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que, por certo, os adultos nado sentissem a dor que nos, os pequenos, sentiamos, mas também desconfiava de que the haviam ensinado aquela coragem misteriosa de que eu tanto precisava. Talvez nao fosse esperar demais que um dia “eles” me levassem a um canto e me ensinassem como ser homem. Imaginava que isso se daria ao ingres- sar no segundo grau. Embora nada conhecesse a respeito da puberdade, via que as pessoas no segundo grau tinham 0 corpo mais avantajado, que pareciam encontrar-se do lado adulto do grande abismo. Entretanto, para surpre- sa minha e desapontamento que perdura até os dias de hoje, “eles” nunca me levaram a um canto para me dizer o que significa ser homem, nem me ensinaram a compor- tar-me como adulto. Hoje, é claro, compreendo que “eles”, os chefes tribais da nossa época, tampouco sabiam o que significa ser ho- mem. Também nao haviam sido iniciados e mal conse- guiriam transmitir os mistérios e o conhecimento liber- tador de que eles préprios careciam. A minha maneira hesitante, percebera a necessida- de dos ritos de passagem da infancia para a idade adulta. Esses ritos envolvem nao apenas a transigéo das depen- déncias da infancia para a auto-suficiéncia da idade adul- ta, como também a transmissao de valores, como a quali- dade e o cardter da cidadania, e as atitudes e as crencas que ligam a pessoa aos seus deuses, A sociedade e a si mesma. No entanto, esses ritos de passagem definharam e desapareceram ha muito tempo. “JA se disse muitas vezes”, observa Mircea Eliade, “que uma das caracteris- ticas do mundo moderno é o desaparecimento de ritos significativos de iniciagao”."' Até a expressdo “rito de ini- ciagao” ou “rito de passagem” talvez nfo se compreenda em nossa 6poca. “Rites and symbols of initiation, p. TX. 22 O rito é um movimento em e para a profundidade. Os ritos nfo so inventados; sAo encontrados, descober- tos, vivenciados e surgem a partir do encontro arquetipico com o profundo. O objetivo do ato simbélico que o rito en- cena é conduzir ou retornar a experiéncia da profundida- de. Claro que, repetidos, os ritos perdem a capacidade de apontar para além de si mesmos, rumo a essa profundi- dade, tornando-se vazios e estéreis. No entanto, nossa necessidade do encontro profundo persiste. Em A vida simbélica, Jung comenta como é importante para a tribo de indios pueblo considerar que seus rituais ajudem no nascimento do sol: ‘Traz paz as pessoas, quando sentem que estado yivendo a vida simbdlica, que sao atores no drama divino. EF isto que confere o tinico significado & vida humana; tudo o mais é banal e descartavel. Seguir uma carreira, gerar filhos, tudo isso é maya, se comparado aquela tinica coisa, que sua vida tem significado.” Sem ritos significativos, carregamos a mais doloro- sa das feridas da alma — a vida sem profundidade. Da mesma forma, a idéia da passagem é essencial, pois to- das as passagens implicam o fim de algo, algum tipo de morte, e 0 inicio de algo, algum tipo de nascimento. So- mente a morte 6 estatica; o principio da vida é a mudan- ca, e temos de passar por muitas mortes e renascimentos para levarmos uma vida significativa.” A iniciagdo im- plica ingressarmos em algo novo, algo misterioso. Considerando o fato de que os ritos de passagem de- sapareceram em grande parte da nossa cultura, cabe aos homens refletirem como individuos a respeito do que era oferecido por esses ritos. Somos, portanto, obrigados a “The symbolic life, CW 18, par. 630. “Ver meu livro, The middle passage: from misery to meaning in midlife (trad. bras.: A passagem do meio, Paulus). 23 descobrir por nés préprios o que nao nos esta disponfvel através da nossa cultura. Apesar da variedade de cultu- ras, e do contetido local especifico, os estagios arquetipicos desses ritos de passagem eram extraordinariamente se- melhantes. Parece que nossos antepassados conheciam por intuicado a importancia dessas separacées e evolugdes da personalidade, e compreendiam juntos que esses pro- cessos eram necessdrios. A duracdo, intensidade e firme- za desses ritos eram diretamente proporcionais a dificul- dade de deixar a infancia e crescer de fato. Como poucos na nossa cultura conseguiram, psicologicamente falan- do, separar-se e crescer, pode ser bastante Util para nés refletirmos um pouco sobre os estagios da experiéncia iniciatéria. Repito que cabe a nds como individuos reali- zar 0 que nado nos é proporcionado pela nossa cultura. Nao podemos evitar a tarefa através da ignorancia, por- que, caso contrdrio, o processo de desenvolvimento, o de nos tornarmos homens, permanecera irrealizado. Esses padrées de passagem resumem-se em seis es- tagios. Embora o contetido de cada estdgio variasse de acordo com os costumes locais, os est4gios propriamente ditos eram explicitos ou estavam implicitos nos diversos padrées culturais. O primeiro estagio da passagem era a separacéio, a separacao fisica dos pais a fim de dar inicio 4 separacgdo psicolégica, Essa situagAo nunca era questao de escolha para o menino. Amitide, no meio da noite, ele era “rapta- do” dos seus pais pelos deuses ou deménios, os homens mais velhos da tribo que usavam mascaras ou pintavam 0 rosto. Essas mascaras afastavam-nos da esfera fami- liar de vizinhos ou tios, conduzindo-os 4 condig&o de deu- ses ou forgas arquetipicas. A rudeza, a violéncia até, da separacdo tinha a finalidade de lembrar que nenhum jo- vem renunciaria de bom grado ao conforto do lar. Seu aconchego, protecdo e carinho geram enorme atragao 24 I f b I L [ gravitacional. Permanecer no lar, quer literal quer figu- rativamente, significa continuar crianga e renegar o pré- prio potencial como adulto. Por conseguinte, o segundo estagio da passagem era a morte. O menino era enterrado, conduzido através de um timel escuro e lancado em uma escurid4o literal ou simbélica. Embora a experiéncia fosse por certo aterrorizante, o jovem estava, na verdade, passando pela morte simbdélica da dependéncia infantil. Estava vivenciando a perda do lar. “Vocé nao pode voltar para casa.” Era a perda da inocéncia, a perda da ligagao edénica da infancia. Ao “morrer”, a crianca desperta para o re- canto para sempre abandonado da terra sem criangas, como 0 expressou Dylan Thomas." A vida segue-se necessariamente 4 morte. Portanto, o terceiro estagio era a ceriménia de renascimento. Algu- mas vezes, a mudanca de nome acompanhava esse re- nascimento, reforcando o surgimento de um novo ser. (O batismo cristao por certo simboliza esse tema de morte e renascimento com seu retorno as dguas umbilicais. A cris- ma dos catélicos romanos e 0 bar mitzvah dos judeus sao remanescentes desses ritos histéricos.) O quarto estagio de iniciacdo tipicamente envolvia os ensinamentos, transmitindo o conhecimento necessa- rio para que o jovem atuasse como adulto. Esses ensina- mentos eram de trés tipos diferentes. As habilidades pra- ticas, como a arte da caca, da pesca, da defesa e do pasto- reio eram criticas, pois o homem que nascia deveria aju- dar a sustentar e proteger sua sociedade. Os privilégios e as responsabilidades da idade adulta e da cidadania eram transmitidas de forma semelhante. E, por fim, ocorria a introdugfo aos mistérios, para que o jovem adquirisse o senso de uma base espiritual e participasse da esfera "Fern Hill”, em Collected Poems, p. 180. 25 transcendental. “Quem séo nossos deuses?” “Que tipo de sociedade, leis, ética, dons espirituais eles conferem?” Situar o jovem no contexto mftico proporcionava-lhe identidade, dava-lhe uma idéia da estrutura maior da qual participava e aprofundava sua alma. Caracterizariamos 0 quinto estagio como a provacdo. Embora variasse 0 teor das praticas, exigia-se do jovem 0 sofrimento na separacao do conforto e da protegao do lar. Falarei muito mais a respeito deste assunto adiante; mas © que parece para nés, homens modernos, crueldade gra- tuita, era na verdade sabia percepgaio de que esse sofri- mento estimulava a consciéncia. Esta 86 surge com 0 so- frimento; sem alguma forma de sofrimento, seja fisico, emocional ou espiritual, contentamo-nos em descansar folgazes na antiga ordem, no antigo conforto, nas antigas dependéncias. A segunda razdo para esse sofrimento, francamente, era ajudar 0 rapaz a se acostumar aos ver- dadeiros rigores da vida que ele em breve experimenta- ria. Que se nos afigurem barbaras, praticas como a cir- cuncisio e os sacrificios rituais nao apenas representa- vam o sacrificio dos confortos da carne e das dependén- cias da infancia, mas também eram sinal de aceitagao na companhia dos adultos iniciados. O mais importante, talvez, é que a provagdo em ge- ral envolvia alguma forma de isolamento, um retiro em lugar sagrado, longe da comunidade. A esséncia do ser adulto nao apenas significa que a pessoa j4 nao pode re- cuar em busca de protecio de terceiros, como também que precisa aprender a recorrer aos préprios recursos interiores. Ninguém sabe que os tem enquanto nao é obri- gado a usé-los. O mundo natural é escuro e repleto de estranhos animais e deménios, e o confronto com o pré- prio medo é momento de importancia decisiva. O isola- mento ritual 6 introdugdo a uma verdade fundamental, se- gundo a qual, nao importa quao tribal seja nossa vida so- 26 4 | i

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