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9 Uma nova reestrutura¢cao produtiva pés-crise de 2008? Juri Tonelo IntrRopuG¢AO Este capitulo visa desenvolver uma indagagao que consideramos fundamental para 0 entendimento do alcance e do significado das transformacées atuais do mundo do trabalho na dltima década, ao observar o plano internacional: Para abordar essa questéo, buscaremos expor os tracos gerais do toyotismo e da acumulacao flexivel no periodo pré-crise ¢, tendo essas informagées como parimetro, pretendemos expor os principais eixos do processo em curso na atuali- dade—em particular as mudangas na legislacao trabalhista, os impactos laborais do fendmeno da imigracdo ea introducao de novas tecnologias no mundo do trabalho (a chamada “economia de plataforma”) — para, a partir daf, tracar hipdteses sobre © cendtio que se avizinha. A REESTRUTURACAO PRODUTIVA NA ERA NEOLIBERAL Partimos da consideracdo de que o proceso de acumulagéo flexivel é uma das caracteristicas mais marcantes da reestruturagao produtiva neoliberal: sua marca & ter ultrapassado os limites da rigidez fordista, incorporando os elementos de avango tecnolégico do toyotismo ¢ indo além, uma vez que esteve intimamente relacionada com a mundializagao do capital, ou seja, com a “globalizagio neoli- beral”. Nesse processo, em que o capital financeiro atinge niveis inimagindveis de articulagao entre distintas regides do globo como forma de combinar a exploragéo mais selvagem do trabalho, ele se utiliza dos grandes polos industriais para pro- dugéo e montagem, e se aproveita dos melhores polos tecnolégicos como parte da “composicao” da producéo. Digitalizado com CamScanner 140 Uberizagdo, trabalho digital e Industria 4.0 Nesse sentido, se tomarmos o apogeu do toyotismo japonés como proceso produtivo entre 1948 ¢ 1975, podemos dizer que a marca dos anos 1980 ¢ 1990 foi a expansio de formas hibridas do toyotismo do Japéo até 0 conjunto do Ocidente “rico”, em paises nos quais predominavam formas arcaicas, brutais, da exploragio capitalista. Nesse sentido, o neoliberalismo como meio de modificagio das relagbes de trabalho, a fim de ganhar sobrevida diante da crise de acumula- ao dos anos 1970 é, de certo modo, uma complexa combinagio de formas de exploragio ¢ de constituicéo do sistema produtivo. Foi sob essa perspectiva que David Harvey desenvolveu 0 conceito de acumulagio flexivel, a qual tem, entre ‘suas caracteristicas, estar de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produgio inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de servigos financeiros, novos mercados ¢, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovagao comercial, tecnoldgica e organizacional, A acumulagio flexivel des do desenvolvimento m vvasto movimento no emprego no chamado “setor de servicos”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regides até entao subdesenvolvidas.! . Ricardo Antunes aprofunda essa perspec- tiva quando, em sua reflex4o no debate sobre 0 conceito, aponta que essa [forma de acumulagio] articula um conjunto de elementos de continuidade e descontinuidade que acabam por conformar algo relativamente distinto do padrao tayloristalfordista de acumu- lacdo, Ele se fundamenta num padrio produtivo organizacional ¢ tecnologicamente avangado, resultado da produgio de técnicas de gestao da forga de trabalho préprias da fase informacional, bem como da introducéo ampliada dos computadores no processo produtivo e de servicos. Desenvolve-se uma estrutura produtiva mais flexivel, recorrendo frequentemente & desconcentracao produtiva, &s empresas teceirizadas etc. Utiliza-se de novas técnicas de gestdo da forca de trabalho, do trabalho em equipe, das “células de producio”, dos “times de trabalho”, dos grupos “semiauténomos", além de requerer, a0 menos no plano discursivo, 0 “envolvimento participative” dos trabalhadores, em verdade uma participacao manipuladora e que preserva, na esséncia, as condigées de trabalho alienado e estranhado. O “trabalho polivalente”, “multifuncional”, “qualificado”, combinado com uma estrutura mais horizontalizada 1 David Harvey, Condigio pés-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudanga cultura (ad. Adal Ubirajara Sobral ¢ Maria Stela Gongalves, Sao Paulo, Loyola, 1992), p. 140. Digitalizado com CamScanner Uma nova reestruturagdo produtiva pés-crise de 20087 141 c integrada entreas diversas empresas, inclusive nas empresas terceitizadas, tem como finalidade a redugio do tempo de trabalho? A combinagio entre as formas “polivalentes”, “multifuncionais”, “qualifi- cadas’, com formas terceirizadas, rotativas, precarizadas do trabalho é uma das chaves, do ponto de vista da reestruturagio produtiva, para se compreender a acumulagio flexivel, A vantagem estratégica explorada pelo capital no seu intuito de acumulagéo neoliberal era debilitar as formas de organizagio coletiva do mundo do trabalho ¢ aprofundar a integragio “por cima” do sistema de comunicacéo e circulagio, fazendo com que, em uma mesma mercadoria, houvesse pecas produzidas em distintas partes de um dado pais, ou ao redor do mundo; por exemplo, produzi- das em Bangladesh ou na China, montadas no México ou no Brasil e com chips desenhados e desenvolvidos no Vale do Silicio estadunidense pelo cibertariado, na expressio de Ursula Huws’, definindo esses operdrios do mundo virtual. A quebra da estabilidade e a atomizacio laboral como parte do esforgo de dificultar a organizacao coletiva expressar-se-iam nos distintos mecanismos de fle- xibilizagdo, nas formas de terceirizagéo nas empresas e de rotatividade no trabalho (que fariam com que trabalhadores permanecessem poucos meses em fibricas fossem substituidos regularmente), explorando as divisoes intralaborais em cada fabrica e valendo-se de praticas como a xenofobia, o racismo ¢ outras formas de opressio para dividir os trabalhadores no local de trabalho e dificultara integracio. Sem fazer uma exposicao longa sobre o tema, j4 que visamos apenas indicar 05 tragos fundamentais da reestruturacéo produtiva neoliberal, podemos avancar na compreensio do que seria um “agravamento” dessa reestruturacio do capital no periodo pds-crise econdmica de 2008. O que nos interessa nesse ponto é a se- guinte pergunta: a solugao de precarizar 0 mundo do trabalho com terceirizacio, flexibilizagao, rotatividade no trabalho, horas extras, banco de horas etc. teria encontrado seu limite no periodo anterior? Ou seja, podemos falar na consolida- a0 de uma “nova reestruturagio produtiva” pés-crise de 2008, ou apenas em um aprofundamento da reestruturacao produtiva neoliberal? As TENDENCIAS DA NOVA REESTRUTURACGAO Apésa crise de 2008, o capital entrou em um impasse: a bancarrota do modelo de acumulagéo neoliberal sem a perspectiva de uma nova resolucdo de acumulacao internacional. O resultado para o mundo do trabalho também nao poderia ser 2 Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmazio e a negacio do trabalho (Sto Paulo, Boitempo, 1999, colegio Mundo do Trabalho), p. 54. > Ursula Huws, A formagéo do cibertariado: trabalho virtual em um mundo real (trad. Murillo van der Laan, Campinas, Editora da Unicamp, 2017). Digitalizado com CamScanner 142 Uberizagdo, trabatho digital ¢ Indtistria 4.0 outro, Nao se tratou de negar os métodos do perfodo neoliberal ~ jé que nao se encontrara outro padrio de acumulagio capaz.de levar a uma metamorfose completa ¢ mais abrupta =, mas sim de buscar aprofundé-los dentro das novas condigées econdmicas, 0 que sé poderia levar a formas de decomposicio do trabalho e da estrutura produtiva de muitos patses, em nome da agio de engordar as massas de Iucro de um conjunto de monopslios. Entre as condigdes impostas pela crise econdmica internacional, que apon- tam para aspectos de transformagio na forma da acumulagao flexivel capitalista, esto: a) idade (2009-2010) buscavam alterar as condigées de produgio ¢ reprodugao do capital apés a crise; b) o fendmeno da imigragao sendo incorporado em outra escala a partir da crise no metabolismo social do capital (especialmente pés-2015); ¢) a introdugéo de novas tecnologias de informagio ¢ comunicagao (TIC), robotizagdo e inteligéncia artificial, que vim transformando as formas de contratacao da forca de trabalho, bem como de sua prdpria dinamica, fendémeno que poderiamos sintetizar como uberizagio do trabalho ¢ Indiistria 4.0. Vejamos, brevemente, cada um desses aspectos para compor nossa conclusao sobre a questao de se falar em uma “reestruturacio produtiva pés-crise”, Nao ha diivida de que os impactos da tiltima década no mundo do trabalho que vio no sentido de aprofundar a reestruturagéo produtiva neoliberal foram as investidas do capital contra o trabalho de 2009-2010, particularmente na Europa, conhecidas como planos de austeridade. © fundamental da atuacéo do grande capital internacional ¢ dos governos nacionais em comparagio a outras crises (em particular a Grande Depressio de 1929) est na resposta crise, dada de forma mais ou menos coordenada, com politicas monetirias ¢ fiscais ofensivas: de um lado, os distintos governos injetando trilhdes de délares nas economias nacionais a fim de salvar bancos e grandes empresas — 0 que acabou por evitar um desenvolvimento depressivo da crise; de outro lado, uma politica fiscal de arto- cho, mecanismo decisivo para a manutengo do sistema financeiro ¢ industrial, como a implementacéo dos chamados planos de austeridade na Europa (grande laboratério social dos primeiros anos da crise). Esse aspecto ¢ muito importante para compreendermos a reestruturacéo do capital, pois é, de certo modo, o mais “neoliberal” dos aspectos do pés-crise, no sentido de buscar reproduzir novamente as condicées de exploracao anteriores (corte de salarios ¢ beneficios, aumento das jornadas, precarizagéo das condigées laborais etc.), mas de uma forma ainda mais intensificada, vide o exemplo da Espanha‘ e da Grécia’. +” Blies Furié Blasco e Matilde Alonso Pérez, “Desempleo y reforma laboral en Espaiia durante a Gran Recesién’”, Cabiers de Civilization Expagnole Contemporaine, n. 14, 2015. + Georgios Karyotis e Wolfgang Riidig, “The Three Waves of Anti-Austerity Protest in Greece 2010-2015", Political Studies Review, 15 fev. 2017. Digitalizado com CamScanner Uma nova reestruturagdo produtiva pés-crise de 2008? 143 Bfetivamente, no se tratava de um plano de recuperagio desses Estados, sento de formas de paises como a Alemanha ou a Franga descarregarem a crise nas costas das classes trabalhadoras grega, espanhola, portuguesa etc, Esse € um dos fandamentos daquilo que possibilitaré uma grande ¢ acclerada mutagio no mundo do trabalho na Europa, além de um dos componentes de sua “era de precatizagio estrutural"S, tendo em vista que, com os ataques da austeridade, rebaixou-se consideravelmente 0 valor da forga de trabalho nos setores piiblico ¢ privado, asim como as condigées de reprodugio dessa forca de trabalho (expressas nos dados sociais), com mudangas na legislagio abrindo caminho para o trabalho intermitente € a “pejotizagao”, nto omo expressio do avango da extrema direita) e a subsequente incorporagéo dos imigrantes no mundo do trabalho, particular- mente os europeus, com as distintas formas de capital aproveitando a crise para imprimir novas condigées de precarizacio, Ou seja, se 0 efeito imediato da crise foi uma onda de demissées, atrelada a uma retirada de direitos trabalhistas, 0 capital utilizou-se de modo consciente também da xenofobia ¢ das novas condi- gdes de crise econémica como fatores para rebaixar o valor da forca de trabalho € aumentar as taxas de lucro. Valendo-se da posigéo mais fragil dos imigrantes, pela situaco de estarem em ‘outro pais—em empregos precirios, na maioria das vezes sem familiares ou amigos a quem recorrer numa situacio de desespero —, os empresrios tém expandido 0 ritmo ¢ a intensidade da exploragéo dessa forca de trabalho, chegando ao ponto de, em alguns informes de imigrantes recém-chegados, oferecer “trabalhos” em toca de alimentagao ¢ moradia; ou seja, uma forma atualizada de trabalho escravo, utilizado mesmo pelo préprio Estado. Em Novara, Udine, Rovereto, Livorno, Firenze, Prato, Cesena, Vittorio Veneto, Treviso, Reggio Emilia, Este, Bari, Reggio Calabria etc., os refugiados que pedem asilo tém sido empregados gratuitamente em trabalhos de utilidade puiblica, quase sempre de policia.” Quando niio estao nessa situagdo, os imigrantes se veem muitas vezes na condigio de ilegalidade juridica, da qual as distintas formas de capital também tiram proveito para imprimir um grau maior de exploragio da forca de trabalho dessas pessoas. A propésito, Aziz Choudry e Mondli Hlatshwayo argumentam que © Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit, 7 Pietro Basso, “As emigragSes sio sempre forgadas” (entrevista a Juan Dal Maso, primeira parte), Exquerda Diario, 30 set. 2015; disponivel em: ; acesso em: 15 maio 2019. Digitalizado com CamScanner 144 Uberizagdo, trabatho digital e Indtistria 4.0 a criagio € manutengio de categorias de trabalhadores com diferentes conjuntos de direitos ligados a sua situagio de imigrante é uma caracteristica politica padrio ¢ uma estratégia capitalista fundame onamento de muitas economias, facilitando a provisio de custos trabalhistas reduzidos para os empregadores Postos de trabalho indocumentado sio particularmente sujeitos & exploragio pelo capital, a fim de reduzir os custos trabalhistas ¢ gerar m: ior mais-valor.* Osimigrantes indocumentados sio focos ainda mais frdigeis da exploragio pelo capital, jf que estio bem mais suscetiveis a qualquer pressio, por medo de serem denunciados pelos préprios empregadores. Nesse sentido, em sua obra, Choudry ¢ Hlatshwayo desafiam “a construgio de migrantes indocumentados e outros sem status de imigragio como ‘ilegais”. E seguem apontando que essas categorias de migrantes sio as mais exploradas e vitimizadas — por empregado- res ¢ por autoridades estaduais na forma de detencées, violencia e deportagées. Em muitos casos, esses trabalhadores fazem trabalho precétio e perigoso, e seus diteitos sio violados pelos empregadores que se aproveitam de seu status.? Nese sentido, os autores apresentam uma das respostas que tém surgido em meios ativistas e de movimentos sociais ao redor do mundo na forma do lema “Ninguém ¢ ilegal”. A incorporacéo desse elemento (em outra escala pelos efeitos da crise) na rees- truturacao do capital nao esté dissociada das causas que levam & emigracio, mas, na realidade, as aprofunda. Se formos descrever os tépicos gerais do que leva a esse fenémeno, poderfamos citar: as diferencas gigantescas de condigées de vida entre paises do Norte e do Sul do mundo, o crescimento do agronegécio ea urbanizacio, criando inchagos e grandes megaldpoles de miséria nos paises subdesenvolvidos ea politica imperialista, com impactos sociais nefastos, tendo como grande exemplo © caso da Siria e 0 enorme éxodo do pais, produto do prolongado softimento da populagéo com guerras ¢ interveng6es imperialistas. Pietro Basso analisa em dimensio ampliada esse fendmeno quando diz que © crescimento das migragées internacionais se deve a causas estruturais de longo prazo. As principais sao: 1) a desigualdade de desenvolvimento produzida pelo co- lonialismo € neocolonialismo, que tém dividido 0 mundo em paises ricos e paises pobres; 2) a violenta pressio do capital e das multinacionais do agronegécio sobre aagricultura dos paises da Asia, da Africa e da América Latina, que esté expulsando ‘Axis Choudry © Mondli Hlatshwayo, “Just Work? Migrant, Capitalist Globalisation and Resistance", em Azis Choudry e Mondli Hlatshwayo (orgs.), Just Work? Mignane Workers Serugles Today (Londres, Pluto, 2015), p. 5. Tradugio nossa, * Idem, Digitalizado com CamScanner Uma nova reestruturagdo produtiva pos-erise de 2008? 145 do campo enormes ma cs pobres ¢ trabalhadores rurais; 3) 0 endivi- damento forgado desses palses; 4) a cadeia infinita de guerras “locais”, relacionadas diretamente, ou por intermedidrios, aos Estados curopeus © aos Estados Unidos necessitio nao esquecer o massacre sistemAtico € periddico de Gaza por parte de Israel); 5) 0 desastre ecoligico, A crise quie irrompett em 2008 tem exasperado todos esses processos."” Tendo isso em vista, nao resta dhivida de que o fendmeno da imigragao tem fatores estruturais que sio bem anteriores 4 crise, mas, nesta tiltima década, cada um desses fatores teve seus efeitos intensificados, particularmente em sua incorporagio na légica do capital com, no tiltimo capitulo da crise, a emergéncia de governos de extrema direita ¢ com o crescimento da xenofobia atingindo uma nova escala. Isso permitiu ao capital criar condigées bem mais favordveis para aprofundar a precarizagio geral da forca de trabalho e amplificar a divisio no interior do movi- mento operirio entre contratos formais ¢ informais, estaveis e rotativos, assiduos ce precitios, trabalhadores “nacionais” ¢ imigrantes. Assim, do ponto de vista da crise, trata-se de uma dialética entre as conse- quéncias devastadoras no Sul do mundo ¢ a forma de se utilizar dessa violéncia para rebaixar 0 valor da propria forca de trabalho nas poténcias (sobretudo, 0 continente europeu), forcando os imigrantes a ser parte constitutiva do movimento de reestruturacio do capital no pés-crise. Um terceiro componente que consideramos de importancia decisiva na rees- truturagéo do capital est na utilizacao de novas tecnologias de comunicagio, com a emergéncia das “economias de plataforma” como forma de debilitar de maneira decisiva qualquer elemento de estabilidade laboral e aumentar o controle do tra- balho, relacionando-se, portanto, com essa tentativa de atomizar completamente a classe trabalhadora em alguns ramos especificos. Isso quer dizer que, por um lado, entramos em uma nova escala do que seria o trabalho temporério, intermitente, ampliado, terceirizado; no limite, uma tentativa de debilitar (em alguns casos, estracalhar) a “jornada de trabalho” regular e, ao mesmo tempo, fazer o trabalha- dor vender por mais horas sua forca de trabalho, em escala semanal. Por outro lado, amplificamos consideravelmente as tentativas de insergao de tecnologias no Plano industrial, aumentando a automacio ¢ o controle do trabalho, somados & Propaganda de que vivenciarfamos uma Quarta Revolugéo Industrial a partir da Indastria 4.0, a era da comunicatividade e da interconectividade. Comecemos pelo fendmeno das economias de plataforma ¢ pela uberizagdo do trabalho, Realizamos uma entrevista com Ursula Huws no ano de 2017, ocasiio em que ela falou sobre o cibertariado ¢ sobre as novas condigées de trabalho. "® Pietro Basso, “As emigragoes sio sempre forgadas”, cit Digitalizado com CamScanner 146 Uberizagdo, trabatho digital ¢ Indhistria 4.0 “Temos outro enorme crescimento da classe operiia por meio do que podemos chamar de “formalizagio da economia informal"; o tipo de trabalho que costumava ser do setor ptivado ott da “pequena produgio", por exemplo, trabalhadores da limpeza, limpadores de janelas, cuidadores de idosos ou criangas, que sao pagos diretamente em dinheito~normalmente, na maior parte do mundo =, fora do escopo das relagies, formais do capitalismo, Agora, conhecemos as plataformas on-line como a Uber, sugando os trabalhadores para dentro da érbita das relagées formais do capitalismo; embora nio sejam funcionais, estio sujeitos A disciplina capitalista, & disciplina do tempo ¢ outras formas de disciplina e superviséo por capitalistas. Enquanto nos es- tigios iniciais (da produgio fabril inclusive), o modelo de trabalho era originalmente um modelo de aluguel - cles néo empregavam diretamente os trabalhadores, mas alugavam um espago na fabrica no periodo inicial do desenvolvimento industrial -, essas empresas de plataforma estéo usando também um modelo tipicamente de aluguel: tomam para si uma percentage por cada transagio."" Huws chama atengio para a capacidade com a qual o capital, pela via das novas tecnologias de comunicagio, vem conseguindo incorpotar uma série de trabalhos antes informais, fragmentados, a uma rede de monopélios, plataformas digitais, “proletarizando” o setor de servicos ¢ fazendo com que as empresas pos- sam atingir grandes margens de lucto naquilo que antes era tido como trabalhos “improdutivos”, no sentido que Marx dé em O capital, ou seja, que nao geravam mais-valor™. E isso ocorre em paralelo ao fato de que o cibertariado aparece como “prestador de servigo”, isto é, em outro Angulo a partir da uberizagio, como “fora” de relagées formais e, nesse sentido, fora da legislagio trabalhista. ‘Assim, foram se inovando os métodos de aproveitar essa forga de trabalho sem dar garantias ou direitos trabalhistas, mantendo o trabalho atomizado e subordi- nado a plataformas, ou seja, amplificando em uma escala até entéo nao realizada a flexibilizagao das condicées de trabalho. Express6es disso so o que na Inglaterra ficou conhecido como “zero hour contract” (contrato de zero hora] ¢ formas de trabalho “on-demand”, pagamento com voucher na Itélia ea forma mais conhecida, as plataformas digitais, como Uber, iFood ou Rappi, que criam esse novo sentido da morfologia do trabalho, em que se modifica a jornada de trabalho regular para devastar todos 0s direitos trabalhistas, as férias, 0 décimo terceiro, entre outros direitos relacionados & carteira assinada, Agora, utilizam-se os trabalhadores nos minutos, nas horas ou nos dias em que é conveniente, sendo depois descartados & prépria sorte na maré da crise e do desemprego. Além disso, com a redugio dos diteitos e com o rebaixamento da forga de trabalho, o “estilhagar” da jornada, ironicamente, s6 pode ter uma consequéncia Ursula Huws, “Tenho a sensagio de que essa nova classe operiria esti comecando a se mover", Ideias de Esquerda, n. 2, ago.-set. 2017, p. 28-32. © Karl Marx, O capital: rttica da economia politica, Livro III: O proces global da produgéo capitalsta (cad. Rubens Enderle, Sio Paulo, Boitempo, 2017, colegio Marx-Engels). Digitalizado com CamScanner Uma nova reestruturagdo produtiva pés-crise de 20087 147 clara: 0 aumento da jornada, com trabalhadores “fazendo 0 seu hordrio”, na pratica trabalhando dez, doze ou até catorze horas didtias, Sem diivida, essa é uma das tendéncias fundamentais da reestruturagio do capital no pés-crise. No que tange 4 Indhistria 4.0, tendo a Alemanha como propulsionador, 0 cixo da “revolugéo” que estaria ocorrendo nas indiistrias seria a comunicatividade, particularmente com a introdugao da chamada “internet das coisas”. A capacidade de utilizagio de controles remotos ¢ sensores, permitindo interagao 4 distdncia entre os humanos ¢ os objetos, ja data de algumas décadas; no entanto, a diferena fundamental estaria no fato de que, agora, essa forma de interagao nio seria apenas bilateral, mas sim mediada pela internet, conectando pessoas e coisas, permitindo que as trocas de informacées alcangassem uma velocidade muito maior, progra- mando objetos ¢ maquinas para processar, selecionar e enviar informagao — por exemplo, sobre a necessidade de novos insumos industriais -, criando canais de rede entre a producio e a circulacio. ‘Tal mudanca viria acompanhada de uma robotizacéo muito maior das indiis- trias, com a introdugao da inteligéncia artificial, Entre os destaques no que se refere A reestruturacio produtiva, estariam as tecnologias de machine learning, que permi- tiriam as maquinas desenvolver, gradativamente, uma capacidade cada vez maior de gerar dados da producéo e processar informagées para oferecer “solucées” de novo rendimento do capital. Em paralelo estéo as novas tecnologias de impressio 3D, possibilitando uma evolucao significativa no modo de produgao de mercadorias, inclusive atingindo ja a impressdo de metais com gastos cada vez menores. Os efeitos disso no mundo do trabalho teriam reflexo em dois sentidos. Em uum deles, seguindo uma regra da producio regida pelo capital, busca-se aumentar a. composicao organica do capital com o aumento do capital constante e a redug4o do capital variével; em outras palavras, introduzindo nova maquinaria e dimi nuindo 0 németo de trabalhadores. Se a revolucio toyotista ja havia amplificado ‘0s mecanismos de controle no interior da produgo e a conexio entre esta ea esfera da circulagéo, a revolugao comunicativa na Industria 4.0 faralmente aumentaré esse Processo em alguma medida. No outro sentido, a capacidade de controle do capital sobre os operirios tende a se intensificar, por exemplo, com os mecanismos que as méquinas teriam de “avisar” os empregadores com dados mais precisos sobre falhas, panes, itens com defeitos (diminuindo as perdas, intensificando o ritmo de trabalho), o ntimero de itens fabricados, a produtividade de cada trabalhador m determinados ic nsumos chegariam para a Em suma, a combinagio desses trés efeitos do periodo pés-crise econémica (a tiltima década) — 1) as mudancas na legislagio trabalhista, afetando setores Digitalizado com CamScanner 148 Uberizacdo, trabalho digital e Indtistria 4.0 tradicionais do proletariado ¢ do funcionalismo piiblico, debilitando as condigées de trabalho desse setor e abrindo espago para formas mais amplas de precarizacao; 2) a incorporagio massiva da forca de trabalho imigrante, explorando o ambiente politico e ideolégico pés-crise nesse sentido para aprofundar a exploragao dessa forca de trabalho; ¢, por fim, 3) a introducao de novas tecnologias, com a Indiistria 4.0 ¢ as economias de plataforma, além do fendmeno da uberizagao do trabalho — constitui o cixo de um grande indicio de que estamos vivenciando uma nova rees- truturagao produtiva, um salto de qualidade em compatacio as formas de explora- 20 do periodo neoliberal, regularizando trabalho intermitente, a “pejotizagio” do trabalho ¢, em sua forma mais acabada, a implosao da jornada e de todos os direitos trabalhistas com a uberizacio, tais como férias, décimo terceiro, seguro- -desemprego, vales (transporte, alimentacio, refeigao), licenca-maternidade etc. Ainda que a tendéncia seja essa, 0 sentido de indagacao deste capitulo nao é apenas teérico, mas é também politico: a possibilidade de generalizar a uberizacao ea transformagao dos parques fabris a tal ponto de confirmar uma reestrutura- 40 vigorosa dos complexos produtivos é um movimento que tem encontrado ¢ seguramente encontrard muita resisténcia dos trabalhadores, com formacio de sindicatos nas empresas de plataforma, lutas para retomar os direitos trabalhistas, formas inovadoras de organiza¢ao nos locais de trabalho e, em sua faceta mais assustadora para o capital, as primeiras tentativas de “greves mundiais”, seja no “novo proletariado de servicos” (como nas redes de fast-food) ou nos setores de transporte ja uberizados. O capital conseguird concretizar sua tentativa de gene- ralizar o trabalho intermitente, a “pejotizacao” e a uberizacao do trabalho? E certo que esse processo est em curso, mas a resposta definitiva s6 poderé set dada pela dinamica do conflito entre capital e trabalho — em suma, pela luta de classes. Digitalizado com CamScanner 10 Contribuicgées criticas da sociologia do trabalho sobre a automacao Ricardo Festi Intropucio Desde meados de 2010, o debate acerca da assim chamada Quarta Revolugio Industrial ganhou progressivamente projecio nos meios académicos, politicos, empresariais e mididticos. Existe um interesse gradativo pelo que hé por vir, mes- clado aos sentimentos de medo ¢ entusiasmo. Os prognésticos sio contraditérios, ora apresentando um mundo distépico — com méquinas inteligentes tomando 0 lugar do ser humano e subjugando-o -, ora apresentando um mundo utépico da emancipagio do trabalho, Na visio menos otimista, projeta-se que as consequéncias dessa nova fase da automacio industrial e da revolucéo digital sero, nas préximas décadas, catastr6ficas para o trabalho. Segundo a avaliagao de uma grande empresa de consultoria, até 2030 a automacao poderd atingir cerca de 60% das ocupacées existentes hoje e, como consequéncia, entre 11% e 23% da populacao economi- camente ativa perderd seu posto de trabalho'. Diferentemente de outras revolucées tecnolégicas, essa tem a singularidade de, pela primeira vez, atingir todos os ramos da economia capitalista a0 mesmo tempo. O que permite isso séo os meias ¢ 0s suportes criados nas tiltimas décadas, em particular aqueles que possibilitam a propagacio da tecnologia digital. De acordo com a definicéo de Klaus Schwab, fundador e presidente do Férum Econémico Mundial, “a revolugéo digital esté na dianteira da revolugéo atual, que combina diversas tecnologias, levando a uma mudanga de paradigmas sem precedentes no dominio da economia e do social, nos negécios € no plano individual”?, Portanto, € por meio do mundo informacional-digital que ser4 possivel fundir tecnologias do mundo fisico, digital e biolégico. ‘McKinsey Global Institute, Jobs Lost, Jobs Gained: Workforce Transitions in a Time of Automation (Saint Louis, McKinsey & Company, 2017). Klaus Schwab, La Quatriéme Révolution industrielle (Malakoff, Dunod, 2017), p. 13. Traducéo Digitalizado com CamScanner tal e Inchistria 4.0 150 Uberizacdo, trabatho Este capitulo tem como objetivo contribuir para um melhor entendimento da Quarta Revolugio Industrial, apresentando definig6es e conceitualizagées sobre aspectos importantes de seu processo, Para isso, mobilizaremos autores consagrados da sociologia do trabalho, em particular da sociologia francesa, que, no pasado, bbuscaram compreender o surgimento da automagio industrial e suas consequéncias sobreo mundo do trabalho, Esse processo, ocorrido principalmente entre as décadas de 1950 ¢ 1970, foi apenas o preliidio do atual estagio da automagio. Num olhar retrospectivo, pode-se dizer que foram necessitias décadas de desenvolvimento tecnoldgico e de lutas politicas para que uma nova légica de acumulagéo do capital se impusesse, abrindo novos ramos na economia capitalista ¢ novas possibilidades de ctiagio de valor ~ como € 0 caso da indhistria de servicos?. O auTéMaTO MODERNO E A AUTONOMIA DO SIGNO Uma das vertentes mais influentes da sociologia do trabalho surgitt na Franga do pés-guerra. Nesse contexto de reconstrugao do pais, a induistria foi organizada sob a hegemonia do modelo taylorista-fordista, substituindo tradicionais priticas de gestéo menos rentdveis e menos produtivas em comparagao com as estadunidenses. Isso produziu uma verdadeira revolucao industrial na Franca, com a instalagio de novas méquinas, novos processos de gesto ¢ com o surgimento de um novo perfil de operirio. Foi sobretudo nesses anos que a automagao industrial comecou a ser implementada no processo produtivo. Nesse petfodo, a sociologia preocupou-se em estudar os impactos das novas tecnologias sobre o trabalho e a sociedade. O primeiro e mais importante estudo acerca da automacio industrial na Franca foi dirigido por Pierre Naville, entre os anos 1957 € 1959. O autor debrusou-se sobre varios ramos industriais, rea- lizando uma vasta investigagao empirica e dando origem ao relatério intitulado LAutomation et le travail humain: rapport d’enquéte, publicado em 1961. Nessa ‘mesma época, Naville impulsionou a revista Les Cahiers d'études de Vautomation et des sociétés industrielles, com o objetivo de incentivar o debate sobre o tema e de publicar os trabalhos de jovens pesquisadores que transitavam em seu entorno (como Pierre Rolle ¢ Lucie Tanguy). O seu clissico livro Vers 'automation? Problemes du travail et de Vautomation, publicado em 1963, representou uma sintese dessas Pesquisas, estudos ¢ reflexdes. Ja no inicio dos anos 1960, Naville‘ visualizava que a automagao industrial estenderia seu alcance até abranger, direta ou indiretamente, o conjunto do sistema 2 Ricardo Antunes, O privilégi da servidéo: 0 novo proletariado de servos na era digital (Sio Paul, Boitempo, 2018, colegio Mundo do Trabalho). ierre Naville, Vers 'Automatisme social? Machines, informatique, autonomie et liberté (Pais Syllepse, 2016). 4 Digitalizado com CamScanner Contribuigées criticas da sociologia do trabalho sobre a automagdo 151 industrial Ele compreendia que estavam surgindo, lado a lado, dois automatismos relativos, isto é, 0 sistema de automagio industrial ¢ 0 sistema humano. Ou seja, 0 autor francés vislumbrava que aquela incipiente revolucéo produzida pelas maquinas automatizadas levaria a um processo de autonomia do mundo industrial (e das méquinas) em relagio aos seres humanos. Nao havendo um caminho previamente definido, essas transformagées produziriam, evidentemente, consequéncias tanto negativas quanto positivas. Segundo observou Pierre Rolle, um colaborador de Naville, [...] a sociedade das m4quinas, livre das limitagées impostas pela sua germinagio com os organismos humanos, serd dividida, conectada ¢ estendida aos autématos planetérios, numa espontaneidade dindmica até entio desconhecida. Quanto 4 so- iedade dos homens, terd de praticar o dominio que adquiriu de si mesma, seja para expandir a liberdade de seus membros, seja para combaté-la. De qualquer forma, 0 ambiente comum a esses dois desenvolvimentos independentes um do outro serd necessariamente o signo.> A teflexio de Naville sobre a automagao industrial levou-o a concluir que esse processo produziria a dissolucio do assalariado, possibilitando uma autonomia quase total das mAquinas. Segundo o argumento do autor, ao iniciar 0 processo de automagio, as maquinas tornam-se suscetiveis de funcionar e de se reproduzir sem intervengao humana, pois a base da automacio a autonomia, e esta concerne tanto &s méquinas evolufdas quanto aos homens. Nesse sentido, seria lbgico imaginar também que a “maquina” do futuro, & base de sistemas de comu- nicagées, tornar-se-4 independente dos homens que a criaram e assumiré, muito rapidamente, nao apenas sua propria manutencio, como também sua reproducéo ‘material e cognitiva.$ Ainda segundo Naville, existiria uma separaco entre os sistemas de ope- adores produtivos materiais ¢ os operadores humanos, cada um trabalhando de acordo com a prépria informacio que recolheu ¢ elaborou. “O sistema operacio- nal geral (homens, méquinas e equipamentos) representa, assim, uma simbiose técnica funcional, no sentido cibernético ¢, como dissemos, uma linguagem.”” Assim, estarfamos 3h Pierre Role, “Automatisme ou les spontanéités construites’, em Michel Burnier, Sylvie Célérier ¢ Jan Spurk (orgs.), Des Sociologues face a Pierre Naville ou Uarchipel des savoirs (Paris/Montreal, LHarmattan, 1997), p. 216. Tradugio nossa. Michel Burnier, “Naville et Pavenir de la sociéeé industrielle”, em Michel Burnier ¢ Véronique Grappe-Nahoum (orgs.), Pierre Naville: la passion de l'avenir — Dernier cahier (1988-1993) (Paris, M. Nadeau, 2010), p. 201. Tradugio nossa. Pierre Naville, Vers [Automatisme social? cit., p. 276. Tradugio nossa. Digitalizado com CamScanner 152. Uberizagdo, trabatho digital ¢ Indiistria 4.0 As vésperas de um momento em que a ciéncia sera eapaz de dar um contetido a esse “pensamento do pensamento” [...] que se expressa na autonomia do signo: um contetido industrial, téenico e social. O universo das comunicagées dominardo das produgdes como uma sociedade que domina a sociedade, O automatismo est ligado Aautonomia, ¢ a autonomia é um principio de duplicagio® Portanto,a partir desse ponto de vista, o autor francés ressalta a possiilidade de ver os grupos téenicos adquirirem, na sociedade, ao lado dos grupos humanos, um lugar até entéo reservado exclusivamente a estes. Nossa hipétese é que a aposta de Naville esti mais préxima de se concretizar hoje com a revolugao digital do que tem sua época. As projecées que fazem os virios autores sobre a Quarta Revolugéo Industrial recolocam 0 pensamento do socidlogo francés em evidéncia, Assim, suas conclusées podem ser um importante instrumental para os estudos sobre o trabalho contemporiineo. AUTOMAGAO: EMANCIPAGAO OU SUBJUGAGAO? Ainda que a sociologia do trabalho francesa dos anos 1950 ¢ 1960 tenha sido bastante critica em relacio 20 taylorismo-fordismo e as condig6es de trabalho im- plementadas na Franga, seus autores nio conseguiram se distanciar dos encantos que a automagio industrial prometia ao mundo. Afinal, suas conclusées teéricas, em particular seus prognésticos, acabaram por reforcar uma perspectiva contem- plativa do progresso técnico. Um dos principais livros de referéncia da sociologia francesa dessa época foi Problemes humains du machinisme industriel, de Georges Friedmann’. Parao autor, © maquinismo setia um dos elementos centrais da civilizagao técnica e representaria todo um processo, englobando desde a técnica até os aspectos mais subjetivos dos individuos. Nesse sentido, “o maquinismo na industria é uma das miltiplas fases de uma enorme transformacao nas condigées de existéncia da humanidade, acom- panhada de um transtorno correspondente das maneiras de sentir e de pensar", Portanto, o maguinismo seria o prdprio processo de industrializagio, que acabou por levar a fragmentacio das tarefas no processo de produgao, sendo mecanizagio sua etapa intermediaria e a automagdo, seu estagio final. Seguindo a mesma légica argumentativa, Alain Touraine enxergava, no surgimento do automatismo, regido por méquinas especializadas complexas, a climinagao de todo trabalho diretamente “produtivo”; isto é, no seu entender, . Ibidem, p. 277. Tradugio nossa. Georges Friedmann, Problémes humains du machinisme industriel (Pasis, Gallimard, 1946), Idem, “Les Technocrates et la civilisation technicienne”, em Georges Gurvitch (org). Industrialisation et technocratie: Premiére Semaine Sociologique organisé par le Cente d Etudes Sociologiques — CNRS (Paris, A. Colin, 1949), p. 391. Digitalizado com CamScanner Contribuigées criticas da sociologia do trabatho sobre a automagdo 153 6 trabalho manual", Nessa nova fase da industrializacao, que germinou nos anos 1950 nos pafses de capitalismo central, 0 empregador passou a demandar dos operitios mais 0 esptrito do controle e 0 sentido de responsabilidade do que uma habilidade ou um saber-fazer, Nessa perspectiva, as capacidades manuais sio menos importantes que as atitudes em exercer com seriedade, inteligéncia e preciséo uma determinada tarefa. Consequentemente, a qualificagao dos operdrios passou a ser constituida de competéncias técnicas e, inseparavelmente, de qualidades sociais, ou seja, de sua atitude para ocupar um lugar determinado numa organizacao que é,a0 mesmo tempo, técnica e social. Portanto, na fase do automatismo industrial, busca-se integrar e dar sentido & adeséo do operirio a0 proceso de trabalho por meio de politicas que captem seu consentimento. Touraine estd de acordo com Friedmann no entendimento de que a dialética interna da divis4o do trabalho encarregou-se de levar 0 maquinismo em diregao & automagéo. O patcelamento das fungées no trabalho, caracteristico do taylorismo- -fordismo, seria apenas uma fase desse desenvolvimento. Uma vez que isso tenha ocortido, estariam dadas as condigées materiais que permitiriam o surgimento da automagéo, como o desaparecimento do trabalho qualificado, a dissociacéo radical entre, de um lado, trabalho de execucio e fungées de organizacio e, de outro, 0 aumento da desqualificacéo. Além disso, argumentava-se que a grande industria “tendea reconstruir, sob a maquina automatizada polivalente, uma nova forma de unidade de trabalho, sobre um novo plano”, Ela concentraria, pois, uma parte dos homens em trabalhos de ajustes e regulagao das maquinas, criando um “novo oficio” que o autor chamou de “novo artesio”. Isto é, um trabalhador polivalente qualificado, que se dedicaria, majoritariamente, ao oficio da construgio, reparacao, manutengio ¢ supervisio das mquinas. Assim, nessa perspectiva, automatismo, levado ao extremo ¢ exprimindo todas as suas virtudes, pode levar a0 caminho da humanizagéo da grande indistria. Nao somente ele suscita novas fun- Ges qualficadas, integrando uma nova concepgio de trabalho, pela criagao e ajuste dessa ferramenta delicada e precisa, mas o operdtio encarregado da simples tarefa de superviséo de um grupo de maquinas poderia se beneficiar de uma suficiente cultura geral e técnica, reencontrar uma qualidade intelectual nitidamente superior a essa que é hoje imposta & mao de obra especializada da fase (semiautomatismo, trabalho nalinha de montagem) que precede e prepara o automatismo." Como apontamos anteriormente, a perspectiva dessa geracdo de socidlogos sobre a indvistria e, em particular, sobre a automasao industrial era, incialmente, ™ Alain Touraine, L’ Evolution du travail ouvrier aux usines Renault (Paris, Centre National de la Recherche Scientifique, 1955). "Georges Friedmann, Problémes humains du machinisme industriel, cit. p. 171. Tradugéo nossa. © Ibidem, p. 182. Traducio nossa. Digitalizado com CamScanner 154 Uberizagdo, trabalho digital e Industria 4.0 bastante positiva. Via-se nela o prekiidio da emancipagao do trabalho. No entanto, essa contemplagio do progresso das forgas produtivas tinha uma base material, como foi o caso da queda substancial da jornada de trabalho, Nos Estados Unidos, por exemplo, a jornada média de trabalho passou de, aproximadamente, 70 horas semanais, em 1860, para 34 horas um século depois. Na Franga, essas cifras cafram, no mesmo periodo, de 85 para 48 horas. Nesse contexto, a miquina mostrava-se como elemento potencialmente liber. tador para o ser humano quanto ao proceso de trabalho. No entanto, tratava-se também de um momento particular da economia capitalista dos paises centrais, de excepcional crescimento econémico e de aumento progressivo da produtividade do trabalho. Foi isso que permitiu a implementacao de um novo maquindrio, ao mesmo tempo que novos postos de trabalho eram criados, mantendo-se uma situagéo de pleno emprego. No entanto, quando se encerrou esse ciclo “glorioso” de crescimento econémico, dando inicio, nos anos 1970, & crise estrutural do capital, aquela visio contemplativa logo deu lugar ao pessimismo. Ao contrario do que prognosticava Georges Friedmann, em 1946, a, automagao no conduziu ao surgimento de um “novo artesio”, muito menos & emancipacéo do ser humano em relacao ao trabalho industrial. Ainda nos anos 1950, os estudos de Naville mostraram que 0 mais moderno maquindtio automatizado, nos ramos industriais pesquisados, era composto de opendrios néo qualificados. Os niveis sa- lariais, comparados aos anteriores, eram mais elevados, porém muito abaixo dos ganhos de produtividade proporcionados pelas novas tecnologias. Mais grave erao fato de que, ‘pela primeira vez, vé-se elevar os niveis salariais sem que a qualificagéo propriamente dita esteja vinculada. E toda uma concepgio tradicional de métier que desmorona pouco a pouco”, Nos anos finais da década de 1950 ¢ inicio da de 1960, 0 otimismo com aauto- magao parecia ter desaparecido. O proprio Friedmann’? passou a ver, na automacio, no mais o principio de um “novo arteséo”, mas o aumento relativo de “tradicionais” formas de trabalho. Assim, a automacio nao elevou a qualificacao dos operitios. No preficio que escreveu, em 1963, para a segunda edi¢io de Le Travail en miette, © autor francés constatou a emergéncia do desemprego crénico nos lugares em que a automagio industrial tinha sido implementada. Também verificou a manuten- Gao de uma separacao extrema entre 0 pensar e o executar, em detrimento do métierdo trabalhador. Ao contrario da promessa inicial, o trabalho adquiriu maior intensidade, jéque, com a automacio, implementou-se uma fabrica fluida e funcionando 24 horas por dia, o que aumentou ainda mais controle sobre os trabalhadores. Pierre Naville, Vers lAutomatisme social? "3 Georges Friedmann, Le Travail en miettes: spécialisation et loisirs (Bruxelas, Editions de l'Université de Bruxelles, 2012). % dem. Digitalizado com CamScanner Contribuigées criticas da sociologia do trabalho sobre a automagéo 155 O CONTROLE DO TRABALHO COMO OBJETIVO ESTRATEGICO DA AUTOMAGAO Muito antes desses estudos sobre a implementacio da automagio industrial na Franga, Karl Marx apresentou, em O capital, no capitulo sobre a maquinaria ea grande industria, uma reflexdo sobre as potencialidades de seu desenvolvimento, Eevidente que o autor alemao nao viu, em sua época, florescerem a fitbrica auto- matica ou 0 autémato mecdnico, que expressariam suas primeiras formas somente em meados do século XX e sua integridade no infcio deste novo milénio. Porém, seguindo a légica imanente do desenvolvimento do maquinério como parte da técnica do modo capitalista de producéo, Marx ressaltou que a partir do momento em que a méquina de trabalho executa todos os movimentos necessirios a0 processamento da matéria-prima sem precisar da ajuda do homem, mas apenas de sua assisténcia, temos um sistema automdtico de maquinaria, capaz de ser continuamente melhorado em seus detalhes.!” Segundo Naville, um aspecto importante da automagao est4 expresso em quem governa o processo de produgéo'*. Nesse sentido, ela nao se resume a um conjunto de fébricas automiticas, tampouco é uma inversio entre sujeito e objeto na producio. A automagio € a gestéo das maquinas por um “cérebro mecAnico”, €m substituicéo aos antigos oficios realizados pelos operdrios, tais como controle, superviséo, ajustes etc. O peso do trabalho, portanto, tende a se transferir das atividades neuromusculares para as neurossensoriais, diminuindo os esforgos fisicos © aumentando as tensbes relacionadas 4 vigilincia e & supervisio. Outro autor francés que se debrucou no estudo do proceso de automatiza- 40 industrial foi Benjamin Coriat”’, Seus trabalhos se concentraram sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, quando ocorreu a implementacao da robética e da informatica, resultando em um novo salto tecnoldgico da producao industrial. Nesse caso, as pesquisas de Coriat, diferentemente das realizadas pela sociologia do trabalho dos anos 1950 e 1960, acabaram por captar um estégio amadurecido da automagéo — ou intermedidtio, olhando-se a partir da perspectiva de hoje -, quando algumas de suas tendéncias verificadas nas décadas anteriores se efetivaram. De acordo com Coriat”, o que permite que a automagdo seja algo completa- ‘Mente novo no so suas séries repetidas automaticamente por uma maquina —algo Sa ‘Karl Marx, O capital: critica da economia politica, Livro I: O proceso de produsto do capital (trad, Rubens Enderle, Séo Paulo, Boitempo, 2013, colegio Marx-Engels), p. 455. "Pierre Naville, Vrs 'Automatisme social?, cit. Benjamin Coriat, La Robotique (Patis, La Découverte/Maspero, 1983) [ed. bras.: A revolugdo dos ‘bis 0 impacto sociceconimico da automagio, trad. José Cortéa Leite, Sio Paulo, Busca Vida, 198: ‘idem, LAtelier et le robot: essai sur le fordisme et la production de masse a Vage de électronique (Pats, Christian Bourgois, 1990). ® Benjamin Coriat, La Robotique, cit.; idem, L’Atelier et le robot, cit. \ Digitalizado com CamScanner 156 Uberizagdo, trabalho digital e Indtistria 4.0 que jd existia no periodo da mecanizagio =, mas os suportes ¢ os meios utilizados para automatizar as fabbricas industriais, Nessa ldgica, a partir dos anos 1960 ¢, principalmente, ao longo dos anos 1970, 0 desenvolvimento da informatica ¢ da eletrénica permititam aumentar o dominio da aplicagio da automagio. Ao colocar uma énfase sobre os suportes © os meios para compreender a auto- matizagio, Coriat distinguiu a indtistria de processo continuo — ou de propriedade~e a industria desérie~ow de forma’, A primecita é regida por uma cadcia de operacées fisico-quimicas, como ¢ 0 caso da indtistria quimica. Na segunda, as operagées tém como objetivo moldar novas formas, como é 0 caso da automobilistica. Para cada tipo, hé um problema especifico na aplicagio do maquindrio. Por suas particu- laridades, a automagio desenvolveu-se primeiramente na inddstria de processo continuo, Foi sé com a invengio dos robés, na década de 1970, que a automacéo se estendeu as fibricas de séries ~ realizando tarefas de usinagem, pintura, solda, moldagem, fundigio, manutengio ¢ montagem, Seguindo o raciocinio de Coriat, poderfamos compreender que a Quarta Revolucio Industrial inaugurou novos meios e suportes, principalmente aqueles criados com a revoluedo digital, que possibilitam um novo salto na automacao®, Entre as diversas tecnologias anunciadas, talvez a mais importante seja justamente a internet 5G. Esse suporte, por exemplo, possibilitaré a conexio entre os diversos ‘meios, como a inteligéncia artificial, a impressora 3D, big data, entre muitos outros. Poderfamos também acrescentar um terceiro tipo de processo que a Quarta Revolucao Industrial abranger4 com maior plenitude, a saber, a indiistria de servigos. Se a industria de série ou de forma necessitou do desenvolvimento da robética € da eletrénica para se automatizar ¢ produzir uma verdadeira revolugio (regressiva) nas relagdes de trabalho, a industria de servigos precisou do meio digital para seu salto de qualidade, permitindo a abertura de novos ramos na economia jamais imaginados explorados. E nesse novo segmento que se encontram as plataformas digitais, tais como Uber, Airbnb, iFood, Deliveroo etc. Contudo, se os suportes e os meios sio centrais para a caracterizacio da automagéo, o fundamental para compreender seu papel na ordem societal, de acordo com Coriat™, esté em seus objetivos estratégicos. E. nesse aspecto que 0 autor compreende que a automacio néo produz uma revolugao na forma de pro- dugio, sendo um aprofundamento de um curso que jé vinha sendo tomado pelo taylorismo-fordismo. Segundo ele, esse modelo de produgio nfo foi dissipado da automacio industrial. Pelo contritio, seu objetivo estaria mais presente que nunca na producao automatizada, isto é, no controle. O que caiu, portanto, foi © paradigma taylorista-fordista, que estipulava que a eficdcia ¢ a produtividade 2 Benjamin Coriat, LAtelier et le robot, cit. ® Idem, % Benjamin Coriat, La Robotique, cit idem, L’Atelier et le robot, cit. Digitalizado com CamScanner Contribuigées criticas da sociologia do trabalho sobre a automacdo 157 dependiam, centralmente, de um trabalho fragmentado e distribufdo ao longo da linha de montagem, no qual se move a um ritmo rigido. Portanto, 0 objetivo da automagio “é conseguir arrancar das méos dos operdrios a atividade estratégica deajustee controle da maquina, para fazé-la efetuar automaticamente as operacées, depois de haver sido corretamente programada”™. Acxpansio e a intensificagio da automagao para a industria de servicos, por meio da revolugio digital, acabaram por impulsionar um novo proletariado, como adverte Ricardo Antunes em seu livro sobre o tema: Estamos presenciando 0 advento e a expanséo monumental do novo proletariado da «ra digital, cujos trabalhos, mais ou menos intermitentes, mais ou menos constantes, ganharam novo impulso com as tecnologias da informacio e comunicagio, que conec- tam, pelos celulares, as mais distintas modalidades de trabalho. Portanto, em vez do fim do trabalho na era digital, estamos vivenciando 0 crescimento exponencial do novo prole- tariado de servigos, uma variante global do que se pode denominar escravidio digital: Ao contratio da visio difundida por aqueles que vem nas miltiplas economias de plataforma o ressurgimento da economia solidaria - ou, numa denominacao recente, da economia colaborativa , 0 que assistimos, nesse processo de “uberi- zagio” ou de “plataformizacao”, é a reprodugao do que ha de mais tradicional na economia capitalista’’. Elas recolocam os trabalhadores — de maneira ainda mais acentuada que os processos do passado — em concorréncia continua, negando- -lhes 0 acesso e 0 compartilhamento de seu “bem comum” mais valioso, isto é © algoritmo, Assim, mantém-se 0 principio sagrado da propriedade privada e do segredo empresarial, fazendo cair por terra a ideologia sobre os “colaboradores” € sobre a alsa autonomia proporcionada a eles por essas plataformas. Diferentemente das formas tradicionais do capitalismo, as plataformas di- gitais produziram novas formas de controle, muito mais eficazes e precisas. Estas sio capazes de intervir e de orientar 0 comportamento de seus “colaboradores” € “clientes”. Gracas & quantidade gigantesca de dados que seus usudrios fornecem a esses aplicativos e, também, & enorme capacidade de célculo proporcionada pelo ‘mundo informacional-cigital, os algoritmos tornaram-se instrumentos de poder”. Portanto, longe de qualquer visio contemplativa sobre 0 novo curso de tevolucionamento das forcas produtivas proporcionado pela Quarta Revolucéo —— * ‘Benjamin Coriat, El taller y ef robot: ensayos sobre el fordismo y la produccién en masa en la era de 4a electrénica (trad. Rosa Ana Dominguez Cruz, 3. ed., Cidade do México, Siglo XXI, 1996), p.4l. ® Ricardo Antunes, O prvilégio da servidéo, cit. p. 30. * Karim Amellal, La Revolution de la servitude: pourquoi l'ubérisation est Vennemie du progrés social (Paris, Demopolis, 2018). ” Idem, Digitalizado com CamScanner 158 Uberizacdo, trabatho digital e Indtistria 4.0 Industrial, © que assistimos ¢ 0 infcio de um curso catastréfico ¢ dramatico para o mundo do trabalho, Him verde as tecnologias estarem a setvigo do bem-estar social, clas reforgam 0 cardter instrumental ¢ opressor que sempre exerceram no interior da légica do modo capitalista de produgio, Essa nova fase da automagéo tenders a aumentar as desigualdades sociais ¢ de renda, assim como a precariedade do tra- balho, Caminhamos para um mundo do emprego intermitente, da flexibilizagio total, das “bicas” e “biscates”, da gig economy, dos petits boulots, da informalidade transvestida de empreendedorismo. Ou seja, caminhamos ou para. rebeliio global do trabalho contra 0 capital ou para a instauragao da barbérie. Digitalizado com CamScanner 11 Um novo adeus a classe trabalhadora? Vitor Filgueiras Sdvio Cavalcante Intropu¢Ao O objetivo central deste capitulo é contestar 0 novo adeus & classe trabalhadora que tem sido promovido por diferentes agentes nas tiltimas décadas, atualmente ainda mais propalado com o uso das novas tecnologias da informagao ¢ comu- nicago (TIC). Assim como o primeiro, decretado na década de 1980, 0 novo adeus apresenta inconsisténcias de diversas ordens: tedrica, porque naturaliza de forma acritica o determinismo tecnolégico; empitica, pois superestima a forma dos contratos ¢ negligencia o conteiido objetivo das relagdes; e, por fim, politica, porque dificulta a construgao de uma luta social adequada a urgente proteco dos direitos trabalhistas nessas atividades. Em outro trabalho, também indicamos um fato geralmente ignorado nessas anilises: apesar de muitas alegacées em contririo, o trabalho assalariado cresceu em todo 0 mundo, o que se atesta pelos dados agregados que cobrem as iltimas décadas. Mesmo nos paises em que o trabalho por conta propria aumentou nos Liltimos anos, nao ha indicadores sustentaveis que mostrem um declinio estrutural do trabalho assalariado!, Nesse momento, iremos nos concentrar no seguinte argumento: a narrativa que chamamos de novo “adeus & classe trabalhadora”, deliberada ou nio, contri- bui para a estratégia do capital em aumentar seu poder, tornando o trabalho mais precério ¢ os trabalhadores menos propensos a enfrentar a exploragio®. Isso ocorre Vitor Flgueiras eSivio Cavalcante, “What Has Changed: A New Farewell o the Working Class?”, Revisa Brasileira de Ciéncias Socais, v, 354 n. 102, 2020, p, 1-22. F certo que, quando usamos “estratégias do capital”, fazemos referencia a um processa histirico- -social complexo, que inclu a forma pela qual diferentes grupos de tabalhadores eriam ¢ vecriam formas de rsisténcia, conflito ¢ adaptagio, Aqui, focando, conforme indicado, em como essas cstratégas sio formuladas, o objetivo é justamente identificar essas légicas para compreendet ‘como afetam a luta dos trabalhadores, Também reconhiecemos que o debate sobre classes socials 2 Digitalizado com CamScanner 160 Uberizagto, trabatho digital e Indiistria 4.0 porque a tese da disseminagio de novas formas de tr das formas precitias de contratagio ¢ gerem como inexorivei: Tremos focat 0s c alho favorece a legitimasi mento de trabalho, apresentando-as sos do mercado de trabalho brasileiro britinico, Embora cesses paises possttam estruturas produtivas dlistintas e diferengas em seus mercados de trabalho e em suas formas de regulagio social, foram escolhidos como uma maneira de analisar tendéncias gerais que afetam tanto os paises centrais quanto 0s periféricos, Realizamos virios estudos de caso sobre algumas das mais famosas “novas formas de trabalho” para analisar seu contetido ¢ como elas diferem do em- prego tradicional em termos de subordinagio ao capital. Sio casos representativos de setores ¢ empresas que alcangaram destaque em escala global, sendo também indicados como tendéncias provaveis para o mercado de trabalho como um todo. Portanto, a andlise busca articular uma dimensio maior do processo, com a des- crigio de situagdes tipicas nas quais 0 objeto dessa discussao pode ser analisado em sua expressio concreta. Do PRIMEIRO AO Novo ADEUS A CLASSE TRABALHADORA O primeiro adeus & classe trabalhadora é fruto de um conjunto de obras que, na década de 1980, procurava reposicionar conceitos, categorias e métodos de andlise que se concentravam no emprego ¢ nas relagées de trabalho nas sociedades capita istas’. Destacam-se as intervengdes de André Gorz4 e Claus Offe’. Os argumentos eram diversos, mas todos, de alguma mancira, convergiam numa mudanga principal: a automacéo promovida pela microeletrénica tendia a tornar marginal, ou mesmo a abolir, o trabalho humano na produgio material. Nos outros setores, comumente chamados de servigos, haveria ainda a necessidade de atividades humanas, mas o contetido das atividades exigiria outra racionalidade, € mais amplo, e os grupos assalariados possuem clivagens que levam, por exemplo, & discussio sobrea diferenga entrea classe trabalhadora (entendida pelo conceito tradicional de proletariado) © classe média, Ver Savio Cavalcante, Classe média e modo de produgdo capitalista: um etudo partir do debate marxista(tese de doutorado em sociologia, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2012), No entanto, os argumentos aqui apresentados sobre a dinimica dos mercadas de trabalho estio localizados em um nivel do problema que nio requer tal discussio sobre as divisdes internas dos assalariados, Para uma descrigio mais detalhada, ver Vitor Filgueira Sivio Cavalcante, "What Has Changed’, cits Ricardo Antunes, Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses a centaidade do mundo do trabalho (Sio Paulo, Cortez, 1995), André Gorz, Farewell to the Working Class: An Essay on Post-Industrial Socialism (Londtes, 1982), Claus Offe, Trabalho & sociedade: problemas estruturaise perspectivas pana o futuro da ‘wciedude do trabalho" (trad. Gustavo Bayer ¢ Margrit Martincic, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, colegio Biblioteca Tempo Universititio, v. 89). Pluto, Digitalizado com CamScanner Um novo adeus a classe trabathadora? 161 um trabalho mais “reflexive”, irredutivel A quantificagio econdmica em moldes tradicionais. Nao haveria, no limite, o mesmo sentido de trabalho tradicional. Para alguns autores, como Gorz, essas mudangas deveriam alterar as lutas progressistas. Seo trabalho néo tem mais condigéo de ser critério de integragao social = planos de pleno emprego seriam invidveis nesse contexto -, a cidadania precisaria ser garantida por outras politicas, mais voltadas & distribuigao de riqueza do que produgio, Dai surge a base de justificagio das politicas de renda bisica. As repercussdes desse debate no campo académico das relagdes de trabalho foram extensas‘, No debate brasileiro, Ricardo Antunes’ elaborou uma critica ao “adeus a0 trabalho” que, entre outros argumentos, destacou dois limites dessa posigio tedrica. O primeiro foi o carder eurocéntrico dos diagnésticos realizados pelos autores, & medida que a globalizacao do circuito produtivo capitalista rectia milhées de empregos tipicamente industriais em outras regides do mundo. No segundo, Antunes argumentou que o setor industrial ¢ de servigos apresentam mais semelhangas do que diferengas entre si, mesmo na Europa. De fato, a ofensiva neoliberal a protegio das condigdes de venda da forca de trabalho encoraja formas de emprego distintas do padrio fordista, mas isso néo implica uma reducao qua- litativa nem quantitativa na existéncia de grupos de assalariados cujas vidas foram subsumidas pela légica capitalista, Nio pretendemos desconsiderar a magnitude dos fendmenos que foram ob- jeto dessa discussio. Houve uma mudanga acentuada na estrutura ocupacional em. vtios paises centrais, e uma parte crescente da forca de trabalho foi incorporada em formas flexiveis de contratacao. O quadro era ainda mais potente no caso de paises com capitalismo dependente, que jé tinham a informalidade ou a precariedade como a principal caracteristica de seus mercados de trabalho. Porém, o ponto que parece mais decisivo é que esse adeus ao trabalho foi in- formado por um diagnéstico da situacao que deu 4 mudanca tecnolégica um papel proeminente e inevitavel. Assim, estabeleceu-se uma relagio causal entre o que seria a perda de relevancia do trabalho como fonte de riqueza — ou mesmo a suposta dificuldade de medir algumas atividades econdmicas — ea dificuldade de reconstr padrées estaveis de regulacio do emprego. A determinagio foi apresentada mais como técnica do que como politica e social. E precisamente esse ponto que constitui © elo entre o primeiro ¢ o que descrevemos aqui como o novo adeus ao trabalho. O que chamamos aqui de novo adeus & classe trabalhadora retoma essa base argumentativa, mas apresenta uma caracteristica nova: concede uma forte énfase 20 que seria um declinio estrutural do trabalho assalariado e d impossibilidade de © Ves, por exemplo, Anne-Marie Grozeier, Pour en finir avec la fin du travail (Pa de VAtcier, 1998); Jacques Bidet e Jacques Texier (orgs.), La Crise du travail (Paris, Presses Universtaries de France, 1995); Josué Pereira da Silva e Iram Jicome Rodrigues (orgs.), André Gora ¢ seus crticos (Sio Paulo, Annablume, 2006, colegio Critica Contemporinea). 7 Ricardo Antunes, Adeus ao trabalho?, cit. Digitalizado com CamScanner 162 Uberizagdo, trabalho digital e Industria 4.0 reconstruir padroes de regulagio do emprego por meio de disposigées legais. Uma mudanga notavel nesse novo adeus é que, diferentemente do primeiro, a nogio de fim do trabalho em geral, como afirma Gorz, é menos explicita. Trabalho sempre haverd, mas a nogio de emprego nao caberia mais para tipificar essas atividades, Enfatiza, nesse sentido, que nao apenas 0 trabalho industrial, mas todo o trabalho assalariado estaria em declinio diante do surgimento de “novas formas” de organi- zacio, O que esta em questéo aqui é a impossibilidade de recuperar ou construir padroes de regulacio com base na nogao de empregador e empregado. Esse novo adeus ¢ construido por diferentes perspectivas, mas as suposigécs ¢ conclusées sio semelhantes: a) 0 trabalho assalariado est4 em declinio; b) as novas caracteristicas do mercado de trabalho impedem a protecao do trabalho por meio de legislagées ja existentes, Existem, pelo menos, trés diferentes abordagens que unem esse campo. A mais radical afirma que o trabalho por conta prépria esté aumentando e que hé uma ten. déncia para que ele substitua o emprego assalariado. A segunda abordagem afirma que estio crescendo novas formas de trabalho que nao se enquadram nas formas de trabalho assalariado nem de trabalho por conta prépria, constituindo o queéchamado de“zona cinzenta’ ou “terceira via’. A terceira é apresentada por Guy Standing® quan- do fundamenta seu conceito de ‘precariado”: uma nova classe social em crescimento, enquanto os assalariados ¢ o proletariado encolheriam em todo o mundo. As duas primeiras abordagens sao normalmente combinadas para enfatizar a mudanga nos mercados de trabalho. Elas aparecem, por exemplo, em uma publi- cagio da Organizacio Internacional do Trabalho (OIT) de 2015, sugestivamente chamada de The Changing Nature of Jobs (A natureza mutével dos empregos|: Em varias economias avancadas, a incidéncia de emprego remunerado e assalariado tem apresentado uma tendéncia de queda, afastando-se, portanto, dos padres his- t6ricos. Por outro lado, o trabalho por conta propria e outras formas de emprego fora do escopo do acordo tradicional empregador-empregado estio em ascensio? Essas considerages normalmente sio baseadas nos seguintes argumentos: Novas tecnologias e mudangas na maneira como as empresas organizam a producéo sio fatores-chave por trés da mudanca nas relagoes de emprego ¢ da expansio de * Guy Standing, The Precariat: The New Dangerous Class (Londres, Bloomsbury Academic, 2011): idem, “Understanding the Precatiat through Labor and Work”, Development and Change, H International Institute of Social Studies, v.45, n. 5, 2014, p. 963-98; idem, “A Revole Is Coming for Cloud Labor”, Huffpost, 2016; disponivel em: ; acesso em: 10 abr 2017. % International Labour Organization, World Employment and Social Outlook 2015: The Changing ‘Nature of Jobs (Genebra, International Labour Office, 2015), p. 13. Tradugio nossa. Digitalizado com CamScanner

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