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ESTADO E DEMOCRACIA: ENSAIOS TEORICOS DECIO SAES IFCH ‘STITUTO DE, * Edigao Revista SUMARIO APRESENTAGAO~ Nora A 2* Epicgao «» INTRODUGAO = 1. dos tipos de Estado em correspondéncia com tipos diversos de relagées de produgio -~ A natureza da correspondéncia entre o Estado burgués eas relagdes de produgio capitalistas - A estrutura juridico.politica no modo de produgio capitalista - O diceito burgué O burocratismo burgués A representagio popular Conclusio ~- rs) DO MARX DE 1843.1844 AO MARX DAS OBRAS HisTORICA DUAS CONCEPGOLS DISTINTAS DE ESTADO +++ 1. A concepgio de Estado no Marx de 1843.1844 - 2. A concepgio de Estado no Marx das obras histricas - 3. Do "jovem Marx" ao Marx de 1848,1852: 0 contexto politico da passagem- 3. CORONELISMO E EstaDo BuRGUI REINTERPRETACAO + 1. Introdugio - . O Estado burgués: desorganizador e organizador- LEMENTOS PARA UMA Sass 2: 3. Coronelismo e Estado burgués democratico 4. A base sécio.econémica do coronelismo: relagdes de dominagaio ¢ dependéncia pessoal Coronelismo e desorganizacio das classes wabalhadoras « Coronelismo ¢ luta de classes no campo Interpretagdes diversas acerca da manipulacio eleitora ww ano a barganha, a violencia ~ w 8. Coronelismo e unificagao da classe dominante 9. A tegiio politico-administeativa como mediadora da barganha 10. O antagonismo entre coronéis 11. As contradigdes do coronelismo 12. Conclusio MONARQUIA FE. 1. Introdugio .... 2. Os conccitos de Monarquia ¢ Estado Burpué: 3. Consciéncia de sidito ¢ consciéncia de cidadania APTTALISMO.. 4. As fungées politicas da Monarquia no Estado burgués A ESQUERDA [A QUESTAO DOS SISTEMAS DIE GOVERNO NO Esrabo DEMOCRATICO-BURGUE: 1. Introdugio: O ponto de vista de classe na anilise dos sistemas de governo no Estado democtitico-burgués . Os sistemas de governo ¢ a politizagio das massas populares na sociedade capitalista Os sistemas de governo ¢ a emergéncia de crises de governo “positivas” no Estado burgués 4. Conclusao .. p » A DEMOCRACIA BURGUESA EA LUTA PROLETARLA.... 1. Duas teses sobre a democracia busguesa 2. Do igualitarismo absoluto 4 igualdade po! 3. Para que classe social ¢ mais vantajosa a democracia burguesa: a formal burguesia ou proletariado? 4. A luta proletatia nas democracias burguesas . SOCIALISMO FE; DEMOCRACIA Introdugio Democracia burguesa ¢ democracia prole Apresentagio A colegio TRAJETORIA mantém seu objetivo de estimular os professores do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da UNICAMP a reunir ¢ submeter a critica académica esctitos dis- petsos que expressem, a critério exclusivo do autor, os mo- mentos fundamentais de sua formagao intelectual. A exemplo dos volumes publicados até agora, compete a0 autor selecionar, organizar ¢ apresentar Os textos, em obediéncia a sua versio original, transferindo para a introdugao as observa- ¢6cs que considerar necessatias para posicionar-se quanto ao estado atual de suas reflexdes sobre a(s) unidade(s) tematica(s) incluidas no volume. Paulo Miceli Diretor do IFCH Nota a segunda edicao Os textos integrantes de Estado ¢ democracia: ensaios tedricos aparecem, nesta segunda edicio, ligeiramente modificados. As altetagdes realizadas tém um carater basicamente estilistico, ¢ exptimem a nossa intengio de melhorat a expressio esctita das idéias, bastante prejudicada na primeita edicio por uma reda¢ao deficiente. Espetamos que tais alteragées — que sabemos serem ainda insuficientes — contribuam pata tornar este conjunto de textos mais acessivel ao publico leitor. Esclateca-se finalmente que as modificagées estilisticas nao se fizeram acompanhar de nenhuma alteragao conccitual. Novembro de 1998 Décio Saes Introdugao Os textos aqui apresentados foram esctitos em diferentes mo- mentos de um periodo que se estende de dezembro de 1977 a abril de 1993. © que justifica a sua reuniio num tinico volume é a sua dupla unidade: de um lado, uma unidade tematica; de outro, uma unidade tedrica. Unidade temitica: todos os textos aqui apresentados abordam o tema do Estado, concentrando-se cada um deles sobre um aspecto particular desse tema (a concepgio de Marx sobre o Estado, 0 con- ceito de Estado burgués, o lugar de praticas politicas como 0 corone- lismo ou de instituigdes politicas como a Monarquia ou o Parlamenta- rismo dentro do Estado burgués, a natureza da democracia, respecti- vamente, no Estado burgués ¢ no Estado socialista). Unidade tedtica: © tratamento de todos esses aspectos particulares do tema do Estado encontra sua inspiragio fundamental na tcoria (marxista) do Estado proposta por Nicos Poulantzas em Poder politico e classes sociais. Foi essa dupla unidade que nos encorajou a reunir os sete en- saios, que vém a seguir, num sé livro. FB. bem verdade que mais de quinze anos separam o primciro do Ultimo desses ensaios. Pensamos, entretanto, que uma mesma posigao tedrica se exprime, nao obstante certas diferencas (secundatias) de formulacio, no conjunto desses textos. 10 Introdngéio s, Na sua primeira versao, fazia parte da “Introducio” de nossa tese de livre-docéncia A formagio do Estado burgués no Brasil (1888-1891), publicada como livro pela Edi- tota Paz e Terra em 1985, Esse texto, escrito em margo de 1980, foi publicado em 1982 como ensaio auténomo, sob o titulo O conceito de Estado burgués: direito, burocratismo ¢ representagiio popular (Cadernos do IFCH/UNICAMP n° 1, nova série, 1982). A difcrenga entre o texto original e essa nova versio é basicamente formal: no novo modo de exposigao, a claboragio tedrica ganhou independéncia, deixando de aparecer como a plataforma para uma andlise histérica. Em 1984, submetemos esse texto a uma nova tevisdo, com o intuito de republi- ca-lo numa coletinea de textos nossos sobre o Estado (projeto esse que fracassou). Essa segunda revisao nao alterava o essencial; porém, aperfeigoava muitas formulagées anteriores e procurava suprir certas caréncias a nivel da expressao escrita das idéias, mantidas as posicocs tedticas iniciais. IZ essa versio de 1984 que foi publicada, sob o titulo O coneito de Estado burgris, em novembro de 1992 (Cadernos do IFCH/UNICAMP n° 25); ¢ que é republicada neste livro. Continu- amos a subscrever as teses ai apresentadas, com a ressalva de que um ponto, teoricamente crucial, permanece obscuro em nossa anilise (como, de resto, na andlise de Poulantzas, em quem nos inspiramos): a distingao entre estrtura (estatal) ¢ instiluigio (estatal). Numa frase: em nossa exposigio, nao indicamos de forma tcoricamente precisa o modo pelo qual os valores estruturais se exprimem, de modo refratado, como notmas institucionais. Um problema dessa magnitude tedrica nio poderia ser resolvido através de uma simples terccita revisio. Seria preciso recomegar pelo comeco; isto ¢, construir uma nova ex- posicio, onde a compreensio adequada da questao acima mencionada permeasse a totalidade das formulagées patciais. E esse trabalho que, Dévio Saes 11 no futuro, aguarda os pesquisadores que se identificam com as posi- Oes tedricas af apresentadas. O texto DO Marx DE 1843-1844 AO MARX DAS OBRAS HisTOrIc. DE Es’ INT DUAS CONCEPGOES D! ‘ADO foi apresen- tado, como comunicacio, no IX Coléquio do CLE, realizado no IFCH/UNICAMP em agosto de 1983. A seguir, foi publicado na revista Teoria & Politica, n° 5/6, ano 2. Nosso objetivo, aqui, foi o de testar, no terreno especifico da teoria do Estado e com recursos pessoais que reconhecemos serem precitios (desconhecimento do texto original — em alemio — dos autores consultados, desconheci- mento da totalidade da obra de Hegel ¢ de Mars), a tese althusseriana de que teria se processado uma spiira dentro do pensamento de Marx. Continuamos a considerar valido o resultado de nossa anilise (a saber, a constatagio da existéncia de duas teorias do Estado — uma, hegeliana; a outra, propriamente marxista — no conjunto da obra de Marx). Ressalve-se, todavia, que a posse de um nivel mais elevado de informagao tedrica nos permitiria sofisticar e enriquecer esse mesmo resultado. CORONELISMO E EsTADO BURGUES: ELEMENTOS PARA UMA REINTERPRETAGAO foi publicado, pela primeira vez, na revista Estu- dios Rurales Latinoamericanos, vol. 1, n° 3, de setem- bro/dezembro de 1978; ¢ republicado, em janeiro de 1982, na revista Escrita/Ensaio n° 9. As diferengas entre uma c outra versio nao sio ‘aminar o con- importantes. Nosso objetivo, nesse ensaio, foi o de re ceito de “coronelismo”, tal qual cle 6 apresentado por Victor Nunes Leal (cm Coronelismo, enxada e voto), 4 luz da teoria do Estado capitalista proposta por Poulantzas cm Poder politico ¢ classes soctais. Ao indicarmos © papel do coronelismo no funcionamento do Estado burgués, pro- 12 Introdugéio. curamos retitar a andlise dessa pratica politica do terreno das conside- racdes habituais sobre o carter “oligérquico” ou “pattimonial” dos Estados que a acolhem. MONARQUIA E CAPITALISMO, em sua primeira versio, foi publi- cado em dezembro de 1993 na Revista de Sociologia e Politica da Universidade Federal do Parana. Essa versio, redigida em dezembro de 1992, refletia mais dicctamente a conjuntura politica brasileira (véspetas do plebiscito sobre as formas de governo), embora o modo de abordagem do tema fosse eminentemente tedrico. Na versio pre- sente — preparada precipuamente para esta edicfio —, foi ampliada a reflexfio tcdrica sobre o tema ¢ climinada a referéncia aquela conjun- tura. MAS DE GOVERNO NO AO DOs SIS AA ESQUERDA E A QU TADO DEMOCRATICO-BURGUES se configura como um texto de E int © teérica na conjuntura politica brasileira de abril de 1993 (plebiscito sobre sistemas de governo). Foi encomendado e, a segui rejeitado sucessivamente por duas publicagdes diferentes. A versio atual é ligeiramente diferente: um pouco mais descnvolvida que a ptimeita. De todos os textos aqui apresentados, este é o que apresenta um carater mais “pratico”. A despeito disso, cle tangencia algumas questdes que sio relevantes para a teoria do Estado burgués; por isso, decidimos publicé-lo aqui. ‘A DEMOCRACLA BURGUES.A E A LUTA PROLETARIA ¢ um texto voltado 4 polémica tedrica. Ele aborda questées como a natureza de classe das institui s politicas democraticas ¢ 0 uso que as classes sociais antagOnicas podem fazer de tais instituigdes. Foi publicado pela revista Teoria & Politica, n° 2, ano I, nos inicios de 1981 A versio aqui apresentada é a original. Deévio Saes 13, SOCIALISMO E DEMOCRACIA foi publicado, sob o titulo triunfa- lista “A superioridade da democracia socialista” (nao autorizado por nés), na revista Principios, n° 26, de agosto/sctembro/outubro de 1992. O texto aqui apresentado ¢ o mesmo; porém, restauramos 0 titulo original. Finalmente, queremos agradecer 0 estimulo dado a preparagio deste livro por Joao Quartim de Moraes, bem como 0 au: lio precio- so de Caio Navarro de Toledo na busca de um titulo que sintetizasse fielmente 0 espirito do conjunto de artigos aqui apresentados. Mas esses colegas nfo devem ser condenados pela sua generosidade, caso ao leitor parega que a nossa empreitada intelectual nfo foi, aqui, leva- da a bom termo. 1. O Conceito de Estado Burgués Introdugao Este texto trata, essencialmente, da teoria do Estado burgués. O ponto de partida dessa teoria se encontra nas obras de Mars Engels c Lénin; todavia, a sua formulagio mais sistematica se encontra na obra ja classica de Nicos Poulantzas, Poder politica e classes soctais (1968). No inicio da década de 1970, 0 livro de Poulantzas parecia marcar 0 en- ccrramento de uma longa fase de esterilidade da reflexfo socialista proletitia sobre o Estado em geral ¢ o Estado burgués em particular; tinha-se a impressio de que, a0 trabalho de Poulantzas, suceder-se- iam outros, onde se prolongariam as suas andlises ou, pelo menos, debatet-se-iam em profundidade as suas idéias. Essa previsio, toda- via, no se confirmou. De um lado, a escola marsista alema (Hirsch, Altvater, OFF) resvalou, nas suas anilises sobre o Estado, para um ceconomicismo que é absolutamente contrario a linha geral da andlise contida em Poder politico ¢ classes soviais, de outro lado, 0 proprio Poulantzas se mostrou, em trabalhos postetiores, incapaz de desen- volver ¢ aprofundar as suas teses iniciais; a sua ultima teoria do Es- tado (aquela presente em O Estado, 0 Poder ¢ 0 Socialismo de 1977) & uma dramitica tentativa de propor novas teses sobre o Estado, ¢ de encobrit, sem alardes ou ajuste de contas explicito, sua primeira teo- rizagio. 16 O comeito de Estado burgués Assim, Poder politico e classes sociais acabou se definindo como uma obra Gnica ¢ como um fato isolado na teoria politica marxista. Esclarego: um fato isolado na teoria politica marxista em particular ¢ nao na teoria marxista em geral. Os resultados da pesquisa tedrica realizada por Poulantzas io poderio ser plenamente entendidos se for ignorado o seu. duplo contexto: politico ¢ intelectual. De um lado, reflete-se no trabalho de Poulantzas (que é anterior a maio de 1968 ¢ & invasio da Tchecoslovaquia) o avango, registrado na se- ganda metade da década de 1960, das lutas proletirias © populares em escala mundial; Grande Revolugio Cultural Proletaria na China, Guerra de Libertagio Nacional no Vietna do Sul, movimento estu- dantil anti-imperialista nos EUA ¢ na Europa Ocidental (exempl as ocupagées de campus universitarios nos EUA, os Comités Victna na Franca). De outro lado, a pesquisa tedrica de Poulantzas se beneficiou diretamente do empenho — evidente em autores como Charles Bettelheim, Louis Althusser, Etienne Balibar ou Jacques Ranciére — em fazer avancar a andlise cientifica do modo de produ- cio capitalista, em todos os seus aspectos (relagdes de producio, stado). divisio do trabalho, ideologia dominante, Poder politico e classes sociais nto foi, a despeito das suas qualidades, suficiente para abalar a predominincia, nos meios intclectuais que se reivindicam marxistas, de velhas teses, j4 dominantes na Segunda In- ternacional, sobre o Estado burgués. As teses politicas de autores como Bernstein, Kautsky ou Max Adler reaparecem hoje, com nova roupagem, nos trabalhos de intelectuais ou militantes como Umberto Cetroni ¢ Santiago Carzillo.' Este nfo é o lugar para empreender uma Ver, por exemplo, Umberto Cerroni, Teoria Politica y Sosialisme, Ediciones Exa, Mexico, 1976; ¢ Santiago Carrillo, “Enrecommisne” ¢ Estado, DIFEL, Rio de Janei- 10/Sa0 Paulo, 1978. Désio Saes 17 analise critica dessas teses. Aqui, quero apenas especificar 0 cfcito que a adogio dessas teses produz no campo da investigagio tedtica sobre o Estado burgués: os autores que estabelecem, na linha de Kautsky ou Adler, uma dissociacio entre o Estado burgués ¢ aquilo que conceitu- am como democracia politica, afastam-se inevitavelmente dos estudos sobre o Estado butgués como estrutura juridivo-politica e como aparelho particulares. Muito ha a dizer sobre este afastamento; é de se esperar que este texto contribua — ainda que o faga de modo indireto — para uma melhor delimitagao da sua natureza ¢ do seu alcance. Aqui, procuramos teconstruir e desenvolver 0 conceito de Esta- do capitalista proposto por Poulantzas em Poder politico e classes sociais. Ou seja, buscamos: a) expiicitar algumas conseqiiéncias tedricas das teses mais ger is sobre o Estado Capitalista sustentadas por esse au- tor; b) sefjficar alguns aspectos do conceito apresentado por Pou- lantz aqueles que conflitam com as teses mais gerais defendidas pelo préprio autor, ¢ que tornam portanto contraditério o seu texto. Deixo deliberadamente de analisar as posigécs de Poulantzas no scu failo (1976) ¢ no livro O Estado, 0 poder ¢ 0 socialismo (977). Aqui se reafirma, tio somente, o artigo constante da obra coletiva A arise no FE: uitcleo do conceito de Estado burgués (ou capitalista) contido em Poder politico ¢ classes sociaés. Problemitica teérica: a dos tipos de Estado em correspondéncia com tipos diversos de relagdes de produgao A construgio do conceito de Estado burgués s6 pode ser empre- endida no quadro de uma problematica teérica particular: a proble- matica dos sipas de Estado correspondentes a tipos diversos de relagies de prodngio, A base para o desenvolvimento teérico dessa problematica 18 O conccito de Estado boergués ch produgao. A base para o desenvolvimento tedrico dessa problematica se encontra na obra de Marx, Engels e Lénin. Em que consiste tal base? Em primeiro lugar, um conceito de Estado valido pata todas as sociedades divididas em classes. Trata-se, portanto, do conceito de Estado ou em geral, esbocado, por exemplo, nas obras hist6ricas de Mar. claramente formulado por Engels em 1 ovigem da familia... © que foi exposto por Lénin, de modo bastante desenvolvido ¢ sistematico, em O Exstado ¢ a revolugio ov, de modo mais sumitio, em Sobre o Estado Aqui, s6 exemplifico. Ainda assim, convém definit minha posigio sobre um ponto critico: 2 natureza da relacio — continuidade ow ruptura — existente entre @ anilise do Estado contida nas obras politieas do jovem Marx ¢ aquela desenvolyida nas suas obras histéricas. A meu ver, tem razio Poulantzas ao sustentar, em Poder politico ¢ classes soviais, que a problematica da separagio entre a sociedade civil ¢ 0 Estado ~ inspiradora de obras como A gusto judaica, ou 03 dois ensaios sobre a filosofia hegcliana do dircito — nio se identifica com a problenvitica da relagio entre o Estado e a sociedade dividida em classes (O 18 Brumétio..., Litas de classes na Pran- fa). Portanto, parece-me que um autor como Umberto Cetroni incorre em erro ae defender essa identificagio, concebida como relagiio de complementaridade ou de prolongamento entre as duas problematices. Lamentavelmente, Poulantzas preferiu, em Poder polio ¢ classes sociais, dat por demonsteada a incompatibilidade entre a problematica politica contida nos textos de 1843-44 c aquela desenvolvida nas obras historicas de Marx, embora 0 quadro geral da sua obra — uma andlise marxista do Estado capitalista — indicasse a necessidade de uma anilise mais sigorosa do con- ceito de Estado sustentado pelo jovem Marx, bem como de um confronto explicito entre esse conceito ¢ aquele encontrado, em estado mais ou menos claborado, nas obras histézicas, na correspondéncia, nas exiticas a programas operirios, etc. Esse tral Iho, portanto, esta por scr feito. Fique, entretanto, explicitada aqui minha con- dlusio provisbria: 0 conceito de Estado niio € 0 mesmo nos dois blocos de traba- Ihos, ja que o conceito de luta de classes esti ausente do primeizo bloco ~ 0 “bur- gués homem privado” ¢ o “proletariado agente da emancipagio universal” nfo sto realmente classes sociais antagonicas ¢ em luta -, enquanto que ¢ 0 elemento central para a definigio da fungio do Estado, no segundo bloco de trabalhos. Sobre a tese da complementaridade (por “transposigio”) entre as duas problemiticas de Marx, ver Umberto Cetroni, op. «4, capitulo “La relacién con Marx”, pp. 23-33 Désio Saes 19 (conferéncia na Universidade de Sverdlov, 1919). Um conceito de Estado em geral: o Estado, em todas as sociedades divididas em clas- ses (escravista, feudal ou capitalista), é a organizacio especializada (=o “poder especial de repressio”) na fungio de moderar a luta entre as classes antagénicas, garantindo por esse modo a conservagio da dominagio de classe; ou, por outta, o conjunto das instituigdes (mais ou menos diferenciadas, mais ou menos especializadas) que conser- vam a dominagio de uma classe por outra. Mas, além do conceito de Estado em geral, uma segunda idéia se constitui igualmente em base pata o desenvolvimento da problemsti- ca tedrica dos tipos de Estado: a idéia da correspondéncia entre for- mas politicas ¢ tipos diversos de relagées de produsio. Numa passagem do Terceiro Livro de O Capital, Marx define, de modo concentrado, a natureza da correspondéncia entre forma politi- ca e relacdes de producio: “La forme économique spécifique, dans laquelle du surtravail non payé est extorqué aux producteurs directs, détermine le rapport de dépendance (politique), tel qu’il découle directement de la production elle-méme, et réagit 4 son tour de fagon déterminante sur celle-ci. C’est la base de toute forme de communauté économique, issuc directement des rapports de production, et en méme temps la base de sa forme politique spécifique. C’est toujours dans le rapport immédiat entre le propriétaire des moyens de production et le producteur direct qu’il faut chercher le secret le plus profond, le fondement caché de I’édifice social, et par conséquent de la forme politique que prend le rapport de souveraineté et de dépendance, bref la base de la forme spécifique que revét Etat & une période donnée...” +.Cf. Karl Marx, Le Capital, Editions Sociales, Paris, 1971, Livre 3, tome III, p. 171. 20 O conceito de Estado burgués O conceito geral de Estado mais a tese da correspondéncia entre relagdes de produgio e formas politicas constituem, portanto, a base, estabelecida por Marx, Engels ¢ Lénin, para o desenvolvimento da problemitica tedtica dos tipos de Estado, cortespondentes a tipos diversos de telagdes de produgio. Esse desenvolvimento se encontra, sobretudo, no trabalho de Poulantzas, Poder politico e classes soviais (1968).* Tal trabalho, de um lado, sistematiza ¢ prolonga as formula- cdes de Marx ¢ Engels sobre os tipos de Estado, integrando-as a uma teoria dos modos de produgiio; de outro lado, constréi o conccito de Estado capitalista. A natureza da correspondéncia entre o Estado burgués e as relagdes de produgiio capitalistas Através da referéncia a Poulantzas, chegamos ao nosso objetivo ptincipal: a reconstrucio do conceito de Estado burgués. Dizemos: reconstrucio, pois o conceito apresentado a seguir nao é novo; cle resulta fundamentalmente de um trabalho de desenvolvimento — do ‘plicitagio ¢ retificagio jé qual nfo estio ausentes as operagées de mencionadas — do conceito de Estado burgués contido no trabalho de Poulantzas. Todavia, as retificagdes operadas ¢ as conclusées tira- das por conta propria impedem a identificagio integral do conccito de Estado burgués aqui exposto com aquele encontrado nesse autor. Uma obsctvagio preliminar sc impée. Preferimos designar 0 tipo de Estado correspondente a relagées de produgio capitalistas através da expressio Extado bingués, ao invés da expresso Estado capitalista, + Ver Nicos Poulantzas, Ponvoir politique et classes sociales, Librairie Frangois Maspe- 10, Paris, 1968. Décio Saes 21 empregada por Poulantzas na obra citada. A expressio Estado burgués é aquela mais freqiientemente utilizada por Marx e Engels. Todavia, 0 peso da tradigéo nfo é a razdo principal de nossa preferéncia; a ver- dadeira razio aparecerd, por si s6, num ponto mais avancado desta exposicao. O que ¢ 0 Estado burgués? Nao vamos, aqui, propor uma defi- nigio sintética, para a seguir desagreg4-la cm ctapas sucessivas. Nosso ponto de partida é a proposicio de dois enunciados distintos: a) 0 Estado burgués organiza de um modo particular a dominacio de clas- se; b) o Estado burgués corresponde a relagdes de produgao capita- listas. Agora, devemos determinar a relagio que existe entre os dois enunciados. Para tanto, temos de analisar a natureza da correspon- déncia entre o Estado burgués ¢ as relagdes de producio capitalistas. Questio inicial: 0 que designamos propriamente por correspondén- da entre o Estado burgués e¢ as relagdes de produgao capitalistas? Nosso primeiro passo é delimitar negativamente essa correspondén- cia, mostrando o que ela nao é. Mais precisamente, devemos ctiticar 0 modo economicista e mecanico de interpretagéo da correspondéncia: aquele que considera a formagio do Estado burgués, numa formagio social determinada, como um vflexo da dominancia de relagdes de ptoducio capitalistas, Nessa linha intexpretativa, a dominincia de relagdes de produgio capitalistas, numa forma © social particular, determina a transformagao burguesa do Estado. Em geral, tal posigio se exptime, sinteticamente, através do recurso 4 conhecida metéfora espacial da base e do topo: a transformagio da base econdédmica da sociedade determina, numa relagio causal simples, a transformagao da sua superestrutura (a estrutura juridico-politica). A critica 4 tendéncia economicista/mecanicista nao pode ser empreendida no espaco limi- tado de um paragrafo; é no conjunto das observagées seguintes que 22 O conccito de Estado bnrgués tal critica esta contida, embora de modo puramente indireto. Todavia, citemos, desde jé, um sintoma (repita-se: um sintoma, ¢ nao, uma prova) de sua fraqueza cientifica: a impossibilidade de levar em conta ¢ analisar com profundidade a radical transformagio politica ocorrida, nas diferentes formacées sociais, durante 0 processo de passagem ao capitalismo (¢ nao, no final do processo). Ou seja, o estudo histérico das Revolugécs (politicas) burguesas_particulares traz problemas 4 tendéncia economicista/mecanicista; concebendo a transformagio do Estado como um reflexo retardado da transforma- cio das relagdes de produgio, tal tendéncia nao pode admitir expres samente que a formacio de uma nova estrutura jutidico-politica (=Revolugio politica buzguesa) ocosra antes da dominancia de novas relagdes de producio. A correspondéncia entre 0 Estado burgués ¢ as relagdes de pro- dugio capitalistas no consiste numa relagao causal simples ¢ univoca entre ambos. Qual é, entio, a natureza dessa correspondéncia? Um tipo particular de Estado — 0 burgués — conresponde a um tipo particular de relagées de produgio — capitalistas —, na medida em que sd wa estrutura juridico-politica espedifica torna possivel a reprodigao das rela- gdes de producio capitalistas. Essa é a verdadeita relagio entre o Es- tado burgués ¢ as relagdes de producio capitalistas: sé 0 Estado burgués torna possivel a reprodugiio das relagies de produgio capitalistas. Passemos & anilise dessa rclagio. Comecemos por uma exposicio sumaria do conceito de relagGes de produgio capitalistas. Essa exposi¢ao nada apresenta de novo, tio somente condensando clementos cncontrados em Poulantzas (obra ja citada) e cm Balibar (cnsaio de Live k Capital), e pot sua vez recolhi- dos por esses autores, para reelaboragio, em trabalhos de Marx como O Capital (ai incluido o seu capitulo inédito) e os Grandrisse. Dévio Sees 23 As tclacées de produgio capitalistas, no seu sentido especifico, apresentam dois aspectos. O primeito deles consiste na relagio entre © produtor direto — nfo proprictirio dos mcios de produgio — e o ptoprictatio dos meios de produgio — nio trabalhador —, que extor- que do primeiro o sobre trabalho: é a relagio de propriedade em sen- tido estrito. O segundo aspecto consiste na separacio entre o produ- tor direto e os meios de produgio; ou seja, no nio-controle, pelo produtor directo, das suas condigdcs naturais de trabalho. Este segun- do aspecto é especifico das relagdes de produgio capitalistas, nao sendo encontrado nas relagdes de produgio historicamente anterio- res. Pode-se, portanto, verificar que existem, simultaneamente, uma continuidade ¢ uma ruptura entre, de um lado, as relagdes de produ- Ao escravistas ou feudais e, de outro lado, as relagdes de produgaio capitalistas. Precisemos. De um lado, 0 escravismo, 0 feudalismo ¢ 0 capitalismo apresentam um aspecto comum: eles constituem, todos os trés, formas de extorsio, por um nao-trabalhador, de sobretrabalho prestado pelo produtor directo. De outro lado, a natureza da relagio entre o produtor direto e os meios de produgao afasta o capitalismo do escravismo ¢ do feudalismo: se as relagdes de produgio capita- listas se caracterizam pela separaydo entre produtor direto ¢ meios de ptodugio, tanto as relagdes de produgio escravistas como as trela- gées de produgio feudais se caracterizam pela nidade entre ambos. Situando-se nesse nivel elevado de abstracio (andlise comparativa de diferentes relagdes de produgio), Marx afirma, nas Formeu’* que, tanto no escravismo como no feudalismo, 5 Ver Karl Marx ¢ Eric J. Hobsbawm, Formas que preceden a ta produccién capitalista, Cérdoba, Cuadernos de Pasado y Presente, 1971, p. 459, citado e traduzido por 0 Paulo, Editora Atica, 1978, p. 84. Jacob Gorender, O escravisnto colonial, 24 O conceito de Estado burgués “.... 08 préptios trabalhadores, as capacidades vivas de tra- balho estdo ainda imediatamente inlutdas entre as condigdes objetivas de trabalho e como tais sao apropriadas ¢ séo portanto eseravos oit Servos Numa das pegas de sua correspondéncia, Marx engloba tanto o escravismo como o feudalismo numa mesma era geral do desenvolvimento social, definindo-os como partes integrantes de uma mesma formagio secundaria da sociedade.‘ Nao podemos estender mais esta exposi¢io. Contudo, a vista do objetivo principal deste texto (a conceituagio do Estado burgués), é conveniente sublinhar, uma Ultima vez, a existén- cia desse duplo aspecta nas relagées de produgio capitalistas. A defini- cio do lugar do Estado burgués na reprodugio das relagées de pro- dugio capitalistas, bem como a qualificagio da estrutura juridico- politica que torna possivel essa reprodudo, dependem da considera- clo permanente desse duplo aspecto. A redugio das relagdes de pro- dugio capitalistas a um s6 aspecto (a relagio de propriedade num © Consultar Karl Marx, “Esbogos preliminares da Carta a Vera Zassulich”, in Maurice Godelier, Sobre e/ modo de produccién asiatico, Ediciones Martinez Roca, Bar- celona, 1969, p. 177. Cabe agregar que a anilise, a alto nivel de absteagio, das iden- tidades ¢ diferencas entre os tipos diversos de religdes de produgio pode scr til na s complexas (de conti- ¢ das relag pesquisa: por exemplo, como introdueao a ana nuidade, de muptura) entre o capitalismo, o socialismo ¢ 0 scu estigio mais avangado , 0 pesquisador que substituir integralmente a andlise tedri- (0 comunismo). Todav’ ca dos tipos particulates de relagées de produgio por essa anilise comparativa caira inevitavelmente em formalismo. Jacob Gorender, em cuja anilise também nos apoia- mos para este ponto, detectou cssa tendéncia em autores como Stuchevski ¢ Vassili- cv; mas tal tendéncia se encontra igualmente noutros autores. E, 0 caso, por exem- plo, de Samir Amin, cujo conceito de modo de produgdo tributérie compreende © escra- vismo, o feudalismo ¢ a comunidade asiatica. Consultar Jacob Gorender, op. aif, pp. 84-85; bem como Samir Amin, Classe ef sation, Les Editions de Minuit, Paris, 1979, }-73. capitulo II], “Les formations tributaires”, pp. Décio Saes 25 sentido estrito) s6 pode levar o pesquisador a conceituar de modo limitado ¢ parcial o Estado burgués. Um modo limitado ¢ parcial: tal conceito so contera wa parte da estrutura juridico-politica, um dos papéis do Estado burgués na reprodugio das relagdes de produgio capitalistas. Todavia, o que dissemos acima nao é suficicnte para definir as telagdes de producao capitalistas. A exposigio dos dois aspectos mencionados estabelece apenas quais sio os elementos componentes dessas relagdes, e qual é a disposigao formal desses elementos em tais relagées. Agora, é preciso determinar, de um lado, a forma especifica que assume, no capitalismo, a extorsio do sobretrabalho do produtor direto pelo proprietario dos meios de produgao; de outro lado, as condigdes materiais da separagao, no capitalismo, entre 0 produtor direto ¢ os meios de produgio. A extorsio do sobretrabalho do produtor directo pelo proprieta- rio dos meios de producio assume, no capitalismo, a forma de compra e venida da forga de trabalho: através do pagamento de um safério a0 produtor directo, o proprietario dos meios de produgio compra o uso de sua forga de trabalho. Aqui, a forca de trabalho assume a forma de uma /ercadoria. 0 uso da forca de trabalho do produtor direto pelo proprietirio dos mcios de produgio se faz sob a forma de troca de equi- valentes. Todavia, deve-sc perguntar: a troca de um salario pelo uso da forga de trabalho é efctivamente, ev sua esséncia, uma troca de equiva- lentes? A resposta é: ndo, j4 que 0 saldrio pago ao produtor direto é inferior ao valor de troca produzido pelo uso de sua forga de traba- lho. A formulagaéo pode parecer contraditéria: contudo trata-se, nao de uma contradiciio do pensamento, e sim, de uma contradigao situa- da no processo teal. A produgio da mais-valia resulta, fundamental- mente, de uma troca desigual; todavia, para que essa troca desigual se 26 O conceito de Estado burgués conctetize, va produgdo, é preciso que a forca de trabalho circule, vo mercado, como se fosse uma mercadoria. Como interpretar essa diferenga entre o que ocorre na esfera da circulacio de mercadorias e o que se passa na esfera do processo de produgio? Dissemos que a troca entre equivalentes é a forma pela qual sc processa a troca desigual entre o uso da forga de trabalho ¢ os mei- os materiais de subsisténcia, necessérios 4 reprodugio da forga de trabalho (salatio). Isso equivale a dizer que a troca de equivalentes é, nesse caso, ra/mente inexistente, ¢ que a iinica realidade & a da troca desi- gual concretizada no processo de produgio? Nao. A compra ¢ venda da forca de trabalho, como se este fosse uma mercadotia, pode ser considerada uma para ilusdo ou uma mdscara do real, desde que se reco- nhega que essa ilus%io ou essa mascara também produzem ¢feitos reais: ¢ a ilusio de estarem trocando cquivalentes que determina a repeticio constante do encontro, no mercado, entre o produtor direto e o pro- prietario dos meios de produgio, enquanto vendedor ¢ comprador da forca de trabalho, respectivamente. Ora, é a reiteragio constante des- se encontro no mercado que permite o uso sempre renovado, pelo proptietario dos meios de produgio, da forga de trabalho do produtor sitios 4 sua subsisténcia direto, em troca dos mcios materiais (salatio). Vé-se, por ai, a eficdcia concteta da ilusio consistente em tratar a forga de trabalho como mercadoria: é ela que faz com que 0 produtor directo ¢ 0 proprictitio dos meios de produgio renovem permanentemente, ao nivel do processo de producio, a troca desigual entre o uso da forga de trabalho ¢ 0 salitio. E aqui surge a pergunta: como se renova essa ilnsiio? © processo de producao, para reproduzir-se sob a forma acima indicada, exige essa renovaciio; contudo, nio a determina de modo directo. A ilusio met- cantil se acha diretamente determinada, nio pela esfeta da produgio — Décio Saes 27 que, no entanto, a requer — e sim pela esfera do dirvito. E aqui nos rea- proximamos de nosso objetivo principal: a andlise da relagio de cor- respondéncia entre o Estado burgués e as relagdes de produgio capi- talistas. Todavia, antes de passar A conccituagio do Estado burgués, é necessirio voltar ao segundo aspecto das relagdes de produgio capi- talistas; mais especificamente, mencionar, ainda que sumariamente, as condigées materiais da sepatagio, no capitalismo, entre o produtor direto ¢ os meios de produgio.’ Tais condigées sao as da grande indris- tia moderna, onde o processo de trabalho apresenta, em razio da pre- senga da maquina, um carater altamente socafizado. Essa coletivizagio do ptocesso de trabalho transforma o produtor direto: de trabathador independente (atesanato, consetvagio do carter artesanal do trabalho na manufatura), este passa 4 dupla condigtio de trabalbador simultaneamente dependente ¢ independente. Em qué consiste essa dupla condi¢io? De um lado, a decomposigio do processo de produgio de um mesmo objeto numa grande variedade de tarefas encadeadas transforma o trabalho de cada produtor direto num efwento dependente do trabalho dos de- mais. De outro lado, como afirma quase textualmente Poulantzas (apoiado nas anilises de Marx ¢ Bettelhcim),* esses trabalhos sio, dentro de certos limites objetivos (impostos pela propria dependéncia dos produtores), executados independeniemente uns dos outros, isto é, sem que os produtores tenbam de organizar previameute sua cooperagao; consti- tuem, nessa mesma medida, /rabalhos privados. As consideragées acima nos aproximam de uma das questdes mais polémicas que a analise do capitalismo ja suscitou. Essa questo ‘ais condicdes constituem as forras produtivas capitalistas. * CE Nicos Poulantzas, op. cif, p. 135. 28 O conceito de Estado burgués é: no capitalismo, a posigéo do produtor direto diante do proprietario dos meios de produgao é individual ou coletiva? O produtor direto se apresenta a este como um trabalhador independente ou como parte de uma coletividade de trabalhadores? Ou, traduzindo a questo nos termos da andlise empreendida acima: qual é 0 aspecto da posigio do produtor direto no processo de trabalho coletivizado que predomina no scu relacionamento, ao nivel da produgio, com o proprictirio dos meios de produgio? A sua independéncia (isolamento) ou a sua inter- dependéncia (participacio num coletivo)? As respostas a essa questio tém sido divergentes. Simplificando ao extremo a exemplificagao, lembremos apenas dois casos: de um lado, Herbert Marcuse (por exemplo, em Ove Dimensional Man) considera que 0 carater parccliza- do do trabalho na grande industria moderna determina o isolamento — compreendido no conceito mais geral de alienayio — do produtor direto; de outro lado, Lénin (por exemplo, em Que Fazer?) afirma que a socializagio das forcas produtivas, na grande indistria moderna, predispée o produtor direto — ao contraio do que ocorre com o pe- queno produtor independente, camponés ou artesiio — 4 agio coletiva. Quanto a Poulantzas, a sua posicio, na obra citada, contrasta com a énfase que cle préprio di a dupla condicio de dependén- cia/independéncia dos produtores diretos no capitalismo: embora mais proximo das posigées tedricas de Lénin que daquclas sustenta- das por Marcuse, esse autor sustenta de modo inadvertido — isto é, sem avaliar integralmente a repercussio dessa tese no conjunto de sua anilise tedrica sobre o Estado — que © carater privado dos trabalhos na grande industria moderna dissiaila a dependéncia real dos produ- tores, introduzida pela socializagio do trabalho. Assim, parece-nos que, para Poulantzas, a independéncia ¢ 0 aspecto da posigao do pro- dutor direto no processo de trabalho coletivizado que determina o Décio Saes 29 modo de seu telacionamento com o proptictitio dos meios de produ- Go: isto 6, o relacionamento sso/ado de cada produtor direto com o proptietirio dos mcios de producio.’ A nosso ver, a oposi¢io entre a independéncia ¢ a dependéncia do produtor direto é uma contradicio objetiva do processo de traba- Tho tipico da grande industria moderna. E mais ainda: essa contradi- gio determina a formagio, no produtor directo, de duas tendéncias petmanentemente em luta: a tendéncia ao isolamento, a tendéncia A acao coletiva. Ora, ao contrario do que afirma Poulantzas, nfio é a estrutura objetiva do processo de trabalho que determina a dominan- cia de uma das tendéncias cm luta sobre a outra. A tendéncia do pro- dutor direto ao isolamento sé pode predominar se uma outra esfera, diferente da esfera da producio, neutralizar a tendéncia oposta. Esse sfito uentrakzador provém da esfera do Estado. E aqui nos reaproxima- mos, pela segunda vez, de nosso objetivo principal: a analise da relacio de correspondéncia entre 0 Estado burgués ¢ as rclagdes de producio capitalistas. Haviamos estabclecido, inicialmente, a natureza da correspon- déncia entre o Estado burgués ¢ as relagdes de produgio capitalistas: 86 0 Estado burgués torna possivel a reprodugio das relagdes de pro- ducao capitalistas. A seguir, qualificamos o duplo aspecto das relagdes de produgio capitalistas. Tal qualificacio j4 indica, indiretamente, de que modo o Estado burgués torna possivel a reproducao das relagdes de producio capitalistas. Desde logo, esclareca-se que nao nos referi- mos aqui aos aspectos material c humano/fisiolégico desse processo de reprodugio. De um lado, a renovacio/ampliagio do estoque de meios de produgio (maquinas, matéria-prima) pode se processar, sem que ocozra necessariamente uma patticipagio particular “pica, ou 30 O conceito de Estado burgués mesmo uma participagio qualquer, do Estado no processo. De outro lado, nem a renovacio/ampliagio do volume fisico global de forga de trabalho disponivel dependem necessariamente do Estado; elas sao garantidas, respectivamente, pelo salitio pago ao produtor direto ¢ pela criacio, através da intwoducao de novas maquinas no processo de produgio, de uma supet-populagio relativa. Na verdade, o Estado pode scr qualificado como burgués quando cria as condigdes ideoligicas necesstias 4 reprodugio das relagdes de producao capitalistas. Eo faz, na medida em que desempenha uma dipla fimgao: a) individualizar os agentes da produsdo (produtotes diretos € ptoprictirios dos meios de producio), mediante a sua conyersio em pessoas ju- tidicas: isto ¢, sujcitos individuais aos quais se atribuem direifos ¢ uma rontade subjeliva, Essa individualizagio confere 4 troca desigual entre o uso da forga de trabalho e o salario a forma de um ato de vontade realizado por iguais: isto é, um contrafo de compra ¢ venda de forca de trabalho. Uma vez imposta 20 produtor direto a defi- nigio da prestagio do sobre trabalho como um ato de vontade, essa troca desigual pode se renovar continuamente, sem que seja necessatio 0 exercicio de uma coapdo extra-econdmica (isto é, uma co- acio distinta daquela cxercida pela pura necessidade vital) sobre o produtor direto. b) weutralizar, no produtor direto, a tendéncia & agito coltiva, decorrente do carater socializado do processo de trabalho, ¢ determinar, por esse modo, a predominancia, no produtor direto, da tendéncia ao isola- mento, decorrente do cariter privado assumido pelos trabalhos io produz efeitos tanto sobre o nesse processo. Se a primeira fun ptodutor direto como sobre o proprictario dos meios de produgio, esta segunda fungio produz, fundamentalmente, efeitos sobre 0 produtor direto. Pela primeira fungao, o Estado burgués coloca o Détio Saes 31 produtor direto, no mercado de trabalho, como sujeito individual, dotado de vontade ¢ de direitos; por esta segunda fun¢io, o Esta- do neutraliza a tendéncia dos produtores diretos a se unirem num coletivo antagénico ao proprietirio dos meios de produgio: a case sovial. Explicitemos melhor esta segunda fungiio. Como o Estado bur- gués neutraliza, no produtor direto, a tendéncia 4 agio coletiva? Or- ganizando um oxtro coletive, oposto a classe social. Um coletivo oposto e diferente: de um lado, ele unifica os agentes da producio ja isolados no mercado (contrato de trabalho) ou no processo de trabalho (cara- ter privado dos trabalhos); de outro lado, ele reproduz esse isola- mento, ao impedir a formagio de um colctivo na esfera da produ Em que consiste essa coletividade alternativa? Se a classe social se constitui a partir da definicio de um interesse comum de todos os produtores diretos na liquidagio da troca desigual entre uso da forca de trabalho ¢ salirio (ou de um interesse comum de todos os propri- ctarios dos meios de produgio na preservagio dessa troca), j4 tal co- letividade nega tais interesses ¢ se define como o interesse comum, de todos os agentes da produgio (produtores ditetos e proprietatios dos meios de producao), em se estabclecerem como habitantes de um espago geogrifico delimitado, o territério. Tal coletividade é 0 Povo- Nagito. Esta é a forma de coltividade que o Estado burgués impdec aos agentes da producao antagonicamente relacionados no processo de extorsio da mais-valia. Mas de que modo a declaracio, pelo Estado burgués, de filiagio comum, de todos os agentes da produgao, a una coletividade espacial- mente delimitada pode neutralizar, no produtor direto, a tendéncia 4 acio coletiva contra 0 proprietirio dos meios de produgio? Ao im- plantar a coletividade nacional, o Estado burgués define todos os 32 O conceito de Estaito brrgués agentes da produgio, produtores diretos ou proprietarios, como jgvais, tal igualdade consistindo na sua condigio comum de habitantes de um mesmo tertitério. Ora, essa atribuigio de igualdade (condicao comum de membros do Povo-Nagio), é, a0 mesmo tempo, atribuigaio 40 de individualidade (habitantes como individuos) Assim, a unific aparente ou formal dos agentes da produgio no Povo-Nagao trans forma os produtores diretos em individuos: neutraliza a sua tendéncia A agio coletiva, da predominancia a sua tendéncia ao isolamento. Essa individualizagio é um obstaculo 4 luta dos produtores diretos contra © proprietitio dos meios de produgio que Ihes extorque o sobretra- balho; nessa medida, ela torna possivel a renovagio continua desse processo de extorsio. ‘Tudo isto pode — agora — ser formulado de modo menos abs- trato: o Estado burgués, 20 representar a unidade (vale dizer, proce- der 4 unificacio formal ou aparente) dos membros das classes sociais antagénicas no Pore-Naydo, desempenha a fungio de neutralizar a ten- déncia 4 formacio de comités de fabtica, sindicatos operitios, parti- dos revolucionitios; isto é , de atomizar os produtores diretos, con- servando-os num estado de massa (individualismo, concorténcia no mercado de trabalho), ¢ impedindo a sua constituigio em classe social (aa fAbrica, num ramo da industria, ete.). Lénin, a0 refletir sobre a tarefa pratica da construgio de uma organizacio revolucionaria de classe, sublinhou corretamente a tendéncia do proletariido A agio coletiva ¢ a sua relacio com a socializagio das forcas produtivas no capitalismo. O desconhecimento dessa tendéncia — ver por cxemplo, s andlises marxistas influenciadas pelo funcionalismo — pode levar a uma subestimagio da fungio neutralizadora/unificadora do Estado burgués, ¢ A consideragio exclusiva da fungio individualizadora do dircito burgués. Dézio Saes 33 Nas suas linhas gerais, nossa conceituacio das fungdes do Esta- do burgués segue a andlise de Poulantzas. Foi esse autor quem mais avangou nessa tarefa, ao distinguir o duplo efeito da estrutura juridico- politica do Estado burgués sobre os agentes da produgio: efeito de iso- Janento (conversio dos agentes da produgio, distribuidos em classes, em sujeitos juridico-politicos) ¢ efeito de representagao da unidade (reuniao dos individuos, isolados, em parte, por ele mesmo, num corpo politi- co, o Povo-Nagio)." Todavia, ainda que tributarios de sua anilisc, afastamo-nos desse autor, no que diz respeito 4 qualificagio do efeito de representagio da unidade. Para Poulantzas, a unificagio aparente de todos os agentes da produgio num Povo-Nagio parece" nada agregar ao isolamento — predominante sobre a interdependéncia — do produtor direto no processo de trabalho capitalista; é 0 que, pelo me- nos, indica a sua afirmagao de que, no capitalismo, a estrutura juridi- co-politica sobredetermina a estrutura do processo de trabalho. Nossa anilise procurou, ao contratio, qualificar a fungio sertralizadora da representagao da unidade: dissolugio da classe social, através da constitui¢io do Povo-Nacio. Nesse ponto da exposic¢io, surge uma divida, andloga aquela suscitada pela anilise da forga de trabalho como mercadoria. O Esta- do burgués, no desempenho de sua dupla fungio, produz forwas ou aparéncias. 0 individuo, 0 Povo-Nagio. O que querer isto dizer? Que os efeitos produzidos pelo Estado burgués sio realmente inexisten- tes? Niio. Na verdade, tais formas constituem ilusdes andlogas a ésdo “CE Nicos Poulantzas, op. cif, pp. 136-140. " Dizemos: parece, porque Poulantzas analisa sumariamente o efcito de repre- sentagio da unidade, a despeito de este constituir uma das questées centrais do tema de Powsoir politique et classes sociales, 34 O conceito de Estado burgués mercantil; como esta, produzem efeitos reais, necessatios 4 reprodu- Gio das relagdes de produgio capitalistas. Todavia, essa resposta nio anula totalmente a davida. Esta rea- parece na pergunta: dizer que a particularidade do Estado burgués equivale & particulatidade dos efeitos ideolégicos produzidos por sua estrutura implica afirmar que o tipo de Estado burgués consiste na propria ideologia burguesa? Nao, jA que tais efeitos idcolégicos sio ptoduzidos por uma estrutura juridico-politica materialmente organiza- da. E mais: s6 uma estrutura juridico-politica partiular produz, os efeitos ideolégicos mencionados. Por isso mesmo, o passo conseqiiente 4 con- ceptualizacio da dupla fungio do Estado buxgués é a anilise, na sua especificidade, da estrutura juridico-politica que a produz. A estrutura juridico-politica no modo de produgio capitalista 1m que consiste essa especificidade? Ou por outra: o que dife- rencia o Estado burgués, como estrutura, dos demais tipos de Estado? Essa avaliagio pressupde a decomposigio analitica do Estado em divas partes. © direito ¢ 0 burocratismo. Elas constituem, ambas, aspectos — juridico, politico-da mesma estrutura, estando simultaneamente sepa- rados ¢ relacionados. A considetagio exclusiva da sepatagao entre diteito e burocratismo levaria, inevitavelmente, o analista a operar uma distingio conceptual entre direito ¢ Estado. Essa distingao limi- taria o conccito de Estado ¢ produziria efeitos negativos, se fosse aplicada A analise do Estado em formagées sociais determinadas; um. desses efcitos consistiria, por exemplo, no desconhecimento da pos- sibilidade de contradigées entre o direito c 0 burocratismo ¢, conse- qiicntemente, no nio-entendimento da verdadeira natureza de certas ctises internas do Estado. Devemos, portanto, qualificar, na anilise da Décio Saes 35 estrutura do Estado burgués, tanto o direito burgués como o buro- cratismo burgués. O ponto de partida tedrico para o cumprimento de: tarefa é a analise de Pasukanis (dircito) ¢ Poulantzas (direito, ma sobretudo burocratismo). Todavia, impée-se, uma ver definida a posicio tedrica geral, o aproveitamento dos resultados fecundos obti- dos por Max Weber, a nivel descritivo ¢ morfoldgico, na analise do Estado moderno; tal aprovcitamento pode scr feito, na medida em que nio implica necessariamente — ¢ © trabalho de Poulantyas é a prova di sobre 9 —a incorporagio do conjunto das teses weberians o Estado. Aqui, vamos nos servitr, seja do aproveitamento por Pou- lantzas das andlises de Weber, seja do que recolhemos na leitura di- reta de Economia e saciedade. O direito burgués O direito, enquanto conjunto de regras (escritas ou nao) que disciplinam ¢ regularizam as relagocs entre os agentes da produgio (produtor direto x proprictario, produtor directo x produtor dircto, proprictirio x proprietirio), possibilitando a sua reiteracio, nao é uma estrutura cortespondente, exclusivamente, as relagdes de produgio capitalistas. Mesmo a anilise histérica mais superficial é capaz de de- tectar a presenga de algum tipo de dircito em formagées sociais onde dominam outras relagées de produgao: escravistas (Império Romano), feudais (Europa Medieval). ‘Todavia, nao se trata, sempre, de um mesmo tipo de dircito. A cada tipo de relagées de produgio, corres- ponde um tipo de direito: aquele que torna possivel a reprodugio desse tipo de relagdes de produ, ao criar as condigées ideolégicas necessirias a essa reprodugio. [i possivel, portanto, conceptualizar um direito escravista, um direito feudal, um dircito burgués. Esses 36 O conceito de Estado burgués tipos diversos de direito apresentam um aspecto comum: cnquanto sistemas de normas — imperativos que dominam ideologicamente os agentes da producio ¢ que, por isso mesmo, disciplinam ¢ regulari- zam as relacoes miultiplas entre os agentes da produgio —, eles instau- ram igualmente a previsibilidade nas relagdes entre os agentes ¢, por- tanto, criam igualmente a possibilidade de repetig@o dessas rclagées. ‘To- davia, a par deste aspecto comum, existe uma diferenga fundamental entre o direito burgués ¢ os tipos historicamente anteriores de dircito (escravista, feudal): enquanto estes conferem um /rafamento designal aos desiguais (classe exploradora ¢ classe explorada), 0 direito burgués é, na sua csséncia, 0 érafamento igual dos desiguais, No direito escravista, 0 proprietario dos meios de produgio é definido como um ser dotado de vontade subjetiva (pessoa), enquanto que o produtor direto é de- clarado carente de vontade subjetiva, estando portanto sujeito 4 pes- soa do proptictirio ¢ constituindo sua propriedade (coisa); ao primei- =forma individualizada ro, reconhece-se a capacidade de praticar a/os assumida pelas relagées entre os agentes da produgiio), ao segundo se atribui a condicio de objeto de tais atos.'* No direito feudal, tanto o proprietario dos meios de produgio como o produtor direto sao de- clarados capazes de praticar atos; todavia, sfio-lhes atribuidas capacida- des designais, que assumem a forma de privilégios do proprictatio dos 2 Expomos aqui o conceito de direito escravista. Mas 0 direito das formagées sociais escravistas — por exemplo, o Império Romano — nio coincide integralmente com © conccito, embora cle seja, dominantemente, um ditcito de tipo escravista Assim, por exemplo, o direito romano atribuiu, em certa fase, 20 escravo — no en- tanto, definido como coisa — a capacidade de comprar ¢ vender, bem como a res- ponsabilidade penal. Ver, a esse respeito, Evgeny B. Pasukanis, La Tivor’e Génerale di Droit et Du Marxisme, EDI (Etudes et Documentation Internationales), Paris, 1970, p. 102; bem como Jacob Gorender, 9p. st, pp. 63-69. Désio Saes 37 meios de produgio (atos que sé este pode praticar) ¢ de obrigaries do produtor direto tos que sé este deve praticar)."” Essa breve men- Gio ao direito escravista e ao dircito feudal nos permite detectar a unidade c a diferenga existentes, simultaneamente, entre ambos: de um lado, os dois tipos de dizcito implicam um tratamento desigual aos desiguais (aspecto comum que indica a filiagio desses dois sistemas de normas a uma mesma grande fase de desenvolvimento histérico: a Sormagéo secinddria a que se refere Marx, em andlise comparativa des- envolvida a alto nivel de abstragio ¢ formalizagio); de outro lado, ambos diferem em que o tratamento desigual assume uma forma completa no direito escravista (capacidade x incapacidade), e uma forma incompleta no dircito feudal (capacidades desiguais). JA o direito burgués constitui uma ruptura radical, com tclacio aos tipos historicamente anteriores de direito, na medida em que de- fine igvalmente 0 proprietario dos meios de producio e 0 produtor direto como seres genericamente dotados de vontade subjetiva e, portanto, capazes de praticar os mesos atos. Assim, o ditcito burgués igualiza todos os agentes da produgio, convertendo-os em suyeitas individuais, isto 6, em individuos igualmente capazes de praticar atos de Historicamente, 0 elenco de privilégios ¢ obrigagées varia de uma formagio social feudal para outra; é 0 que sc depzcende, nio s6 da comparagio entre as for- cdes sociais feudais da Europa Ocidental, mas também da comparagio entre estas ¢ aquelas da Europa Oriental, ou da comparagao entre o feudalismo europeu ¢ ma © feudalismo oriental (China, Japao). Sobre essa variagiio ver, por exemplo, HK. ‘Takahashi, “La place de la revolution de Meiji dans I’histoire agraire du Japon”, in Mausice Dobb ¢ Paul M. Sweezy, Du féodalisoe an capitalise: probbimes de la transition, Librairie Frangois Maspero, Paris, 1977, onde 0 autor compara o feudalismo japo- do, ganha em amplitude — todos os feudalismos — porém perde em ngs com 0 feudalismo curopen; bem como Samir Amin, op. aif, capitulo j4 onde a compara rigor e profundidade. 38 O conceito de Estado brrguis vontade. A igualizagio ¢ a individualizagao de todos os agentes da ptodugio ganham uma expressio genérica na figura da capacédade jui?- dica em geral, c uma expressao especifica na figura particular do con trata (. jeitos). ato de /voca resultante de manifestagao da vontade de dois su- Mas quais sio os elementos componentes do dircito burgué: Enquanto iustituigdo efetiva (=sistema de normas que se impdem aos agentes da produgio, conferindo as suas miltiplas relagSes um carater repetitivo), o direito burgués nao se reduz 4 /ei (escrita ou nao, organi- zada segundo o critétio de uma maior ou menor compartimentagio em seccdes: Constituigio, Cédigos especiais, ctc.); cle engloba tam- bém o processo de aplicagio da lei (concretizagio do seu carater impo- sitivo). Nessa medida, corresponde & esteutura juridica burguesa uma otganizagio material e hamana/coletiva que desempenha essa fungao: juizes © wibunais, processo entre as partes. Ou em duas palavrast 0 Po- der Judiciftio. A estrutura juridica burguesa, enquanto unidade de duas subestruturas — a da lei ¢ a do processo de aplicagio da lei — mantém uma relagio complexa, que esta longe de ser mera justaposigio, com a outra parte do Estado burgués: a sua estrutura propriamente politica, ou o scu burocratismo. Veremos, mais adiante, qual é a natureza dessa relagio. Portanto, o direito burgués, ao definir os agentes da produgio como snjeitos, fax com que a troca desigual entre o uso da forca de trabalho e o saldrio assuma a forma de uma /roca de equivalentes, resul- tante do livre encontro de duas vontades individuais: 0 contraio de compra ¢ venda da forga de trabalho. Nessa medida, é uma estrutura jutidica particular — a do direito burgués, caracterizada pelo trata mento igual aos desiguais — que cria as condigées ideolégicas necessa- rias 4 reprodugio das relagdes de producao capitalistas. Detio Saes 39 O burocratismo burgués Passemos, agora, 4 andlise da estrutura propriamente politica do Estado burgués: 0 burocratismo. Tal andlise nada tem de inova- dor; cla ¢, antes, um novo modo de exposigao das conclusées a que chegou Poulantzas, no seu trabalho de construcio do conccito de Estado capitalista. Nesse trabalho, Poulantzas, ao mesmo. tempo em que busca inspiragio nas anilises historicas de Marx e Engels, pro- cede a incorporacéo do aspecto descritivo/morfoldgico da andlise de Weber sobre o Estado moderno. Como os demais tipos de Estado (escravista, feudal), o Estado burgués também é um conjunto de recursos materiais/humanos utilizados na conservagio do processo de extorsio do sobretrabalho ¢, portanto, na conservagio da dominagio de uma classe (explorada) por outra (exploradora): forcas armadas (chomens, armas, conhe- cimento da arte militar), forcas coletoras (=agentes arrecadadores que recolhem, através de “butos varios, os meios materiais necessa- rios 4 criagio, conservacao ¢ expansio das forcas armadas). Entre- tanto, cada tipo de Estado corresponde a um modo particular de organizacio desses recursos materiais e humanos; ou seja, 2 um modo particular de organizagio das forgas armadas e das forcas coletoras. Vejamos em que consiste o modo, particular ao Estado burgués, de organizacio desses recursos, lembrando-nos, também aqui, que s6 um modo de organizacio das forgas armadas ¢ das forgas coletoras — ¢ nao, qualquer modo — cria as condicées ideo- logicas necessarias 4 reprodugio das relagdes de producio capita- listas Esse modo particular consiste, justamente, naquilo que Poulantzas, simultaneamente incorporando e retificando a analise de Weber, 40 O conceita de Estado burgués conceitua como burocratismo." Tal conceito seri aqui exposto de forma sintética e algo diferente, embora reproduza a maior parte dos cle- mentos — refundidos, reclassificados — contidos na anilise de Pou- lantzas. O burocratismo é um sistema particular de organizagio das forgas armadas e das forcas colctoras do Estado, na medida em que deriva, todo ele, de duas normas fundanentais: 1) ndo-nonopolixajao das taxefas do Estado — forgas armadas, forgas coletoras — pela classe exploradora (proprietitios dos meios de de membros da producio); ou wdo-proibigito do acesso, a essas tarefa classe explotada (produtores dirctos). I) Aierarquizagéo das tarefas do Estado segundo o critério formalizado da competéncia, isto é, do nivel de conhecimento ou saber exigido daqueles que se dispdem a desempenha-las. Da primeira norma fundamental, derivam outras: a da nao iden- tidade entre os recursos matetiais do Estado (armas, mcios de trans- porte, dinhciro, prédios, etc.) e os recursos materiais dos propricta E 3 » . dos meios de produgio; definicio das tarefas do Estado como fun- cdes impessoais, a serem exercidas por quem fizer prova formal de competéncia para tanto (=predominincia da fungio sobre 0 cargo) ¢, conseqiientemente, distingao entre a pratica funcional do desempe- nhante e 0 conjunto das suas relagées sociais; recrutamento do de- sempenhante dessas fungdes — 0 funcionario —, nao através do crité- © esse tio da filiagio de classe c sim, do critério da competéncia, faga. recrutamento por cooptacio ou por concurso. Repetimos que a pri- meita norma (ndo-monopolizaao) é a fundamental, as demais constitu- indo normas derivadas; ¢ isto porque a primeira é a condigiio de exis- 4 Ver Nicos Poulantzas, op. ait, volume II, capitulo V, “Sur la bureaucratie et Ics dlites”, pp.154-193. Désio Saes 41 téncia de todas as outras. Sendo vejamos. Ea nio-monopolizagio das tarcfas do Estado pela classe exploradora que determina a separagiio entre os recursos materiais do Estado ¢ os recursos materiais dos ptoptietirios dos meios de producao; caso o acesso dos membros da classe explorada As tarefas do Estado estivesse proibido, os recursos materiais do Estado scriam, efetivamente, propriedade — particular ou coletiva — dos membros da classe exploradora."* Quanto 4 impessoalidade das fungées ¢ ao recrutamento por competéncia, ambas se desagregariam ao confronto com a exigéncia de filiagiio 4 classe exploradora (conflito entre o “universalismo” da- quelas regras ¢ o “particularismo” desta exigéncia). A nosso ver, 0 erto tedrico de Weber, na construgio do conceito Estado burocritico moderne, consiste justamente em ter definido a separacio entre os re- cursos materiais do Estado ¢ os recursos materiais dos proprietarios dos meios de produgio — isto é aquilo que conceptualiza como ptopriagio dos meios materiais de administracio pelos funcionitios —, © nfo, a extincao da proibicao do acesso, As tarefas do Estado, de membros da classe explorada, como a sua caracteristica principal. A segunda norma sistematiza a divisio do trabalho no seio das forgas armadas e das forcas coletoras do Estado, fazendo com que .. no aparelho de Estado, o trabalho (esteja) dividido e centralizado io dos x A aprop! tursos materiais do Estado pelos membros da classe © i? ploradora seria particular, caso estes se ativessem ao emprego, no exercicio das fungdes do Estado ¢ em momentos determinados pelas necessidades inerentes 4 tal Gf plora- exercicio, dos recursos controlados por todo membro particular da classe es dora. Ja a propriedade de tais recursos seria coletiva, caso os membros da classe exploradora destinassem uma parte dos seus recursos particulates 4 constituigsio de uum findo conunt, que serin no entanto empregado por cles proprios, no exercicio das fangdes do Estado. Historicamente (formagées sociais escravistas ou feudais), foi 0 ptimeiro caso que teve predomi ci 42 O conceito de Estado birgués ra como num usina” (Marx, O 78 Brurdrio...).° Dessa segunda norma fundamental (hictarquizacio das tarefas pelo nivel de competéncia exigido), deriva todo o carater despético do desempenho das tarefas do Estado: compartimentalizagio vertical descendente, ocultagio do saber dos funcionfrios (0 jesuitismo dos funciondrios, a que se refere Marx: a preservagio do seu saber como segredo de Estado),” oculta- cio do saber entre funcionarios (oposigio 4 igualizagio das compe- téncias). Também aqui, repita-se: niio sio essas normas aparentemente fécnicas — isto 6, normas que assumem a aparéncia de um instrumento neutro — que determinam a hierarquizagao das tarefas do Estado; ao contratio, é esta Ultima norma que determina a formagio desse con- junto de normas despéticas de organizagio do Estado. Neste ponto, também, a andlise de Weber, a despeito de sua tiqueza morfoldgica e descritiva, pode nos induzir em erro, por colocar em primeiro lugar o que conceptualiza como a racionalidade formal do Estado moderno (=definicio racional das competéncias, inexistente nos Estados ante- riores), ¢ por subestimar a hierarquizagao das tarefas do Estado, en- quanto estrututa de dominagao interna ao Estado. Poulantzas definiu © burocratismo do Estado capitalista ¢ a organizagio capitalista do processo de trabalho como homdélages, jA que ambos implicariam a dife- renciacio, a especializacio e a parcelizagio das tarefas (tepresso- tas/coletoras no primeito caso, produtivas no segundo caso). Toda- © 46 CE Karl Mars, Le 18 Bromaire de Louis Bonaparte, Ed. J. J. Pauvert, Paris, 1964, p. 347. "Ver 0 texto do jovem Marx, Critique de I'Etat Hegélien, Ed. 10/18, Paris, 1976, pp. 103-157. A anilise do jesuitismo dos funciondtios constitui, junto com a anilise da contradigio entre 0 principio hereditirio ¢ © principio da representacio popular na monarquia constitucional, um dos pontos culminantes desse ensaio. Détio Saes 43 via, € necessdzio ir mais além, ¢ sublinhar o carater despotico de am- bas as organizagdes: despotismo de fibrica, despotismo burocritico. © buroctatismo consiste portanto nesse conjunto patticular de normas de organizacio do aparelho de Estado (forgas armadas, forgas coletoras), ¢ est4 presente nos diversos ramos desse aparelho: a Ad- ministracio, o Exército, o Judicidtio. Este ultimo ramo é a expressiio pratica, ao mesmo tempo, da estrutura jutidica ¢ do burocratismo: de um lado, tem como fungio a concretizagio do direito; de outro, or- ganiza-se internamente segundo as normas do burocratismo (carater simultancamente aberto ¢ hierarquizado da carreira judicante)."" A dupla filiagio do Poder Judiciitio — 4 estrutura juridica bem como i estrutura politica —levanta, de resto, o problema mais vasto da relacio entre o dircito ¢ o burocratismo no seio do Estado burgui Qual é a natureza da relagio entre o dircito burgués e o burocra- tismo burgués? A sua diversidade nao exclui a unidade: um é a condi- cio de existéncia do outro. De um lado, nao hé burocratismo sem direito burgués: sem a individualizagao de todos os agentes da produ- sao ¢ a igualizacio juridica cntre proprictarios dos meios de producio ¢ produtores diretos, é impossivel liquidar a monopolizacao das tare- fas do Estado pela classe exploradora, permitir o acesso dos membros "A nivel das formagées sociais, podemos encontrar um Poder Judiciétio organi- ormas do burocratismo, nor- zado a partir de um conjunto contraditério de norma mas anti-burocriticas. Todavia, cssa cocxisténcia contraditéria de normas nao exclui a dominancia do burocratismo sobre o ti-burocratismo. Tal pode ocorrer, por exem- plo, através da dominincia das instincias supetiores do Poder Judiciitio (Iribunais de Recursos, Supremo Tribunal), cm geral organizadas segundo as normas do burocra- tismo, sobre a primeira instincia, eventualmente organizada (em parte — civil, criminal, ete, ~ ou no todo) segundo normas anti-burocriticas (eletividade ¢ niio-compettncia especifica dos juizes, divulgagio da técnica processual, etc.) 44 O conceito de Estado burgués da classe explorada a essas tarefas, hicrarquizar as tarefas c recrutar os io da competéncia puramente individual. funcionarios segundo o crit De outro lado, o principio abstrato do dircito burgués — tratamento igual dos desiguais, mediante atribuicio de capacidade juridica genéri- ca a todos os agentes da producio — s6 pode se transformar em nor- ma impositiva — isto ¢, efctivamente reguladora das relagdes sociais — se a sua aplicacio conereta for disciplinada, nao por uma organizagio exclusiva da classe exploradora, mas por um corpo de funcionazios, organizado segundo as normas do burocratismo: acesso aberto a to- dos, recrutamento segundo a competéncia individual, hierarquizacao das tarefas segundo o nivel de conhecimento exigido. O direito bur- gués, se aplicado por uma justica de tipo feudal — isto é, uma justiga de proptictitios ¢ ‘0 de funcionarios — passaria por um processo de degenerescéncia, reconvertendo-se no privilégio feudal. Em suma: 0 di a estrutura do Estado burgués. Pareceu-nos necessirio insistix sobre ito burgués ¢ o burocratismo sao partes de uma mesma estrutura, esse ponto, j4 que muitas anflises concretas rcduzem o Estado ao aparelho adminitrativo/repressivo, ¢ consideram o direito como uma estrutura complementar ¢ justaposta a estrutura do Estado. Essa re- dugio/justaposigao é anti-cientifica, pois impossibilita o analista de determinadas formacées sociais de explicar — para citar um sé caso — um tipo especifico de crise interna do préprio apatelho de Estado: aqucle decorrente da contradigao entre o tipo de direito e o modo de organizagio dos recursos materiais ¢ humanos do Estado. Do que expusemos acima, talvex ja seja possivel concluir que 0 burocratismo se distingue, analiticamente, da burseracia. Esta & a catego- tia social dos fancionatios, civis ou militares; aquele é o sistema de organizagio que equadra as praticas dos funcionarios ¢ determina a formacio de uma sendéncia ideoligica propria a essa categoria. Na verda Dézio Saes 45 de, o burocratismo domina duplamente a burocracia: de um lado, confete-Ihe — conforme a expresso clissica — mnidade de agao, de outro lado, define o seu interesse polftico particular. Em que consiste a unidade de agio da burocracia? O carater despotico das normas do burocratismo (hietarquizacao das tarefas, compartimentalizacao vertical descendente, ocultagio do saber, etc) isola cada funcionario dos demais, subordinando-o integralmente ao seu superior imediato. Essa disposigio torna impossivel a oposigio da massa dos funcionstios (baixos, médios) 4 execucio de tarefas determinada pelo topo da buroctacia, a nao ser que alguma forma de organizagio alternativa (sindicatos, comités, segdes de partidos, etc.) neutralize os efeitos do burocratismo sobre os mesmos. O bu- rocratismo impde, desse modo, /imiles & pritica dos funcionitios; esta varia tio somente quanto ao s/o © aos instrumentos adotados na execugio de tarefas, cujo contetido geral foi definido pelo topo da burocracia. Dissemos também que o buroctatismo define o interesse politico particular da burocracia. Isto quer dizer que as normas despéticas do burocratismo constituem, clas prdprias, a ideologia particular dos funcioniatios; ¢ que, portanto, estes tendem a lutar principalmente pela conservagio ou desenvolvimento do despotismo de Estado; hic- rarquizacio das tarefas segundo o critério dos niveis de conhecimen- to, compartimentalizagio vertical descendente, ocultagio do saber. Ou por outra: o interesse politico particular da buroctacia € a conser- vacio/desenvolvimento do Estado burgués. Pode portanto acomo- dar-se, alternativamente, a defesa da propriedade privada dos meios de produgio ou 4 defesa da propriedade estatal dos meios de produ- cao; mas é radicalmente inconcilidvel com qualquer proposta socia- lista de “destruigio” do aparclho de Estado burgués (liquidacio da 46 O conctito de Estado burguis burocracia profissional, rotatividade, controle democratico, fim dos privilégios salatiais c da hierarquia de competéncias etc...) A dominincia do burocratismo sobre a burocracia significa tam- bém que, numa formagio social determinada, os interesses materiais (salatios, prémios, etc.) ¢ a origem de classe (burguesia, classe média, campesinato, classe operaria) da burocracia do Estado burgués po- dem fazer variar as suas priticas 0 somente dentro dos limites estabcleci- dos, de um lado, pela sua unidade de agio na execugio das decisées do topo burocratico ¢, de outro lado, pelo seu interesse politico parti- cular. © burocratismo conserva, de um modo geral, a dominaciio burguesa de classe; mas as fragdes da burocracia, constituidas a partir de diferentes interesses materiais ou origens de classe, podem fazer Jo das tarefas (mili- tares ou coletoras) impostas por essa conscrvagio. Em suma, impde- variar o modo — ritmo, instrumentos — de execu se salientar 0 cariter /imitado dos efeitos produzidos pela origem de classe ow pelos interesses putamente materiais sobre as priticas da burocracia (contra a tese afirmativa do, carater élimitado de tais efeitos) ¢, a0 mesmo tempo, afirmar a existéncia efetiva de tais efeitos, ainda sténcia desses efeitos). que limitados (contra a tese negadora da ¢: $6 uma burocracia organizada segundo as normas do burocra- tismo burgués pode unificar os agentes da produgio, ja isolados pelo direito burgués, no Povo-Nagio e, assim, neutralizar a tendéncia dos produtores diretos a se constituirem em classe social. Ou por outra: 36 0 burocratismo burgués pode definir os agentes da produgio como individuos igualizados na condicio de habitantes de um mesmo espa- co geogrifico, o tertitétio nacional, ¢, a0 fazé-lo, combater a consti- tuigio da classe explorada através da afirmagio do Povo-Nacio. E pot esse modo que o burocratismo burgués cria as condi¢des ideol6- gicas necessirias 4 reproducio das relagées de produgio capitalistas. Décio Saes 47 A representagao popular A burocracia de Estado organizada segundo as regras do buro- cratismo pode se apresentar como o representante do Povo-Nacio, na medida em que se define como o agente de concretizagio do inte- resse geral de todos os individios. a filiagio ao coletivo igualitario de habitantes de um espacgo geogrifico delimitado por ele proprio. Ou melhor: em qualquer Estado burgués, 9 bwrecratismo é mecanismo criador de uma aparéncia de representatividade popular para 0 Estado. A nivel das formagGes sociais concretas, entretanto, o desenvolvimento da luta de classes pode determinar a emergéncia, no scio do Estado burgués, de outras vaviantes da ‘forma-represenlagao popular”. Tais variantes, a despeito de sua diversidade, se opGem igualmente, num mesmo ponto, 4 repre- sentag&o burocritica. A burocracia do Estado burgués nfio se apdia em nenhuma medfagio para se apresentar como o representante do Povo-Nagao: é a sua propria estrutura (o “burocratismo”), ¢ nio a presenca de qualquer mecanismo especifico de consulta 4 vontade popular, que a define como tal. Ja as formas de representagio propria- mente politica — designa-las-emos desse modo, por oposigio a representa (0 burocrdtica — apoiam-se em algum mecanismo de consulta a vonta- de popular: sufrigio universal, consulta 4s corporagGes profissionais, ou consulta plebiscitaria (por plebiscito propriamente dito ou por aclamagio). A sua existéncia contribui, portanto, pata que se difunda a idéia de que a consulta politica é condigio essencial da concretizagio do interesse geral da sociedade. Dissemos acima que, numa formagao social determinada, o des- envolvimento da luta de classes pode determinar a organiz: seio do Estado burgués, de alguma forma propriamente politica — nao burocratica — de representagao popular. Isso significa que, nessa for- magio social, os efeitos ideolégicos produzidos pelo burocratismo 48 O conceito de Estado burgnés sio insuficientes para desorganizar uma ou mais classes populares (proletariado, campesinato, pequena burguesia urbana); ¢ que, para derrotar tais classes em luta ¢ conservar sua dominagio, a classe do- minante deve constituir novos mecanismos ideolégicos de desorgani- zacio das classes populares. Portanto, em regposfa a presséo popular, surge alguma forma de representacio popular apoiada na mediagio entre o Estado ¢ as classes populares desorganizadas/rcorganizadas em individuos-Povo. A\ organizacio, numa formacio social, de alguma forma de repre- sentacio politica — liberal, corporativa ou plebiscitéria — no produz, entretanto, a desagregacio da burocracia do Estado burgués; cla deter- mina, antes, o desenvolvimento, no seio do Estado burgués, de uma contradicéo entre as duas variantes da “forma-representagio popular”, a politica e a burocritica. Essa contradi¢io foi detectada — de modo desi- gual ¢ cm nivel de profundidade variavel, é clato — por todos os analis- tas do Estado burgués: exemplificando apenas com autores clAssicos, por Hegel (contradicio entre burocracia e corporagées), por Marx (contradigio entre burocracia ¢ Parlamento) ou por Weber (contradigao entre burocracia do Estado ¢ democracia politica).” Ela se manifesta, coneretamente, como contradigio entre os agentes do burocratismo (fancionatios) e os representantes politicos (membros de um Parla- mento democritico, de uma Assembléia corporativa ou de uma lideran- ga plebiscitada). ‘Tal contradicio pode se prolongar no tempo, ou se resolver através da liquidagao da representagao politica pela buroctacia estatal (0 contrario é impossivel, jA que o burocratismo € 2 propria es- Ver F. Hegel, Principes de ta philosophie di droit, Ed. Gallimard, Collection Idées, Paris, 1975, Terceira Parte, 3* secio: “L'Titat”; Karl Mars, Critique de L'Etat Hégglien citados; e Max Weber, Economia y Sociedad, Ed. Fondo de Cultura, México, 1964, Capitulo “Sociologia del Estado”.

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