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Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) (Orlandi, Eni Puccinell, 1942- Interpretagao; autora leitura e efettos do trabalho simbélico / Eni Puccinelli Orlandi. ~ Petrépolis, RJ: Vozes, | 1996 ISBN 85:326-1606-2 1. Anilise do discurso 2. Ciéncia ~ Filosofia 3. Ciéncias| Sociais - Filosofia 4. Hermenéutica 5. Linguagem - Filoso-| fia |. Titulo, 95-5076 CDD-121.68 Indices para catalogo sistematico: 1. Interpretacdo: Epistemologia: Filosofia 121.68 ENI PUCCINELLI ORLANDI INTERPRETACAO Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbdlico Petrépolis 1996 10. 0 TEATRO DA IDENTIDADE — A parddia como trago de mistura lingiiistica (italiano/portugués) Sao duas linguas no mesmo (2) sujeito. A convivéncia dessa ambivaléncia simbélica é 0 assunto desta reflexao. Mas vamos comecar pelo fato de que o texto central de nossa andlise é uma parédia: Migna terra, Em grego, parodia quer dizer: “canto ao lado de outro’, Toda nossa questao esta em compreender 0 que significa “a0 lado de outro”, assim como em explicitar que sentidos so modos de interpretago desse “outro”. Para tal, mos- traremos, pelo funcionamento discursive, os mecanismos ideolégicos que ai esto envolvidos. No caso presente, como se trata de trabalhar a relacao linguanagao, é nesse contexto tedrico que situo a com- preensio da expresso “ao lado de outro”. Tratase de aprender os efeitos de sentidos da parédia na constituic3o do jogo identitério que refere © sujeito,& lingua nacional. Nesse caso especifico, sujeito & 0 brasileiro afetado em sua identidade pela imigragao italiana que, no fim do século XIX e comego do século XX, constitui o contingente mais decisivo na formacdo da populagao de Sao Paulo, © corpus de nossa andlise é constituido pela parédia ‘Migna terra (1924), de Jué Bananére (codinome de Alexan- dre Marcondes Machado), referida ao seu “original” Can. ‘cdo do exilio, de Goncalves Dias (1850), tendo ainda como contraponto para reflexao outra parédia, o Canto do regres: 50 & patria, de Oswald de Andrade (1924). 14 © texto de Jué Bananére (Migna terra) que vamos analisar € parte de uma obra maior (La divina increnca) ‘escrita em seu “dialeto macarronico” que, como diz Mério Leite - do Instituto Histérico e Geogrdfico de Sao Paulo, em seu prefacio de 1966 - “nele inscreve a sitira e a pilhéria, a que ndo se acostumam furtar personagens pree- minentes, principalmente do mundo politico”. Um outro enunciado de Mario Leite é maisinstigante para esse nosso trabalho. Segundo ele, se Alexandre Marcondes Machado tivesse encontrado - como Afonso D'E, Taunay encontrou, conselheiros como Capistrano de Abreu e Was ington Luis (que o levaram a voltarse pata os fastos do bandeirismo que o tornaram o maior historiador de So Paulo) - Alexandre M. Machado, “possivelmente, de par com a literatura a que se atirara sob a divisa‘ridendo castigat motes’, tivesse se voltado para a que, enquadrada na pureza (sic) & sobriedade da lingua, € a criadora de ‘imoriais’ (idem). Por que a parédia de uma lingua, pois & assim que consideramos 0 portugués macarronico, nao pode fazer “imortais"? Por que no est “enquadrada na pureza (sic) ¢ sobriedade da lingua”? Endo fazendo imortais, pode ela fazer cidadaos? Que estatuto dar a essas linguas que sao parédias, no sentido em que elas se inscrevem em uma lingua outra, ‘ou melhor, que elas passam “2o lado de” uma lingua outra? Sao estes gestos de interpretagio, produzidos por Jué Bananére, o centro de nossa atengao. ‘Todo sujeito, ao dizer, produz o que chamo um gesto minimo de interpretagao que é a inscri¢ao de seu dizer no interdiscurso (no dizivel) para que ele faca sentido. At trabalha um efeito ideol6gico elementar que esta no fato de que todo discurso se liga a um discurso outro, por sua auséncia necessdria. As diferentes versées do poema que analiso, ou mais precisamente, a parédia que € objeio desse estudo, se 115 Presta muito propriamente para se observar esse trabalho. da interpretagio (e da ideologia). Fm cada uma das versées podemos observar, nos pontos de deriva, os chamados efeitos metaféricas, desl- zamentos de sentidos que sio a producdo de gestos de interpretecdo dos diferentes autores. Onde esti “ab6bo- da”, em uma versio, desliza para “abdbora’, na outra, Estas duas palavras esto ligadas por um gesto de interpretacao, por um efeito metaférico do qual procuramos compreen- der os sentidos, retracar 0 processo de producio. E assim que podemos compreender, a nivel do discur 50, ideologicamente constituido, o que, na teoria da enun- ciagio, seriam as “marcas da subjetividade’. Dito de outro modo, 0 gesto de interpretacao, como lugar da relagio do sujeito com a'lingua, é depositério das “marcas de subjeti- vidade”. ‘Vejamos os textos que submeteremos 3 nossa observa- ‘do. Dois deles ~ 0 de G. Dias e o de O. de Andrade - sio parédias que tocam a forma material dos poemas, eo outro ~ de Jué Bananére -, como dissemos, toca sobretudo a questo do sistema da lingua, sua ordem simbélica. © portugués macarrnico é uma parédia da lingua portuguesa. Parédia que reflete a imagem que o brasileiro tem do portugués falado por imigrantes italianos no Brasil. © corpus Cangao do exilio Gongalves Dias (1850) Minha terra fem palmeiras Onde canta o sabia; As aves que aqui gorjelam, Nao gorjeiam como li 116 Nosso eéu tem mais estrelas, Minha terra tom primores Nossas varzeas tém mais flores, Que tais no encontro eu ca; Nossas flores t8m mais vida, Em cismar - sozinho, 4 noite ~ Nossa vida mais amores. Mais prazer encontro eu Id ‘Minha terra tern palmeiras ‘Onde canta o sabi. im cismar,sozinho, & noite, Nao permita Deus que eu morra Mais prazer encontro eu ls; Sem que eu volte para Is; Minha terra tem palmeiras, Sem que desfrute os primores Onde canta o sabié. Que no encontto por cd; Sem qu‘inda aviste as palmeiras ‘Onde canta o sabia (Coimbira, julho, 1843) Migna terra Canto do regresso 4 patria (). Bananére, 1924) (©. de Andrade, 1924) Migna terra t8 parmeras, Minha terra tem palmares Che ganta inzima o sabia Onde gorjeia o mar As aves che st6 aqui, Os passarinhos daqui També tuttos sabi gorges. No cantam como 0s de Ia Aabobora celestia tamb8 Minha terra tem mais rosas Che té 16 na mia terra E quase que mais amores Te moltos mild di strella Minha terra tem mais ouro Che non t@ na Ingraterra Minha terra tem mais terra 3s tios 6 86 maise grandi Ouro terra amor ¢ rosas Dus tio di tuttas nac6; Eu quero tudo de la 110s matto si perdi di vista Nao permita Deus que eu mora Nu meio da imensid6. Sem que volte paral Na migna terra t@ parmeras Nao permita Deus que eu morta Dove ganta a galigna dangola; Sem que volte pra S20 Paulo Na migna terra t@ 0 Vap'rell, Sem que veja a Rua 15 Chi s6 anda di gartola, E 0 progresso de So Paulo. uW7 Estes so 08 textos que constituem © corpus de nossa andlise. Os matetiais efetivos da relacdo parédica que nos interessam so 08 de G. Dias e Jué Bananére, O de O. de ‘Andrade entraré apenas como termo de referéncia, Passemos pois & andlise. Aanilise |. Indicios da mistura das linguas Do ponto de vista formal, hé alguns pontos que so pistas para o processo de significagao e que resultam em efeitos significativos para a questio de identidade que nos propomos compreender. Esses pontos sao os que seguem: 1) A origem rural dos imigrantes italianos de Sio Paulo é na verdade “mencionada” em diferentes tracos: a) na necessidade de especificagao concreta (uma sobredeterminaco}, como em “che ganta inzima” (das palmeiras), ao nivel morfossintatico; esta sobredetermina- G0 pode ser compreendida tanto como um gesto de interpretaco que adapta a lingua italiana ao portugués, como a que pensa a necessidade de gestos de referéncias palpaveis, na relaco do imigrante com seu mundo estran- geiro; b) na confusio entre abéboda celeste e “abdbora” celeste, ao nivel lexical; ©) 0 uso “dangola” (como adjetivo) ao invés de “d’an- gola’ (ligada ao pais Angola), referindo-se a galinha, tam bém uma ave tipica do interior de Sao Paulo e das fazendas de italianos no Brasil. 2} Um dos estigmas dos imigrantes italianos (em geral analfabetos) esté justamente na.relagio com a escrita ‘Aparecem assim: 18 a) formas que so consideradas erros: migna/minha, té/tem, parmeras/palmeiras, maise/mais, inzima/em cima, 6/sao, st6/estdo, imensidé/imensidao, perdi/perde. Este tlti- mo, considerado erro na escrita, é no entanto um dos fatos marcantes da influ€ncia do italiano no falar paulista: e (final) i (com palatalizacao da consoante anterior se for t ou d); b) formas que so “sintomas” de italianidade: che/que, tuttos/todos, moltos/muitos. E, entre estes, merece realce a mais popular destas marcas: ganta/canta, gartola/cartola (a passagem de ca g}. A propria escrita, enquanto lugar em que se produzem gestos de interpretacao no trabalho de identificacao, tem aqui importancia fundamental. 3) O uso da déixis, £ especialmente revelador 0 uso da deixis. Tratase de um lugar que marcaria uma oposicdo - aqui/lé - que é apagada. ‘Onde, na poesia de G. Dias ha oposicao ~ “As aves que aqui gorjeiam, no gorjeiam como a” - em Bananére esta se diluis As aves che st6 aqui, també tuttos sabi gorge’. O “todo” aqui refere ao universo de passaros e ndo aos lugares (aqui e 1a). E assim que intervém a interpretacao de Bananére. Este apagamento do campo de validade da déixis é tio forte que ficam absolutamente ambfguas as indicacGes de espaco, se as referimos 3 indicacao do pais {migna terra) onde é esta terra? Tanto 0 “Is” como o “aqui é 0 Brasil. O ‘espago é o da meméria, o imaginario, Nao se “sai” desse “lugar” ainda que o espaco fisico tenha mudado. Voltaremos a falar da questio da déixs de forma mais abrangente, Nesse passo, basta-nos ligar seu funcionamen- to ao modo como se nomeia o poema: em G. Dias, Cancao. do exilio, em Bananére, Migna terra, em O. de Andrade, Canto do regresso a patria (em que a patria é nomeada: Sao. Paulo). Na parédia de Bananére, a idéia de exilio desapa- 119 rece, nao se deixou um pats pelo outro. O Brasil nao pode ser significado como terra de exlio; a Italia fica silenciada, Do ponto de vista do assunto, também é interessante se observar algumas caracteristicas: 1) apagamento da oposigio de espaco (Brasil/italia), pelo uso da Inglaterra como termo de referéncia (mia terra/Ingraterra); 2) comparando-se os dois poemas, percebe-se que $6 as coisas da natureza 6 que sdo retomadas na parédia de Bananére. Desaparecem as alus6es ao espirito, ao desejo, ao prazer, etc: hd mesmo reducao de 5 estrofes a 4. Sobram as referéncias: aos rios (que sao “mais grandes”), as palmeiras, As galinhas, aos passaros, etc. Fica, também, a referéncia a um personagem ~ 0 Vap ‘reli - que é sintomaticamente um nome terminado em “ell”, sufixo este indicador de origem italiana, entre os imigrantes brasileiros; 3) apagamse termos de comparacio, colocando a comparacao entre seres daqui e daqui mesmo: “as aves che st6 aqui, també tuttos sabi gorgea”; 4) no fala da volta e nao fala da morte. O refido - "Nao permita Deus que eu morra, sem que eu vole paral’ -,repetido intimeras vezes no poema de G. Dias, desaparece na parédia, Esta indicagao, mais a questdo da indistingdo da déixis, nos introduzem no aspecto mais importante trazido por esta parddia e sobre o qual falaremos a seguir. I, Equivoco, apagamento, indistingao Estas caracteristicas da lingua nos levam a sentidos que migram, se dispersam, se indistinguem, € assim que, na andlise de discurso, vemos a relacao entre a ordem da lingua e os seus efeitos que se inscrevem na histéria, visiveis na discursividade. 120 Dirfamos que 0 que se produz af € um discurso do imigrante. O portugués macarrénico nao seria, nesta pers pectiva, uma lingua mas um discursd em que aparece a maneira como, estando em outra lingua, oitaliano trabalha sua inscri¢ao no portuguésbrasileiro. A indistingo em Migna terra (Brasil ou Itélia?), 0 “18” (que € 0 Brasil “aqui”), a escrita com formas misturadas (gn/nh, g/c), 0 nao falar-se em “volta”, sao a propria defini So do imigrante: € 0 que vem e fica. Mas fica como? Aj entra a necessidade de sentidos migrantes, ou me- hor, de sentidos mutantes em um espaco sem muita definigao: entre a Italia € o Brasil. Desse ponto de vista, hé uma especificidade do imi grante em relacao ao colonizador. © colonizador, por definicao, € 0 que, em termos de meméria, exerce sua meméria tradicional, impondo-a (e impondo-se) ao coloni- zado. O imigrante nao se define assim. Ele nao temo poder (nem o direito) de impor sua meméria. Embora toda pratica de linguagem seja transformadora, ele fica mais afetado pela meméria local. A senzala, no Brasil, cede lugar as colénias, Mas af também o sentido & indistinto e opaco: os que vivem nas coldnias, no Brasil, so 0s colonos (e nao os colonizadores) mas também no sio subalternos como eram considerados os escravos. A passagem para o sistema do trabalho assalariado garante uma relacdo de produgao outra que a escravagista, embora submeta 0 colon a0 proprietério rural. A diferenga fundamental € que muitos desses colonos serao, em pouco tempo, 0s novos proprie- trios rurais, Deixando de lado a diferenca entre colono e coloniza- dor, nossa questio recai sabre o estatuto produzido pelo portugués macarronico. E a questo seria: que sujeito é este? Que sentidos prodazt Em que lingua A nossa posicaio é a de que este sujeito que assim se mostra na parédia é um sujeito indistinto, que produz sentidos, cujo gesto de interpretagio nao delimita espagos precisos (nem geograticos, nem em termos de nacio e de Estado), sentidos estes que também se dio em uma lingua indistinta. A indistingao é lugar de dois em um. Presenga de dois no espaco de um: seja do sentido, seja do sujeito, seja da lingua, Aidentidade é um movimento na historia (e na relago com 0 social). A situaco lingbistica que estamos analisan- do nos apresenta isto de modo agudo: um movimento dos sentidos e dos sujeitos, pego em um trajeto em que nao ha estabilidade, ndo ha legitimidade j4 construida, Espaco da sitira, da parddia. Do sujeito e do sentido ao lado do outro sujeito e do outro sentido. Paralelos. Que no se identii- cam, nao se recobrem, nao coincidem. E que jogam entre si Eo sentido mesmo de patria (terra), de cidadao e de lingua nacional que esté em jogo. Esses poemas sio trés versdes relacionadas entre si por parédia. Podemos entéio considerar a existéncia de um sitio de significancia sobre o qual se produzem distintos gestos de interpretagao por diferentes autores - as trés verses - que constituem 05 tr8s poemas com seus deslizamentos de sentidos de que sao ilustracao os tragos que analisamos mais acima, Sao eles pontos de deriva. Efeitos metaforicos onde o sentido (e 0 sujeito) se deslocam para um “outro”, sem atingi-lo, escorregando pelos sentidos. Este sitio significante comum, submetido ao, efeito me- taforico, é o que refere o sujeito a uma sua patria/ou terra entte 0 sujeito e sua patria/ou terra, €0 objeto dos deslizamentos de nossa andlise. Quais sio os sentidos dessa ligacio? Como veremos, eles estao ditos (elaborados) ela relacao do sujeito com os sentidos e, mais especifica- 122 mente, no caso de }. Bananére, pela relacdo do sujeito com sua(s) lingua(s). Esses diferentes gestos de interpretaciio constituem indicios da inscricao do sujeito em diferentes formacdes_ discursivas, Pelas caracteristicas que acabamos de analisar, j& podemos dizer que essa inscricio, longe de ser algo preciso e bem delimitado, ao contrério, é tensa, contradi- tria e mostra que € sobretudo a mistura e a sobrecarga que a pontuam. Podemos dizer que, nestas diferentes verses, os tracos que as distinguem so vérias mas alguns so bastante elo- Gjientel-Na rlagdo de O. de Andrade com G. Das, tatase de associagées tais como palmeiras/palmares (Zumbi), ou a que desloca o sentido de patria para Séo Paulo/e nao Brasil, falando do progresso, ou ainda a que fala em regresso/e nao ‘exfigNa relagao de G. Dias e Bananére, aparece acentuada- mente a diferenca posta pela indistingao do “ls”, enquanto se fala em terra e a patria ndo € mencionada, ou a que nao fala em “volta”, assim como as marcas da diferenca de linguas, como c/g, tt/d, migna/minha, etc. Em dltima instancia é a nocdo de “patria” que esté em questio. IN. A parédia da lingua: 0 proximo e o distante A diferenca fundamental entre, de um lado, G. Dias e O.de » Andrade, e, de outro, Bananére, é que entre os doi ‘a parédia & uma parédia intema ao sentido de patria (estrelas, vida, amores, flores [em G. Dias] / ouro, terra, amor, rosas [em O. de Andradel). Na parédia de Bananére (cartola/gartolla, abdbora/abéboda, tuttos/to- dos) a parddia é sobretudo uma parédia da lingua e a questo da patria é uma questo da relacao entre linguas_ diferentes. No caso especifico que estamos analisando, essa diferenca é trabalhada como satira. 123 ‘Vejamos os deslocamentos que isto produz: 1) Um primeiro deslocamento que dai decorre 6 da instancia da relagao entre andlise de discurso e sociolingiis- tica, A sociolingiiistica - trabalhando coma correlago entre © lingiistico e o social - trataria esta questo sob a rubrica dos dialetos, falares, girias, etc. Na analise de discurso, tratando-se a questao pela nocdo de discurso ~ efeito de sentidos entre locutores - e pensando a forma material ‘como sendo aquela ein que o lingiistico e o hist6rico no 880 correlatos mas constitutivos entre si, essa questo adquire outros matizes Se as caracteristicas que apontamos acima autorizam a sociolingiiistica a tratar esse fato sob a rubrica do dialeto (caipira) de influéncia italiana, em nosso caso, nao se trata do dialeto (caipira) mas da indistingio no discurso, dos efeitos de sentidos produzidos pelo sujeito da imigrac%o. ‘So sentidos que, como dissemos, migram e perturbam }a relacdo desse sujeito com o simbélico. As ordens das diferentes linguas sofrem af uma aproxi- macao necesséria, pela histéria, e sao atingidas em sua capacidade de jogo. Abrem-se os espagos do equivaco, jfompem-se tecidos da formalidade {estruturantes). £ o su- ( jeito se trabalhando e sendo trabalhado na sua exposicl0 \205 efeitos do simbélico, af representado por duas Iinguas. Nessa perspectiva, 0 sujeito ndo est precisamente definido por sua relagao com uma ou outra lingua. Ai ha [um espago de indistingao em que ele trabalha e é trabalha- do por ordens diferentes. E: sujeito claro e ‘distin. Sabemos que linguas diferentes produzem discursos diferentes, ou seja, diferentes ordens simbélicas estruturam- se diferentemente em diferentes discursos. A nossa parédia 124 Migna terra é um exemplar inequivoco desse fato. O sujeito que ai se constitui se mostra em sua descontinuidade, seus pontos de subjetivacao ambiguos ¢ indecisos. Os pontos de diferengas sao pontos de deriva”, lugares ‘em que os sentidos podem ser outros. Em que o sujeito se descola de sentidos que o repetem e se desloca por onde ‘0 sem-sentido pode fazer sentido. A satira & a forma de rela¢do com o imigrante. O que sileiro com o imigrante, s40 justamente os gestos de interpretacio enquanto momentos em que 0 sujeito se identifica: “gestos assumidos como tal pelo sujeito” (gariolla, tutio, maise). 2) Um segundo deslocamento que podemos conside- rar 6 0 que nos indica que 0 gesto da escrita (c/g, gn/oh, tt/d, u/o) € 0 sintoma da vontade de uma “lingua nacional”, a vontade, a satira aparece como fc forma de rélagao ao. renga, integrando-a. Também aqui a ambigiiidade, o equi- ‘v0co, a indistingao trabalham seus efeitos. A origem précientifica da lingiiistica se produz no mo- mento da formacao das linguas nacionais e se desenvolve segundo o eixo do direito (unidade) e da vida (diversidade) como dupla estratégia de apropriacao “antropologica” das, linguagens (M. Pecheux, 1981). 26. Esta questio da devia tem sido tabalhada em outras perspectives tebvicas Inspiadas em M. Pécheux. Em nosio caso, a diferenca bisica esté om ppersarmos os desizamentos em relacio 20 que Péchewx diz do efcta ‘metaféricaremeti 3 interpretagio, tal come a emos estabelecide em nosso trabalho, e & ideologia. Nesse paso, entra toda a especiferdade de uma abordagem dscusia, no modo como concebe a order da lingua como ‘elativamente autBaoma. Em que, tal come eslabelecemos em nossa pesquisa, a interpretagio & constutiva, ou sj nfo hd sentido sem interpretago Este {fata tric fundamental 125 Esta conjuntura é marcada “pelo fio subterréneo das loucuras linguajeiras (..) em que os segredos da lingua afioram na forma parédica do delirio” (M. Pecheux, idem). Podemos pensar esse processo - em que os segredos da lingua afloram na forma parédica do delirio - nao como cum ponto na histéria (cronolégica) das idéias lingiisticas mas como processo que se da quando (sempre que) a vontade da lingua nacional se apresenta nessas “loucuras linguajeiras” Sabemos como o sujeito modemno é canstituido pelos seus direitos e deveres e pelo seu direito de ir e vir. No jogo contraditério entre a universalizagao do hist6- fico - absorgao das diferengas pela universalizacao das relacGes juridicas, no momento em que se universaliza a citculagao das mercadorias, do dinheiro, dos trabaihadores ~ ea historicizacao do universal - modalizagao da igualda- de em condigdes de produgio diversas - para se tornar cidadios, os sujeitos tém de se “libertar dos particularismos histéricos que os entravam: seus costumes locais, suas concepgdes ancestrais, seus ‘preconceitos’ | "écheux, ibidern). egociada da diversidade sfo bem os pres supostos dessa loucura linguajeira que se expressa pela parédia da lingua que estamos analisando. 3} Echegamos assim ao deslocamento que incide sobre © proprio fato da parédia da lingua: a parédia é aqui sintoma da impossibilidade da construgao de uma unidade {imaginaria) desse “estado” de lingua itinerante que é 2 lingua do imigrante, Daf o regime da déixis no ter atuali dade, nao vigorar. Com a parédia, a lingua nao é usada, ela 6 encionaay 2m relacao 4 outra. Em nosso caso, portuguésconio © italiano so mencionados. 126 O deliio escrever nessa lingua - 0 portugués macar- ‘nico - justamente porque, para que uma lingua seja uma lingua nacional, ela deve ser capaz de unidade, de grega- riedade, de distincao. Nao € 0 caso do falar brasileiro italianado (ow o italiano abrasileirado). Essa ndo é, pois, uma lingua. Porque nela ndo @ possivel, ao mesmo tempo, a unidade e 0 jogo. Ela ndo representa uma relacdo capaz de articular a ordem do simbélico (capaz de jogo) e a hist6ria, sem que 0 equivoco, que constitui necessariamente essa relagdo, se rompa e se mostre apenas como equivoco, como contradicae, como incoeréncia, como falha, como inconsisténcia lingiiistica Porque, do ponto de vista discursivo, o equivoco, a contradi¢ao, a falha, 6 0 que é constitutivo mas que, pelo trabalho do imaginério, no se mostram como tal. Esta possibilidade se rompe num estado de lingua em que ha a migracio, a dispersao e a indistincao que obser- vamos no portugués macarrénico. No entanto, na dispersio e na indistinco reais, se € a necessidade imagindria da unidade que define a lingua nacional, no podemos dizer que este “estado” de lingua que analisamos seja uma lingua. Dai dizermos que é um discurso que mostra o trabalho simbélico da relacdo entre a lingua do imigrante e a lingua nacional. Disso resulta que o sujeito que fala 0 macarrénico nao pode, por ele, 86 constituirem cidadéo. Ele f no imaginatio, € sO enguanto falante (ideal) da lingua nacional que ele é cidadlao. Dai um dos lugares de interpre- taco que separam fortemente a escrita da oralidade. Essa separacdo imaginaria constitui critério para a existencia da lingua nacional: pode-se falar o portugués macarrénico mas ndo se pode escrevélo. A nao ser como parédia. Como uma lingua que passa ao lado de outra. Esta sim, com foros de legitimidade e parte da constituigao da cidadania, com sua escrita, 127 Desse modo, também na literatura é dificil reconhecer ‘0 mérito literario da grande literatura em um autor como J. Bananére. Ele fica como um autor que passa ao lado da (lingua) literatura brasileira, Lingua e nagao: a interpretagao ¢ a metafora ‘Algumas consideragdes podem ser dteis quanto 4 ob- servacdo de fatos discursivos na relacdo sujeito/lingua, quando se trata da questo nacional. 1) Atelacio da lingua, enquanto ordem simbélica com a historia, tem sua visibilidade nos processos discursivos. O discurso 6, assim, lugar singular para se observarem aspec- tos que tocam a configuracao da identidade quando o fato alia lingua e hist6ria, como no presente caso em que se __ procuram compreender teristicas ‘ignalidade produzidas no simbélico. 2) Parédia, satira, sfio formas de elaboragao - de resignificacio ~ dessas identidades. Sao também lugares de visibilizacdo dos processos de identifica cos ¢ hist6ricos, ideologicamente constituidos. Nesse sentido, eles devem ser trabalhados nao apenas como formas lingtisticas ou literdrias, mas, sobretudo, como trabalho de processos de identificacao dos sujeitos. 3) A relacao lingua/nacao nao é nem direta nem auto- No caso brasileiro especifico, hé situacdes particular mente interessantes que atestam a complexidade desta questo: 1) Linguas indigenas que desapareceram - dada a relaco de contato com os brancos mais ou menos violenta = fazem-nos rever critérios como o da lingua para atestarem aindianidade. H, assim, povos que nao falam mais a lingua ‘mas nem por isso deixam de ser indios (cf. E. Orlandi, 1990). 128 Hi migragao dos sentidos postos af em relagio & sua identidade, que se deslocam para outros abjetos simbélicos (como a misica, por exemplo, ou o xamanismo, etc.) ou para uum discurso em que os tragos da relacgo com a lingua irrompem na discursividade, transformando. Esses lugares ‘onde irrompe a historicidade lingifstica s80 pontos onde gestos de interpretacao trabalham a deriva, o destocamento, ‘0 equivoco, constitutivos dos (outros) sentidos e dos (outros) sujeitos. 2) Indios que falam linguas totalmente produzidas por missionarios (que se apropriam das linguas indigenas para 0 trabalho de catequese) e mesmo por lingiiistas e antropélogos {que pretendem revitalizar a cultura indigena, ensinando lin- {gua indigena para oindio) eque ndo correspondem mais a uma historia autéctone mas mediada por uma interven¢ao. Ainda ai hd um trabalho de refuncionalizagio historica desses artefatos que pretendem reconstituir a lingua e, conseqiientemente, hé um trabalho de resignificacao da identidade, pelos indios. 3) Hl ainda residuos de uma lingua geral falda maci-_ Gamente nos séculos XVIi e XVIII no Brasil todo e que ainda sobrevive, mesmo que invisivel na lingua nacional, ou em falares de regides mais densamente habitadas por popula- Bes indfgenes, no norte do Brasil, Ai a meméria se incum- be de reatar o fio da historia. 4) Nao podemos deixar de mencionar, ainda que co- nhecamos menos, a situacdo dos residuos dos dialetos africans incorporados pela lingua nacional. 5) Os indicios de linguas de imigrantes, de que tratamos esse trabalho, apenas como uma pequena manifestacio figada ao italiano. 6) Finalmente, e nio menos importante, temos a rela- do entre 0 portugués do Brasil, afetado por todos esses processos identitérios nessas configurac&es historicas da 129 lingua, e o portugués de Portugal, lingua de colonizacao (cf. €. Orlandi, 1993: “A lingua brasileira”). ‘Toda essa complexidade resulta, assim, da relacdo de uma lingua imposta pelo colonizador e a hist6ria que vai expondo 0 brasileiro a essas diferentes ordens simbélicas sem, no entanto, deixar de representar a necessidade da unidade, seja ela qual for. Nao ha lingua nacional que nao se constitua nesse movimento de confrontos, aliangas, oposigées, ambigilida- des, tenses com outras linguas. A relacao lingua/nacao é, pois, matizada por muitos processos e € s6 na relacao de uma consisténcia histérica singular entre a falantes que podemos compreend@la, avalié-la. Um sujeito pode néo estar incisivamen uma ordem determinada de lingua € nem por ss0 deixa de ter sua identidade configurada, justamenite por esa mobi- lidade, ssa plasticidade que o faz passageiro de varias ofdens do simbolo. Esse 6 0 préprio do sujeito (a sua itinerancia), 0 proprio do sentido (0 trabalho do equivoco}, no proprio da lingua, que capaz de jogo. ‘Até aqui falamos em lingua nacional, pensando sobre- tudo 0 sujeito em seus gestos de interpretacio, preso pelo jogo simbélico e significando na hist6ria, pela deriva, pelo deslocamento, pela falha, pelas ilusbes. Resta falar da pré- pria idéia de nag3o. Faz parte do imaginério do sujeito, em sua diferenca, pensar a unidade para identificarse, assim como também faz parte desse mesmo sujeito - 0 da Modernidade e 0 da Contemporaneidade - ter de referirse a uma patria para ter uma identidade “riacional”. Se, pela teoria, sabemos que a unidade é uma iluséo, consfitutiva e necesséria, mas uma iluso produzida pela relagdo imaginaria do sujeito com suas condigées de exis- 130 téncia, assim também a necessidade de uma referéncia inequivoca a uma nacionalidade é uma ilusdo. Mas esta tem um carter eminentemente politico importante de se realcar. Mais do que isso: € essa ilusdo que sustenta em grande medida as nossas formas do social Com as transformagSes das relagdes sociais, nas relagdes entre paises (a globalizacao), nas relagdes econémicas, no @amesma idéia de nacao que é vigente hoje. No entanto, ha uma exacerbagio de lutas pela “nacionalidade”. ‘A nosso ver, ha af um equivoco. As lutas exacerbadas ‘que assim se apresentam, sob 0 modo da luta pela identi- dade, so um deslocamento, uma migragio de sentidos, dado o silenciamento imposto a0 politico. Na falta do politico como mediador nos confrontos de sentidos - é isto 0 politico, na andlise de discurso: o fato de que 0s sentidos so sempre divididos, nao se recobrem -, cesses lugares que corespondem a gestos de interpretacio do politico (nacio, Estado, governo, etc.) sdo catalisadores desses sentidos. Ficam’ sobrecarregados, E produzem catistrofes (guerras nacionalistas, racismro, xenofobia, explosées de mi- ‘orias, movimentos misticos). Que sdo, antes de tudo, meté- foras (no sentido de transferéncias) malsucedidas. Isto certaménte nos leva a refletir: dado o silenciamento do politico, por que é na lingua que se explicitam as confron- tagdes? Porque a lingua pertence a todos e 6, a0 mesmo tempo, 0 que temos de mais propriamente nosso. Lugar de relagio & hist6ria e ao social ¢ lugar de singularidade. ‘Questio final: como esses sujeitos se definem nas relacées como as que acabo de descrever? Como eles se expem a efeitos de sentidos que no s20 capazes de trabalhar sem violencia? Eis uma questo que devemos enfrentar, ndo s6 em relacao a nacionalidade, para entender a formasuijeito atual e 05 desafios de violéncia, as vezes simbélica e as vezes nem tanto, que fazem parte de nosso cotidiano. 131

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