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REVISTA DE INTERPRETAÇÃO BÍBUCA

LATINO-AMERICANA

N * 19 - 1994/3

MUNDÓ NEGRO E LEITURA


BÍBLICA

VOZES
li Editor*

fSinodal
PeÍ994liS São Leopoldo
(Lc 6,42) e tomar partido para mudá-la. É um caminho de solidariedade e de conversão
necessário. Sem medo de ser ousado, diria que, em relação ao povo negro, ser solidário
H E ITO R FRISOTTI implica em fazer um salto não só sociopolítico, mas também cultural, racial e religioso,
sob pena de trair a mensagem bíblica e o povo negro.
Para o povo negro no Brasil, a Bíblia é uma ferida, um prato cheio e
uma fonte.

Povo negro e Bíblia - retomada histórica Uma ferida

A Bíblia é uma fenda porque não foi neutra. No período colonial, foi chamada
como testemunha de que Deus estava do lado do Rei, do senhor de escravos, do rico,
do bispo, do branco, do homem. Uma ferida, e uma ferida mortal que procurou matar
a liberdade, a dignidade, a fé e a identidade do povo negro. Aos olhos do homem e
da mulher negra, a Bíblia foi o ferro em brasa, a mordaça, as algemas que os
RESUMO: Antes de falar do que a Bíblia pode significar para o povo negro é necessário lembrar o que mantinham presos no 'doce inferno’ , como era chamado o engenho de açúcar. Por
ela significou na sua história: foi uma ferida, pois foi usada para legitimar a opressão do senhor, do feitor,
do macho, do juiz: do poder branco. Mas ela foi também um prato cheio, do qual foi possível com er força,
isso...
hita, resistência e saborear o amor de Deus pelos últimos, homens e mulheres negras. É, pois, reconhecida
com o uma fonte que mata a sede: uma fonte ainda amarga ou sob seqüestro; às vezes, negada. Uma * A Bíblia tem caia de senhor, pois foi usada para legitimar a espoliação e a
fonte que deve conviver com as outras fontes que Deus doou. escravidão. Os cristãos que chegavam a essas terras apresentavam-se, Bíblia à mão,
Before speaking o f what the Bible m ight mean for Black people, it is necessary to rem ember what it has como povo eleito, dono da terra, dada por Deus, e com o direito de expulsar os povos
meant in their history: the Bible was a wound, used to le0tim ize the oppression o f the master, the
que aqui moravam. Como não encontrar um paralelo entre o Requerimento e Dt
slavedriver, the “m acho” male, the judge: in sum, the pow er o f the Whites. The Bible was also a "full
plate", from which it was possible to feed on strength, the ability to struggle, the pow er o f resistance and 7.17-26?2 Como não traduzir para si, após uma boa safra de engenho, o texto de Js
to savour the love o f God for the least, namely, Black m en and women. H ence it is acknowledged as a 24,13: “Dei-vos uma terra que não exigiu de vós nenhum trabalho, cidades que não
fountain that quenches thirst: a fountain still bitter and under alien control and sometimes denied to them,
a fountain which ought to b e seen as coexisting with the other fountains which God has given.
construístes e nas quais habitais, vinhas e olivais que não plantastes e das quais
comeis”?
Na hora de falar do encontro entre o povo negro e a Bíblia é preciso trabalhar
umas questões preliminares.1 Reconheço que, por certos testemunhos históricos, Assim, para Antônio Vieira (1608-1697), o tráfico de escravos é o cumprimen­
deveria ser chamado mais de desencontro, pois inúmeras vezes assumiu as caracte­ to das Escrituras Sagradas (Salmo 71,4 e 77,32), pois “os portugueses conquistaram
rísticas de um conflito. Não me atrevo, contudo, a julgar e dar uma definição estrita a Etiópia ocidental, e estão cumprindo-se hoje mais e melhor que em nenhuma outra
do que aconteceu: a realidade é muito mais complexa do que imaginamos e sua parte do mundo nesta da América, aonde trazidos os mesmos etíopes em tão
compreensão mais difícil do que pensamos. Prefiro analisar alguns elementos e, a inumerável número, todos com os joelhos em terra e com as mãos levantadas ao céu,
partir deles e com a ajuda de alguns símbolos, tecer algumas afirmações. crêem, confessam e adoram no Rosário da Senhora todos os mistérios da encarnação,
morte e ressurreição do criador e redentor do mundo, como verdadeiro Filho de Deus
Chamaria a atenção, porém, sobre a necessidade de aprofundar e discutir
e da Virgem Maria" (Sermão X IV )3
essas afirmações nas comunidades, nos grupos bíblicos e nos grupos de consciência
negra. Pois elas constituem chaves político-hermenêuticas. Refleti-las pode situar-
nos corretamente no conflito racial - que se manifesta como branqueamento,
2. Assim proclamava-se, a partir de 1513, esse direito aos povos indígenas: “De todas essas pessoas, Deus
preconceito e discriminação, inclusive religiosa, da população afro-brasileira - e encarregou um, que foi chamado São Pedro, para que de todos os homens do mundo fosse senhor e superior (...) e
situar-nos também no conflito das interpretações: ler a realidade sem traves nos olhos lhe deu todo o mundo como seu reino, domínio e jurisdição (...) e julgar e governar todos os povos, cristãos, mouros,
judeus, gentios, e de qualquer outra seita ou crença que fossem. (...) Um dos Pontífices passados que sucedeu no
lugar deste [São Pedro) naquela sé e dignidade de que falei, como senhor do mundo, fez doação destas Ilhas e Terra
Firme do mar Oceano aos ditos Rei e Rainha e a seus sucessores nestes reinos". Apud Paulo SUESS, A Conquista
1. O texto está situado no Brasil e, mais particularmente, na Bahia. Foi apresentado no Seminário “Bíblia espiritual da América espanhola, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 673.
e Culturas Afro-americanas", organizado pelo Programa de Formação do CEBI/Centro de Estudos Bíblicos e pelo
Grupo de teologia e negritude Atabaque, em São Paulo, SP, de 3 a 7 de setembro de 1993. Nesta edição, apresenta 3. Antônio Soares AM O R A (cur ), Padre Antônio Viena. Sermões, 24 edição, v. 4, São Paulo, Cultrix, 1981,
só leves adaptações. t. XI, p. 299. Os sermões XIV, X £ e XXVII foram pregados pelo pe. Vieira aos escravos negros da Irmandade do
Rosário de um engenho da Bahia, em 1633.

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Vieira considera a transmigração da África ao Brasil parecida com aquela que senhores. Infelizmente, o autor não chega a tanto e limita-e a pedir que os tratem
levou o povo de Israel à Babilônia para que, provado pelo fogo, se salvasse; haverá como a próximos e como a miseráveis.
uma segunda transmigração, desta terra para o céu, verdadeira libertação, como a
Manoel Ribeiro Rocha escreve, em 1758, o Etíope resgatado.6Na divisão dos
que salvou Israel de Babilônia: "a vossa irmandade da Senhora do Rosário - diz Vieira
capítulos, também se pauta no texto do Eclesiástico para tratar do sustento (Parte
- vos promete a todos uma carta de alforria: com que não só gozeis a liberdade eterna
IV) e da correção necessária (Parte V). Também o texto de Rocha não se dirige aos
na segunda transmigração da outra vida; mas também vos livreis nesta do maior
negros, mas aos senhores e comerciantes confusos com a possibilidade de encon-
cativeiro da primeira” (Sermão XXVII).
trar-se em estado de condenação por causa dos africanos terem sido ilegitimamente
Mesmo quando Vieira usa os textos bíblicos mais críticos da injustiça social escravizados.
(e mais usados pela teologia da libertação), como o do Êxodo 14, o de Lázaro (Lc Os textos bíblicos que Rocha usa reforçam a necessidade do bom tratamento
16,19-31) e o Magnificat (Lc 1,46-56), isso é para chamar os senhores a não exceder-se
e do sustento necessário, sustento que inclui a instrução nas coisas da fé. Isso tem
nos castigos e observar as normas morais de comportamento sem abandonar-se à sua base no mandamento do amor ao próximo de lJo 4,20 (cf. parte IV, nQ 14).
preguiça e à luxúria. Os escravos serão premiados, porque dão o exemplo com seu Contudo, na hora de decidir quantos anos devem servir os escravos aos seus senhores
trabalho e seus sofrimentos, e os senhores, se não se comportarem como ‘bons não prevalece nem o mandamento de Jesus, nem a liberdade que o batismo implica
senhores', podem ser tragados, no último dia, pelas águas do Mar Vermelho. Nada, (11,1), mas as razões econômicas, pois uma ‘rápida’ alforria pode prejudicar “a
contudo, que diga respeito a uma mudança de condição nessa terra.4 subsistência [da Colônia], e continuação do comércio, aliás útil e necessário ao Reino”
Por esse prêmio eterno e a salvação da alma, os escravos têm que obedecer (11,3) 7
a seus senhores. Vieira apóia-se nos escritos de Paulo e Pedro e comenta Ef 6,5-7: * A Bíblia tem cara de feitor, pois foi usada para legitimar a condição de
"Quando servis a vossos senhores, não os sirvais como quem serve a homens senão sofrimento do negro e ‘amaldiçoar’ sua raça. O texto mais usado foi o de Gênesis
como quem serve a Deus, porque então não servis como cativos, mas como livres, 9,18-27, no qual se identificavam os africanos com os malditos filhos de Cam. “Os
nem obedeceis como escravos senão como filhos" e pede, citando lPd 2,18, que os filhos de Jafé (e Sem) têm um direito ‘teológico’ em se aproveitar do trabalho dos
escravos sirvam “não só aos bons e modestos, senão também aos maus e injustos. filhos de Cam, pois assim colaboram na redenção daqueles que são marcados por
(...) Porque nesse estado em que Deus vos pôs, é a vossa vocação semelhante à de dois pecados ‘originais’ : o de ser filhos de Adão (pecado originaljlô^comum dos
seu Filho, o qual padeceu por nós, deixando-vos o exemplo, que haveis de imitar” homens), e o de serem filhos de Cam (pecado específico dos africanos e dos negros
(Sermão XXVII).
em geral)” .8
Jorge Benci, em 1700, comenta em quatro sermões, dirigidos aos senhores, Vieira falará também dos negros como filhos de Coré e filhos do Calvário,
o texto do Eclesiástico 33,25: “Para o asno forragem, chicote e carga; para o servo pois "Coré, na língua hebréia, quer dizer Calvário" (Sermão XIV, p. 294). Os filhos de
pão, castigo e trabalho” (Economia cristã dos senhores no govemo dos escravos)* Coré não pereceram como seu pai, castigado exemplarmente por Deus por sua
Benci usa muitos textos bíblicos para obrigar os senhores a tratar bem seus escravos, rebelião e, completando a analogia, assim como Deus salvou os filhos de Coré, quando
ainda que ‘rudes e boçais’ (p. 86), e os compara, juntamente com os párocos, a Jesus a terra se abriu para engoli-lo, salvou os negros. E conclui: “Oh, se a gente preta
Cristo mestre (p. 107) e Bom Pastor (p. 93). Cristo, senhor e mestre, lavou os pés aos tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve
discípulos para dar-lhes o exemplo (p. 107); assim é também dos senhores de a Deus, e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e
escravos, pois o exemplo dos que não são senhores é "incentivo somente e estímulo desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!" (ibid., p. 301).
para a imitação; e nos que são senhores, não só é estímulo, não só é incentivo, que
Por serem filhos de Coré e do Calvário, os escravos devem imitar os
move, mas é como preceito, que obriga a que o imitem” (p. 108). Norma moral para
sofrimentos de Cristo. E isso era já anunciado por Davi no Salmo 83,1, um dos três
o escravo, agora, é imitar o senhor, imagem de Deus!

Ao concluir o último dos seus quatros sermões, Benci lembra aos senhores:
"antigamente os Cristãos da primitiva Igreja, logo que recebiam o batismo, davam a 6. Manoel Ribeiro ROCHA, Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado,
Petrópolis, Vozes, 1992. Em apêndice, há um índice das citações bíblicas usadas por Rocha. Acreditamos que muitas
liberdade a seus servos, parecendo-lhes que com a liberdade da lei de Cristo não
delas fossem de uso comun na teologia colonial.
estava bem o cativeiro” (p. 223). Seria razão suficiente para exigir o mesmo dos
7. Rocha sugere que vinte anos são uma data 'justa', pois se se perder toda rentabilidade, acabaria o
comércio (11,32-36). Diferente era o caso dos romanos, em que os escravos ficavam livres após cinco anos, pois
tratava-se “de brancos, e muito avantajados os seus serviços1’ (11,16).
4. Cf. Sermão XX. t. XII, p. 109-115.
.8. Eduardo HOORNAERT, A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-colônia (um
5. Jorge BENCI, Economia cristã dos senhores no govem o dos escravos, São Paulo, Grijalbo, 1977. inventário), p. 21.

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salmos que, para Vieira, foram "compostos para os engenhos".9 Dirigindo-se aos
escravos, Vieira afirma: "declara Davi no título do último [salmo] quem sejam os Isso para não induzir os homens em tentação, pois do pecado original “foi
operários destas trabalhosas oficinas, e diz que são os filhos de Coré: Pro torcularibus causa uma mulher, e que mulher? Não alheia, mas própria, e não criada em pecado,
füiis Core. (...) Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz mas inocente e formada pelas mãos do mesmo Deus". E comenta sobre o fruto
e paixão de Cristo que o vosso em um destes engenhos" (ibid, p. 305). Nessa proibido: “que comesse Eva, não me admira; era mulher” !12A certeza da inferioridade
identificação com o Cristo crucificado, que infelizmente não é com o justo vítima da da mulher, em Vieira, é também bíblica: “posto que haja tantos séculos que morreu
blasfêmia e dos ídolos, nem com o ressuscitado que mostra a verdade sobre os aquela Evá, vive contudo em toda mulher a sentença com que Deus a condenou em
poderes deste mundo, mas só com o ‘destinado a sofrer’ para o bem, inclusive dos todo o mesmo sexo”.13
senhores, está a felicidade do escravo: “Bem-aventurados vós se soubéreis conhecer
a fortuna do vosso estado". E isso é um "grande milagre da providência e misericórdia A mulher na Colônia é filha de Eva e porta-voz de Satã: “Que mulher nenhuma
divina” . vá às igrejas de saia tão alta que lhe apareçam os artelhos dos pés (...) nova moda
que com escândalo de toda a modéstia e honestidade tem introduzido o demônio",
* A Bíblia tem cara de homem e macho, pois foi usada para submeter reza a carta pastoral de Dom Antônio de Toledo em 1773.14A mulher negra e escrava
mulheres. São conhecidos, e a leitura que as mulheres fazem hoje da Bíblia ressalta, induz ao pecado muito mais, e os senhores têm que tomar cuidado, pois:
o patriarcalismo e androcentrismo de muitos textos bíblicos. “Mais vale a maldade
do homem do que a bondade da mulher", afirma Eclo 42,14, resumindo assim Preta bonita é veneno, mata tudo que é vivente,
inúmeras passagens, desde o relato da criação ‘subordinada’ da mulher e da entrada embriaga a criatura, tira a vergonha da gente...
do pecado no mundo, em Gn 3, até as afirmações de Paulo: “a cabeça da mulher é Mulata é doce de coco, não se come sem canela,
o homem... sendo assim a mulher deve trazer sobre a cabeça o sinal de sua camarada de bom gosto, não pode passar sem ela.16
dependência” (ICor 11,3.10); “devem ficar caladas as mulheres... estejam submissas,
Por isso, Benci implora a que os senhores vistam seus escravos e escravas
como diz também a lei” (ICor 14,34); ou “eu não permito que a mulher ensine ou
como Deus fez com Adão e Eva após o pecado (Gn 3,21). Mas isso é também razão
domine o homem... porque primeiro foi formado Adão, depois Eva” (lTm 2,12-13).'°
para que as escravas - e só as escravas, não as sinhás - não se enfeitem com “aquelas
A leitura machista colonial reforçou estas passagens e atribuiu à mulher, holandas, aquelas telas e primaveras, aquela redagem (sic) e oiro, com que se trajam",
principalmente à negra, a fraqueza da carne, a sensualidade, a tentação e o pecado, pois isso é vaidade e fruto do pecado e ‘as descobre’ depois que Deus as cobriu.16A
assim como atribuiu a Deus características exclusivamente masculinas, senhoriais e Bíblia, então, serviu para castrar a igualdade, sexualidade e participação social das
guerreiras, e ao homem o protagonismo da evangelização. Vieira inclui os soldados mulheres e, em particular, das negras.
portugueses entre os evangelizadores principais na Colônia: “nas outras terras uns
Foram silenciados e encobertos assim tanto dados bíblicos como as afirma­
são ministros do Evangelho e outros não; nas conquistas de Portugal todos são
ministros do Evangelho. (...) Não só são apóstolos os missionários, senão também os ções de igualdade no batismo (G1 3,28) e nos ministérios eclesiais - mulheres
soldados e capitães (...) porque muitas vezes é necessário que os soldados com suas apóstolas, colaboradores e diaconisas (Febe, Prisca e Júnias em Rm 16,1-16) - como
armas abram e franqueiem a porta, para que por esta porta aberta e franqueada se
comunique o sangue da Redenção e a água do Batismo"; mas não chama mulheres
para essa tarefa, pois “quis ensinar Deus a todos aqueles a quem pertence, que as 12. Sermões. Apud Emanuel ARAÚJO. O teatro dos vícios. Transgressão e transigência na sociedade urbana

mulheres não devem sair de casa, ainda com pretexto de piedade e de religião” ." colonial, Rio de Janeiro, José Olympio, 1993, p. 193.
13. M d ., p. 193 (grifos meus). Um século depois, em 1798, o bispo Azeredo Coutinho fazia eco ao ilustre
pregador: “as mulheres, ainda que se não destinam para fazer a guerra, nem para ocupar o ministério das coisas
sagradas, não têm contudo ocupações menos importantes ao público. Elas têm uma casa que governar, marido que
9. Os tiês salmos são o SI 8, o SI 80 e o SI 83. Os três são individuados pelo título P io torcularibus. “Este fazer feliz e filhos que educar na virtude” (Estatutos do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória do lugar de Boa
nome torcularia, universalmente tomado, significa todos aqueles lugares e instrumentos em que se espreme e tira o Vista de Pernambuco, p. 2. Apud Mary dei PRIORE, A o Sul do corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidades
sumo dos frutos, como na Europa o vinho e o azeite, que lá se chamam lagares; no Brasil e para a cana, por serem no Brasil Colônia, Rio de Janeiro, José Olympio, 1993, p. 112).
mais sofisticados, se chamam de engenhos" (Sermão XIV, p. 304). Os salmos, para Vieira, foram dedicados a esses
14. Apud Mary dei PRIORE, A mulher na história do Brasü, São Paulo, Contexto, 1988, p. 17.
trabalhadores para que juntassem o trabalho com a oração.
15. Apud José Alípio GOULART, Da palmatória ao patíbulo, Rio de Janeiro, Conquista-INL, 1971, p. 48.
10. Afirma Elza Tamez: “Por sua experiência de opressão, as mulheres acrescentam novas suspeitas
Cf. também Sonia Maria GIACOMINI, M ulher e escrava, Petrópolis, Vozes, 1988, p. 65-72. Mary dei Priore traz vários
ideológicas não somente à cultura a partir da qual se lê o texto, mas dentro do próprio texto que é produto de uma
textos sobre essa caracterização das mulheres negras na história do Brasil, como a do confessor Manuel de Arceniaga,
cultura patriarcal. Mais ainda, suas 'suspeitas ideológicas' se aplicam também às ferramentas bíblicas tais como
no século XVm, que condena: “a nudez dos peitos... e as desculpas que aparentam cobri-los com gazes e panos
dicionários, comentários, concordâncias supostamente objetivas pela sua cientificidade mas que podem, sem dúvida,
transparentes, porque não os ocultam nem cobrem, antes com estes enganos artificiosos provocam, atraem e chamam
cair em propostas masculinizantes” , apud Regina Maria de Oliveira BORGES. Uma necessidade urgente: reler a Bíblia
mais a atenção" reforçando assim que só a mulher é fonte de pecado e que esse é o pecado mais grave (A mulher
com olhos de mulher. In: Margarida L. Ribeiro BRANDÃO, Teologia na ótica da mulher, Rio de Janeiro, PUC, 1990,
p. 128-129. Por analogia, poderíamos afirmar a mesma coisa no que diz respeito ao negro. na história do Brasil, p. 16).
16. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, n“ 40, p. 71. Toda a argumentação está nos
11. Sermões V,237.240 e IX,428, apud Luis PALACIN, Vieira e a visão trágica do barroco, p. 36-37 e 55.
números 31-45.

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também o comportamento não-machista de Jesus que supera a lei e devolve: a Além do mais, é um texto escrito: só poderá ler quem é alfabetizado. É um
vivência plena da sexualidade às mulheres, como a que perdia sangue (Lc 8,43-48) texto sagrado: só poderá proclamá-lo quem é próximo a Deus. É um texto que exige
e a ‘pecadora’ (Lc 7,36-50); e a participação social e religiosa, como no caso das conhecimento: só poderá ler quem for iniciado nas Escrituras. E isso, até pouco tempo
discípulas e primeiras testemunhas da ressurreição (Lc 8,1-3; 10,38-42; 24,1-11). atrás, e ainda hoje na maioria dos casos, fica reservado a brancos e homens. Sem
Realidade simbolizada na mulher encurvada, ‘presa pela lei’, e libertada em dia de falar no fato que a Bíblia não ficava, senão raramente, nas casas de pobres. Em
sábado (Lc 13,10-17). ambientes católicos, traduções em português poucas, proibições muitas. O povo só
tinha acesso à Bíblia pela mediação de um padre branco.
* A Bíblia tem cara de juiz inquisidor, pois foi usada para demonizar a religião
do negro. Toda referência bíblica aos ídolos, aos sacrifícios, aos espíritos, aos mortos, Finalmente, não menos importante, o fato de que muitas das leituras, estudos
à rebeldia e à nudez tornava-se argumento que estigmatizava e exorcizava a fé e as e interpretações bíblicas dos últimos séculos obedeciam a visões e interesses
manifestações religiosas não católicas.17 europeus ou norte-americanos. Eram leituras importadas, cujo referencial principal
não eram as preocupações do povo negro e pobre da América Latina, mas as normas
Vieira, mas qualquer outro padre e senhor dizia o mesmo aos negros escravos,
de conduta, as disputas acadêmicas, os problemas eclesiásticos, a luta contra o
afirma: "Dizei-me: vossos pais que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem
ateísmo. Nada que interessasse ao negro. No melhor dos casos, a Bíblia era um livro
e acabam a vida sem lume da fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da
fechado. E quando era aberto, era para castigar e reprimir.
morte? Todos, como já credes e confessais, vão ao Inferno, e lá estão ardendo e
arderão por toda a eternidade. (...) Pelo contrário, os filhos de Coré, perecendo ele, Não dá para ler a Bíblia e não abrir esta ferida. Seria um grave erro, para nós,
salvaram-se, porque reconheceram, veneraram e obedeceram a Deus: e esta é a irmos à Bíblia de ‘corpo aberto', indefesos, pois ela continua ferindo ainda hoje. O
singular felicidade do vosso estado, verdadeiramente milagroso” {Sermão XIV, p. 301). primeiro passo hermenêutico e político é situar-nos nessa dor, fazer memória, tomar
Ainda hoje é comum encontrar pessoas, agentes de pastoral e leigos que, partido, arriscar a pele que nem o bom samaritano (Lc 10,25-37).
Bíblia à mão, decretam que o Candomblé é o culto do demônio. Assim o encontro de
Saul com a necromante (ISm 28,3-25) é usado para condenar a evocação de espíritos
e de mortos; o texto de Dt 32,16-18 é lembrado para manter a distinção entre Deus Um prato cheio
e os deuses ou demônios aos quais áe oferecem sacrifícios; contra a magia e a
adivinhação evoca-se 2Cr 33,6 e Dt 18,9-12. E tudo isso é aplicado aos terreiros que, E, apesar disso, para o povo negro, a Bíblia é também um prato cheio. Não
por isso, são condenáveis. só pela releitura bíblica que acontece entre os pobres ou nas CEBs, a partir dos últimos
A Bíblia é usada também para defender o cristianismo e a própria igreja. trinta anos, ou nos grupos de Agentes de Pastoral Negros, mas também por várias
Várias frases são proclamadas para mostrar a superioridade da fé cristã e a salvação: leituras populares feitas na história do Brasil. Numa sociedade onde a escrita é
"Há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo" (lTm 2,5), privilégio de poucos, ao lado das histórias dos santos e do terço (a Bíblia dos pobres),
“o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). “Ao nome de Jesus, todo joelho se dobre os pobres guardaram também vários textos bíblicos repetidos nas igrejas, memória
(...) e toda língua confesse: Jesus é o Senhor” (F1 2,10-11), “pois não há, debaixo do da Aliança de Deus com os pobres, e os reinterpretaram segundo suas necessidades
céu, outro nome dado aos homens pelo qual devemos ser salvos” (At 4,12). A leitura e seu sonho de sociedade.
fundamentalista e pentecostal tem reforçado essa demonização e exclusão de tudo
Assim Antônio Conselheiro copiou trechos da Bíblia (em latim) que o
o que não for cristão: “só Jesus salva".
animavam espiritualmente e eram objeto de suas pregações, muitos deles sobre o
* A Bíblia tem cara de branco, pois foi usada para legitimar a superioridade amor de Deus e de Jesus, o homem das dores. Textos carregados de tensão
racial do branco e o branqueamento quando já as algemas não podiam sujeitar os escatológica, de luta entre o bem e mal, de prêmio para os que eram fiéis ao Cordeiro.19
negros libertos. Não se trata só de textos que mantêm a brancura como sinônimo de E em Canudos, com Conselheiro, havia muitos negros.
bem (SI 50,9) e de glória (Ap 4,4; 7,9), mas do fato que são histórias (apresentadas
Quando não era possível ter acesso à Bíblia, então o povo a escrevia ou,
como) de brancos, com heróis brancos, num mundo de brancos (Mediterrâneo e
Europa), e com linguagem de branco.18 melhor, contava a história de Jesus que passou na terra junto com São Pedro,
caminhando pelo sertão. Nelas, Jesus é representado como pobre, companheiro e
mestre. Várias destas histórias falam de hospedagem negada pelos ricos e oferecida
pelos pobres; de dinheiro e avidez; de fome e sede, viúvas e órfãos. Diante destas
17. Cf. José Severino CROATTO, A destruição dos símbolos dos dominados. Revista delnteipietação Bíblica
Latino-Americana, n8 11. 1992, Petrópolis, p. 32-42.

18. A pesquisa bíblica recente tem resgatado a pluralidade cultural e a presença de negros nos textos
bíblicos. Não deixam, contudo, de ser temas e presenças marginais ou marginalizados. 19. Cf. Alexandre OTTEN, "Só Deus é giande", São Paulo, Loyola, 1990, p. 219-222.

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[
I
situações, Jesus consola, é o pai que conforta, dá entendimento, é misericordioso; Não será possível aos estudiosos falar com (e a)o povo negro sem situar-se
também faz justiça, castiga os ricos e vence o mal.20 nessa abundância de leituras, de fé, de histórias, encontradas, reinterpretadas e
Ou o povo cantava sua dor como o romeiro de Pirapora, cabra macho, que ‘incluídas’ nas Sagradas Escrituras.
se ajoelha diante do Homem das dores:
É de sonho, é de pó o destino de um só... Uma fonte
O meu pai foi peão, minha mãe solidão,
Para muitos negros, a Bíblia é uma fonte. Uma fonte com muitas caracterís­
meus irmãos perderam-se na vida, em busca de aventuras,
descasei, joguei, investi, desisti ticas.
se há sorte, não sei, nunca vi. * É uma fonte (ainda) amarga. A história não mudou. A Bíhlia ainda é usada
Me disseram, porém, que eu viesse aqui para discriminar quem não a conhece e não a segue. Ainda está cheia de etnocen-
pra pedir de romaria e prece, paz nos desalentos, trismo disfarçado de eleição e salvação. Ainda exclui mulheres e não revela o rosto
como eu não sei rezar, só queria mostrar feminino de Deus. Ainda inferioriza e demoniza religiões afro-brasileiras; ainda
meu olhar, meu olhar, meu olhar. confunde ídolos com orixás. Ainda é vítima de um uso fundamentalista que a afasta
da fraternidade e do ecumenismo. E, principalmente, ainda é filtrada (e sempre o
...ou com Asa Branca, Luar do sertão, Os devotos do divino: "no estandarte está
será) pela prática dos cristãos. E essa prática não mudou muito em relação ao negro,
escrito que ele voltará de novo, que o rei será bendito, que ele nascerá do povo” .
Textos que mereceriam ser incluídos na Bíblia como livro dos salmos do povo ao racismo, ao machismo, ao não-cristão.
brasileiro. * Por isso, é uma fonte (ainda) negada. Não devemos estranhar esse ateísmo
necessário. Como lembra Juan Luis Segundo, existe uma negação de Deus que é
Já com um olhar mais amplo e latino-americano, não podemos silenciar a
uma verdadeira profissão de fé no Deus da vida: é aquela que recusa imagens de
riqueza das reinterpretaçãos do protestantismo negro do Caribe e da América do
Deus idolátricas, imagens que legitimam práticas de morte. Negar a imagem de Deus,
Norte, com seus spirituals, salmos relidos a partir da escravidão e da luta dos
quando este Deus legitima poderes autoritários e violentos, não é ateísmo: é fé no
excluídos. Neles, o Cristo era negro, como afirma James Cone. Infelizmente, não
temos essa riqueza no Brasil. O catolicismo prendia a Bíblia nas mãos de poucos. A Deus da vida.22 Toda vez que a Bíblia será usada para servir ídolos e não o Deus da
própria leitura pentecostal, apesar de ter aproximado Sagradas Escrituras e povo vida, toda vez que ela será usada para inferiorizar, discriminar, negativizar, excluir,
pobre e negro, não tem produzido muitos cânticos originais. ela será negada.

Recentemente, as CEBs têm despertado toda uma leitura bíblica popular e Quando não acontece que os círculos bíblicos são elevados a única, verda­
comunitária. A preocupação pela vida e a luta contra as injustiças criaram uma deira e melhor leitura possível para entender a realidade. Ainda lembro de um
sintonia fina entre a experiência do povo e os setores oprimidos da história de Israel. encontro sobre culturas e religiões em que trabalhamos história, discriminações e dor
A Bíblia voltou a ser o espelho da vida, uma iluminando e libertando a outra, num de negros, índios e mulheres, quando alguns agentes de pastoral se queixaram de
encontro mútuo, às vezes agradecido, outras vezes desafiador. não ter começado os trabalhos pela Bíblia...

Nesse caldo de Palavra Viva, muitos cristãos negros e negras têm se * É uma fonte (ainda) seqüestrada. Infelizmente, ainda há quem procure
reencontrado com o texto sagrado e com o Deus que ama os últimos. Mas foi entre afastá-la das mãos do povo. Uma das injustiças mais graves do Nordeste do Brasil é
grupos de consciência negra, e em particular entre os Agentes de Pastoral Negros, a água - não só a terra - cercada. O que impede o acesso à fonte. Isso acontece com
que a leitura bíblica tem feito redescobrir o rosto negro e materno de Deus. As a Bíblia também. Não será, hoje, seqüestrando o livro, mas tornando-o mudo. Pois
perguntas dirigidas à Bíblia não são tanto sobre a escravidão ou à procura de negros se precisará conhecer a história do povo de Israel, mas também grego e hebraico,
nos textos bíblicos, mas sobre a discriminação, a exclusão, a perda de identidade, a fazer cursos, ouvir professores, comprar livros, ter tempo para ler, etc. Muitos negros
dor do justo servo sofredor, a opção pelos últimos e discriminados.21 e pobres ainda estão excluídos disso.
* É uma fonte entre outras. Às vezes, nem a principal. Para os pobres e muitos
20. Veja alguns contos em: Bernardino LEERS, Religiosidade rural, Petrópolis, Vozes, 1967, p. 57-59; Hubert
negros, fica ao lado das histórias dos santos e seus milagres (que também são
LEPARGNEUR, Imagens de Cristo no catolicismo popular brasileiro. In: A A .W ., Quem é Jesus Cristo no Brasil, São memória da aliança do Deus da vida nas famílias dos pobres), ou das histórias
Paulo, ASTE, 1974, p. 83-84; Walfrido MOHN, R eli0ão popular e vida religiosa inserida, Petrópolis, Vozes, 1986, p.
56-58; Frei Roberto E. de OLIVEIRA, Peixe pequeno, os grandes comem. Sabedoria do povo, São Paulo Paulinas
1987, p. 63-87.
22. Cf. O hom em de hoje diante de Jesus de Nazaré, v. II/1, História e atualidade, São Paulo, Paulinas
21. Cf. Ouvi o clamor deste povo. Campanha da Fraternidade 1988, Texto-base, Brasília, CNBB, n° 86-121. 1985, p. 18.

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cantadas e dançadas nos tenreiros. Porque a 'Bíblia' do terreiro, a história antiga e a j0rra, o fato dela sumir entre os dedos (e todo aquele que quiser prender a Bíblia ou
história brasileira do povo negro, a história da presença de Deus na vida desse povo, a fé do povo vai passar por isso), poderemos perceber a presença livre de Deus que
não é lida, mas cantada e dançada. Também essa não é a única história, mas é uma 'mora nas tendas' e é muito maior do que seus sacramentos, inclusive sua palavra
história que salva: faz identidade negra, reconstitui a família, constrói dignidade, escrita. Assim a fonte não se esgotará, nem será envenenada, nem a água se
devolve saúde, organiza, ensina e dá vida. desperdiçará.
A Bíblia se toma até terceira, não mais segunda, palavra de Deus, após a
primeira palavra que é a vida. Por isso, agentes de pastoral negros podem anunciar
Faz dois anos, em Santa Maria...
uma imagem de Deus que está e não está na Bíblia, o Deus vivo e verdadeiro e
querem trabalhar:
Naquela quinta-feira do 8aIntereclesial, em 10 de setembro de 1992, em Santa
O rosto negro de Deus que é vida, próximo, Pai e Mãe, o mesmo e o Outro; Maria, RS, após a apresentação dos bispos e pastores e a exclusão e discriminação
- a revelação de Deus através da natureza e dos Orixás;
dos pais e mães-de-santo e dos pajés, o regional das CEBs de Bahia e Sergipe ficou
- a presença dos antepassados;
- a tradição, os símbolos e os ritos a ela ligados; com a celebração penitencial. Pouco antes da proclamação do Evangelho, uma jovem
- a comunidade ampla e verdadeiramente fraterna; negra trouxe dançando a Bíblia, que repousava numa cuia com terra de Porto Seguro,
- a presença e o papel da mulher na vivência de fé; onde chegaram os colonizadores portugueses em 1500. Um símbolo e tanto. Volto a
- a recuperação de uma história verdadeiramente ecumênica do povo negro" 2'1 evocar esse símbolo porque, naquele momento que seguia a dor, ele representou tudo
o que os povos negros e indígenas viveram em relação à Bíblia e que foi descrito
Vale lembrar que não vai ser possível fazer ecumenismo com as religiões
sumariamente nessas páginas.
afro-brasileiras e indígenas a partir da Bíblia. Não pode ser usada como fonte comum.
Pode iluminar a nossá aproximação, diálogo e solidariedade, mas não pode ser posta É a Bíblia que toma posse da terra e a conquista. Foi a primeira imagem que
como o Livro, a Palavra, a Verdade, a História do povo de Deus. Só será aceita (e o chamou a atenção. Uma palavra pesada, que sufoca outras palavras e que expulsa
é) quando é uma palavra dialogai, que escuta a outra, se reconhece nela e a acolhe. da terra. Ela cobria tudo. Não deixava ver se havia outra vida naquela terra. Não
Nunca quando é uma palavra que os outros não têm, que se impõe, autoritária e deixava ver nada. Só existia a Bíblia.
exclusiva.
Aos poucos, outra imagem apareceu. A de duas realidades religiosas justa­
* Contudo, é uma fonte viva, pois continua animando a caminhada de muitos postas: a Bíblia, palavra de Deus para o branco, e a Terra, palavra de Deus para o
cristãos negros. Continua libertando pessoas e revelando uma palavra de Deus que índio e o negro. Aos olhos do colonizador, mais uma superstição, mais uma impureza,
toma partido, que é crucificada junto com os excluídos da sociedade, que anuncia mais um sincretismo. Aos olhos dos excluídos, o resgate da história, da identidade
que a luta, a dor, a morte não são em vão quando constroem comunidade, fraterni­ e da cultura. E a sabedoria de quem não joga fora a criança com a água do banho.
dade, igualdade. É uma fonte que sacia a sede, renova as forças e desperta sentido Afinal, apesar dos cristãos, esse Deus ama os povos indígenas e negros e fala de
Uma água que não pode se perder. resgate, dignidade, luta e libertação.

Não nos será possível, para nós cristãos e cristãs, encontrar a Boa Notícia de Finalmente, mais uma certeza: só renascendo nessa Terra, a Bíblia e os povos
um Deus que anuncia a vida e liberta sem bebermos dessa água ainda amarga, serão libertados de suas dominações. Tem que fincar as raízes aqui. Não cabe mais
negada, seqüestrada e, contudo, viva. E sem saber que essa água não vai resolver exclusão de outras palavras, de povos, de mulheres, de alianças. Tem que criar nova
tudo, mas só fazer o efeito para o qual foi enviada. É uma água entre outras e limitada. Ç Tradição. Tem que ter a seiva daqui. Tem que ser regada com essa água. E morrer,
Só com a humildade de quem respeita a fonte pelo que ela é, os tempos em que ela como semente, para dar a vida, renascer e dar fruto (Jo 12,24). Ressuscitar. Estamos
dispostos a deixar morrer a Bíblia nesse chão?

23. Apoiando-se na distinção de Carlos Mesters (e de Santo Agostinho), Pablo Richard assume como
principio hermeneutico o "reconhecimento da história, do cosmos, da vida e da cultura dos povos indígenas, como
opn m eiro livro de Deus. A Biblia é o segundo livro de Deus, dado para ajudar-nos a ler o primeiro". E, como segundo
Bibliografia de referência
principio, o reconhecimento dos indígenas como sujeitos da interpretação bíblica" (1492: A violência de Deus e o
futuro do cnstianismo. In: A voz das vítimas, Concilium 232, Petrópolis, 1990/6, p. 66, grifos do autor). O que é
Antônio Soares AMORA. Padre Antônio Vieira. Sermões, 2a edição, v. 4. São Paulo,
reivindicado para os povos indígenas pode ser estendido a todos os povos que não partilham das culturas e da história
meaiterraneas, id6ntificadas muitas vazas com a cristã* Cultrix, 1981.
24. Síntese dos trabalhos de grupo sobre o tema 'ecum enismo' do Curso de Formação para Representantes Jorge BENCI. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos - Estudo
Regionais, Quilombo Central, jan. 1989, n° 12.
preliminar de Pedro de A. Figueira e Claudinei Mendes. São Paulo, Grijalbo, 1977.

46 [278] [ 279 ] 47
Eduardo HOORNAERT. A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no
Brasil-colônia (um inventário). Estudos Bíblicos, n. 17. Petrópolis, Vozes, 1988, p.
11-29.
JO R G E C E L A 1
Alexandre OTTEN. “Só Deus é grande" - A mensagem religiosa de Antônio Conse­
lheiro. São Paulo, Loyola, 1990.
Luis PALACIN. Vieira e a visão trágica do barroco. São Paulo, HUCITEC-INL, 1986.
Manoel Ribeiro ROCHA, Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruí­
do e libertado - Discurso sobre a libertação dos escravos no Brasil de 1758. Paulo
Suess (ed.), Petrópolis, Vozes, 1992.
Corpo e solidariedade
Ouvi o clamor deste povo. Campanha da Fraternidade 1988. Brasília, CNBB/Confe­
rência Nacional dos Bispos do Brasil, 1988.
O negro e a Bíblia: um clamor de justiça. Estudos Bíblicos, n. 17, Petrópolis, Vozes,
1988.

Escravidão e escravos na Bíblia. Estudos Bíblicos, n. 18, Petrópolis, Vozes, 1988.


RESUMO: Aqui se estudam dois elementos importantes nas culturas negras: o corpo e a solidariedade.
Heitor Frisotti
Para a cultura negra religião e corpo são duas dimensões da pessoa importantes e ligadas, de modo
Caixa postal 2521
diferente da cultura branca, que tende a contrapô-las. Isto é uma importante contribuição para uma
40022-970 Salvador - BA
espiritualidade cristã que revalorize a dimensão corporal da pessoa. A solidariedade foi, na cultura negra,
Brasil um recurso de sobrevivência e resistência. Por isso se torna outra contribuição para a construção de uma
espiritualidade cristã que afirme a vida num mundo que parece empenhado em destruí-la.

This article considers two important elements of black cultures: the body and solidarity. Black culture
gives importance and relates body and religion, while white cultures tend to oppose them. This represents
a significant contribution to Christian spirituality and its understanding of our corporal dimension.
Solidarity has played an important role for survival and resistance of black cultures. In this sense it becomes
another contribution for Christian spitiruality that affirms life in a world that seems determined to destroy
it.

A negritude não é somente um componente genético. É, sobretudo, um


componente cultural. É, portanto, uma dimensão histórica projetada num tempo,
vivida num espaço concreto. É fruto de uma relação ancestral entre um grupo humano
e seu ambiente natural e social. É a autoconstrução do grupo a partir de suas
condições de existência. Por isso, ao falar das culturas negras, é difícil distinguir se
são assim por serem negras ou pela história e geografia que lhes coube viver. Sabemos
inclusive que os próprios traços físicos são a história gravada no coipo. Cada dia
temos mais argumentos para afirmar que eles são o resultado desta relação constante
com o meio que foi talhando e pintando os corpos com uma paciente seleção através
da história2. E ainda resta muito para aprendermos sobre a relação entre atitudes
culturais e genética.
É verdade que é impossível distinguir entre os componentes culturais que
nascem da negritude e os que nascem da história concreta que coube aos negros

1. Pároco, em Santo Domingo, no bairro Guachipita, da paróquia de San Martin de Porres; antropólogo,
membro do Centro de Estúdios Sociales Padre Juan Montalvo.

2. Para a relação entre caracteres físicos, cultura e meio ambiente a nível genético, cf. Alexander ALLA N D
*• , Evolution and Human Behavior, Nova York, Natural History Press, 1967.

r o d l /IQ

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