaliza o poema («Eu
vejo-me e estou sem mim, / Conheço-me e não sou eu.» - vv. 11-12 e vv. 9-12) sugere
a procura do autoconhecimento, a racionalização e a estranheza face a si mesmo,
porque despersonalizado e fragmentado, e realça a oposição entre a inconsciência do
gato e a consciência do sujeito poético.
O vocabulário é simples e com valor denotativo. Por último, nota para as
orações subordinadas causais:
. «Porque nem sorte se chama» (v. 4): a justificação da inveja da sorte do gato, pelo facto
de este desconhecer o significado de sorte;
. «Que tens instintos gerais» (v. 7): apresenta a razão de o gato ser um cumpridor do
destino;
. «És feliz porque és assim» (v. 9): traduz a razão da felicidade do gato (sentir).

You might also like