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Capitulo 2 Os filésofos gregos fo- Tam Os precursores dos estudos linguistico-gra- maticais no Ocidente. iN LF X A N a P NG Entretanto, foi particu- larmente com os fil6lo- Ore MC Lee Coc ) A ) Cots Te eure ODDS Bbc ToC oR muri et OTS nT em an RST mM roc seth] Ces te CMMI OsT! ERI GCIs yeni tet PCC oT oon OU CY PTT Mon Cee om nT eLe eo Meer Coecone em Cae tura classica grega e da lingua e do estilo de poetas e prosa- CC CCUM E LMCI ac OMe Oem CEM TATE meee CRS CC ceca oer ele Ome et a ne etc eC Ben ira mela (aC Oe a Re Ccy OEM Om once EE reu es yee MC CORO oR elec erc net te hy else tes No decorrer do tempo, os instrumentos de gramati- za¢ao foram repetindo a ideologia de que a melhor lingua é a dos literatos do passado, que deve ser prescrita pelos gramaticos e seguida pelos falantes e escritores. De la para eMC SU See Meee c recom Urea Cm can CS) eee ce UT Lere OR nan Xe CaCO KERN TSHR S mene ay tar CONT Noe tom on mee hc) da Alexandria dionisiaca. Iustram isso as seguintes defi- Di eday ees eM e Tre MOCO me CAe CoC n Ce toe tulos luso-brasileiros, produtos dessa tradicao (atengéo as Oras uSeS ETE T us) Soa ener ne [eoxereGhODecEa mcm fapetnren® ue ensina a bem ler e f Arteqi 1536 | Grammatica da Fernio de io lingoagem portuguesa | Oliveira 7 — 5 ° justo de falar e escre™ 1540 | Grammatica da lr ‘Um modo certo ¢ justo de re rate sid at eel ver, colhido do uso € autoridade dos ba. I rées doutos. Ha liane a = sina a fazer sem erros a ora- 1770 | Arteda grammaticada | Ant6nio José dos | Arte que ens lingua portugueza Reis Lobato gioportuguess; F - aT j i rte que ensina a pintar e exprimir as jan | Gomaten Pree Xe ae Dias de | are das, para se poder falar e es | iv ever a propria lingua com pecticig, Sree ; ; ina a falar, ler © escrever 1817- | Breve Compendia da | Frei Joaquim do | Arte que ensint & 1819 | Grammatica Portugueza | AmorDivinoe | corcetamente 2 lingua portuguesa. Caneca 1818 | Gramética Filosdfica da | Jodo Criséstomo Colo de pst sabes cS i Melo} zoavelmé inguagem Portuguésa | do Couroe A | orig e analog de uma linguagem ar- L eulada, para expressar 0 pensamento, 1822 | Grammatica Philosophica | Jeronimo Soares | Arte de falar e escrever coLtstaments « da Lingua Portugueza Barbosa propria lingua. “Arte de exprimir nossos pensamentos Fase | Gramatica Nacional Vicente R. da } CostaSoares. | duma maneira conforme as regras es- tabelecidas pela razdo e pelo bom uso. 1864 | Grammatica Nacional | FranciscoJ.de | Disciplina que ensina a falar ea escrever Caldas Aulete | com clareza e harmonia 1881 | Grammatica Portugueza | Jitlio Ribeiro Exposi¢ao metddica dos fatos (¢ das re- ‘gras do bom uso) da linguagem. 1888 | Gramdtica Analiticada | JosédeNoronha | Arte que nos ensina as regras adaptadas Lingua Portuguesa N. Massa a perfei¢io da diccdo de qualquer lin- gua, quer escrita, quer falada. 1888 | Grammatica Portugueza | Joao Ribeiro Conjunto das regras segundo as quais — Curso Médio se fala ou escreve corretamente a lingua. 1890 | Serdes Grammaticaes Ernesto Disciplina ou arte de ler, falar e escrever Carneiro Ribeiro | corretamente a lingua portuguesa, | 1907 | Gramdtica Expositiva | Eduardo Carlos | Estudo das regras para se falar e escre- he Pereira ver corretamente a lingua portuguesa, 1923 | Gramética Elementar da | M. Said Ali Exposigdo metdica das regras que en- Lingua Portuguesa sinam a falar ea escrever corretamente. Fi 1944 | Gramatica Metédica da | Napoleso Reuniio ou exposigao metédica dos fa- | Lingua Portuguesa Mendes de tos atuais de uma lingua, mostrando e Almeida ensinando as regras vigentes para o seu Pinto 42 AGRAMATICA TRADICIONAL His6rica erfica oe Normativa da | Carlos Henrique | Disciplina,didtica por exceléncia, que ‘gua Portuguesa daRochaLima | tem por finalidade codificaro uso idio- midtico, dele induzindo, por classifica- ioe sistematizacéo, as normas que, em determinada época, representam o ideal de expressio correta. Moderna Gramatica Evanildo Ciénciae arte que registra os fatos da P que regi ortuguesa Bechara lingua-geral ou padrio, estabelecendo 08 preceitos de como s¢ fala ¢ escreve ‘bem ou de como se pode falar e escrever: aa eat bem uma lingua. 7 Novissima Gramética da Lingua Portuguesa Domingos Registro sistemético dos fatos linguisti- Paschoal Cegalla | cose dosmeios de expressio, apontando normas para a correta utilizacio oral escrita do idioma, isto é, ensinando a falar e escrever a lingua padrio corre: tamente. 1999 | Moderna Gramatica Evanildo Disciplina com finalidade pedagogic, Portuguesa —Edigio | Bechara que elenca os fatos recomendados como revistae ampliada para serem utlizados em circunstancias: especiais do convivio social. Quadro 2.1 — Definicdes/concepgdes de gramatica em instrumentos de gtamatizagdo do portugués. Assim como na gramitica de Dionisio, o material de apoio das pres- crigdes de todas essas gramaticas também fora/é a literatura pregressa da lingua, 0 que ratifica a tese do PTG. Na contemporaneidade, algumas gra- maticas normativas do portugués podem até se isentar de definir 0 que entendem por gramética, mas partilham, tacitamente ou nao, essa mes- ma perspectiva da modelagem literdria com seus leitores, a qual direciona nosso imaginario ha quase cinco séculos de gramatizacio do portugués. Gramaticos brasileiros como Celso F. da Cunha, por exemplo, nao deixam de explicitar que a corre¢ao linguistica reside na literatura “dos escritores portugueses, brasileiros e africanos do Romantismo para ca’, como regis- tram suas obras Gramdtica da Lingua Portuguesa (1972: 5), Gramdtica de base (1979: 7) e Nova gramdtica do portugués contempordneo (1985: xxiv), esta ultima em parceria com o gramatico portugués Lindley Cintra e ainda hoje a venda nas livrarias'. \ Escritores africanos, particularmente, sao mencionados apenas em Cunha (1979) e Cunha & Cin- tra (1985), CCopftul 2: © LEGADO ALEXANDRINO DA DOUTRINA GRAMATICAL 43 >, ‘Mas de que maneira surgiu essa ideologia da lingua Lainie do passa. do como modelo de correcéo gramatical? £o que tentarei mostrar a seguir i 2.1. Filologia e gramatica na Alexandria antiga ‘ocenario da ramificagao dou- A Alexandria do periodo helenistico foi ae ; constituicao da primej- trindria nos estudos linguisticos que daria origem 4 ae Ta norma-padrao da histéria ocidental — a norma 7 Brego Cs ISsiCo. E denominada periodo helenistico a historia da Grécia e de par- te do Oriente Médio compreendida entre a morte de Alexandre Magno (Alexandre, 0 Grande), rei da Macedénia, em 323 a.C.,ea anexacio da peninsula e das ilhas gregas por Roma, em 146 a.C., marco do inicio do Império Romano. Esse perfodo costuma ser caracterizado pela difusio da civilizacdo grega numa vasta area que s¢ estendia do norte da Africa ' até as costas da India. De modo geral, o helenismo foi a concretiza¢ao de um ideal de Alexandre: o de levar e difundir a lingua e cultura gregas aos Moura Neves (1987: 99) 0 associa ao princi- territérios que conquistava. 7 e a criacdo da gramatica, nos pio da analogia linguistica (cf. capitulo 1) seguintes termos: [...] o helenismo é a concretizago da analogia linguistica. Empregar a lin- | guagem helénica é por em pratica a analogia linguistica. O problema da analogia em si e por si é légico, mas a analogia, passando para 0 terreno linguistico como tal, concretiza-se no padrao que representa o helenismo e chega a significar a propria lingua grega. A exposigao dos fatos dessa lingua 6 afinal, a gramética, Foi nesse periodo (por volta do séc. III a.C.) que as areas particulares do conhecimento humano tiveram seu primeiro e grande desenvolvimento. Nio poderia ter sido diferente com os estudos gramaticais do grego. A lin- gua grega faz parte da familia das linguas indo-europeias, que inclui, entre outras, as principais linguas da Europa, do Ira, do norte da India e da Asia Central. O grego micénico é uma das formas mais antigas de uma lingua indo-europeia. Desde seus primeiros registros — durante a civilizagao mi- cénica (1600-1050 a.C.) — até 0 grego moderno, houve um percurso de mais de trés mil anos de uma lingua viva e de influéncia em praticamente 44 Actuutea mocowL atin ca todos as esferas sociais e areas de conheciment : olitica, economia, arte, direito, medicina, matemstica, astronomia, religido e... gramética. Como todas as linguas naturais de todos os tempos, a lingua grega apresentava, no periodo helenistico, enorme variacdo. Segundo Aredn-Gar- io (2008), © jOnico-atico (dialeto da épica homérica), 0 edlio, 0. arcédio- ~cipriota e 0 dérico eram considerados os quatro grandes grupos dialetais do grego. O que é chamado hoje de grego cldssico corresponde ao grego atico dos séculos Ve IV a.C, 0 que se usava em Atenas a época de Platao. Desde sempre, lingua e poder politico-econémico andavam de maos da- das, 0 que justifica 0 predominio da variedade ética sobre as demais, uma vez que Atenas exercia importante papel artistico, filosdfico e politico no mundo helénico, Com a extensio do uso do grego no ambito comercial e como veiculo cultural e de expansao do império, os dialetos acabaram desaparecendo em prol de uma lingua comum grega, formada sobre 0 dtico, mas também com caracteristicas jénicas e déricas, Essa “lingua franca” e o aparato cultural que a envolvia se espalharam por todo o extenso dominio alexandrino, por meio de sucessivas guerras de conquistas e colonizacées. De acordo com Pinto (2008), tal lingua, considerada uma lingua popular/comum (koiné), diferia em muitos aspectos da lingua grega encontrada nos textos escritos entre os séculos VI e IV a.C. e nos textos dos grandes poetas de séculos anteriores como Homero e Hesiodo. Todavia, o ideal lingufstico-cultural de reveréncia a uma tradicao li- teraria pregressa refletia o espirito do helenismo. Alexandre Magno, fas- cinado pela cultura helénica, foi o responsavel por implantar a civilizacao grega nessas terras. Mesmo com a posterior fragmentacao do seu reino, a influéncia linguistico-cultural do grego se manteve por muito tempo nessas regides, a ponto de, séculos depois, o grego ter permanecido como lingua franca na regiao oriental do Império Romano. A famosa Biblioteca de Alexandria — e todo o circulo intelectual que se reunia ao seu redor — é um exemplo dessa influéncia. O espago con- gregava uma grande colecao de manuscritos gregos antigos, com textos consagrados de poetas, dramaturgos, fildsofos e historiadores. Urgia des- crever e classificar esses manuscritos, além de, diante de versdes diferentes de um mesmo texto, restabelecer criticamente o texto original, “correto”. CCarptule 2: 0 LEGADO ALEXANDRINO DA DOUTPINA GAAMATICAL 45 Talvez essa biblioteca tenha reunido um dos maiores corpora linguisticos do Ocidente de que se tem noticia, Contou em sua direcao com algumas geragdes de sdbios bibliotecdrios, também gramaticos, como Zenddoto ce Efeso (333/323-260/234 a.C.), Eratdstenes de Cirene (276-194 a.C.) e Aris- tofanes de Bizancio (257-185/180 a.C.). ; Os alexandrinos se dedicaram nao sé a catalogar todo wal Precioso acervo, mas principalmente a reconstruir, a partir do estudo cue dos fragmentos disponiveis (que variavam entre si ou estavam danificados e rasurados), 0 texto que poderia ser considerado definitivo da obra de cada um dos autores gregos clissicos. Tratava-se, portanto, de um trabalho fi- lolégico, no sentido contemporaneo e corrente do termo: 0 de estabelecer, validar e editar textos antigos (Dubois et al., 1973: 278). E por isso que, neste livro, as vezes me refiro a tradicao gramatical iniciada com os ale- xandrinos como filolégico-normativa, ou mesmo filolégico-gramatical. Na medida em que a gramatica surge a partir do labor filolégico desses es- tudiosos, estou considerando os termos ‘fildlogo’ e ‘gramatico, no contexto da Antiguidade grega, como equivalentes. Todavia, reconhe¢o as particu- laridades dos oficios do fildlogo [philologus] e do gramatico [grammati- cus], que foram se consolidando a partir do periodo imperial, em Roma: enquanto o fildlogo se preocupava com questdes ligadas ao texto em seu contexto mais amplo, o gramatico estava interessado em aspectos mais pro- ximos do nivel da realizagao formal das sentengas*. Bebendo da filosofia classica grega, como atesta a perspectiva da rami- ficagdo e das muituas influéncias entre os campos tedrico e doutrindrio, dis- cutida no capitulo 1 (figura 1.3), os alexandrinos se envolveram na segunda principal controvérsia filosdfico-linguistica, 0 embate analogia vs. anoma- lia. Tomaram o partido dos analogistas, para poderem aplicar os paradig- mas analdgicos na reconstru¢ao dos textos antigos e na determinacao das normas de aceitabilidade do grego classico, valendo-se desse procedimento para justificar as escolhas textuais consideradas corretas. * Pinto (2008) afirma que, na Antiguidade grega, havia somente uma grammatiké, um oficio com textos, que requeria muita erudigio e, por isso, o grammatikés (antes apenas sindnimo de “letrado”, “conhecedor das letras”) era um sibio aos moldes do philologos; depois, esse grammatikds tornou-se 0 Tesponsével pela grammatistiké, passando a ser o mestre-escola. Com a derrocada do phildlogos, o gram- ‘matikos, tanto por suas atribuicbes pedagégicas quanto por sua renomada erudi¢ao, tornou-se um pri- vilegiado para decifrar arcaismos, figuras de linguagem e sintaxes enviesadas. Tinha por oficio também estabelecer os textos verdadeiros dentre as versdes divergentes, ocupando, portanto,o lugar dos fildlogos. 46 AGRAMATICA TRADICIONAL Histrica erftica Nesse contexto, os poemas Iliada e Odisseia, de Homero — escritos pro- vavelmente no século VIII a.C. e documentados em vers6es finais na historia literdria a partir do século VI a.C, — receberam particular atengfo. Esclarece Perini (2004) que eles foram uma das bases do sistema educacional grego, Sobretudo para os que viviam em pequenas comunidades fora da Grécia — como na prépria Alexandria egipcia’ —, pois seus habitantes estavam expos- tos a influéncias estrangeiras as quais lhes caberia resistir. Assim, 0 estudo criterioso dos textos homéricos levou os fildlogos/ Sramiticos alexandrinos a descrever e comentar a lingua que ali encontra- vam, em seus aspectos fonéticos, ortograficos, morfolégicos, sintaticos, es- tilisticos etc. Vé-se que, nos movimentos inaugurais de elaboragio de uma doutrina que se tornaria milenar, os aspectos empiricos e praticos sobrepu- Jatam os aspectos tedricos. Com o tempo, esses estudos passaram a consti- tuir um ramo auténomo do conhecimento: a grammatiké, a arte de escre- ver. A fim de reunir num wnico tratado as regularidades e irregularidades atestadas nos antigos textos estudados, o que serviria de consulta a outros individuos ao se debrucarem sobre outros textos, nasceu a descricio do primeiro sistema gramatical de uma lingua ocidental: 0 grego homérico. Essa veneracao alexandrina pela lingua homérica — 0 grego classico — marcaria profundamente a histéria da gramatizacao das linguas ociden- tais. Os alexandrinos tinham consciéncia de que a lingua dos poemas ho- méricos — devido ao carater mutavel de qualquer lingua natural humana — nio se identificava precisamente com nenhum dialeto grego vivo da época. Sendo assim, na tentativa de preservar a lingua “correta” de Homero dos “barbarismos” que pairavam nos dominios macedénios, os gramaticos alexandrinos cometeram o que Lyons (1968: 9) chama de “falacia classi- ca no estudo da lingua(gem)”: reconheceram que a lingua tinha sofrido mudangas, mas avaliaram tais mudangas negativamente, além de quererem igualar o grego escrito nos séculos VI e V a.C., em Atenas, ao grego falado no século III a.C., em Alexandria. Assim, os primeiros fildlogos-gramaticos da histéria ocidental esta- beleceram juizos de valor negativos para as inevitaveis diferencas entre 0 Conta a histéria que Alexandre fundou cerca de 32 cidades com o mesmo nome, Alexandria. A mais importante — a qual se vem aqui fazendo referéncia — foi a Alexandria erguida no Egito (Ale- xandria egipcia), ao largo do delta do rio Nilo. capi 0GADAAOANDDADOUTNA GRATE 4] Cee gtego homérico e os dialetos gregos do entdo presente, cometendo dois equivocos fundamentais: (i) a distorgao das relagdes entre fala € guisticas (modalidades da lingua) de turais e pragmaticas; (ii) a assungao da viséo negativa d prejudicial a pureza da lingua greg2- a tradigao pres- Desse modo, os eruditos alexandrinos inauguraram 7 aie gramaticais. A gramatizacao-normatizacao s epistemoldgicas e ide- uistica, Ihe deixou essa escrita, duas entidades sociolin- diferentes especificidades estru- a mudanga linguistica, considerada critivo-normativa nos estudos g do grego homérico forneceu as primeiras diretiva olégicas do PTG. Ao rechagar @ diversidade ling} ‘ é “ je, atitude como legado. Entretanto, ¢ curioso perceber que, ¢m ‘i : anpuisti imam © reconhecimento da variagéo ¢ da mudanga linguisticas esta in orl ‘ ; Fercrtal-atcoaie relacionado ao aparecimento da doutrina gramatical tradicional = cons ciéncia da variacao diatépica (de regiao), diacronica (de epoca) ¢ : regis- tro (de contexto) da lingua, se hoje € um dos argumentos utilizados por outras perspectivas linguisticas para questionar € repensar a ea tra- dicional, ontem impulsionou 0 advento da doutrina na Antiguidade grega. em certa medida, 2.2. Movimento inaugural do PTG: a Tékhné de Dionisio E do fildlogo alexandrino Dionisio Tracio (170-90 a.C.), discipulo de ‘Aristarco de Samotracia (217/215-145/131 a.C.), a autoria da primeira gra- miatica conhecida de uma lingua europeia: a Tékhné Grammatike (tékhné: arte, técnica; grammatiké: gramética), editada pela primeira vez no Oci- dente em 1715. Na Grécia cldssica, as tékhnai (plural de tékhné) eram um género da escrita que elencava definigdes dos objetos de determinada area, nao neces- sariamente gramatical, ¢ as exemplificava. Além da gramatica, elas teriam servido, por exemplo, a medicina ¢ 4 retorica. Nao nasceram com os gra- miaticos alexandrinos: seu uso linguistico, particularmente no tratamento da fonética do grego antigo, ja se verifica com 0s fildsofos estoicos. A gramatica de Dionisio, portanto, ao se organizar nos moldes das tékhnai, nao cria um novo modo de estruturacao de um instrumento nas- cente, mas se insere numa tradi¢do para responder a uma demanda socio- 48 AGRAMATICA TRADICIONAL:Hist6rica ertica cultural recém-configurada: a de que deveria haver um manual de grama- tica para o entendimento dos classicos literdrios e a preservacao da lingua ai registrada. As condi¢ées basilares para tal feito j4 estavam postas, pois havia tanto a vivéncia linguistica a partir de uma tradicdo literaria repre- sentada idealmente na figura de Homero quanto um lastro teérico-analitico sobre a linguagem advindo da filosofia grega fundante. Com certeza nao se teria elaborado uma gramatica da lingua entre um povo que nao tivesse uma atividade de producio linguistica a ensejar reflexio sobre a linguagem (¢ ai entra, nos primérdios, o testemunho da literatura). Nio seria entre um povo que, especialmente, nao tivesse chegado a com- preender que a linguagem se distingue das coisas (e ai entra a filosofia: jé a filosofia pré-socratica, assim como a de Platao e de Aristételes, que con- seguiram mostrar e demonstrar essa separagao) (Moura Neves, 2011: 145). Outro ponto interessante ¢ que a Tékhné de Dionisio nao é a primeira gramatica do Ocidente, mas antes a tinica de uma série de tékhnai gramma- tikai que encontrou respaldo naquele contexto, se tornando uma espécie de “modelo-piloto” de gramatica do que viria a ser 0 PTG. Afora isso, Dionisio, embora tenha de fato existido na histéria da erudigao alexandrina, teria sido uma espécie de autor mitico: normalmente os escritos antigos, embora refe- renciados como se fossem de um tnico autor, eram frutos de uma compila- cao coletiva, estabelecida por meio de diversos autores. Seria esse, entio, 0 caso da Tékhné Grammatiké, que, de acordo com alguns estudiosos, consiste num produto coletivo de autores alexandrinos a partir do século Il a.C.* Segundo Moura Neves (2012), o conhecimento que se credita a Dio- nisio advém, na verdade, de toda a Escola de Alexandria, a partir do século IIL a.C., da qual ele era apenas um dos pensadores. O grande mestre dessa Escola, Aristarco de Samotracia, por exemplo, j4 reconhecia as mesmas oito partes do discurso que Dionisio apresenta em sua Tékhné. Entretanto, tudo © que Aristarco escrevera, supostamente centenas de volumes de comen- tarios e tratados criticos, se perdeu, e dos outros gramaticos alexandrinos restaram apenas fragmentos e informagées vindas por referéncias indire- tas°. Por isso, diversos autores, como Robins (1979), Casevitz & Charpin * A respeito das querelas envolvendo a autoria da Tékhné Grammatiké, cf. Chapanski (2003). Recentemente, no Egito, foram descobertos papiros contendo diversas “artes gramaticais” [tékh- nai grammatikai), com datas estimadas entre os séculos I e VI d.C. Um desses tratados do séc. 1d.C. Caplio 2:0 LEGADO ALEXANDRNO DA DOUTRNA GRAMATICAL 49 Raa (2001), Faraco (2008) e a propria Moura Neves (2012), atribuem a Dionisio a autoria da primeira gramatica do Ocidente, considerada a representante- -mor da gramitica alexandrina. . \ Para Rodriguez-Alcalé (2011), a Tékhiné Grammatiké marca passa- | gem do sentido mais técnico de gramatica, ligado ao reconhecimento dos H caracteres da escrita, para ser vista, partir de entao, como a descri¢ao do { que ha de sistematico na lingua. Nesse sentido, os autores que tratam do tema — a exemplo de Bagno (2009) e Faraco (2012) — costumam dizer que essa gramatica, ao consolidar descrigées de aspectos da lingua grega con- siderada exemplar (0 grego literario classico), fora tomada como modelo pelos estudos gramaticais posteriores. J4 em Moura Neves (2002) se encon- tra esse argumento, quando afirma que, embora a sistematizagao gramatical de Dionisio aponte para uma gramatica descritiva, os padrées selecionados para descricéo revelam uma finalidade normativa, perspectiva em que se apoia a tradigao gramatical ocidental. Em consonancia com o interesse alexandrino pelos textos da literatura atica, a razio maior da gramatica de Dionisio era permitir a leitura dos classi- cos gregos, Sua definicao de gramatica a anuncia como “conhecimento empi- rico do comumente dito nas obras dos poetas e prosadores” (Dionisio, séc. I a.C,, p. 21)*. Essa definigao é praticamente consensual nas graméticas da An- tiguidade: quando no explicitada, norteia tacitamente a obra, como se vé nas gramiticas de Donato (séc. IV d.C.) e Prisciano (séc. VI d.C.). Uma concepgao diferente desta s6 viria a aparecer a época da filosofia escolistica, na Idade Média, entre os séculos XI e XIV; no entanto, mesmo durante esse periodo, gramaticos medievais investiram na retomada da definicao de gramatica de Dionisio. Até no Renascimento ela acabou se sobrepondo as demais definicdes e participando do canon gramatical do periodo (Robins, 1979). E por isso que Moura Neves (1987) afirma que a Tékhné de Dionisio fincou a natureza da disciplina gramdtica como pratica — e nao teoria ou especulacio — e fixou dominios aut6nomos com limites precisos para os estudos linguisticos. Embora caracteristicas de uma epistemologia ligada a procedimen- tos empiricos estejam presentes nessa defini¢éo de gramatica, como se 0 apresenta algumas discordancias com a Tékhné de Dionisio, em particular a defesa de um sistema de nove partes do discurso (cf. Dezotti, 2011). | * A Tékhné Grammatike, de Dionisio Tricio, é citada a partir da traducao existente em Chapanski (2003; 21-36). 50 AGRAMATICA TRADICIONAL Hist6rica erica conhecimento gramatical pudesse ser adquirido por meio da pratica, da experiéncia, vé-se em algumas partes da Tékhné, inclusive no préprio titulo, que a gramatica alexandrina era mais que resultado de simples pratica; era uma arte ou técnica’, no sentido de ser derivada de um proceso cumula- tivo de experiéncias anteriores, devidamente assimiladas depuradas por meio de um aprimoramento continuo (Bassetto, 2004). Portanto, a grama- tica alexandrina é tradi¢io dogmaticamente aceita e melhorada com 0 passar do tempo, e dominar essa “arte” é saber um conjunto de regras que espelham a lingua correta. Vale dizer que a palavra ‘arte’ [tékhné], utilizada e difundida posterior- mente pelos romanos [ars], fora recorrente nos titulos de muitas gramaticas ocidentais na histéria, inclusive gramiticas da chamada “lingua brasilica” do periodo colonial, como a Arte da Grammatica da Lingoa mais usada na Costa do Brasil, do padre José de Anchieta (escrita em 1554-1556 e publicada em 1595, em Coimbra), e a Arte da lingua brasilica, do padre Luis Figueira (1621). Vé-se também, por exemplo, a palavra ‘arte’ empregada no titulo de varias obras gramaticais de um catdlogo setecentista anénimo, atualmente encontra- do na Biblioteca Nacional de Lisboa, intitulado Cathalogo das Artes de Gram- matica em todas as Linguas. Esse documento, analisado em Rosa (2000), lista um total de 186 titulos, sendo varios encabecados pela palavra ‘arte. Entre eles, se destacam a Arte da Lingua Canarim, do padre. Thomas Estevao (1640); a Arte de la Lingua Quéchua, General de los Indios do Reyno del Peru, de Alonso de Huerta (1616); a Arte italiana, do padre Lima (1734); a Arte da Lingua de Angola, do padre Pedro Dias (1697); a portuguesa Arte de Grammatica, de D. Joao de Castello Branco (1643); e até uma Arte pera ensenar a hablar los mudos, de Juan Pablo Bonet (1620). Pode-se dizer que todas essas “artes” sao sucessoras da “arte” dionisiaca e, naturalmente, produtos do PTG. Em sua obra, Dionisio afirma que a arte gramatical pode ser dividida em seis partes: (i) _ leitura e prosédia; (ii) exegese dos tropos poéticos; (iii) restituicdo de sentido das palavras estranhas e das estdrias; (iv) descoberta da etimologia; Por exemplo, “a sexta [parte] éa critica dos poemas, que é a mais bela das partes da arte” (Dion{- sio, séc. I, apud Chapanski, 2003: 21), copie 2:0 ADO ALEXANCRNODADOUTNAAATEA 5 i | \ (v)_calculo da analogia; (vi) critica dos poemas. a / Cea divisio nao corresponde & organizagao babi da Tékhné: composta de vinte curtos capitulos, apenas a parte da deitara € prosédia é dedicado um capitulo especifico (0 capitulo 2). A apresentacio e definicéo das partes do discurso [mere [dgos] ocorrem do capitulo 1 lao 20. Evidentemente, o carater helenocéntrico domina a obra, pois nado se encontra qualquer referéncia a outras Tinguas além do Brego, muito menos aos problemas gerais da linguagem humana. Esse recorte seria transmitido s obras gramaticais alexandrinas posteriores, como a de Apolonio Discolo ea de seu filho Elio Herodiano (séc. II d.C.), além de ter repercutido tam- bém nas gramaticas latinas e se consolidado no desenvolvimento do PTG. A abordagem auténoma da frase (légos] e da palavra [/éxis], definidas como as unidades, respectivamente, maxima minima da descricéo gramati- lo o assunto é gramatica. calf, também faz parte do legado alexandrino quand definigdes em sua Alguns gramiticos latinos, por exemplo, replicam essas obras, como se lé em “Palavra eu defino como a parte do discurso oral que é indivisivel e minima” (Vario, Livro X, § 77, séc.1a.C., p. 150), embora tam- bém considerem partes menores que a palavra no trato gramatical, a exemplo do estabelecimento da dicotomia flexao [declinatio uoluntaria] vs. derivagao [declinatio naturalis]. Sabe-se que, até 0S nossos dias, é a frase ou a ora- cdo a unidade maxima do PTG. Consequentemente, 0 contexto situacional (i)mediato nao costuma ser considerado nas andlises das gramaticas norma- tivas da atualidade, o que resulta no descarte dos interlocutores, funcao e esfera social, género textual, entre outros elementos relacionados a unidades maiores de anilise, como 0 texto e o discurso, indispensdveis 4 compreensio da totalidade de sentidos daquilo que se escreve. Ilustra esse aspecto a passa- gem a seguir, extraida de umas das mais conhecidas gramaticas tradicionais do portugués, a Moderna gramdtica portuguesa, de Evanildo Bechara (1999): Entre os tipos de enunciados, hé um conhecido pelo nome de oragao que, pela sua estrutura, representa 0 objeto mais propicio 4 andlise gramatical, por melhor revelar as relagdes que seus componentes mantém entre si sem ' aac parte de uma frase bem constituida, Frase é um grupamento ordenado/com- posicdo de palavras em prosa que manifesta um pensamento completo” (Dionisio, séc. I a, pleto” (Dionisio, séc. 1 .C., apud 52 AGRAMATICA TRADICIONAL: Hist6rica crtica apelar fundamentalmente Para o entorno (situacao e outros elementos ex- tralinguisticos) €m que se acha inserido, E neste tipo de enunciado chamado oragdo que se alicerca, portanto, a gramatica [...] (Bechara, 1999: 407). Fato interessante apresentado por alguns autores, como Moura Neves (2002) e Bagno (2009), & que essa inabalavel decisdo de por a frase/oragao ome objeto maximo da anélise gramatical, como fazem tanto 0 antigo Var- Tao (séc. 1 .C.) quanto 0 contemporaneo Bechara (séc. XX), é consequéncia de um desvio de filtragem da doutrina gramatical grega pelos romanos, her- deiros diretos do conhecimento linguistico-gramatical helénico. Vejamos. Na Arte de Dionisio, bem como na obra de seu mais famoso sucessor, Apol6nio Discolo (séc, II d.C.), a frase é definida como um autotelés l6gos, algo como “expressio autossustentada’, no sentido de que seus elementos apresentavam uma totalidade sintatico-semantica no interior de um texto e de uma situacao comunicativa, que no eram (ou nao deveriam ser) des- cartados da andlise filolégico-gramatical. Por sua vez, os latinos associaram autotelés a “completo”, “acabado”, “perfeito’, o que os levou a tratar a frase como independente do texto em que aparece, como objeto suficiente de uma anilise gramatical, objeto que por si se vale para o conhecimento das relacées morfossintaticas da lingua. O resultado disso é que o “dogma da frase autossuficiente” (Bagno, 2009) esta presente ainda hoje nao sé nas gramiticas tradicionais, mas também nos livros didaticos ¢ nas graméti- cas escolares, que conceituam frase como “enunciado de sentido completo” (Paschoalin & Spadoto, 1996: 167) ou algo que a isso equivalha. E natural que textos de uma tradicio mais remota nao tenham os mesmos significados quando sao apropriados séculos depois por uma outra cultura, com outras demandas intelectuais e outras perspectivas epistemo- logicas. Portanto, séo comuns deslizes de sentido como esses no desenrolar do PTG, seja por conta de problemas de tradugao, seja por causa de ten- tativas de adaptar a descri¢do do grego classico ao latim, e posteriormente a descri¢ao do latim aos vernaculos europeus das mais diversas familias linguisticas. Some-se a isso 0 fato de que a propagacdo da terminologia gramatical da Tékhné foi feita muitas vezes, segundo Bassetto (2004), sem 0 conhecimento do contetido filosdfico que a engendrou. Mais perto de nds, sobretudo, o astro filosdfico de palavras como ‘sujeito, ‘substantivo, ‘caso, ‘conjungao’ se perdeu nos mais de dois mil séculos de usos distintos ‘Capitulo 2:0 LEGADO ALEXANDRINO DA DOUTRINA GRAMANICAL 53 e distantes desses termos. Isso resultou numa variedade de interpretagdes da metalinguagem gramatical, algumas vezes reveladoras de incoeréncias. Assim, a partir de definicdes elaboradas sobre pilares filos6ficos, os gramaticos gregos e seus sucedaneos latinos foram enquadrando 0s fins linguisticos em determinadas categorias, ignorando certas relacGes que tais categorias mantinham com os respectivos conceitos de base légico-filosé- fica que as originaram. Serve de exemplo a amplitude do escopo da categoria pronome, se comparados os textos dos primeiros autores gregos e os dos seus sucessores. Dionisio considerou pronomes apenas os pessoais (pronomes primitivos) e Os possessivos (pronomes derivados), na esteira da definicao légico-filosofi- ca da categoria — “elemento que substitui o nome’, Cerca de quatro séculos depois, Apolénio Discolo também abarcou na classe dos pronomes 0s de- monstrativos e os relativos, no que é seguido por Prisciano, gramatico latino do século VI 4.C. (Bassetto, 2004). Lentamente, 0 termo foi sendo usado para rotular todos os fatos linguisticos que apresentavam semelhangas ou telacées sintatico-semanticas parecidas, ainda que contradissessem algum elemento essencial da definicio de pronome. A partir de entao, 0 quadro dos pronomes foi se ampliando até chegarmos 4 confusa e contraditéria situa¢ao atual do PTG, em que se consideram pronomes varias palavras que, a rigor, néo se enquadram em uma definicao tinica para essa categoria. Portanto, alguns séculos de reflexdo filoséfica fixaram uma termino- logia carregada de conotagdes e matizes seménticos, da qual os primei- Tos gramiticos lancaram mao, muitas vezes com enorme liberdade, para a fixacao da metalinguagem gramatical. Contudo, em que pesem algumas divergéncias, nossa terminologia gramatical tradicional é, ainda hoje, fundamentalmente a mesma, embora tenha passado por alguns desvios ¢ acréscimos. Os ecos desse fundo légico-filoséfico permanecem até hoje nas gramaticas produzidas sob o PTG. Moura Neves (2012: 214) registra a presenca da taxionomia greco- -latina na terminologia das gramaticas tradicionais do portugués e na No- menclatura Gramatical Brasileira (NGB) de 1959. Aponta que ha, na tradi- ao luso-brasileira, tanto termos oriundos da tradu¢ao latina da gramatica grega (como sujeito, predicado, substantivo, adjetivo, advérbio, conjungao, vogais, ditongo etc.) quanto termos transliterados diretamente do grego 5, 4 [AGRAMATICA TRADICIONAL Hist6rica cttica (anacoluto, elipse, barbarismo, solecismo, crase etc.). Como era de se esperat, alguns desses termos apresentam alteragao da denominagao e manutenc4o do Conceito (ou da aplicagao), enquanto outros apresentam alteragéo do Conceito (ou da aplicacdo) e manutengao da denominaca Em sintese, nossa terminologia gramatical advém direta ou indireta- mente do legado dionisfaco e, consequentemente, das sucessivas geragdes de fildsofos que deram o mote categorial e conceitual para o surgimento da tradicao gramatical na Alexandria helénica. 2.2.1. Das partes do discurso ds classes de palavras 7 Tlustram a heranca terminolégica alexandrina as entio chamadas Partes do discurso” e suas respectivas definigdes arroladas na Tékhné de Dionisio. Partindo da tradi¢ao filoséfica (sumariada no capitulo 1), 0 pai dos gramaticos tradicionais retine os nomes proprios e comuns dos estoicos em uma sé classe, separa os participios da classe dos verbos e coloca os Pronomes € as preposicdes em classes independentes dos artigos e conjun- 0es, respectivamente. Chega, assim, a um total de oito “partes do discurso” nomeadas, costumeiramente na atualidade, “classes de palavras” Indubitavelmente de grande relevancia para a posterioridade dos es- tudos gramaticais, essa organiza¢ao das partes do discurso em oito tipos foi usada até fins da Idade Média, exceto pela auséncia da classe ‘artigo’ em latim (nao ha artigos nos sintagmas nominais latinos), substituida pela ‘interjeigéo’ com os gramaticos latinos, a exemplo de Donato e Prisciano. A gramatizacao dos vernaculos europeus no Renascimento também foi in- fluenciada pelas partes do discurso de Dionisio, chegando até a contempo- raneidade com semelhancas notaveis, conforme se vé a seguir: Substantivo: palavra com que de- signamos ou nomeamos os seres em geral [sEMANTICO] Nome [6Nomal: parte da frase sujeita @ variagio de caso [MoRFossinTATico}, que designa um corpo ou uma coisa abstrata [semANTICO} Verbo: palavra de forma varisvel [worroLdaico] que exprime 0 | que se passa, isto é, um aconte- |} cimento representado no tempo BMANTICO). | Verbo [retéora]: palavra nio sujeita& variagdo de caso [moR- FOSSINTATICO], que admite tempo, pessoas, muimeros [wORFOLSGICO] e exprime ativi- dade ou passividade [semAnrIco). i csivh anste tnhesnetlabect CCopitulo 2: © LEGADO ALEKANDRINO DA DOUTRINA GRAMATICAL 55 palavra que partici da propre: dade dos verbos ¢ da dos nomes: {moRPOssINTATICO, MORPOLO- GIco, sEMANTICo). Ele tem os mesmos atributos que 0: nome ¢ 0 verbo, exceto a pessoa € 0 {monroLdcico). Participio (merocué): © artigo & uma parte da frase sujelta & variagbo de caso [MOR- FossinTATICo}, preposta ou POs: posta 4 declinagio dos nomes {[sinrArico}. Pronome |ANTONyM/A]; palavra empregada em vez de wm nome [MORFOssINTATICO] € que indica pessoas determinadas [sE- MAnrico}. |: palavra prepostaa todas as partes da frase [sintArico] em compo- siglo [MoRFOLGsIco) ou cons: ‘trugho [sintArico). ‘Advérbio [xpfanstemal; parte da sentenga que no tem flexio [NoRFOLOGICO} € quali- complementar a eles [sttATICo} he TUAL/DISCURSIVO), Pronome: desempenha na oragdo pee fica os verbos [sEMANTICO] ou ¢ ‘Adjetive: essenclalmente um mmodificador do substantivo, indicando-the uma qualidade, 0 modo de ser, 0 aspecto ou aparén- ia, o estado [SEMANTICO}. “Antigo: antepbe-se aos substant {os [sinrArico] para indicer que setrata de um ser ja conhecido do Icitorfouvinte, ou de um simples representante de uma dada espe ie ainda nao mencionado [rex ‘as fungdes equivalentes as exer cidas pelos elementos nominais [morrossinTATICo}; servem, pols, para representar um substantivo [moxrossiwririco] ou para acom panhar um substantivo (siNTATL co} determinando-the a extensio do significado [seMANTICO}, Preposigio: palavra invava | [worroLdcico] que relaciona cermos de uma oragio [siN- tirico}, de tal modo que o sen tido do primeiro € explicado ou completado pelo segundo [se- MANTICO). ‘Advérbio: € fundamentalmente uum modificador do verbo, tam: bém podendo reforgar 0 sentido de um adjetivo, advérbio ou modi ficar toda a oragio [seMANTICO]. —_—_ ‘Conjungio [s¥npesmos}: palavra que liga o pensamen- to ordenadamente [sintATico, Antico}. be ‘extuat) e torna evidentes da- dos implicitos da expressio [se- Conjungio: relaciona duas ora- ges ou dois termos semelhantes da mesma oragio [sis tATICo] Interjeigio: espécie de grito com que traduzimos de modo vivo rnossas_emogdes_ [SEMANTICO, piscurstvo} Numeral: indica uma quantidas de exata de pessoas ou coisas, ou assinala o lugar que elas ocupam uma série (skMANTICO). ‘Quadro 2.2 — Partes do discurso (séc. | a.C.) e classes de palavras (séc. XX) no PTG. 56 |AGRAMATICA TRADICIONAL: Histrica ertioa © quadro 2.2 apresenta as oito partes do discurso da Tékhné com suas Tespectivas definigdes, na relacio com as dez classes de palavras do PTG, exemplificadas por meio da Nova gramadtica do portugués contemporéneo, de Cunha & Cintra (1985). £ evidente a correspondéncia quase total entre as Categorias e os conceitos nas duas gramaticas, ainda que ajustes tenham sido feitos no intervalo de dois milénios que as separam. A principal diferenga Teside nas classes interjei¢ao e numeral, presentes em Cunha & Cintra (1985) € ausentes em Dionisio. Vejamos um pouco mais de perto essa questdo. : Em, geral, a linguistica contemporanea brasileira reconhece a categoria interjeigdo, mas lhe nega o estatuto de classe de palavra’, justamente porque qualquer palavra (Droga!), expressio nominal (Gragas a Deus!) ou mesmo ora¢a0 (Macacos me mordam!) pode operar discursivamente como interjei- a0. Marcuschi (1983), por exemplo, afirma que as interjeigGes constituem classes de funcdes discursivas (e nao de palavras) bastante caracteristicas, 4 semelhanga dos marcadores conversacionais e das hesitagdes, sendo cons- tituida de elementos linguisticos pertencentes a outras classes de palavras. A bem da verdade, numa rapida observacao ao fim do capitulo 17 de Cunha & Cintra (1985), dedicado a interjei¢do, lemos que esses autores nao a incluem entre as classes de palavras e justificam tal exclusdo remetendo os leitores ao capitulo 5 da gramética’. Entretanto, negar, a titulo de observa- 40, a condi¢ao de classe de palavra a interjeicdo nao condiz com 0 que efe- tivamente se vé na obra, que dedica um capitulo a cada uma das dez classes arroladas na NGB (capitulos 8 a 17), sendo o ultimo reservado justamente a interjeicao. E como se dissessem, contraditoriamente, que as classes de palavras sao dez, entre as quais esta a interjei¢ao, mas que, naquela grama- tica, ela no seré considerada uma classe de palavra! Além disso, se formos ao tal capitulo 5, 0 que veremos é apenas que Cunha & Cintra agrupam as classes de palavras em varidveis e invaridveis e excluem a interjeigdo de ambos os agrupamentos, por sua condi¢ao de vocdbulo-frase: As classes de palavras podem ser também agrupadas em varidveis e invarid- veis, de acordo com a possibilidade ou a impossibilidade de se combinarem com os morfemas flexionais ou desinéncias. % Jana Minerva de Sanctius (1587), importante descricéo quinhentista da lingua latina, se afirmava que a interjeicao nao seria uma pars orationis “por se incluir primeiro na prépria natureza da lingua- gem” (apud Cardoso, 1995: 165), ¥ “Nao incluimos a interjeicdo entre as classes de palavras pela razao aduzida no capitulo 5” (Cunha & Cintra, 1985: 606). (Copitlo 2: 0 LEGADO ALEXANDRINO DA DOUTTENA GRAMATICAL 57 SS aaa Ss Sao varidveis os substantivos, os adjetivos, 0s artigos ¢ certos numerais e pronomes, que se combinam com morfemas gramaticais que expressam 0 género e 0 mimero; o verbo, que se liga a morfemas gramaticais denotadores do tempo, do modo, do aspecto, do ntimero € da pessoa. Sao invaridveis os advérbios, as preposigdes, 4s conjungdes e certos prono- mes, classes que nao admitem se Ihes agregue uma desinéncia. ; A interjeicao, vocébulo-frase, fica excluida de qualquer das classificagdes (Cunha & Cintra, 1985: 92). s classes de palavras pela distingao variavel vs. Ou seja, ao distinguir a: negar a interjei¢ao a aplicacao desse critério, invariavel e, ao mesmo tempo, ao contrario do que se 1é na observacao do capitulo 17 da esses gramaticos, mas colocam obra, nao retiram da interjeigao 0 rétulo de classe de palavras, tal categoria no mesmo patamar das outras classes, embora salientando sua particularidade de “jocdbulo-frase”, Em outros termos, Cunha & Cin- tra (1985), igualmente as demais gramaticas do portugués em circulacao, “naturalizam” e “protocolarizam” (Borges Neto, 2013) a categoria tedrica interjei¢ao, tomando-a a priori a qualquer movimento classificatério. Além da interjeigao, a classe dos numerais ¢ outra que aparece na gra- matica de Cunha & Cintra, e nao na Tékhné de Dionisio. Quanto ao lugar dos numerais na linguistica contemporanea, as gramaticas brasileiras, com base em teorias e ideias linguisticas, costumam distribui-los na classe ou subclasse dos quantificadores, que, por sua ve7, est contida na classe dos nomes/no- minais (substantivos, adjetivos, entre outros) ou mantém fortes relagdes com ela, conforme pode ser lido em Azeredo (2008), Bagno (2012) e Perini (2016): Chamam-se numerais as palavras lexicais de natureza substantiva ou adje- tiva que possibilitam a referencia a conceitos e objetos como dados possiveis de quantificagao exata Numeral é uma propriedade semantica de uma subclasse dos nomes. Do ponto de vista gramatical, nao ha nenhuma raz4o para conferir uma classe a parte a essas palavras que expressam quantidade exata (Azeredo, 2008: 173, grifos do autor). A TGP [Tradigaio Gramatical do Portugués] postula a existéncia de duas clas- ses que vamos reunir aqui sob o rétulo de quantificadores. [...] A respeito dos numerais, seguimos aqui a licéo proposta por Azeredo |...] Essa saudavel aplicagéo da Navalha de Occam nos livra de mais uma das incoeréncias da tradico gramatical, nesse caso a criagdo de uma classe para abrigar palavras que sao simplesmente substantivos ¢ adjetivos (Bagno, 2012: 825-826). 58 AGRAMATICA TRADICIONAL Hist6rica ctica Os mumerais cardinais tém certs afinidades com os quantificadores (um °s tiPos Principais dos nominais], e por ora serao classificados junto com eles (Perini, 2016: 433). O curioso disso tudo é ver que, em comparacio as dez classes de pala- vras de Cunha & Cintra, a lista de Dionisio, feita ha mais de dois mil anos, parece estar mais sintonizada com os estudos linguisticos atuais, uma vez que nao retine interjeices e numerais em “partes do discurso” proprias. Outra diferenca entre as duas listas apresentadas no quadro 2.2 con- siste na consideracao, por Dionisio, do particfpio como parte do discurso independente do verbo e, por Cunha & Cintra, do adjetivo como classe de palavra independente do énoma (nome) ou rhéma (verbo). E curioso saber do terreno movedi¢o que envolve essas duas categorias ainda hoje € das relagdes de sobreposicéo entre ambas, uma vez que, a depender do cotexto, uma mesma palavra pode se adequar ao rol dos participios (Final- mente, o trabalho esté acabado) ou dos adjetivos (Joao esta bem velho, bem acabado mesmo). Também é curioso 0 fato de algumas dessas novas grama- ticas brasileiras associarem adjetivos e substantivos (6noma) em uma unica classe — a exemplo das ja citadas classes dos nominais de Perini (2010) e dos nomes de Bagno (2012) — e abordagens da teoria da gramatica gerati- va (cf. Chomsky, 1970; Roberts & Kato, 1996) considerarem os sintagmas adjetivais como minioracées, por predicarem conforme os verbos (rhéma). Mais uma vez, o construto de Dionisio, no século I a.C., se revela, sob certa perspectiva, mais atual do que o engessamento taxonémico e categorial da doutrina gramatical no século XX, encabegada pela NGB e representada aqui pela obra de Cunha & Cintra. Ainda tomando o quadro 2.2, semelhangas sao percebidas no que tan- ge as definicdes das classes gramaticais apresentadas em ambas as obras. Por exemplo, enquanto Dionisio afirma que 0 énoma “significa pessoa ou coisa’, Cunha & Cintra conceituam 0 substantivo como “palavra com que designamos ou nomeamos os seres em geral”; Dionisio diz que a antony- mia “pode-se substituir por um nome’, j4 Cunha & Cintra postulam que 0 pronome “desempenha na oracdo as fungGes equivalentes as exercidas pelos elementos nominais”; 0 epirrhema de Dionisio “modifica ou acompanha o verbo”, ao passo que o advérbio de Cunha & Cintra “é fundamentalmente um modificador do verbo”; Dionisio define drthron dizendo que “vem antes Capitulo 2: 0 LEGADO ALEXANDRINO DA DOUTRINA GRAMATICAL 59 | bsszeueneuenbvanenseensee ou depois dos nomes” ¢ Cunha & Cin aos substantivos” Sao semelhangas inco dias de hoje, do paradigma instituido 1 Some-se a isso a falta de objetividad © quadro 2.2 apres zados para as classificagoes propostas nas duas obras. i, em mnorfl od ta, entre colchetes, essa diversidade de critérios, que vari a , mesmo textuais € discursivos, Tais sintéticos, morfossintaticos, semdnticos € até nen +f jcam jue critérios se misturam indiscriminada € assistematicamente, 0 q indicia a precariedade tedrico-metodologica da categorizacao, além de dificultar o ‘1 i i tical, uma vez que, a rigor, ensino-aprendizagem da metalinguagem gramal ; Bo recisar a classe de uma palavra exclusivamente por meio 7 em os “seres em geral” a que dessa definicao, seria possi- entre outras palavras, como J], operar com conceitos que, que intentam cobrir. ra afirmam que 0 artigo “antepde-se ntestes, frutos da permanéncia, nos a Alexandria de outrora. lee uniformidade dos critérios util torna-se impossivel de sua definicéo. Por exemplo, em que consist a definicao de substantivo se refere? Por meio vel classificar problema, responsabilidade, fome, substantivos? E dificil, para nao dizer impossivel arcam a totalidade dos elementos ‘0 dizer com isso que uma classificacao adequada seria base- mas é certo que todos aqueles escolhidos para dos na definicao de todas as a Antiguidade quanto na a rigor, nao abi Nao quer ada em apenas um critério, nortear a classificagao deveriam ser emprega' categorias, 0 que estd longe de acontecer tanto ni contemporaneidade do PTG. Vé-se que, em geral, 0 cri lo nas duas gramaticas, aparecendo ligado a outros critérios formais por um lado, de formas que preferide e funcionais. Isso acarreta um agrupamento, significam e, por outro lado, de formas que exercem determinada fungao no légos/na ora¢ao, mas de modo indiscriminado e engendrando uma tinica lista classificatoria. ‘Além disso, subjaz a essas listas a ideia de que as classes sao fixas e auténomas, ou seja, de que uma palavra ter sempre a mesma classificagao, independentemente de seu contexto de uso. Em geral, essa fronteira rigida entre as classes acompanha toda a historia do PTG" e desdgua nos instru- mentos normativos de hoje. Todavia, uma vez justificavel na Antiguidade grega, nao mais cabe no atual estagio dos estudos linguisticos. Ainda se observa que o movimento classificatério parece ir das categorias, a priori "Um exemplo concreto,extrafdo de Dezoti (2011), no contexto da historiografia latins: Donato (séc. IV), diante de um nome empregado como advérbio, se nega a consideré-lo um “advérbio”, prefe- rindo chamé-lo de “nome empregado como advérbio". 60 AGRAMATICA TRADICIONAL Hist6rica efiea determi 7 com 7 coe de Classificacio, e nao vice-versa. Isso porque, ram tomadas como mul i —— elesasideiad se aaaealizare e i (Borges Neto, 2013) ce ta pervactonals » € nao como “objetos tebricos normativos atuais tena Tie, Em outras Palavras, os gramaticos ao invés de proporem a efinigdes para classes ja dadas previamente, la Outra teoria que comporte novas classes, ou seja, de proporem novos “objetos tedricos” 2.2.2. Sintaxe na gramdtica alexandrina Em linhas Serais, a Tékhné de Dionisio abriga apenas a fonética e a morfologia, ignorando a sintaxe. E verdade que a obra analisa as partes da frase, mas o faz baseada numa divisdo semantica, ¢ nao funcional. De acor- do com Moura Neves (1987: 122), considerar a sintaxe nesse periodo inicial dos estudos gramaticais “significaria um prosseguimento de investigagées teoricas, uma deriva das consideracées filosdficas’, e a gramética ento nas- cente era uma disciplina fundamentalmente empirica. Estudos sintaticos propriamente ditos sé seriam incorporados ao paradigma por meio da obra de Apolénio Discolo”, no século II d.C. Apol6nio, cuja obra é unanimemente reconhecida como o monumen- to mais bem acabado e disponivel na atualidade sobre o pensamento gra- matical alexandrino, tentou desenvolver a primeira ampla teoria sintatica do grego, baseando-se na dicotomia nome-verbo e nas suas relacées com as outras partes do discurso. Segundo Fortes (2012a), suas formulacées sintaticas sao constituidas com base no sistema de partes do discurso e na andlise morfolégica de Dionisio. Apolénio prenuncia o aparecimento das ideias de sujeito, objeto e outros conceitos sintaticos que surgiram poste- riormente, como regéncia. Dedica muita atengao as relagées de concor- dancia e sugere o conceito estruturalista de constituintes imediatos"’, ao ® Nascido em Alexandria, chamou-se Discolo porque sua escrita era julgada dificil, por condensar muitos sentidos em poucas palavras, ou por causa de sua personalidade dificil, ou ainda porque colo- ‘cava em seus cursos questées dificeis de serem resolvidas (Fortes, 2012a). > Blaborado pelo estruturalista norte-americano Leonard Bloomfield (1933) e bastante itil nas descrigées estruturalistas do século XX, o conceito de constituinte imediato corresponde a uma uni- dade [A] que se associa a outra(s)[imprensa] para formar um grupo [A imprensa], que por sua vez vai se associar a outro(s) [de Pernambuco] para formar novos constituintes mais elevados [A imprensa de ‘Capitulo 2: 0 LEGADO ALEKANDRINO DA DOUTRINA GRAMATICAL 61 se referir ao inter-relacionamento de constituintes da frase. Todavia, como bem mostra Kato (1988), esse gramatico nada cogita que equivalha a i tegoria sintagma (nominal, verbal, preposicional...) como proje¢ao maior da categoria lexical. 2.2.3, Notas sobre 0 papel pedagégico da Tékhné ultivar as caracteristicas helénicas fazia da educacao vetor importante na Antiguidade grega. Nesse contexto, a grama- tica era ensinada para que o patriménio literdrio pudesse ser transmitido, Mais que isso, 0 exame das grandes obras do passado (a exegese homérica) era a atividade cultural por exceléncia. A esse respeito, Rodriguez-Alcalé (2011) assegura que havia a figura do grammatistés (aquele que ensina as letras), nome dado aos professores de escolas especialistas na técnica de acesso leitura e a escrita, para se distinguir do grammatikés, 0 que se dedica pratica da gramatica e 4 pro- ducdo das tékhnai grammatikai, como Dionisio Tracio. Sabe-se que essas gramaticas nao se destinavam a alfabetizagao (ou ao letramento), pois seus contetidos eram abordados provavelmente em etapas mais avangadas da educac4o formal. Porém, acrescenta Chapanski (2003): muito embora nao coubesse a tais manuais 0 papel de instrumentos de aquisic40 de escrita e leitura, eles, por certo, se inseriam em contextos escolares e contavam com um fim didatico. Nesse sentido, as trés primeiras partes da Tékhné Grammatiké de Dio- nisio sio dedicadas a questdes da leitura, o que sugere seu caréter pedagé- gico. Pinto (2008), por sua vez, sistematiza essa questéo afirmando que a A necessidade de manter e ct gramatica grega apresentou dois niveis: (i) um mais elementar e pedagdgico, destinado a uma espécie de “letra- mento” e 4 apresentacao dos aspectos fundamentais da lingua escrita; (ii) outro mais relacionado a critica textual dedicada a sistematizacao da lei- tura, contemplando questées ligadas ao contetido e a forma dos textos. Indicios didatico-pedagégicos também podem ser vistos, por exem- plo, em passagens da Tékhné que sugerem a preocupacao de monitorar 0 Pernambuco), e assim sucessivamente [mente] [com frequéncia], até se alcancar 0 constituinte maxi- mo, que € a frase [A imprensa de Pernambuco mente com frequéncia], 62 AGRAMATICA TRADICIONAL Hist6rica oftica leitor quanto a organizagao do material e de apresentar estratégias mne- moénicas para a apreensio do contetdo. Nao Taro, a construcao do texto da gramatica de Dionisio é pontuada por recursos que chamam a atencao do leitor para a quantidade de categorias, divisdes, entre outros aspectos tipi- cos da didatizacao: “Quatro das consoantes sao invaridveis” (p. 24); “uma silaba comum Pode se constituir de trés maneiras” (p. 25); “a frase tem oito Partes” (p. 26). Outro indicio é 0 par pergunta-resposta presente, por exem- Plo, no capitulo 4, relativo a pontua¢ao: “Em que diferem ponto [final] e ponto inferior? Na duragao. No ponto final o intervalo é longo, no inferior, em todos os casos, curto” (p. 22). Portanto, se o manual de Dionisio nao fora o modelo inaugural de difusdo do género Sramatica escolar, 6 ao menos um bom representan- te do formato e Péde ter influenciado toda a tradicao vindoura. Além disso, opera, dentro do contexto maior da produgio filologico-gramatical alexandrina, um movimento inaugural no universo grego de reflexéo sobre a linguagem, em curso durante cerca de cinco séculos (III a.C. a II d.C.). Baseando-se nas reflexes sobre lingua e gramatica feitas pela dialéti- ca filoséfica classica, no que diz respeito tanto aos principais temas tratados quanto ao arcabouco terminolégico e descritivo construido, os gramiticos ale- xandrinos perseguiram dois objetivos: descrever o grego classico (descri¢ao) e, ao fazé-lo, estabelecer um modelo, um padrao a ser seguido por todos os que se dedicassem a escrever (prescricio). Nasciam assim a doutrina gramatical ocidental e o paradigma prescritivo-normativo de reflexao sobre a linguagem humana, 0 que denomino paradigma tradicional de gramatizacao. Desde os alexandrinos até hoje, o PTG também se caracteriza por conter um componente descritivo, a partir do qual se estabelece o conjunto de regras de boa formagio e sao excluidas as construcées que divergem desse conjunto de regras. E por isso que Moura Neves (2009a) tem razio quando julga problematico chamar de normativa a gramatica tradicional, pois tal denominagao nao reflete integralmente a natureza das obras. Pre- cisamente, trata-se de um construto descritivo-normativo, ou, no dizer da autora, descritivo com finalidade normativa, exatamente o espirito que vem presidindo a organizacao das gramiticas ocidentais e 0 ensino de lingua (portuguesa) através dos tempos. Capitulo 2:0 LEGADO ALEKANORNO DA DOUTRINA GRAMATICAL 63

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