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O UTILITARISMO NA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA BRASILEIRA

THE UTILITARIANISM IN THE BRAZILIAN PUBLIC SECURITY POLICY

Vinícius Gomes da Silva Oliveira1

RESUMO
O presente trabalho configura-se como uma investigação de caráter teórico, analítico e qualitativo.
Tem como foco a análise das noções utilitaristas no campo da segurança pública brasileira, em especial
no que tange à atuação das instituições policiais. Para tanto, realizar-se-á uma investigação acerca dos
fundamentos teóricos do Utilitarismo, com foco em autores como Jeremy Bentham (1984) e Stuart
Mill (2005), uma inquirição das produções que versam sobre a Teoria da Ação Policial, em especial a
de Bittner (2017) e de Monjardet (2012), bem como o estudo de trabalhos nacionais acerca da
temática. Constata-se que o Utilitarismo promove a formação de uma sociedade disciplinar, a qual
busca realizar uma vigilância permanente dos indivíduos e aplicar sanções aflitivas, a fim de dissuadir
os sujeitos de praticarem desvios, o que se traduz, na realidade brasileira, com a predileção pelo
policiamento ostensivo e o crescimento das penas privativas de liberdade. Conclui-se que o
Utilitarismo no campo da segurança pública possibilita a relativização das garantis individuais, diante
da capacidade de quebras de direitos em prol de um chamado bem coletivo, mas que não melhora os
índices criminais, pelo contrário, pode ser associado com o aumento de conflitos e resoluções
violentas. Sendo assim, faz-se necessário repensar o modo como são aplicados os recursos e as
políticas na área, com o intuito de reduzir os danos causados e proteger as prerrogativas dos cidadãos.
Palavras-chaves: Teorias da Justiça; Utilitarismo; Segurança Pública; Teoria da Dissuasão;
Policiamento Brasileiro.

ABSTRACT
The present work is configured as a theoretical, analytical and qualitative investigation. It focuses on
the analysis of utilitarian notions in the field of Brazilian public security, especially about the role of
police institutions. Therefore, an investigation will be carried out on the theoretical foundations of
Utilitarianism, focusing on authors such as Jeremy Bentham (1984) and Stuart Mill (2005), an inquiry
of productions that deal with the Police Action Theory, in particular the Bittner (2017) and Monjardet
(2012), as well as the study of national works on the subject. It appears that Utilitarianism promotes
the formation of a disciplinary society, which seeks to carry out a permanent surveillance of
individuals and apply distressing sanctions, to deter subjects from practicing deviations, which
translates, in the Brazilian reality, with the predilection by ostensible policing and the growth of
custodial sentences. It is concluded that Utilitarianism in the field of public security enables the
relativization of individual guarantees, given the ability to breach rights in favor of a so-called
collective good, but that does not improve criminal rates, on the contrary, it can be associated with an
increase conflicts and violent resolutions. Therefore, it is necessary to rethink the way in which

1
Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Bolsista do Programa
de Iniciação Científica financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia (FAPESB). Membro
do Grupo de Estudos em “Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento”. E-mail:
vgomesuefs@gmail.com
resources and policies are applied in the area, to reduce the damage caused and protect citizens'
prerogatives.
Keywords: Theories of Justice; Utilitarianism; Public Security; Theory of Dissuasion;
Brazilian Policing.

1 INTRODUÇÃO

Em um contexto de pós-redemocratização brasileira, com o estabelecimento de


garantias individuais e coletivas diante do arbítrio estatal, o campo da segurança pública
desponta como uma das áreas de intensos conflitos entre direitos dos cidadãos e a aplicação
de medidas que visam resguardar o dito bem comum. Diante disso, a atuação das instituições,
principalmente as policiais, apresenta-se como âmbitos que adotam lógicas de relativização
dos direitos dos cidadãos, com práticas que vão desde a abordagem às mortes por
intervenções policiais, justificadas em concepções de defesa social e garantia da ordem
pública, aspectos que remetem às contribuições utilitaristas de Jeremy Bentham (1984) e
Stuart Mill (2005).

O presente trabalho configura-se como uma investigação de caráter teórico, analítico e


qualitativo. Tem como foco a análise da presença de noções utilitaristas no campo da
segurança pública brasileira, em especial no que tange à atuação das instituições policiais, a
fim de produzir entendimentos acerca do controle social na sociedade disciplinar e a aposta na
teoria da dissuasão como capaz de impedir a realização de práticas desviantes. Para tanto,
realizar-se-á uma investigação acerca do tema proposto, à luz do Utilitarismo e da(s) Teoria(s)
da Ação Policial, bem como com base nas produções nacionais sobre a dinâmica da violência
no Brasil.

O marco teórico selecionado está embasado nas contribuições de Bentham (1984),


Mill (2005) e Sandel (2019), no que tange às concepções utilitaristas, bem como em autores
como Bittner (2017) e Monjardet (2012), no campo da(s) Teoria(s) da Ação Policial. Além
desses, foram consultados autores que tratam da relação entre a dissuasão e a segurança
pública, com destaque às produções de Foucault (2013) e Zanetic (2016), além de outros
livros e artigos veiculados em periódicos nacionais que abordam a temática.

Em um primeiro momento, a proposta utilitarista é analisada, com o foco de


compreender as noções basilares do Utilitarismo e compreender de que forma tal Teoria da
Justiça se manifesta nos diferentes âmbitos públicos. Posteriormente, realizou-se uma
inquirição sobre a aplicação do Utilitarismo no campo da segurança pública, sobretudo no que
diz respeito à produção legislativa e a adoção de práticas pelos agentes estatais. Por fim, o
contexto brasileiro pós-redemocratização foi abordado, com a investigação dos índices
criminais e dos gastos públicos na área, a fim de produzir entendimentos sobre a presença das
noções utilitaristas na política de segurança pública no país.

2 A PROPOSTA UTILITARISTA

A questão da justiça, compreendida como a conduta mais adequada em termo morais,


despertou e desperta diferentes concepções acerca do critério a ser empregado para a sua
determinação. As Teorias da Justiça despontam como sistemas que visam construir um
fundamento para que as ações possam ser qualificadas como justas. Nesse contexto, o
Utilitarismo de Jeremy Bentham parte do pressuposto de que os seres são governados por dois
senhores, a dor e o prazer, os quais seriam identificados com o mal e o bem, respectivamente
(DIAS, 2015, p. 154). Deste modo, a proposta de Bentham afirma que apenas a noção de
prazer, entendida como um universal que o homem busca incessantemente, deveria embasar a
moral, e, consequentemente, o critério de justiça. Para tanto, o Utilitarismo invoca o
denominado princípio de utilidade para fundamentar sua moral.

Para Bentham (1984, p. 4), a utilidade é entendida como a propriedade pela qual
determinado objeto tende a produzir prazer, benefício, bem ou felicidade, e prevenir uma
injustiça, uma dor ou um mal. O princípio da utilidade, entendido também como o princípio
da máxima felicidade ou máxima eudemonia, visa aprovar ou desaprovar qualquer ação com
base na utilidade que ela possui, ou seja, na capacidade de aumentar a felicidade da parte
interessada, que pode ser o indivíduo ou a comunidade. Destaca-se que a concepção
benthaniana de interesse da comunidade resvala na soma dos interesses indivíduos, de modo
que deve ser identificada com o da maioria da população.

Conforme afirma Sandel (2019, p. 42), a filosofia utilitarista busca aplicar o princípio
da utilidade no campo político, de modo que as leis deveriam ser criadas para maximizar a
felicidade de comunidade em geral. Para tanto, ação será apreciada com base na ideia de
prazer, raiz do sistema moral formulado, a fim de que as pessoas ajam conforme certos
deveres e direitos com a crença de que respeitá-los proporcionaria felicidade para o conjunto.
Uma norma conforme o princípio da utilidade seria uma norma justa, de modo que sua
avaliação deverá ocorrer com a soma de todos os benefícios e a subtração dos custos e, se o
saldo for positivo, estará adequada ao Utilitarismo.

A formulação proposta por Bentham, por se tratar de uma concepção quantitativa, na


qual o prazer da maioria será identificado com a justiça, permite que as garantias individuais
sejam deixadas de lado em prol do bem tido como coletivo, além de supor que os agentes
apenas agiriam conforme o cálculo utilitário, deixando de lado aspectos como impulso e
irracionalidade. Em defesa de seu sistema moral, Bentham indica que os argumentos
contrários dizem respeito apenas a má aplicação do princípio da utilidade, ao passo que
questiona a possibilidade de um critério de justiça que não se pauta na felicidade: “É possível
a um homem mover a terra? Sim, porém para isto é necessário antes encontrar uma outra terra
que sirva como ponto de apoio” (BENTHAM, 1984, p. 6).

Acerca da aplicação do princípio da utilidade no campo político, Sandel (2019, p. 49)


indica a proposta de Bentham de criar um reformatório autofinanciável para abrigar
mendigos, pois, em sua concepção, a presença de mendigos causaria dor e repugnância aos
transeuntes, de modo que retirá-los das ruas aumentaria a felicidade da maioria da população,
mesmo que essa restrição de liberdade entristecesse os pedintes. Por outro lado, para não
aumentar a carga tributária sobre a população, bem como incentivar os cidadãos a capturarem
os mendigos e os entregarem aos reformatórios, os pedintes seriam obrigados a trabalharem
para pagar os custos do seu sustento e da sua apreensão. Tal situação ilustra como a lógica
utilitarista benthaniana pode ferir os direitos fundamentais das minorias, com a justificativa de
um bem geral.

A fim de aprimorar a proposta utilitarista de Bentham, com a correção das possíveis


falhas, Stuart Mill (2005, p. 49) conserva a associação entre justiça e prazer, pois indica a
felicidade como fim absoluto, mas distingue os prazeres próprios dos seres humanos e os
animalescos, de modo que seria característico do indivíduo buscar os deleites inerentes à sua
natureza, ao invés de comungar com aqueles inferiores. Deste modo, Mill propõe uma
distinção entre os prazeres mais elevados e valiosos e os subalternos, de modo que não apenas
a quantidade de felicidade proporcionada pela escolha moral deve ser levada em conta no
cálculo utilitarista, mas também a qualidade desse contentamento. Contudo, há de se ressaltar
que a definição do que seria um prazer elevado escapa ao critério utilitarista, pois depende de
valorações exteriores, as quais, segundo Mill (ibid., p. 51), derivariam da própria experiência
dos indivíduos, ou seja, os deleites superiores seriam determinados a partir da escolha da
maioria.

Trata-se de um Utilitarismo que, diferente do benthaniano, não leva em consideração


apenas a quantidade de prazer proporcionado pela conduta, mas a própria qualidade do
contentamento. Destaca-se que a felicidade considerada deve ser a de todo o conjunto, pois o
indivíduo deve ser imparcial quanto ao seu prazer e o dos demais, sem quaisquer formas de
discriminação. Para tanto, Mill (ibid., p. 58) defende que as leis e estruturas sociais devem
colocar a felicidade e o interesse de qualquer sujeito em harmonia com o todo, de modo que
cabe à educação e à opinião o estabelecimento da associação entre o próprio prazer e o bem
comum.

Sandel (2019, p. 64), ao analisar o utilitarismo proposto por Mill, afirma que este
buscou preservar as liberdades indivíduos, o que impediria a maioria de se impor aos
dissidentes, pois se trataria de atos despóticos que a longo prazo diminuiriam a felicidade
geral. Nesse sentido, ações contra as minorias poderiam ser valoradas negativamente, mesmo
que provoquem a alegria de uma maioria momentânea, em vista da possibilidade de
prejudicarem futuramente o exercício da liberdade da população e a confiança dos sujeitos
entre si, diante da formação de novas maiorias e minorias. Entretanto, a construção de Mill
ainda busca colocar aspectos diferentes da vida humana na balança de dor e prazer, bem como
espera que os indivíduos busquem as formas de felicidade mais elevadas, aspecto este que
ultrapassa o campo utilitário, pois necessita de uma definição externa do que pode ser
qualificado como superior.

Observa-se que as contribuições de Bentham e Mill reforçam a noção do cálculo


utilitarista e da suposta reflexão que os agentes realizam ao escolherem suas condutas, bem
como da supremacia da maximização da felicidade geral. Tais aspectos impactaram e
impactam a aplicação de diversas políticas, sobretudo no campo da segurança pública, de
modo que se faz necessária uma investigação acerca dessa influência em específico.
3 TEORIA DA DISSUASÃO NO CONTROLE SOCIAL

A noção utilitarista de que os indivíduos são regidos pela dor e prazer encontra no
campo da segurança pública um espaço profícuo para ser desenvolvida. Forma-se a concepção
de que, a fim de desencorajar os indivíduos de praticarem desvios contrários ao
estabelecimento legal, a possível dor que eles devem sofrer há de ser proporcional a gravidade
do ato. Nesse sentido, para se combater os delitos, além de uma punição aflitiva adequada, é
necessário aumentar a possibilidade do agente ser responsabilizado e sofrer punições, a fim de
dissuadi-lo de praticar o delito. Nas palavras de Beccaria, “(...) não se pode duvidar que, no
espírito daquele que medita um crime, o conhecimento e a certeza das penas ponham freio à
eloquência das paixões.” (2011, p. 32), o que demonstra a crença no aspecto dissuasório que a
segurança pública deve possuir.

Álvaro Pires (2004, p. 41), ao tratar da racionalidade penal moderna, ressalta a


associação entre o crime praticado e a pena aflitiva, ou seja, buscar regular a conduta do
indivíduo aplicando-lhe uma dor. Nesse sentido, outras formas de responsabilização do sujeito
são deixadas de lado, em prol de sanções mais pesadas, com a manutenção do caráter
dissuasório que devem possuir. O campo penal passa a funcionar como um silogismo, com a
associação da conduta transgressora com o sofrimento proveniente da resposta estatal,
elemento que deverá ser considerado pelo agente ao realizar o cálculo utilitarista de
determinada conduta, sopesando possíveis ganhos com a probabilidade de dor que sofrerá.

Diante da proposta de aumento da fiscalização dos sujeitos a fim de aumentar a


probabilidade de serem responsabilizados pelos desvios praticados, Foucault (2005, p. 86)
destaca o papel que Bentham possui ao indicar os contornos que a dita sociedade de vigilância
iria adquirir ao formular a ideia do panóptico, figura arquitetônica voltada à promoção do
sentimento de supervisão contínua. Trata-se de um instrumento pelo qual diversos indivíduos
seriam vigiados por uma minoria, mas não poderiam indicar se estão sendo observados em
determinado momento, o que resulta numa consciência de permanente visibilidade. Tal
constructo será adotado em diversas instituições que visam o maior controle dos corpos
individuais, a exemplo das prisões, dos hospícios e das escolas.
Foucault (2013, p. 160), para designar o fenômeno social da constante vigilância
generalizada, utiliza o conceito de sociedade disciplinar, tida como fruto do processo
histórico, ocorrido durante os séculos XVII e XVII, de multiplicação dos dispositivos de
disciplina, voltados ao condicionamento dos indivíduos a determinados parâmetros, a fim de
formar sujeitos úteis. Nesse contexto, surgem as polícias modernas, as quais, além de
auxiliarem a justiça na perseguição de criminosos e controlarem revoltas e oposições,
adquirem uma função disciplinar, pela qual promovem uma fiscalização “permanente,
exaustiva, omnipresente, capaz de tornar tudo visível, mas na condição de ela própria se
tornar invisível” (ibid., p. 163).

A instituição policial pode ser compreendida como aquela que possui como
prerrogativa o exercício legítimo da força, em uma sociedade pautada no monopólio estatal da
violência, de modo que “O policial, e apenas o policial, está equipado, autorizado e é
necessário para lidar com toda emergência em que possa ter de ser usada força para
enfrentá-la” (BITTNER, 2017, p. 240). Deste modo, cumpre destacar o caráter instrumental
que a atuação policial pode adquirir, em conformidade com a orientação que a comunidade
política a confere (MONJARDET, 2012, p. 22), de modo que o emprego da força pode
assumir diferentes feições, a fim de se amoldar às diferentes técnicas disciplinares impostas à
população, desde os processos de investigação voltados à responsabilização criminal dos
desviantes, ao controle do espaço urbano por meio do trabalho ostensivo.

Entre os serviços prestados pela polícia, o policiamento criminal é identificado como a


principal função contida no mandato policial (BITTNER, 2017, p. 225), sobretudo no que diz
respeito às práticas ostensivas, compreendidas como a presença policial no espaço público,
em uma lógica de ocupação territorial. Desta forma, a presença e o alcance da polícia nas ruas
despontam como uma das principais formas de vigilância que lhe cabe, uma vez que pode ser
acionada para flagrar as práticas desviantes e reprimi-las, não necessariamente com a
responsabilização criminal.

Zanetic (2016, p. 151) compreende que a proposta utilitarista no campo da segurança


pública passa a assumir a feição de uma teoria da dissuasão, a qual aposta no policiamento
ostensivo e em punições duras, a fim de aumentar a probabilidade dos indivíduos serem
responsabilizados e sofrerem penas aflitivas, aspectos que seriam considerados pelos agentes
nos cálculos utilitaristas que realizariam antes de intentarem suas empreitadas criminosas. A
vigilância intensa, própria da sociedade disciplinar, faz-se presente como elemento central
para desestimular as práticas desviantes, o que pode beirar ao poder do Grande Irmão2.

A lógica da despersuasão adota pela teoria da dissuasão promove, além da intensa


fiscalização, a adoção de métodos e técnicas violentos, que vão desde a presença de agentes
estatais com armas de grande poder à vista, até condutas truculentas empregadas contra a
população (ibid., p. 153), de modo que o mero encontro com as rondas policiais pode se
traduzir em uma experiência negativa, aspecto que deve ser considerado pelo indivíduo em
seu cálculo utilitarista. Destaca-se que nessa linha de raciocínio, os direitos dos indivíduos
infratores são tidos como empecilhos ao controle efetivo da criminalidade, o que depõe contra
a manutenção da chamada ordem pública e da defesa social.

Diante da vigilância constante, os números ganham um valor probatório que indicam a


eficiência da máquina fiscalizadora em alcançar os agentes transgressores, o que resulta no
apreço pelos indicadores criminais, principalmente os relacionados com as quantidades de
apreensões e de prisões. Tais elementos possuem a função de indicar a eficácia e a amplitude
que as instituições podem ter, de modo que apresentam um caráter argumentativo, voltado à
demonstração da probabilidade de responsabilização dos desviantes. Contudo, tais
indicadores possuem uma fragilidade, pois o aumento deles pode estar atrelado ao acréscimo
da efetividade das agências controladoras, mas também ao crescimento da quantidade de
transgressões, aspectos que depõem contra a fundamentação dos dados.

Com a constatação da presença do Utilitarismo no campo da segurança pública,


observa-se que a primazia da vigilância generalizada e das penas aflitivas demonstram
algumas das feições que a teoria da dissuasão pode assumir, sempre voltada ao
desencorajamento dos indivíduos para realizarem práticas desviantes, com base no cálculo
utilitarista que eles realizariam antes de determinarem suas condutas. Cabe então analisar a
maneira pela qual tais elementos se apresentam na política de segurança pública brasileira,
sobretudo num contexto de pós-redemocratização, em que se tenta compatibilizar as garantias
individuais com as aspirações populares por mais fiscalização e punição.

2
Diz respeito à obra 1984 de George Orwell, na qual um governo totalitário, personificado na noção de Grande
Irmão, vigia toda a população em qualquer situação, de modo que esta vive com o constante medo de ser pega e
sofrer sanções pelos seus atos considerados criminosos.
4 O UTILITARISMO NA POLÍTICA DE SEGURANÇA BRASILEIRA

No Brasil, compreende-se que boa parte da segurança pública está pautada na teoria da
dissuasão, o que pode ser observado com a adoção de um modelo de policiamento embasado
principalmente na atividade ostensiva, com abordagens, apreensões e prisões. Em que pese as
origens do policiamento brasileiro datarem da chega da família real (1808), com a instituição
da Intendência Geral de Polícia (BRETAS, ROSEMBERG, 2013, p. 167), destaca-se que a
atual arquitetura das polícias nacionais remonta ao período da Ditadura Civil-Militar
(1964-1985), sobretudo com a manutenção dos Decretos-Lei nº 667/1969 e nº 1.072/1969, os
quais versam sobre a organização das Polícias militares e a impossibilidade de outras agências
realizarem o trabalho ostensivo generalizado, respectivamente.

Em caráter inovador, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira do país a separar a


segurança pública das forças armadas, com a instituição do art. 144, o qual estabelece os
órgãos de preservação da ordem pública, bem como indica as suas funções. Entretanto, a
Carta Magna recepcionou os referidos decretos provenientes do período ditatorial, de modo
que se manteve uma dicotomia entre as Polícias Civis e Militares do país, ambas de caráter
estadual, responsáveis pelas investigações criminais e o controle ostensivo do território,
respectivamente.

Acerca do padrão de policiamento adotado, Muniz e Proença Júnior (2013, p. 128)


destacam o modelo francês da Gendarmerie, pelo qual os agentes estariam dispostos em uma
estrutura militarizada e possuiriam uma capacidade coercitiva maior, de modo que seus
agentes estariam habilitados para utilizarem armas de grande alcance, como carabinas e fuzis,
mas empregariam de menor força nas ações ordinárias, ou seja, trata-se de policiais que
podem fazer mais, mas optam pelo menos. Tal modelo de policiamento é recepcionado no
Brasil, de modo que as Polícias Militares do país formam seus membros com a proposta de
prepará-los para embates com grande poder fogo, em caráter de reforço à dissuasão que
devem proporcionar nos transgressores.

Para justificar a adoção de uma arquitetura de segurança pública centralizada e de


rápida repressão, a Ditadura Civil-Militar disseminou o medo na população com a confecção
da imagem do comunista, inimigo infiltrado na sociedade brasileira, tido como subversivo e
perigoso, e que teria o objetivo de abalar as fundações nacionais através da promoção de uma
guerra revolucionária (FERNANDES, CABRAL, 2020, p. 113). A ideia de um agente a ser
combatido serviu e serve como base para a relativização das garantias individuais, de modo
que práticas autoritárias e discriminatórias poderiam ser empregadas contra determinados
sujeitos em prol da felicidade da maioria, raciocínio que se amolda ao princípio da utilidade
benthaniano.

Observa-se que além de manter a estrutura de segurança pública que remonta ao


período ditatorial, a política de segurança pública brasileira conserva da imagem do inimigo
social e da guerra contínua, mas se antes o comunista era o inimigo, atualmente as figuras dos
narcotraficantes e dos corruptos ocupam lugar de destaque na vigilância generalizada. Tais
elementos impactam na própria condução do controle social, com a realização de grandes
operações policiais como o “Mensalão” e a “Laja-jato”, bem como verdadeiras retaliações aos
sujeitos taxados como perigosos, a exemplo da ação policial realizada na Favela do
Jacarezinho em 06 de maio de 2021, que resultou em 25 homicídios, com relatos de tortura e
execuções contra a população, o que caracteriza tal episódio como o mais letal da história do
Rio de Janeiro (BARREIRA, 2021).

Além da adoção de uma estrutura policial pautada na repressão, destaca-se a


emergência de legislações voltadas ao aumento da aflição das penas, tais como a Lei n.
8.072/1992, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos, a qual indica determinados crimes
como inafiançáveis e insuscetíveis de graça, além de não poderem ser alcançados pela anistia,
indulto e fiança e terem como cumprimento inicial o regime fechado. Azevedo (2008, p. 60)
indica que o surgimento dessas normativas penais flerta com o punitivismo e com a busca por
eficiência no campo da segurança pública, com a promoção da falsa contraposição entre a
aplicação da lei penal e a proteção das garantias individuais, o que afastaria a função do
Direito Penal de limitar o emprego de força pelo Estado em prol de um instrumento de
combate à criminalidade.

Como efeitos da teoria da dissuasão nos indicadores nacionais, ressalta-se que entre
1998 e 2017 o gasto per capita com a segurança pública no país praticamente dobrou
(MELLO, 2019, p. 49), fruto da criação de planos para a área a nível nacional e a construção
do Fundo Nacional de Segurança Pública. Contudo, o aumento do orçamento se traduziu na
compra de mais armas e viaturas (SOARES, 2007, p. 83), em detrimento de aspectos como a
formação dos policiais e o desenvolvimento de estudos sobre a atuação dos agentes e as
dinâmicas criminais, o que demonstra a noção de que a ampliação da possibilidade de força
empregada e da presença estatal serviria para dissuadir os indivíduos desviantes e,
consequentemente, controlar a criminalidade.

Como resultado do aumento do orçamento para a área de segurança pública,


observa-se a triplicação da população carcerária nacional, que em 2000 continha cerca de 232
mil presos, número que alcançou o patamar de 722 mil em 2017 (INFOPEN, 2021). Por outro
lado, há de se destacar que a taxa de homicídios no período realiza uma escalada, passando de
45 mil em 2000 para mais de 65 mil em 2017 (IPEA, 2021). Em paralelo, ressalta-se o
aumento da letalidade policial, a qual registrou em 2017 o total de 5.179 mortes (FÓRUM
BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021, p. 59), aspectos que evidenciam uma
maior violência contra a população, mas que não se traduz num aumento da sensação de
segurança da comunidade.

Percebe-se que pautar a segurança pública do país na teoria da dissuasão implica na


manutenção ode uma arquitetura policial repressiva, voltada à vigilância geral e constante da
população, aliada à promoção de diretrizes penais que visam aumentar a aflição das penas
impostas aos desviantes. Contudo, tais aspectos não resultaram numa melhora da segurança
pública nacional, mas contribuíram com o superencarceramento e com a quebra das garantias
e direitos fundamentais dos cidadãos, o que pode ser notado com a grande quantidade de
homicídios e, em especial, de mortes decorrentes de intervenções policiais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, observa-se que o Utilitarismo desponta como uma das principais
Teorias da Justiça modernas, ao passo que, com o princípio da utilidade, busca pautar seu
sistema moral nas noções de prazer e dor, as quais seriam comuns a todos os indivíduos, bem
como regeriam suas condutas. Nesse sentido, o valor de justiça atribuído a determinada ação
dependeria da quantidade de prazer e o afastamento de sofrimento que ela causou para a
comunidade em geral, com a adoção de uma proposta quantitativa. Contudo, pautar a
moralidade na suposta felicidade da maioria pode se analisado como um risco às minorias, as
quais teriam de se sujeitar aos interesses da coletividade, mesmo que isso significasse o
afastamento de garantias individuais.

No campo da segurança pública, o Utilitarismo assume a feição de uma teoria da


dissuasão, a qual busca aumentar a probabilidade de responsabilização dos desviantes e as
penas aflitivas contra eles aplicadas, a fim de despersuadir os agentes de realizarem
transgressões, os quais realizariam cálculos utilitaristas com o sopesamento dos possíveis
ganhos e das prováveis dores que a conduta e reação social poderiam proporcionar. Desta
forma, a aposta no policiamento ostensivo, entendido como a vigilância estatal corpórea
direta, desponta como uma das principais técnicas empregadas na fiscalização da população,
de modo que pode representar por si só uma experiência negativa aos sujeitos por utilizar
táticas truculentas e suspensivas de direitos.

O contexto brasileiro pós-redemocratização, com a busca por compatibilizar as


garantias individuais constitucionais com arcabouços jurídicos provenientes do período
ditatorial, continua insistindo na adoção da teoria de dissuasão como base da política de
segurança pública, o que pode ser observado com a midiatização das ações policiais contra os
narcotraficantes e corruptos, tidos como novos inimigos sociais, bem como com a dotação
orçamentária, a qual triplicou em menos de duas décadas, mas se traduziu na mera compra de
armas e fuzis, em detrimento de outras ações. Sendo assim, o aumento dos homicídios e do
encarceramento são resultados diretos das práticas utilitaristas na área, ao passo que as
garantias e direitos fundamentais dos indivíduos são relativizados em vista de um suposto
bem coletivo, mas que na verdade deve ser tido como uma faceta da sociedade disciplinar e a
sua ânsia pelo controle dos corpos.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Política Criminal e Legislação Penal no Brasil: histórico e


tendências contemporâneas. In: Alexandre Wunderlich; Andrei Zenkner Schmidt. (Org.).
Política Criminal Contemporânea - Criminologia, Direito Penal e Direito Processual
Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 49-62.
BARREIRA, Gabriel. Operação no Jacarezinho é a mais letal da história do RJ. G1, Rio de
Janeiro, 06 de maio de 2021. Disponível em:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/05/06/operacao-no-jacarezinho-rio-tem-nu
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BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2011.

BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Tradução


de Luiz João Baraúna. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

BITTNER, Egon. Aspectos dos Trabalho Policial. Tradução Ana Luísa Amêndola Pinheiro.
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