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_— i} odos os direitos desta edigdo reservados a Pontes Editores Ltda, dn a reproducao total ou parcial em qualquer midia sem a autorizacdo escrita da Editora. Os infratores estdo sujeitos as penas da lei. pelas opinides emitidas nesta publicagao, [A Editora nao se responsabiliza Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagao (CIP) ee Baronas, Roberto Leiser. / Mesti, Paula Camila. / Carreon, Renata de Oliveira. (Orgs.) Discurso: entorno da problematica do ethos, do politico Anilise 0 ‘berto Leiser Baronas / Paula Camila Mesti / de discursos constituintes / Ro! Renata de Oliveira Carreon (Orgs.) Campinas, SP : Pontes Editores, 2016 Bibliografia. ISBN 978-85-7113-730-1 1. Andlise do discurso 2. Linguistica I. Titulo indices para catilogo sistemAtico: 1, Andlise do discurso - 410 2. Linguistica - 410 RESISTENCIA E PODER EM UMA NARRATIVA BRASILEIRA: PERSPECTIVAS DE ANALISES Samuel Ponsoni' DAS PERSPECTIVAS INICIAIS Perscrutar o vasto mundo da literatura e das relagoes de poder € algo que ha tempos entra nos centros dos diversos debates, das mais distintas teorias. Contudo, de nosso front, buscamos uma apreensdo dessas duas frinchas tedricas, literatura e andlise de relages de poder, a partir da régua analitica-discursiva do objeto liter4rio, langando, dessa forma, um olhar interpretativo, um gesto de compreens4o, sem esgotar, contudo, outras e amplas possibilidades de sentido, que, por outros, poderao ser alcangadas. A propésito dessa nota adversativa, este breve ensaio tem como objetivos estruturar e analisar, por meio da ideia de resisténcia, estratégias e relagdes que a capilarizacao do poder recria e conduz na trama de um conto brasileiro. O referido material de andlise trata-se de “O homem do furo na mao”, do livro Ca- deiras proibidas, de Igndcio de Loyola Brandao. Em outras palavras, a partir do percurso realizado pelo personagem-protagonista do conto em questao, investigamos as possibilidades de correspondéncia entre discursos e praticas discursivas presentes e advindas das conjunturas histéricas e polfticas em que o texto foi publicado. Para compreender em quais pontos e como o perfodo em questao marca-se na discursi- vidade literaria do conto, mobilizaremos 0 aparato teérico da Andlise do Discurso de linha francesa (doravante AD), marcadamente com as contribuigdes de Michel Foucault, em seus estudos das relagées de poder e/ou micropoder e da constituigao dos sujeitos atrelados as malhas da espessura histdria e as praticas compreensao dos saberes, 1 Doutor pela Universidade Federal de Sao Carlos ~ UFSCar, Sa Carlos, Sao Paulo, Brasil. Ex-bolsista da Funda¢ao de Amparo a Pesquisa do Estado de Sao Paulo- FAPESP, processo 2011/09881-4, E-mail: sponsoni@yahoo.com 133 ANALIsE Do Discurso: ENTORNO DA PROBLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO F DE DISCURSOS CONSTITUN TEs Uma das hipéteses deste estudo avalia “como” o poder se exeree ese manifesta, a partir da resisténcia da personagem-protagonista, em poderes capilarizados — micropoderes — dentro da sociedade repre. sentada no fio da trama narrativa. As expressées artisticas e culturais, entre elas a literatura, vém ao longo do tempo criando identidades, saberes e resisténcias a diver. sos padrées histdricos, polfticos e sociais ao construir representacoeg simbélicas e manifestar interpretagdes com base no estético, Osun gimento de um modo de produgao artfstica, no mais da vez, quebra outro modo de produgao que vinha sendo feito. Ao “novo”, Opomo-nog ou 0 reivindicamos por meio de filiagdo histdrica e ideolégica, Em meio a tais processos criativos, 0 discurso da literatura ocupa lugar de destaque em relagao a essas preocupagées, bem como em outras preocupagées, seja de recepcao, seja de interagao autor/obra/leitor ou de situagao de circulagao. DAS PERSPECTIVAS TEGRICAS Falamos no conceito discurso em si, numa visada mais ampla. Para situar melhor isso, acreditamos na necessidade de um breve percurso histérico, para relatar 0 que como compreendemos discurso e como pretendemos usé-lo. Discurso, para as distintas interpretagées, sobretudo nas ciéncias humanas e sociais, parece reivindicar algo a mais, algo que se liga a um exterior. Cronologicamente, a teoria do discurso que queremos empreender — a saber, a andlise do discurso de orientagao francesa, ou chamada escola francesa de andlise do discurso — busca suas bases tedricas em reflexdes oriundas do final dos anos 1960, mais especi- ficamente a partir de 1969, com o texto fundador da AD, intitulado Anilise automética do discurso (alcunhado AAD-69). Nessa conjuntura especifica, as primeiras indagagdes — que ainda hoje ecoam nos estu- dos da teoria do discurso — apareceram, vindas principalmente das reflexes cr{ticas de Michel Pécheux, um de seus fundadores, acerca da lingufstica e das ciéncias sociais. Em um primeiro ponto, dirfamos que a AD surge de um projeto com objetivo politico, derivado de um dos “tentaculos” do althusserianismo. Outro ponto a se estabelecer como for¢a motriz 4 construgiio da AD, ligado também a este primeiro, 134 ANALISE Do Discurso: ENTORNO © DA PRORLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO F DE DISCURSOS CONSTITUINTES é0 estilo cultural da sociedade francesa, na qual, em suas praticas escolares ¢ académicas, o texto literério foi desde muito tempo um ele- mento privilegiado, Sobre essa explanagao ainda, a AD se inscreverl@ como um dos bracos militantes para a substituigao das explicagdes exegéticas acerca do sentido nos textos?, Portanto, uma das primeiras questées apontadas por Michel Pécheux ira se confrontar direta- mente com a abordagem dispensada ao tratamento da interpretagao semantica dos textos, isso porque, antes de a Lingufstica se constituir como a moderna ciéncia que trata do estudo da linguagem. Para este campo cientffico, antes de instituir como marco histérico e regula- torio o Curso de linguéstica geral (1916), de Ferdinand de Saussure, de seus estudos, assim como as pesquisas que viram em sua tributa¢4o, estudar uma lingua, na maioria parte das vezes, era apreendé-la em textos, ligando-os, por sua vez, a elementos de naturezas distintas, ora sob 0 crivo de gramaticos, ora sob 0 contetido do percurso es- colar. A filologia era a epistemologia autorizada a levantar questdes que possibilitavam aos textos padrées de estudos e entendimentos. Naquela época, perguntas do tipo “Do que trata esse texto?”, “Ele est4 de acordo com as normas da lingua na qual foi escrito?”, “Qual éa regra/regularidade desse tipo de texto e desse autor?”, “Quais sao suas ideias principais?” bradavam forte nas interpretagdes. Essas quest6es se correlacionavam tanto aos sentidos do texto quanto as estruturas normativas. Os estudos filolégicos conjuravam-nas si- multaneamente, e os elementos sintatico-semanticos eram julgados como formas que determinavam os sentidos do texto. Ainda antes do tempo de Saussure, o estudo gramatical e semantico era o meio de se chegar a uma boa e correta compreensao textual: a ciéncia da linguagem pretendia-se ao mesmo tempo como a ciéncia da expresso ea ciéncia dos meios dessa expressao. Entretanto, como edificagao e consolidagao da Lingufstica saussuriana, passou-se a organizar as pesquisas, calcando seu escopo epistemoldégico nas estruturas dos sistemas da linguagem, fundamentando-se no seu objeto de estudo, a lingua, esta nao concebida em uma relagao com 0 exterior, mas na estrutura interna de um sistema imanente em si, dotado de signos, que, por sua vez, so constitufdos de significantes e de significados. 2 Para dar conta melhor e mais completamente dessa perspectiva de surgimento, sugerimos a leitura de: “Andlise de discurso: a questio dos fundamentos”, de Dominique Maingueneau, Este texto encontra-se nos Cadernos de estudos linguisticos, nimero 19. Disponivel em: . Acesso em: 12 jun. 2013. 135 ANALISE Do Discurso: ENTORNO DA PROBLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO F DE DISCURSOS CONSTITUINTES, Assim, as significagoes, embora aparentemente subjetivas e com Te. lag&o no mundo, dentro desse sistema de estrutura fechada da lingua, nao foram estudadas especificamente. No horizonte, Pécheux vislumbrava, portanto, uma mudanga de terreno para os estudos do texto. Contudo, nao haveria possibilidade de estudar, sob as mesmas bases fonéticas e morfoldégicas, o campo de significagéo de um texto, compreendido em seu todo e atrelado a uma pratica discursiva. Aparentemente, ao argumentar nessa linha de raciocfnio, a AD surge de uma falta. Isso pode ser visto como uma meia verdade, pois “[...J] esta escola nao surgiu da constatagdo de uma falta, como se o saber fosse um imenso mapa do qual bastasse ocupar os espacos ainda virgens. De fato, é pelo cruzamento de interesses de diversas ordens que um dominio de investigag4o original pode emergir” (MAINGUENEAU, 1990, p. 66). Portanto, se num primeiro ni- cleo, mais rfgido, a AD associava-se com a lingufstica, o que lhe escapava necessitava, portanto, de outros campos epistemolégicos de base. Dito de outra maneira, uma juncao pluriepistemolégica foi trazida de seus ntcleos exteriores para ainda tratar a questdo do significado do texto. Esses nticleos em princfpio estrangeiros sio o materialismo histérico, de Louis Althusser, e a psicanilise, de Jacques Lacan. Aqui, costura-se ao tecido da ideia inicial que argumentdévamos sobre a AD como grande projeto polftico sob os ausp{cios do althusserianismo, qual seja, empreender a releitura de O capital, de Marx, em formas estruturais e alcar os estudos marxis- tas a um forte paradigma de cientificidade. Dessa releitura, houve ainda uma segunda, a do sumo conceito althusseriano: ideologia. Esta ideologia foi estudada nao sé como idealizagdes imaginarias, mas como base material nas relagoes sociais, vistas num modo de produgao especffico, que era o materialismo histérico, e, a partir da teoria de aparelhos ideolégicos de Althusser, surge certa confluéncia entre lingufstica e materialismo histérico da seguinte maneira: como a ideologia deve ser estudada em sua materialidade, a linguagem apresenta-se como palco privilegiado de sua irrupgdo, ou seja, uma via por meio da qual se pode apreender o funcionamento da ideo- logia. O homem pertence a uma histéria real que nio lhe é posta em transparéncia nem ele a domina. Assim, conjugam-se hist6ria, e lingua, mas de maneira pratica ou de forma material, tendo come 136 ANALISE Do Discurs 0 ETHOS, DO POLITICO E DE DISCURSOS CONSTITUINTES ENTORNO DA PROBLEMATICA py ponto de aPolo a produgao de sentido dentro dessa visada teria lingufstico-histérica. O outro niicleo requerido pela AD vem da psicandlise lacaniana. Argumenta-se que, desde a estruturagao do inconsciente freudiano, 0 conceito de Sujeito sofreu diversas alteracdes. Convulsionaram-se as teorias de sujelto a partir de entao. O sujeito passou a ser visto como alguém cindido entre 0 consciente e o inconsciente. Porém, nao sem crfticas, o inconsciente, por muitos debatedores, passou a ser signi- ficado como algo obscuro, logo sem dados palpdveis a cientificidade, assim sendo, portanto, sem fundo cientffico de apreensio. Numa tentativa de abordar com mais precisao 0 inconsciente — 1é-se aqui o verbo “precisar” vislumbrando um carter de cientificidade —, Lacan o reestuda sob os aspectos da lingufstica estrutural. A linguagem passa a ser identificada como estruturada da mesma maneira que uma cadeia de significantes incubados, latentes, nao manifestos muitas vezes, todavia que se repetem e interferem no discurso efetivo dos sujeitos, transpassando-se para o setor consciente deles. Sendo assim, tem-se um sujeito que se constitui em relagaio ao seu inconsciente — 0 lugar do Outro; um sujeito construfdo com e na linguagem; esta, por sua vez, uma condi¢ao do inconsciente. Portanto, é esse sujeito vindo da psicandlise que a AD toma como “tradutor” de suas aspiragdes tedricas. Em razao de sua constituigao no outro/Outro ~a ideologia, a familia, a escola etc. —, tais sujeitos conceberiam textos como pro- dutos de trabalhos ideolégicos nao conscientes (comparativamente ao inconsciente). A mudanga de terreno toma corpo e articula-se como ruptura, em que se coadunam histéria, sujeito e lingua. Inserido nesse projeto politico althusseriano, Pécheux tece e ar- ticula suas cr{ticas em relacgao a lingufstica pés-saussuriana — limitada ao objetivo — propondo uma teoria do discurso que teria a capacidade de fazer a leitura semAntica dos textos e dos discursos aos quais se vinculariam. No entanto, para delimitar os conceitos dos objetivos especfficos deste capitulo, elucidaremos, a seguir, de maneira sucin- ta, pressupostos tedricos mais especificos, relacionados aos fins da anilise. Refletir como e de quais maneiras as diversas formas de rela- ¢6es de poder sao estabelecidas entre lingua e histéria é questao recorrente dentro do escopo de estudo das ciéncias da linguagem e 137 Awuase Do DiscuRs0: constrrunvres ENTORNO DA PRORLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO F DE DISCURSOS CONSTITUINTES do discurso, Para resumir, mas nao sem perdas, dirfamos que essa questo reflete-se, dentro da AD francesa, primeiramente com Michel Pécheux (ORLANDI, 2000, p. 19-29), a partir de estudos e releitu- ras sobre a teoria dos Aparelhos Ideolégicos do Estado (doravante AIE), desenvolvida até entao por Louis Althusser. Pela visada teérica de Althusser, 0 Estado dominante do poder se utiliza de diversos aparatos para atingir seus objetivos almejados. Entre outras coisas, os poderes que esse Estado impoe e exerce sobre as sociedades se perpetuam por meio de algo denominado Aparelhos Ideolégicos, em que algumas instituigdes sociais os representam seja como manifes- tagdes repreensivas, tais como: tribunais, exército, polfcia, a prépria administragao piiblica etc; seja, em outros casos, com instituigdes especfficas, como, por exemplo: escolas, religiées, famflia, partidos politicos. Essas manifestagées do poder ajudam a manter a ordem social desejada. Embora exista certa distingdo entre as maneiras como sao conduzidos e propagados esses controles, os AIEs acabam sempre por convergir para um interesse dominante. Esse pluralismo de AIEs nao impede a ideologia dominante; pelo contrario, isso a ratifica e acaba por legitimé-la mais e mais. Ela vai se inscrever num dos paradigmas sociais, qual seja, de dominagiio e exploragao. Com o proprio Althusser: “Nenhuma classe pode duravelmente deter 0 poder de Estado sem exercer simultaneamente a sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideolégicos do Estado” (ALTHUSSER, 1998, p. 49). Ao se inserir em uma das frentes do projeto de transformagao althusseriano, Pécheux considerou as formagées discursivas, ideol6gi- cas ¢ hist6ricas dos sujeitos e, principalmente, como a lingua, em seus diversos tipos de enunciados, os interpela ¢ os transforma em sujeitos historicos por meio de ideologias ditas ou nao ditas, mas presentes nas memérias histéricas que podem e devem ser atualizadas e formam o paradigma de discursos vigentes. Além disso, Pécheux investigou a nogo de poder nas relagées sociais, explicada pela luta de classes. Com isso, em suas andlises, foram formuladas teorias sob como e de quais maneiras o poder ideologicamente dominante é exercido ou j4 se exerceu nos individuos de uma sociedade. Um poder quase que imanente e explicado em toda a amplitude dessa palavra. Entretanto, conforme exposto anteriormente, o objetivo deste capitulo é esbocar uma anilise sobre a questao do poder recriado num suporte semi6tico literdrio, a partir das concepgoes de relagéo 138 ANALISE po Disct ’ ISCURSO: NTORNO DA PROBLEMATICA Do ENTORXO DA PROBLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO E DE DISCURSOS CONSTITUINTES e estratégia de poder vistos na teoria foucaultiana sobre sujeitos € poder. Para Foucault (1995), 0 “como” das relagdes nao se faz. apenas no “o qué’ oun “porque”; o importante é visar, quando usamos esse tema abrangente de poder, ha uma indagagao de como essas relagoes acontecem. Quais sao os fatos e acontecimentos que culminam na existéncia de uma ou de outra manifestacao de poder dominante? Como a espessura histérica determina quando, como e o que pode e deve ser dito, isto é 0 que constitui uma ordem dos discursos, 0 verdadeiro de uma época, digno de se legitimar nas praticas sociais? Esse tedrico Nos mostra que o poder eas suas relagdes se dao de forma fragmentada e esparsa no cotidiano; ele pode ser visto e sentido em todos os lugares, algo transversal. Para Foucault, a tematica do poder eas suas relagGes apenas siio passiveis de reflexao quando submetidas a essas perspectivas elencadas por essas formas de estudo. Em suas pesquisas, Foucault foi além, pois, ao observar tais es- tratégias e relagdes de poder, ele identificou também como, a partir dessas prerrogativas, os sujeitos tornam-se sujeitos. Pelo estudo do poder, Foucault formulou um dos temas centrais de suas teorias: 0 sujeito. DA CONJUNTURA POLITICO-IDEOLOGICA A NARRATIVA LITERARIA Pela conjuntura, entre os anos de 1964 a 1985, houve um dos regimes ditatoriais brasileiro, em que grupos civis e militares dominaram, via golpe, 0 poder governamental. A partir disso, os grupos sociais ou os individuos que nao comungavam com os ide- ais pertinentes ao senso cr{tico comum e que se distanciavam do pensamento ideolégico dominante tiveram silenciadas suas formas tradicionais de expressao e também quaisquer outras manifestagdes socioculturais destoantes da chamada “conduta correta”. Nao era mais poss{vel expressar-se abertamente nem da maneira com a qual se quisesse ou habitualmente se constitufsse na pratica dos debates politicos e sociais. Muito em razao desses eventos, foram comuns no perfodo manifestagoes artisticas construfdas utilizando-se de humor mais refinado, irénico, bastante contextual. Isso em alguma medida mostra também nao somente uma perspicacia editorial - publicar e circular num perfodo de censura prévia de contetidos - mas sim, e mais amplamente, que essas manifestagdes foram uma das tentativas 139 ANALISE DO Discurso: ENTORNO DA PROBLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO F DE DISCURSOS CONSTITURYTES de escapar, entender e criticar a opressao sociopolitica vigente, Entre essas importantes manifestagdes, temos as realizadas sob as formas literarias de expresso, sobre as quais nos deteremos neste ensaio, Quanto aos aspectos tedricos e literdrios, nao é intuito deste texto fazer uma discussio prolongada, profunda, proficua sobre esse contetido. Para isso, haveria necessidade de investir em elementos que discutissem, pormenorizadamente, géneros e histéria literérios, bem como trazer mais textos, num carater comparativo de obras, para compreender a discursividade literaria (MAINGUENEau, 2006, p. 9). Entretanto, nao poderfamos passar sem mencionar, pelo menos, algumas notas acerca da questdo do género em que se apoia © conto em anilise. Ha algumas teorias que fundamentam os géneros literarios, como as teorias literdérias baseadas na retérica, na filologia, no es- truturalismo etc.; destacaremos um conceitual teérico que, dentro de um quadro interpretativo das teorias literdrias, abordaria, em alguma medida, explicages para o género em que se ancora Cadeiras proibidas como um todo. Inserido no contexto politico mencionado, irrompe o livro de contos Cadeiras proibidas, publicado pela primeira vez em 1976, cuja autoria é de Ignacio de Loyola Brandao. Esse livro constitui-se, na verdade, de um compéndio de 24 contos (na primeira edigao) escri- tos entre os anos de 1970 e 1976 em jornais e em periddicos, como, por exemplo, Ultima Hora e Pasquim. Uma possfvel abordagem literaria inseriria o livro no género literario chamado de realismo magico ou maravilhoso, o qual seria uma tipologia de narrativas derivadas do realismo fantastico moderno. Para isso, utilizaremos um pouco de Tzvetan Todorov em seu livro Introdugao a literatura fantastica. Alguns escritores — para citar brevemente Victor Giudice, José J.Veiga, Lygia Fagundes Telles e 0 proprio Ignacio Brandao — nos anos 1960 e 1970, revitalizaram esse tipo de estrutura literdria. Aparentemente, em razao de esse tipo de narrativa encontrar certa facilidade na distor¢4o de fatos cotidianos por meio do fantastico, do surreal. Escritos de maneira bem elaborada, apareceram obras principalmente de narrativas curtas, como, por exemplo, contos & crénicas, embora presentes também em romances mais longos & densos. Assim, pessoas comuns ganhavam em seus comportamentos 140 ANALISE Do Discurso: EXTORNO DA PROBLEMLATICA Do ETHios, Do POLITICO E DE DISCURSOS CONSTTTUINTES psicoldgicos e sociais distorgdes de certa maneira impressionistas ¢ surrealistas ou insélitas, no dizer de Todorov (2007), autor que estruturou sua abordagem por meio da teoria literéria. Ainda sobre 0 género e com base no préprio Todoroy, temos que essa expresso literdria é “[...7] a hesitagdo experimentada por um ser que 86 CO- nhece as leis naturais, em face de um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROY, 2007, p. $1). Contudo, essas hesitagdes se desenvolveriam na trama narrativa sendo expressas pelas vozes das personagens - sobretudo por meio da voz do protagonista ou do personagem- -narrador ~ que acabariam por contagiar e inserir 0 leitor nesse invélucro. O leitor, por meio dessas hesitagées, constitui a marca principal das narrativas fantasticas. Com efcito, todos os contos do livro Cadeiras proibidas estao estruturados em narrativas de situagdes cotidianas de pessoas no ambiente urbano nao especificado, no que tange a descrigdes geograficas, mas que refletem a vida comum, complexa em senti- mentos e€ pensamentos, de pessoas vivendo em todos os grandes centros do Brasil da época. Esse livro poderia se enquadrar dentro do contexto de vertentes derivadas das narrativas fantdsticas, porém, pesquisando mais especificamente a obra, a luz da teoria literaria de Todorov, percebemos que suas figuras e seus temas nao estdo inscritos no género fantdstico em si, mas em géneros proximos e relacionados ao fantastico, como, por exemplo, o ma- ravilhoso e o estranho. Para que sejam delimitadas mais precisamente as caracteristicas desses subgéneros, Todorov (2007) explica que a caracterizagao do maravilhoso, por exemplo, acontece quando existe a naturalizagao dos fatos ins6litos das narrativas. Dito de outra forma, os fatos so- brenaturais que ocorrem nas instancias narrativas, com as situagdes ou com os seres, nao incitam a nenhuma reagio nas personagens tampouco no narrador e, por conseguinte, nos leitores, pois todos os elementos insélitos estariam inseridos num universo de significagdes em que tudo é possfvel. Em contrapartida, o mesmo tedrico explica a existéncia do estranho, o qual se caracteriza pelo uso da raz4o para a explicagao dos fatos insdlitos. No subgénero estranho, as situagdes narrativas, depois de causarem certo desequilfbrio entre a realidade eo sobrenatural, acabam equacionadas pelas leis e conceitos da realidade. 141 ASAuise Do Discurso: ENTORNO DA PRORLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO F DE PISCURSOS cons Stuy No entanto, consagrar o estudo do género fantés rante te6rico seria subentendé-lo num aspecto dever, tratando seus sentidos numa ressignificagaio dada tio ae Se my atraven tbilizady j icaa através dog ten 0, sem pensar em suas condigdes de produgao, a vontade de y Mos de autores, editores etc. Para entender a reaparigao des, Stung conjuntura do Brasil dos tempos ditatoriais, cremos que pod ero ny, pensar no conjunto de possibilidades que propiciara ta} nen tos mento, e nao como voligées criadoras. E preciso analisar conte. ideologias e as relacées de poder se dao nas praticas discursive compéem a dada cena literaria, para se compreender 0 que Peseins lue a irrupgao de certos textos em momentos distintos, quais sao lita condigées de produgao especfficas e que discursos, Senerog, sy a e praticas discursivas sao fiadores de sua existéncia. Pela abord i calcada na retérica literdria, os sujeitos, as relagoes Sociais ae mantém entre si e com o mundo onde vivem e as ideologias que ~ interpelam nao sao relacionados as condigées de producao an realizacao ou motivacao material e histérica, ou, ainda, como efeito de sentido que se queira materializar diante dos varios discursos que circulam num dado contexto, nos quais aqueles sujeitos sao chamados a se inscrever e, com isso, historicizar-se pelas praticas discursivas, Ha, portanto, nas bases imanentemente literdrias, uma relacao de correspondéncia do textual em si e por si com 0 contexto em que a obra se encontra, servindo o social apenas de pretexto para criagdo literéria, tal como explicavam os formalistas, ou fragmentada nesse ou naquele aspecto estrutural, como diziam os estruturalistas, Se gen, as De outro mirante, porém, um estudo visando a uma interpretagio discursiva, tal qual nos inscrevemos, ofereceria dispositivos de ruptu- ra a esse quadro interpretativo ligado a uma hermenéutica fechada, que busca um sentido oculto e que seja “o sentido”, tematico e tinico, anulando, por esse gesto, outras possfveis interpretagdes e excluindo a materialidade histérica que atravessa as criages feitas pelos seres humanos, pautadas na ampla e discursiva relagao sujeitos e mundo. Para pensar no objeto deste estudo, que tinha em seu discurs criar e recriar uma imagem do Brasil social daquele perfodo, haveriaa necessidade de um fino trato coma lin guagem, um revestimento com plexo em torno das palavras, acées, atitudes, discursos, nada melhor que uma estética bastante rebuscada e experimental. Criar distorgoes de comportamento, imaginacao fluida, trabalhar o imagético, sem 142 ANALISE Do Discurso: ENTORNO DA PROBLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO F DE DISCURSOS CONSTITUINTES, fronteiras; transgredir 0 dizfvel proibido e escapar da censura. OS suportes desse nao dizivel traziam consigo todo um trabalho de jogar com as palavras, associé-las aos fatos sem ser explicito demais nem Jaconico de menos ete. O fazer do autor, portanto, vinha de uma ne-~ cessidade pontual, viva nas enunciagées, nas artes, O Brasil vivia sob ditadura e cerceamento de liberdades. Porém, a situagao também era historica. Possivelmente, os absurdos encenados pelos personagens da narrativa aconteceriam também atualmente, de uma forma ou de outra. Nessa perspectiva de pensamento, o conto “O homem do furo na mao” é uma manifestacao contemporanea da escrita contista, que atendeu, naquele momento, 4 demanda de reconsiderar as maneiras possfveis de escrita vigentes em seu tempo, para discursivizar 0 que era proibido; mais ainda, utilizar tais maneiras como porta-vozes dos muitos discursos renitentemente contra o golpe ditatorial. E possivel, portanto, pensar em géneros magico-fantasticos ligados as suas instancias de uso, cotidianas, prosaicas, antes de passarem a um género predileto de um perfodo ou de autores. Em cada época, as ideologias, as maneiras de se enunciar valem de alguma forma, predominante de tempos em tempos, sem necessariamente existir 0 apagamento de alguns géneros em detrimento de outros. O que ha é que as esferas de uso da linguagem irao eleger este ou aquele género discursivo, ou muitos, num dialogismo constituinte, para ancorarem os varios embates sociais aos quais vivenciamos diariamente no co- tidiano de nossas vidas. Ja pela questao da trama do conto em si, como nao se faz possivel a insergao do texto na integra, optamos por elaborar uma resenha, embora conscientes da perda que isso acarretar4, principalmente, na questao estética e nos contetidos, bem como noutros aspectos lite- rarios da narrativa. Além disso, decidimos dividir a narrativa de “O homem do furo na mao” no esquema canénico destinado as narrativas literdrias, ou seja, a classificagdo que normalmente aparece nas secgdes didaticas: apresentagao, complicagao, climax e desfecho ou desenlace. O conto inicia-se expondo o ambiente corriqueiro de um ho- mem comum que, ao sair para mais um dia monétono e alienante de trabalho, percebe uma marca em sua mao. Aparentemente, apenas uma coceira, indolor e levemente avermelhada. Contudo, apés algum tempo, essa marca transforma-se em um orificio, ou um sinal, ou uma chaga. A partir deste ponto, a compilagao narrativa dessa trama se 143 ANALISE Do DiscuRso: ENTORNO DA PROBLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO FE DE DISCURSOS CONSTITUNNTES encaminha para seus principais entornos de sentido. A Person; “homem” deseja ter esse saber (conhecer 0 gosto de ser diferente de quebrar certa monotonia repressiva que havia no ar, deseja me diferente, deseja permanecer com esse furo na mao e ter um moti, pelo qual se diferencie dos demais homens). Ele nao quer se livrar ds marca. Talvez a meméria de um discurso fora do comum para é04s, Rejeita que cuidem, com medicamentos, do “ferimento”. Isso, com © passar da narrativa, afasta as pessoas de seu convivio, como, por exemplo, sua esposa. Assim como ela, toda a cidade o quer longe. H4 entao um cerceamento de suas liberdades, bem como a interdicao de seus discursos (supostamente subversivos para 0 momento histérico) realizada por pessoas e instituiges. Em outras palavras, nao é Possfve] ser diferente, nao se pode ser diferente. E necessério inserir-se ao todo, mesmo que teoricamente exista uma individualidade.* Desde que ele assume ser diferente e se individualizar - metaforizado na narrativa pela aceitagéo da chaga ou marca que ele carrega - todas as instituiges, das quais ele era uma parte constitutiva, 0 rejeitam eo agridem. Assim, no énibus que ele toma todos os dias para ir ao trabalho, j4 o acham inconveniente. No emprego, o patrao 0 despede. Perdido e perambulando pela cidade, bem como sofrendo diversas retaliagdes do poder vigente, acaba debaixo de uma ponte, tendo como companhia diversos sujeitos com a mesma marca que ele carrega, formando, assim, um sistema dentro do sistema, um espaco onde o poder os torna reclusos e exclufdos, um locus. Tudo isso narrado numa prosa cortante e insdlita, porém muito lticida e centrada em seus contetidos. agem DAS PERSPECTIVAS ANALITICAS Constitufdo na materialidade lingufstico-discursiva, com espago e tempo préprios no ambiente ficcional do conto, o discurso literario da narrativa reconstréi a situagao do pafs cerceado de individuali- dades e oprimido pelo poder ditatorial, que, nos anos 1970, estava fortemente consolidado, mas, ainda que centralizado e constituido na figura de Estado repressor, se capilariza em micropoderes entre sujeitos, conforme a narrativa nos indiciard. De um lado, existiam os 3 Umadas caracteristicas do Estado moderno é, ao mesmo tempo, ser individualizante e totalizante dos sujeitos. Tal configurago de Estado advém do Estado pastoril, instituido, pela primeira vez com a organizagao do cristianismo. (FOUCAULT apud RABINOW; DREYFUS, 1995.) 144 que lutavam ¢ resistiam 3 domina lado, os que, detendo os meios ins; das, comunicagées, exército, polf resisténcias, sobretudo ao dissim (40 poltico-ideolégica e, de outro titucionais de coergao — propagan- icia etc. — tratavam de coibir essas : ular um falso governo democratico, o qual criava a sensacdo de bem-estar social e de lutar contra um discurso de fora insistente a entrar em nosso pats. No entanto, a tal guerra era no quintal, era civil e com os filhos da patria Em meio a essa guerra fisica ¢ i pulacao vivia a letargia desse vezes por um fi deolégica, grande parte da po- perfodo confuso. Surpreendida muitas Iho ou parente préximo que tinha o nome veiculado como. procurado pela policia ou como terrorista perigoso; outras vezes feliz, ja que viviamos 0 chamado “milagre” econédmico e certa “paz” e tradicao mantidos — ao menos mascarada atrds da cortina da realidade. Nunca havia, até entao, sido tao facil comprar carros, casa, méveis, eletrodomésticos etc. A dita classe média da época vislumbrava-se com poderio financeiro proporcionado pelo planeja- mento militar de entao. Ao retomar as trilhas do texto, a trama passa-se na centralidade descritiva acerca do sujeito-personagem-protagonista chamado sin- gularmente “homem’”. Pela descrigao introdutéria, 4 nossa meméria vem parte da realidade sufocante vivida pelos individuos que, como descrito no pardgrafo anterior, estavam no meio-fio entre a luta ea repressao durante a ditadura militar. Na deriva dos discursos. Na apresentagao do enredo, hé a descrigao do ambiente em que se passa a historia, 0 sujeito-autor delega 4 personagem chamada “homem’”, simplesmente, posto dessa forma, sem uma efetiva nome- ago, sem uma caracterizagio semantica mais espectfica. E possivel inferir que essa designagao pouco rigida seria para possibilitar um efeito de sentido de generalizagao ou totalizagao das praticas sociais a todos os cidadaos daquela sociedade. Além disso, durante boa parte da narrativa conhecemos a personagem “homem’” apenas pelo titulo. Por quase todo 0 texto, 0 sujeito-personagem-protagonista é referido por pronomes de tratamento, como, por exemplo, senhor. Pronomes pessoais do caso reto: Ele. Ou, ainda, suas agdes aparecem elfpticas nas oragées que dao corpo & narrativa. Essas ages el{pticas esto na base de um processo estilfstico. H4, dessa maneira, a omissao de um termo, um fragmento, um gesto ou um movimento que podem 145 0: 5 scURS Axitise 00 D’ F DE DISCURSOS CONSTITUINTES co ENTORNO DA PROBLEMATICA DO ETHOS, DO POLITI : i ‘iva. E ser recuperados no contexto ou na situagao cous ei te caracterfstico em enunciados marcados Por ¢ pidez, Conforme vemos em: “Quando entrou no escritério, passou rapido pelo chefe” (BRANDAO, 2003, p- 2); “Chegou atrasado ao ponto.” (BRANDAO, 2008, p. 22). Silenciamentos € apagamentos dos Sujeitos que de fato eram constantes, vistos pela perspectiva da situagao vivida por qualquer individuo da sociedade totalitaria que 0 Brasil viveu. Tal como esté descrita, a organizagao espacial do conto também Foucault (1995) menciona sobre o nos faz atentar para a questdo que fato que, sob certo aspecto, as praticas de relagao de poder, a relagao de comunicagao e as capacidades objetivas estabelecem uma conso- nancia e formam a noco do conceito de “bloco” de estratégias do poder. Os discursos dispersados pelos sujeitos se alinham. Isso vem a ser que, por exemplo, numa dada instituigéo existe um sistema de comunicagao para divulgar seus discursos, para manter varios nfveis de conhecimento e saberes, hierarquias daquilo que pode ser dito e quem pode dizé-lo, mantendo um sistema de vigilancia, punigées e recompensas e uma hierarquia piramidal. Pelas palavras de Foucault (apud RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 241-242): [...] hé também “blocos” nos quais o ajuste das capacidades, os feixes de comunicagao e as relagdes de poder constituem sistemas regulares e concordes. [.....] uma instituigao escolar: sua organizagao espacial, o regulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferentes atividades ai organizadas, os diversos personagens que af vivem e se encontram, cada um com uma fungao, um lugar, um rosto bem definido - tudo isto constitui um “bloco” de capacidade-comunicagao- -poder. A atividade que assegura o aprendizado e a aquisigao de aptidées ou de tipos de comportamento af se desenvolve através de todo um conjunto comunicagées reguladas (ligdes, questdes e respostas, ordens, exortagées, signos codificados de obedi- éncia, marcas diferenciais do “valor” de cada um dos nfveis do saber) e através de toda uma série de procedimentos de poder (enclausuramento, vigilancia, recompensa e punigao, hierarquia piramidal). Dessa forma, em principio a personagem-protagonista continu- amente observa, entediada, o mundo a sua volta, mas nao rompe com esse mundo. Essa personagem mostra-se cindida entre um mundo de 146 ANAuse po Di su ISCURSO: ENTORNO DA PROBLEM \ PROBLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO F DE DISCURSOS CONSTTUINTES que supde fazer parte e ser singular e outro em que ela é parte, mas parte totalizada. Marchando no “bloco” de agées permitidas, pelas praticas discursivas autorizadas numa dada comunidade social. Com efeito, percebemos nisso um fator de grande fora na constituigao do Estado moderno. Fazer dos sujeitos seres individualizados e totaliza~ dos ao mesmo tempo. O “homem” com o furo na mao entra no énibus todos os dias, cumprimenta todas as pessoas, mas nao é reconhecido; é sim apenas mais um qualquer, dilufdo na liquidez social: “Quando subiu no 6nibus, nao conhecia ninguém [...]. Nao tinha lugar sentado, cruzou a borboleta, foi até a frente, cumprimentando as pessoas que nao sabia 0 nome, mas que tomavam 0 elétrico na mesma hora que ele” (BRANDAO, 2003, p. 19-22). Ninguém se importa, todos estao assujeitados pelos discursos opressores em vigéncia, embora em alguns exista vontade (consciéncia?) de refletir sobre as atrocidades do regime tirano. Esses sio excegdes, que devem — como foram no desfecho da narrativa e durante muito tempo no Brasil — ser reclusos e exclufdos. No decorrer da trama, um discurso irrompe nesse sujeito, de maneira espontanea, atravessando-o e que fara, no decorrer da nar- rativa, parte de suas praticas discursivas. Ele deslocara sua posicao enunciativa para esse novo discurso, metaforizado na marca/furo da mao. Possivelmente, pensarfamos em algum discurso silenciado e esquecido na verticalidade interdiscursiva, que, no caso do contexto hist6rico, seria, por exemplo, reivindicar alguma “subversao”, ser dis- sidente da homogeneidade discursiva, 0 que era apenas atravessar uma ténue linha entre o “normal” e o “anormal”. A aparigao do furo se da: Trés pontos antes do final, o énibus superlotado, ele sentiu uma comichao violenta na mao. Nao podia olhar, nem levantar a mao. Estava chegando, dava para chegar. Foi empurrado para a saida, despediu-se das pessoas, olhou a mao. No lugar da mancha, tinha um buraco. Um orificio perfeito. Como se es- tivesse estado sempre ali, Nascido, (BRANDAO, 2008, p. 20). O narrador descreve a perfeigao e a ineréncia do furo (discurso?) no sujeito-personagem. Ele nao estava até dentro do recuperdvel da meméria histérica desse sujeito. Quando a ideologia desse discurso, que agora faz parte de seu pensamento, o interpela, passa também a fazer parte de suas praticas. Ao longo da narrativa ele brigaré para 147 ANAuise po Discunso: 7 : ENTORNO DA PROBLEMATIC DO ETHOS, DO POLITICO E DE DISCURSOS CONSTITUINTES manter esse furo, Visto de outra forma, lutaré para manter o lugar diferente, 0 lugar da singularidade, mesmo imerso em uma massa de discursos totalizantes e totalitérios. Pode-se pensar como a incorporagao de um saber ~ na época, bem como em outros momentos da histéria de construgao do conhe. cimento das sociedades, “saber” pode também significar rompimento, nao concordancia; a insurreigéo contra o poder, trazendo obviamente consequéncias fisico-psiquicas para os sujeitos — uma chaga messianica, algo que o torne diferente e que o faga se inscrever em um discurso dissonante do discurso dominante. Mas na narrativa, apés os primeiros estranhamentos, ele passa a querer ser diferente, ou seja, h4, em certa medida, a busca pela ruptura com 0 discurso opressor, que equipara os individuos, tornando a sociedade homogeneizada. Dessa forma, comeca também sua saga de resisténcia e insubmissao ao poder que, como se vé na narrativa do conto, nao se encontra apenas centralizado em um poder “soberano”, mas sim condicionado a varios rincdes de poderes. A partir desse momento, na narrativa, é que se dao as principais relacdes de poder, em que os sujeitos exercem uns sobre os outros as, agoes de dominio, isto é, os modos pelos quais uns oprimem os outros. Logo as coerg6es sao apresentadas ao protagonista. O poder pulveri- zado e deslizante acompanha o “homem” do furo na mao, j4 bastante clivado diante da situacdo, pois havia durante anos absorvido, décil e subjetivamente, os controles sociais inseridos pelas regras do poder. Essas rotinas ficam enfatizadas em: “[...] Pela segunda vez em doze anos safa sozinho sem ninguém para acompanhé-lo até a porta, sem a sensagao de estar vigiado, de ter de ir e voltar ao mesmo lugar, ter de justificar as coisas, o dia, os movimentos [...”. (BRANDAO, 2003, p. 22, grifos nossos). Tudo é delimitado na sociedade recriada pela me- méria discursiva da conjuntura social-histérico da narrativa. Os gestos, © corpo, a mente. Ha sempre um tempo, um decreto, uma interdi¢’o aos sujeitos-personagens, de maneira geral, sobretudo ao “homem” que ousou deixar marcar e marcar-se em si algo diferente ao insélito cotidiano. Para exemplo desses recenseamentos: “[....] Faltavam doze para as oito, em trés minutos estaria no ponto [...]]”; “[...] Cogou a mao, descobriu uma leve mancha avermelhada de dois centfmetros de diametro [....)”. (BRANDAO, 2003, p. 19, grifo nosso). “[....] Entio, ele mostrou a mao ea mulher comegou a chorar. Chorou e solugou por dez minutos [...)”. (BRANDAO, 2003, p. 21, grifos nossos). “Havia vinte 148 ANALISE Do Disct 4 ISCURSO: ENTORNO DA PROBLENLATH ‘© PA PROBLENATICA DO ETHOS, DO POLITICO F DE DISCURSOS CONSTITUINTES. dois anos néo ia ao cinema num dia de semana, a tarde” (BRANDAO, 2003, p. 24, grifos nosso). Mais ainda, os decretos, inexistentes, inter ditavam os sujeitos-personagens ali recriados. Como em: Chefe— E proibido ter buraco na mao. Nao sabia? “o homem’— Nunca existiu isso nos regulamentos. Chefe— Existe. Estd no Decreto Inexistente. “go homem”— Quero ver. Chefe — F inexistente. © senhor nao pode ver.” (BRANDAO, 2008, p. 21)* O aparecimento desses decretos, dissimulados sob a prerrogativa de legalidade, estava de acordo com a maneira como 0 Brasil ditato- rial, principalmente apés 1968 com 0 AI-5’, tratava os cidaddos que questionavam o funcionamento social e politico. Vemos ainda as instituigses absorverem esse poder ou micro- poder e exercerem a vigilancia continua, tal como numa prisao, a exemplo do que explica Foucault (2008 com o conceito de panop- ticon.®) Do conto ainda: “Todos olhavam para ele. Sentou-se, segurando firme a maleta. Os outros passageiros comegaram a descer. O cobrador foi buscar um policial [...)” (BRANDAO, 2003, p.23), Ou em: — O senhor tem certeza de que é este o filme que quer ver? Como ele nao tinha, ficou indeciso. O porteiro aproveitou. — Esta vendo? O senhor se enganou. Se quiser, a bilheteira devolve o dinheiro. Ele se recuperou, protestou. Era esse filme mesmo, que ne- gocio é esse, também aqui essa brincadeira? — Por favor, meu senhor! Va a outro cinema —E se quero ir neste? Melhor nao entrar. Ou sou obrigado a chamar o gerente. Pode chamar. (BRANDAO, 2008, p.25) 4 Nesta citagdo, a fim de obter maior clareza, foram acrescentados em negrito os nomes das per- sonagens que tomavam os turnos das falas durante 0 didlogo transcrito. 5 Depois deste ato, o congresso foi ditatorialmente colocado em recesso e houve a consolidagao da chamada “linha dura” militar no poder, que marcaria, por sua vez, os 1970 ou “Anos de Chumbo”. Dessa maneira os militares apertaram ainda mais 0 cerco aos chamados subversivos da ordem, 6 O panopticon ¢ 0 livro de Jeremy Bentham que trata de um tipo de controle prisional em que todos 0 individuos so responséveis pela vigilncia. Tudo esta as claras, relatando a manifestagao do proprio conceito de controle subjetivo. Foucault aborda em Vigiar e punir, A ordem do discurso ‘© microfisica do poder como, a partir destes modelos de sistema prisional, o estado incorpora ¢ utiliza tais dispositivos de vigilncia na sociedade. 149 ON O climax do conto apresenta o poder mostrando-se sem méscara, Ao dizer de Foucault: ANALse po Discurso: ; ENTORNO DA PROBLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO F DE DISCURSOS CONSTITUINTES Ser4 que isto quer dizer que é necessario buscar 0 cardter pré- prio as relagées de poder do lado de uma violéncia que seria ua forma primitiva, 0 segredo permanente eo tiltimo recurso = aquilo que aparece em tiltima inst&ncia como sua verdade, quando coagido a tirar a mascara ¢ a se mostrar tal como @ (FOUCAULT apud RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 248). Nesse ponto da narrativa, as instituig6es j4 nao pedem, mas exercem o poder tal como ele é em sua forma mais primitiva, sendo assim um controle fisico dos corpos e nao s6 das mentes mais: — O senhor quer sair desse banco? Era um homem de farda abébora, distintivo no peito: Fisca- lizagao de Parques e Jardins. —O que tem esse banco? — Nao pode sentar nele. — Ele mudou para o banco ao lado, 0 homem seguiu atras — Nem esse. — Em qual entao? — Em nenhum. — Olhe quanta gente sentada. — Eles nao tém buraco na mao. O homem enfiou a mao embaixo da ttinica, tirou cacetete, deu uma pancada na cabega dele. As pessoas se aproximaram, enquanto ele cambaleava. (BRANDAO, 2008, p.26- 27) Diante desses fatos e com o fim de seu espago fisico e psicol6gi- co, a personagem (supostamente j4 um subversivo, pois carregava a marca e mais ainda militava por essa marca) se agrupa juntamente com outros individuos que também carregam essa marca, 0 furo na mao. “Quando olhou a mao do homem, viu nela um orificio de uns dois centimetros de didmetro que atravessava da palma da mao as costas” (BRANDAO, 2003, p. 27). Observamos, assim, o fechamento do ciclo referente a estratégia do poder quanto aos resistentes a ele: deixar os diferentes reclusos e exclufdos, pois, quanto mais o poder exclui aqueles que néo comungam com suas praticas, mais esse poder se consolida e também ratifica os valores sociais aos quais detém algum interesse. 150 pA CONSIDERAGGES FINAIS O que pretendemos, sem grandes pretensées, neste ensaio é em alguma medida mostrar indicios de que a narrativa “O homem do furo na mao", de Ignacio de Loyola Brandao, publicado no auge da truculéncia civ “militar, traz certas correspondéncias permeando 0 simulacro literdrio. E possfvel inferir uma série de atualizagoes das relagdes de controle vividas durante aquele perfodo, no ambiente real. Sendo assim, a personagem que protagoniza as agées na instancia narrativa 0 faz em agdes verossimeis, devido a natureza literaria, bem como a propria eloquéncia do sujeito de papel no texto em questao. Mais ainda, agoes nitidamente reais quanto a opressao exercida pelo governo dos civis-militares, Ha nessa narrativa as formas de poder presentes na chamada sociedade de controle. Uma manifestagao moderna do Estado diante dos sujeitos que dele fazem parte. Ainda que existisse um Estado forte, que mostrasse musculatura pela forca das armas, as relacdes cotidianas j4 estavam permeadas pela vigilancia e opressao. Para ser tolhido de seus discursos e acabar exclusos, jd nao precisava ir necessariamente ao front contra o Estado ditatorial. Apenas bastava querer se inscrever em um discurso fora da “normalidade” social. E assim pelo controle interior e exterior dos individuos, do po- der invisivel e flex{vel, isto 6, pulverizado em diversas instituigdes (dispersio dos micropoderes), que os sujeitos sio mantidos num processo de subjetivacao, de adestramento, que lhes dé a impressio de liberdade, algo em si necessério ao Estado para manter esses su- Jeitos em constantes vigilancia e punigao, sob seu projeto de atuacio. Destarte, Estado e poder formam suas malhas. Correspondidas de sujeito para sujeito. Exercendo controle inerente ao corpo e a mente dos individuos pertencentes a um determinado corpo social. Ao inferir tais andlises, por meio dos indfcios desse conto, bus- camos evidenciar, sem esgotar obviamente a riqueza e 0 contetido de outras andlises sobre os mesmos objetos aqui arrolados, como alguns discursos que estavam calados e pertenciam ao nao dizfvel. E assumi-los, naquele periodo, era assumir-se subversivo a essa ordem, diferente, E brigar por isso era ser um louco (entendido aqui como aquele que nado comunga com os pensamentos vigentes). 151 AxAu1se Do DIScuRso: 0 sRs0s CONSTITUINTES ENTORNO DA PROBLEMATICA DO ETHOS, DO POLITICO E DE DISCURSOS © Em conclusao, aos sujeitos inscritos nesse discurso de loucura restaria a interdigio, exclusao e a permanente reclusao em outro es- Pago; fora da sociedade com seus discursos ideolégicos dominantes, homogéneos, normais. A diferenga era © furo. Para subverter em alguma medida o poder, havia a necessidade de ter furar os discursos e furar-se enquanto sujeito. REFERENCIAS ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideolégicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1998 BRANDAO, Ignacio de Loyola. Cadeiras proibidas. Sao Paulo: Global, 2003. FOUCAULT, Michel. Microfisica do Poder. Rio de Janeiro: Edigoes Graal, 2008. ____. Aordem do discurso, Sao Paulo: Edigées Loyola, 1999. . O sujeito e o poder. In: RABINOW, P; DREYFUS, H. Michel Foucault: uma trajetéria filos6fica. Rio de Janei : Forense Universitaria, 1995, GASPARI, E. A ditadura escancarada. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2002. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literdrio. Sao Paulo: Editora Contexto, 2006. ____. Anlise de discurso: a questdo dos fundamentos. Cadernos de estudos linguisticos, volume 19, pp. 66-74. Disponivel em: . Acesso em: 12 jun. 2013. PECHEUX, Michel. Andlise automatica do discurso (ADD-69). In: GADET, Francoise; HAK, Tony (Orgs.). Por uma andlise do discurso: uma introdugdo a obra de Michel Pécheux. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1988. TODOROV, T. Introducdo 4 literatura fantastica. Sao Paulo: Perspectiva, 2007.

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