You are on page 1of 21
Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) sia 45 i COS utppineicaasp.br/simposiovills2017; T6picas musicais na Bachianas Brasileiras n° 2 de Heitor Villa-Lobos Adailton Sergio Pupia adailtonpupia@yahoo.com.br Resumo: Este trabalho consiste na andlise musical de alguns exeertos da Bachianas Brasileiras n° 2 (1930) do compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos (1887-1959) por meio da teoria das tépicas musicais. Discute- se as relages intertextuais herdadas por Villa-Lobos advindas da miisica popular brasileira, levando em. consideragio © contexto musical e social no qual o compositor estava inserido. Observa-se nesta obra a presenga de elementos estilisticos, caracteristicos da miisica popular brasileira, que podem ser associados. com a musica caipira, nordestina, indfgena e afro-brasileira. Por hora, as tépicas musicais ocorrentes encontradas nesta obra so: tGpica “brejeiro”, t6pica "época-de-ouro”, t6pica “caipira”, t6pica “afro- brasileira", pica “indgena” ¢ t6pica “nordestina”. Por intermédio da anilise musical conectada com teoria das tépicas musicais, possuimos a ferramenta analitica para observar e classificar as relagoes de intertexto na obra em questo, verificando de que forma Villa-Lobos dialogava com as influéncias legadas dos estilos musicais brasileiros, podendo assim auxiliar na literatura eritico-analitica dos processos de criaglo de Heitor Villa-Lobos. Palayras-chaye: Tépicas musicais; Bachianas Brasileiras n° 2; Heitor Villa-Lobos; Anélise music Musica popular brasileira Introdugio Bachianas Brasileiras n° 2 (1930) foi composta no periodo inicial do ciclo, em um momento em que Villa-Lobos havia regressado da Europa. O ciclo aponta a mudanga no estilo composicional de Villa-Lobos, onde identificamos 0 retorno aos procedimentos tonai possivelmente com a intencdo em adaptar sua musica aos acontecimentos ocorridos na Europa, em especial a0 Neoclassicismo. Outros dois fatores sio facilmente identificados nas Bachianas Brasileiras, sendo a mengio & miisica de Johann Sebastian Bach, que vem ao encontro aos acontes imentos presentes na Europa na década de 1920, como o retour @ Bach, e a insergo da misica popular brasileira, seguindo um viés nacionalista. Neste trabalho busco investigar as estilizagdes da misica popular brasileira presentes na Bachianas Brasileiras n° 2, dispondo-as em t6picas musicais. Originalmente escrita para onquestra, a Bachianas Brasileiras n° 2 tem quatro movimentos: Preltidio (O Canto do Capadécio), Aria (O Canto da Nossa Terra), Dansa (Lembranga do Sertéo) e a Toccata (O Trenzinho do Caipira). E observado de que forma essas relagdes de intertexto com a misica popular brasileira ocorrem, apresentando as analogias das influéncias musicais, exercidas no compositor, compreendendo o contexto em que o mesmo estava inserido. Através da anélise musical tradicional, as t6picas musicais apresentadas por Piedade (2009) irao corroborar no aprofundamento das es ilizagbes Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) ISONSTOS bt 46 VitLA-COBTS A miisica de Villa-Lobos apresenta uma justaposicdo de diversos elementos, muitas vezes tornando a investigagdo analitica dificil, necessitando recorrer a novos métodos de investigagdo, Piedade menciona que a misica de Villa-Lobos é composta de “idiomas nacionais/regionais, identidades miltiplas, presenga indigena, modernismo, politica, citagoes, densidade semistica, controle de alturas, estruturas simétricas, estratégias composicionais muito originais e muitos outros fatores” (PIEDADE, 2015, p. 1). Para abordar todos estes elementos, a vis io analitica deve ser ampla, no apenas focada na ‘obra em questo como um tinico meio de investigagiio, mas sim buscar através de uma gama de fatores e conexdes, diversas hipdteses que auxiliem na verificagdo dos seus processos de criagao. Diversos compositores contempordneos a Villa-Lobos, como € 0 caso de Igor Stravinsky, Amold Schoenberg, dentre outros, possuem suas obras meticulosamente analisadas, fornecendo modelos formais de composigées. Atualmente, uma extensa producdo bibliogrétfica, incluindo livros, artigos cientificos, dissertagdes de mestrado e teses de e reafirmam a necessidade da discussio dos process solidificando assim a importancia de suas obras. Fundamentagio teérica A teoria das tépicas musicais foi introduzida por Leonard Ratner em seu livro Classic Music: Expression, form, and style, de 1980. Ratner propde uma explicagao abrangente das premissas esti ticas da miisica cléssica por volta de 1770 a 1800, enfatizando a miisica de Joseph Haydn, Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig van Beethoven, Através do contato com a poesia, drama, entretenimento, religido, danca, cerimonia, miisica militar e de caga, a miisica do inicio do século XVIII desenvolveu um compendio de figuras caracterfsticas, tornando-se um rico legado para os compositores cldssicos. Essa figuras caracterfs discurso musical (RATNER, 1980, p. 9). icas so designada por Ratner como t6picas, sendo os sujeitos para 0 Ratner observa as caracterfsticas dos ipas e estilos encontrados como assuntos musicais do discurso. Todos os tipos citados so relacionados as dangas, como Minueto, Sarabande, Polonaise, et nfase ritmica e ¢ oferecem dados importantes sobre tempo, expresso, ¢ de que forma foi incorporada na miisica clissica. Os estilos variam entre a Ais do inp Via Loos ECATSP 2017) ISBN OTe rb 47 wiLceORTS musica militar e de caga, estilos brilhantes, abertura francesa, estilo estrito e livre (ou galante), dentre outros. Segundo William E. Caplin, 0 conceito apresentado por Ratner trouxe 4 tona uma poderosa ferramenta para andlise musical dentro de repert6rios tonais, “que desde ento tem sido consideravelmente desenvolvido e estendido por alguns de seus estudantes, especialmente Wye Allanbrook' e Kofi Agawu"? (CAPLIN, 2005, p. 113).Caplin,em seu ensaio “On the Relation of Musical Topoi to Formal Function” (2005), aborda as t6picas musicais através das experiéneias dos ouvintes atuais, sem necessariamente sugerir que as t6picas foram ouvidas de forma semethante naqueles tempos anteriores, como Ratner € seus seguidores sugerem, estando enraizada nos habitos de escuta dos compositores € suas audiéncias do século XVII e inicio do século XIX. Caplin aponta que andlise das t6picas musicais pode ser considerada como um sucesso na musicologia modema, porém. apesar de sua aceitaco generalizada, percebe-se na literatura musicolégica certo desconforto (CAPLIN, 2005, p. 113). Raymond Monelle em seu livro The Musical Topic: Hunt, Military and Pastoral, de 2006, descreve as t6picas musicais sendo mais do que meras etiquetas, e que “deve depender de investigagdes da hist6ria social, literatura, cultura popular ¢ ideologia, bem como miisica, cada t6pica deve levar a um longo estudo cultural" (MONELLE, 2006, p. 11). O autor elenca trés t6picas musicais representando temas culturais importantes da Europa Ocidental, sendo as t6picas de caga, militar e pastoral. Monelle oferece um estudo cultural € histérico aprofundado das tépicas musicais, considerando sua origem, tematizagio, manifestagao e significado, mostrando as conexdes da acepgaio musical com a literatura, a historia social e as artes plasticas. Tratada como uma categori intertextual, Cano define que as t6picas musicais so constituidas de elementos musicais que nos remetem a um género, estilo ou tipo de musica, nao fazendo referéncia a uma obra reconhecivel, mas sim a elementos genéricos sem paternidade autoral especifica (CANO, 2007, p. 34). Cano assinala que as t6picas ' ALLANBROOK, Wye J. Riythmic Gesture in Mozart: Le n University of Chicago Press, 1983. ® AGAWU, Vietor Kofi. Playing with Signs: A Semiotic Interpretation of Classic Music. Princeton: Princeton University Press, 1991 » ...must depend on investigations of social history, literature, popular culture, and ideology as well as music, each topic must lead to a lengthy cultural study (MONELLE, 2006, p. xi) di Figaro and Don Giovanni. Chicago: Aidt SinpisioVi Lots (BCASP 2017 ISHN Srwss 758 198 48 wiLceORTS musicais permitem o desenrolar de estratégias analiticas mais eficazes para os estudos dos processos semisticos produzidos pela intertextualidade (CANO, 2005, p. 63) As tépicas musicais, de acordo com Piedade, so figuragdes musicais que foram construfdas através de complexos processos hist6ricos e culturais de natureza regional, nacional e internacional. Mais do que “clichés ou maneirismos, as t6picas siio elementos estruturais (motivos, variagdes, texturas, ormamentos, ete.) que portam significados e que constituem o texto musical” (PIEDADE, 2009, p. 127). Ainda segundo o autor, elas sto “estruturas convencionais e consensuais, Iugares comuns dos discursos musicais, que esto fundadas em uma musicalidade especifica e ali mantém certa estabilidade hist6rica” (PIEDADE, 2015, p. 2). No caso da musicalidade brasileira, Piedade aponta que as “t6picas de samba em um, mba, nao sao salientes para seu ptiblico porque eles se comportam como constituintes do proprio género, aparecendo no lugar certo onde eles convencionalmente deveriam estar” (PIEDADE, 2015, p. 3). Essa caracteristica € chamada de isotopia, descrita por Piedade como: [...] caracteristica que permite a accitabilidade e a estabilidade do significado convencional em uma cadeia de ideias musicais. Quando, a0 contririo, uma ‘épica aparece em momentos incomuns ou em diferentes repertorios, podem provocar um efeito de surpresa causado pela quebra da isotopia, produzindo assim na audiéneia a necessidade de uma reinterpretago deste elemento gerado pela alotopia, que é a ruptura da isotopia (PIEDADE, 2015, p. 3) inte ac Piedade aponta que a teoria das t6picas musicais € um interes para compreensio do significado musical e da musicalidade de modo geral, sendo “perfeitamente adequada para o estudo da misica brasileira, principalmente no Ambito da construco de identidades. Resta encontrar as t6picas que entram em ago neste universo” (PIEDADE, 2007, p. 4). Em suas pesquisas, Acicio Piedade aborda os estudos das relagdes entre a retérica, postica e mii a, bem como a busca de possiveis t6picas da musica brasileira. Segundo Piedade, a ret6rica se faz presente na diversidade da miisica brasileira, sendo essa erudita s culturais ou popular, “articulando t6picas que colocam em jogo identidades e referénci que constroem um universo musical entendido como brasileiro” (PIEDADE, 2007, p. 8). As t6picas observadas por Piedade contribuem para a dissolugdo das fronteiras entre 0 erudito © © popular, abrangendo conhecimentos musicais e interpretagdes hist6rico- Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) anenes e 49 simpdsio, 7. ViLtA-COB0S. Sean culturais, podendo ser aplicadas em compositores como Heitor Villa-Lobos, César Guerra-Peixe, Cliudio Santoro, Egberto Gismonti, Chico Buarque, Pixinguinha, dentre outros (PIEDADE, 2007, p. 8). No artigo intitulado “Tépicas em Villa-Lobos: 0 excesso bruto ¢ puro”, de 2009, Piedade faz um mapeamento preliminar das t6picas musicais aplicadas na obra de Villa-Lobos, relacionando ¢ exemplificando diversos tipos de t6picas. Essas t6picas so nomeadas pelo autor como t6picas indigenas”, “caipiras” e “impressionistas” (PIEDADE, 2009, p. 133). spoca-de-ouro”, “nordestinas”, “selvagens”, “animal”, “floresta 4 tropical”, Analisar a mdsica de Villa-Lobos nio é uma tarefa simples. Talvez seja por seu carter independente ou porque sua misica é profundamente relacionada em termos semidticos, intensamente povoada por registros da cultura, como Piedade assinala (PIEDADE, 2009, p. 127). A teoria das tépicas musicais auxilia na investigagio de elementos extras musicais, assim como de figuragdes estilisticas, folcléricas ¢ populares utilizados por Villa-Lobos. Estas t6picas musicais serio discutidas ¢ aprofundadas nos comentarios analiticos. Comentarios Analiticos Para a investigagiio dos elementos estilisticos relacionados & misica popular brasileira, tomo como ferramenta analitica a teoria das t6picas musicais. Vale ressaltar que Villa- Lobos, em diversas obras, utiliza a sobreposigdo de duas ou mais t6pic: como iremos observar em alguns excertos da Bachianas Brasileiras n° 2. Foram encontradas seis t6picas musicais, sendo elas: “brejeiro”, “época-de-ouro”, “caipira”, “afro-brasileira”, a", “indigena” e “nordesti Tépica “brejeiro” A t6pica “brejeiro” esté associada ao choro ¢ ao jazz brasileiro. Figuragdes sincopadas, deslocamento ritmico, cromatismos, so algumas caracteristicas desta t6pica. Segundo Piedade, a tpica “brejeiro” é caracterizada pela forma em que “as figuragdes aparecem transformadas por subversdes, brincadeiras, desafios, exibindo e exigindo audécia virtuosismo, mas tudo isto de forma organizada, elegante, altiva, por vezes sedutora, maliciosa”. Piedade ainda aponta que 0 “brejeiro” esté associado & figura do malandro, que musicalmente é representada pelo deslocamento do tempo forte e pela acentuagao no Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) tan snees 9a ed 50 simpdsio, Y/ ViLtA-COB0S. Sean tempo fraco, realizando a “quebrada”, onde “ataca uma nota com uma omamentagao cromitica que causa a impressio de erro, mas que revela a preciso de uma transformacao brejeira” (PIEDADE, 2013, pp. 12-13). Para ilustrar essa t6pica, utilizo um excerto do choro Um a Zero (1919), de Pixinguinha e Benedito Lacerda. Piedade utiliza essa obra para elucidar 0 deslocamento ritmico ocorrente nos compassos 9 ao 12 (PIEDADE, 2013, p. 13); observamos varios elementos caractet icos da t6pica “brejeiro” Fig. 1). destacando a presenca de figuras sincopadas, permeando toda a melo eS FIGURA I: MELODIA DO CHORO “UM A ZERO" DE PIXINGUINHA E BENEDITO LACERDA. TOPICA “BREJEITO”. COMPASSOS 1-12, O tema da parte A do Prelidio (O Canto do Capadécio) & apresentado pelo saxofone tenor. Para Piedade, esse tema revela 0 carter “escorregadio”, coerente com o estilo “brejeiro”, manifestando-se na figura do capadécio, sendo “o malandro que fala,com seu jeito manhoso” (PIEDADE, 2015, p. 9). Essa melodia executada pelo saxofone tenor é sincopada, com glissandos., estruturada em figuras de tercinas e frases em ziguezague’, caracterizando a t6pica “brejeiro” (Fig. 2); no compasso 5, observamos 0 glissando da nota Sol a0 Mi} (som real), seguidos por deslocamentos ritmicos e€ cromatismos. Este tema é apresentado novamente na reexposigdo, nos compassos 79 ao 87, juntamente com os primeiros violinos. Além do carter “escorregadio” da melodia, caracterizado pela figurago sincopada, a simplicidade ritmica do acompanhamento dos demais instrumentos, que trabalham em blocos,expondo + Figuragéies em dois registros, chamado de “ziguezague”. Essas figuragdes empregadas por Villa-Lobos, ccaracterizam-se por realizar um contorno melédico que estabelece uma espécie de contraponto consigo ‘mesmo, um tipo de polifona intemna, onde se tem a impresstio de ouvir duas Tinhas melédicas em um tinico instrumento. As influgncias deste tipo de condugo melédiea podem ter origem da obra de Johann Sebastian Bach, assim como outras fontes de interesse de Villa-Lobos, como figuragdes meldicas de Callado e Pixinguinha (SALLES, 2009, pp. 114-115). Aidt SinpisioVi Lots (BCASP 2017 ISHN Srwss 758 198 51 VittA-COBDS. A 05 acordes em figuragdes de minimas pontuadas, minimas e seminimas, auxiliam na “liberdade” da melodia. si Lien, FIGURA 2: VILLA-LOBOS, PRELUDIO (O CANTO DO CAPADOCIO). TEMA. MELODIA SAXOFONE TENOR. TOPICA “BREJEIRO”, CC. 4-12. A t6pica “brejeiro” também esti presente em outra passagem do Preltidio (O Canto do Capadécio), sendo apresentada pelo trombone nos compassos 15 a0 21, ¢ na reexposigao, pelos primeiros violinos, nos compassos 90 ao 95. Através dos ziguezagues em glissandos do trombone, este excerto caracteriza uma linguagem bastante particular da musicalidade brasileira, o “trombone brasileiro”, que segundo Piedade esteve presente nas bandas de gafieira e se consolidou na década seguinte através do samba e do choro (PIEDADE, 2015, p. 11). Nos compassos 15 ao 19 (Fig. 3), observamos glissandos ascendentes e descendentes em intervalos de FIGURA 3: PRELUDIO (O CANTO DO CAPADOCIO). MELODIA DO TROMBONE. TOPICA “BREJEIRO", CC. 15-21. Na redugao (Fig. 4) visualizamos com maior clareza a escrita em ziguezague desse trecho, distribuida em trés vozes. Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) iit TE pains FIGURA 4: PRELUDIO (0 CANTO DO CAPADOCIO), MELODIA EM ZIGUEZAGUE. REDUCAO. TOPICA "BREJEIRO”, CC. 15-18. ‘Tépica “Epoca de Ouro” Segundo Piedade, a t6pica “época de ouro” é caracterizada pelos floreios melédicos, grupetos, apojaturas e outras ornamentagdes das antigas modinhas, polcas, valsas € setestas brasileiras, evocando a singeleza € 0 lirismo do Brasil antigo. Piedade ainda destaca que esse tipo de tépica esté muito presente em compositores modernistas € nacionalistas, como em Villa-Lobos e Camargo Guarnieri (PIEDADE, 2013, p. 14). Alguns excertos do Preltidio (O Canto do Capadécio) podem ser relacionados com a t6pica “época de ouro”, ocorrendo uma sobreposigdo com a tépica “brejeiro” Em deter ados momentos do Preltidio (O Canto do Capadécio) ocorre a suspensio da melodia em fermata, com sua resolugdo em grau conjunto descendente. Segundo Piedade, a fermata é uma emulagao do lirismo do canto, em especial do rubato, bastante empregado em serestas (PIEDADE, 2013, p. 15); essa emulago do rubato na melodia do violoncelo € bastante caracteristica (Fig. 5). No compasso 15, a nota Fé é suspensa pela fermata, posteriormente repousando na nota Mi). Esse procedimento é recorrente nos compassos 24 ¢ 90. FIGURA 5: PRELUDIO (0 CANTO DO CAPADOCIO). MELODIA DO VIOLONCELO. TOPICA ‘EPOCA DE OURO”. COMPASSOS 15-17. Esse tipo de suspensio melédica também ocorre na Dansa (Lembranga do Sertao), na melodia apresentada pelo trombone na sesso A. Através da suspensio na fermata, realizada através de um glissando ¢ intensificada pelo rallentando seguido de a tempo, esse excerto (Fig. 6) & bastante caracteristico da tépica “época de ouro” Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) i COS utppineicaasp.br/simposiovills2017; avempo FIGURA 6: DANSA (LEMBRANCA DO SERTAO). MELODIA DO TROMBONE. TOPICA “EPOCA DE OURO”, CC. II-14, Outra caracteristica da t6pica “época de ouro” esté relacionada a “baixaria do choro”. De acordo com Piedade, essas frases na regio grave, compostas por graus conjuntos e/ou scendentes ou descendentes, servem de conectores entre segmentos teméticos, remetendo a linguagem do violio de sete cordas presente no choro (PIEDADE, 2013, p. 14). Na Aria (O Canto da Nossa Terra), Villa-Lobos utili nna exposigao do tema: os violoncelos e contrabaixos exibem essa alusdo ao violdo de sete a esse procedimento cordas do choro, através da insergao de semicolcheias ascendentes ou descendentes nas spensdes da melodia, enfatizada pelo cromatismo e pelo timbre em pizzicatos, remetendo a sonoridade do violio (Fig. 7). FR FIGURA 7: ARIA (O CANTO DA NOSSA TERRA). “BALXARIA DO CHORO". TOPICA OURO", CC 9 Essa articulagdo de diversas linguagens herdadas das modinhas, poleas, maxixes, sambas, choros, serestas,etc.,. io comuns em Villa-Lobos, muitas vezes ocorrendo a sobreposigZo de diversas tépicas em uma tinica obra. Tépica “Caipira” A t6pica “caipira” traz consigo a linguagem da cultura do homem do campo. Os elementos musicais caipiras so relacionados as progresses harm6nicas simples (comumente centralizada entre t6nica, subdominante ¢ dominante), aos ostinatos ritmicos que permeiam a miisica sertaneja (como 0 cururu, a catira, 0 pagode de viola, dentre outros), ¢ as melodias por graus conjuntos (muitas vezes dobradas em tergas) A parte B do Preliidio (0 Canto do Capadécio) abandona o carster “wagneriano” exposto na seco A. O Andantino mosso, estremamente ritmato é introduzido no compasso 55, sendo encerrada no compasso 77. Piedade define essa seco como “uma paisagem de Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) ISBN 978-85-7205-179-8 54 i nn claridade e alegria, com um espfrito de danga, a harmonia em modo maior girando entre L-V, uma melodia simples, em grau conjunto” (PIEDADE, 2015, p. 13). Piedade ainda traga uma andlise considerando 0 dualismo sobre essa relagdo entre 0 capadécio ¢ 0 caipira. Se analisarmos o prelidio desta obra levando esse dualismo em consideragao, pode-se sentir a contradiglo ¢ 0 equilibrio entre dois cendrios. A imaginagio, do ouvinte pode conduzi-lo a um tipo de viagem partindo da capital brasileira, com sua urbanidade ¢ musicalidade peculiar, neste caso um misto com ecos do choro ¢ do Brasil antigo permeados com a malandra ginga carioca, ¢ influéncias da linguagem curopeia fin de siécle wagneriana e pré- expressionist, [..] De repente, através das topicas caipiras, abre-se uma janela que conduz o ouvinte para o interior, para o Brasil profundo, toda uma paisagem se abre como uma alegre festa rural no campo (PIEDADE, 2015, p. 1). Apresentado na tonalidade de Mi, maior, a segdo B do Preltidio (O Canto do Capadacio) expie relagdes harmdnicas rudimentares, se comparado com os elementos apresentados na sesstio A. Construfda em torno da progressdio tOnica e dominante, apresenta a melodia nos primeiros violinos em oitavas, acompanhada ritmicamente pelos segundos violinos, figuragdo ri € presente em alguns toques de viola e subgéneros como 0 pagode de viola (PIEDADE, 2015, p. 15). violas ¢ madeiras. Es’ ica, ilustrada na figura 8, de acordo com Piedade, at, bot clarinet asaone wp Tbe a a Ae TT a eae violin vias FIGURA 8: FIGURAGAO RITMICA DA PARTE B DO PRELUDIO (O CANTO DO CAPADOCIO). REDUCAO, CC. 55-56, Esta figuragdo ritmica em staccato, com a harmonia centrada na fungao de tnica dominante, remete a idiomatica da miisica caipira. De acordo com Corréa, 0 pagode de viola foi desenvolvido por Tito Carreiro e Carreirinho ¢ teve seu aprimoramento com Tiao Carreiro e Pardinho, no final da década de cinquenta (CORREA, 2000, p. 71). pagode de viola consiste de uma derivagao da catira. Podemos presumir que Villa- Lobos teve como fonte de inspiragiio para a sesstio B a figuragiio ritmica da Catira. Ikeda assinala que “o ritmo basico do pagode caipira é 0 mesmo do antigo género denominado Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) iOS pains will H Tundu, relacionado como danga de negros desde 0 século XIX pelo menos, e cujo padrio rftmico se encontra também no catira” (IKEDA, 2004, p. 165 apud PINTO, 2008, p. 90). Na figura 9 verificamos a diferenga de acentuagao entre o pagode de viola e a catira. Pagode catia FIGURA 9: FIGURAGAO RITMICA DO “PAGODE DE VIOLA” E DA “CATIRA” (PINTO, 2008, P. 93), Piedade relaciona toda a segdo B com elementos da misica caipira, aparentes no ritmo (que se mantém em ostinato boa parte da sessiio), na harmonia tonal (com a progressio de t6nica e dominante), e pela melodia simples (realizada por graus conjuntos), onde os toques de viola foram transferidos timbristicamente para as cordas e madeiras, trazendo 10) Visualizamos a ocorréncia simultanea dos elementos caracteristicos da t6pica “caipira”, a inocéneia e © espirito pastoral (PIEDADE, 2015, p. 15). Na redugio ( como ji mencionado anteriormente. bee LLG ce ee x FIGURA 10: PRELUDIO (0 CANTO DO CAPADOCIO). REDUCAO, TOPICA "CAIPIRA”, CC. 57-61. Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) tan snees 9a ed 56 simpdsio, Y/ ViLtA-COB0S. Sean Segundo Nébrega, na Dansa (Lembranca do Sertdo) “ouve-se o repinicar dos “pizzicati” dos segundos jolinos, apoiados pelas violas em “staceati”, evocando sem dtivida a viola sertaneja” (NOBREGA, 1971, p. 42). Essa alusdo a viola caipira € caracterizada pelo movimento de tergas paralelas, sendo executada em pizzicato pelos segundos violinos € em staccato pelas violas, que se mantém em toda sesso A nos compassos 2 ao 22 ¢ na reexposigdo nos compassos 80 ao 105. A figura 11 ilustra essa figurago em ostinato dos segundos violinos e viola: alma Il violas ize 4 11: DANSA (LEMBRANCA DO SERTAO). FIGURACAO RITMICA DOS SEGUNDOS VIOLINOS E VIOLA. REDUCAO. TOPICA “CAIPIRA”, C. 2 Observamos quatro elementos que podem ser associados com a t6pica “caipira”. Em primeiro verificamos a presenga do ostinato, presente em grande parte deste movimento. Por segundo, ao analisar a estrutura melédica deste ostinato, observamos que ela € construida em tergas paralelas, sendo comumente utilizada em diversos géneros da ntisi ca caipira, O terceiro elemento esti associado ao efeito de pizzicato e staccato dos segundos violinos ¢ violas, que remetem a sonoridade dos instrumentos de cordas dedilhadas, possivelmente uma alusdo a viola caipira. E por fim, observamos a presenga de uma nota pedal no ostinato (nota Mi), que caracteriza alguns ritmos caracterfsticos da viola caipira. Na Toccata (O Trenzinho do Caipira) a tpica “caipira” & caracterizada pela melodia realizada em graus conjuntos que permeia toda a obra, apresentada na tonalidade de Dé maior. Na primeira seco a melodia se inicia no compasso 27, com os primeiros segundos violinos em oitavas, sendo dobrada em alguns momentos pelo saxofone tenor, trompas € trombone, ou pela flauta e oboé. A figura 12 apresenta um excerto dessa melodia. or a FIGURA 12: TOCCATA (O TRENZINHO CAIPIRA). MELODIA DOS PRIMEIROS VIOLINOS. TOPICA ‘CAIPIRA", CC. 27-34. Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) ISBN 978-85-7208-179-8, 57 vida COTS hup/psincira. usp brisimposiovils2017 Na primeira segiio, a melodia ocorre nos compassos 27 a0 69, sendo reexposta nas madei nos compassos 95 a0 141. Outros fatores também corroboram para a associagdo dessa melodia com a t6pica “caipira”, como a textura em ostinato, presente em grande parte deste movimento, a utilizagdo da tonalidade de D6 maior como centro tonal, € as notas pedais, realizadas principalmente pelos contrabaixos. Topica “Indigena” A tpica “indfgena” € bastante recorrente na obra em Villa-Lobos, sendo destaque em diversas obras. Os elementos que caracterizam essa t6pica estio relacionados ao “uso de estruturas paralelas, intervalos de quarta € quinta, ostinatos, melodias baseadas nas transcrigoes [...]” (MOREIRA, 2010, p. 231). A jungao desses elementos € observada do indio por Villa-Lobos. Essa elemento “no nivel da textura musical e na compreensio da “mensagem” programética que refere ao indio” (MOREIRA, 2010, p. 231). como a representa representacdo constitui um novo Beéhague aponta que o indigena € trazido por Villa-Lobos através do indio romantizado de O Guarani de Anténio Carlos Gomes. Este “nobre selvagem”, que habita as matas profundas, esté “absolutamente coerente com pressupostos da modernidade, mas ao ‘mesmo tempo relacionado com os modemnistas do antropofagismo de 22” (BEHAGUE, 2006, apud PIEDADE, 2009, p. 131). Salles assinala que a textura do ostinato emerge na misica villalobiana nos anos de 1920, sendo explorada em muitas obras deste perfodo (SALLES, 2009, p. 78). Esse textura também era utilizado por Villa-Lobos para a ambientagio de melodias folel6ricas. 10 de Essas melodias em conjunto com 0 ostinato “so na verdade “paisagens sonoras” assinaturas com que © compositor afirma sua nacionalidade, mas elas no. so harmonizadas, nio se submetem ao jugo de outra pai tonais” (SALLES, 2009, p. 82). Se observarmos 0 segundo movimento, a Aria (O Canto da Nossa Terra), na segio B Tempo de Marcia, é possivel relacionat os aspectos ritmicos, melédicos e de textura com a t6pica “indfgena”. Nos compassos 26 a0 51, 0 piano e o contrabaixo mantém um duradouro ostinato. O piano desenvolve esse ostinato com a figurago de uma colcheia € duas semicolcheias, ora introduzindo uma figura de quatro semicolcheias. Essa figuragio Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) aaheueeats 58 LCOS ou de semicolcheias é deslocada em toda a segao, onde sua recorréncia alterna-se nos tempos um, dois, trés e quatro. As notas no piano que se mantém em ostinato so as notas Fé, D6 € Sol; (nas figuras de uma colcheia e duas semicolcheias) e Fé, Ré}, D6 e Lé (nas figuras de 4 semicolcheias). O contrabaixo figura em uma semicolcheia, duas pausas de semicolcheia e uma semicolcheia, ora introduzindo a figuragao de duas semicolcheias, pausa de semicolcheia e uma semicolcheia. Assim como no piano, essa figuragio de duas semicolcheias, pausa de semicolcheia e uma semicolcheia sio deslocadas em toda essa secio, onde sua recorréncia alterna-se nos tempos um, dois, trés e quatro. As notas executadas pelo contrabaixo em ostinato sao Fé e Soly nas figuras de uma semicolcheia, duas pausas de semicolcheia e uma semicolcheia) e Fa, Ré, e La (nas figuras de duas semicolcheias, pausa de semicolcheia e uma semicolcheia). Os violinos, violas e violoncelos contribuem para a caracterizagio do ostinato, executando colcheias no contratempo em quase toda segdo. Nos compassos 42 a0 44 as madeiras metais enfatizam este ostinato de colcheias. A textura em ostinato, podendo ser caracterizada indfgena” (Fig. 13). como uma t6pica ioinos 1, ol volncelos FIGURA 13: OSTINATO DA PARTE B DA ARIA (O CANTO DA NOSSA TERRA). REDUCAO, TOPICA INDIGENA”, CC, 28-29. Tépica “Nordestina” Sobre a t6pica “nordestina”, Piedade aponta que ndo basta apenas ocorrer & utilizagdo de uma escala em modo dérico ou mixolidio (com ou sem 4” aumentada) em determinado excerto musical. Para que haja a evocagdo da tematica nordestina é necessario “que estas alturas aparegam em certas figuragdes especificas, t6picas [...]. Estes motivos conclusivos, devidamente instalados ao final de certas progress es, ajudam na remiss i musicalidade nordestina” (PIEDADE, 2013, pp. 11-12). Piedade apresenta exemplos Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) oe 59 iit TE pains will H recorrentes de finalizagdes melddicas nordestinas, escritas em Sol, com variagdes adequadas ao modo dérico e mixolidio (Fig. 14). FIGURA 14: FINALIZACOES NORDESTINAS EM SOL (PIEDADE, 2013, P.12). Piedade ainda aponta que as t6picas “nordestinas” so pecas-chave do repertério do Baio, migrando para uma grande parcela dos géneros musicais brasileiros (PIEDADE, 2013, p. 12). De acordo com Alvarenga, © Baido surgiu no norte e nordeste no século XIX como género instrumental destinado a danga e ligado ao Lundu’. Apenas no inicio do século XX 0 Baido se desenvolveu como acompanhamento de versos dos poetas populares (ALVARENGA, 1982, pp. 177-179 apud RAYMUNDO, 1999, p. 2). Luiz Gonzaga foi o responsavel pela difustio do género nacionalmente, sendo dele a primeira gravagio de um Baido como danga tocada e cantada, O Baidio de 1930 (Fig. 15) (RAYMUNDO, 1999, p. 2). SSS SSS FIGURA 15: O BAIAO DE LUIZ GONZAGA E HUMBERTO TEIXEIRA (TRANSCRIGAO DO AUTOR) Muitos compositores nacionalistas utilizaram como fonte de inspiragdo esse nordeste musical, mistico, misterioso e profundo (PIEDADE, 2013, p. 12). No segundo * A palavra “lundu” designa na masica brasileira coisas diferentes, que so em geral consideradas como interligadas. Ela foi primeiro o nome de uma danga popular, depois o de um género de cangio de salio e, Finalmente, o de um tipo de cangio folelérica (SANDRONI, 2001, p. 39). Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) ISBN 978-85-7205-1798 60 VL so movimento da Bachianas Brasileiras n° 2,a Aria (O Canto da Nossa Terra), observamos a ambientagdo nordestina no que diz. respeito a melodia. A partir do compasso 38 (Fig. 16),0 contorno melédico apresentado pelo saxofone tenor, posteriormente exposto pelos primeiros e segundos violinos ¢ violas no compasso 41, remete a t6pica “nordestina”. ss # ie 3 e| vel pe pe leat tes| ve| es lire | pe pel > == FIGURA 16: ARIA (O CANTO DA NOSSA TERRA). PARTE B. MELODIA SAXOFONE TENOR. TOPICA "NORDESTINA”, CC. 38-40, Além da caracteristica modal e de algumas similaridades com elementos das finalizagdes nordestinas, observamos © contorno melédico muito préximo & melodia de O Baido de Luiz Gonzaga. O arpejo ascendente do acorde de F4 maior com sétima menor, com 0 prolongamento da sétima (Mis, exibe o gesto musical andlogo entre as duas melodias (Fig. 17 e Fig. 18). g FIGURA 17: ARIA (O CANTO DA NOSSA TERRA), REDUCAO MELODICA. TOPICA NORDESTINA”, CC. 38-39. bee tt FIGURA I8: 0 “BAIA” DE LUIZ GONZAGA E HUMBERTO TEIXEIRA, CONTORNO MELODICO. TRANSPOSTO (TRANSCRICAO DO AUTOR). Mesmo que a cangio O Baido (1930) de Luiz Gonzaga seja contemporinea & Bachianas Brasileiras n° 2, utilizo apenas como exemplificagao da linguagem nordestina difundida no final do século XIX, onde possivelmente Villa-Lobos buscou inspiragio. Aidt SinpisioVi Lots (BCASP 2017 ISHN Srwss 758 198 61 wiLceORTS Tépica “Afro-brasileira” Essa t6pica é caracterizada pela combinagio das influéncias musicais europeias, amerindias ¢ africanas. Estes elementos caracteristicos so associados principalmente com a estrutura ritmica ocorrente nos estilos afro-brasileiros como 0 samba, maracatu, coco, carimbé, maxixe, maculelé, candomblé, dentre outros. Entre 1914 ¢ 1916, Villa-Lobos compos as Trés Dancas Africanas’ (Farrapos, Kankukus © Kankikis), que foram apresentadas no programa da Semana de Arte Moderna (TRAVASSOS, 2000, p. 66). Provavelmente esta foi a primeira obra onde Villa-Lobos apresentou elementos musicais afticanos. Na sessiio B da Aria (O Canto da Nossa Terra) da Bachianas Brasileiras n° 2 também ocorrem elementos da misica afro-brasileira, como aponta Palma e Chaves. Lembremos ainda que © segundo movimento das Bachianas n° 2, cujo subtitulo €“O Canto de Nossa Terra”, inelui ritmos de macumba e candomblé (PALMA e CHAVES JR. 1971, p.17). © movimento reflete um misticismo caracteristico dos ritmos affo-brasileiros que de inicio se apresenta de uma ‘maneira muito sutil para depois se mostrar em sua grande intensidade (PALMA, e CHAVES JR. 1971, p. 36). A origem etimolégica do termo candomblé € associada com “louvor”, “rezar”, “invocar” ou “casa de danga”, Atualmente 0 candomblé é compreendido como um termo genérico para definir algumas reli jes afro-brasileiras que partilham determinadas caracteristicas. ‘A maisica no candomblé exerce um papel fundamental, tendo importincia tio religiosos (CARDOSO, 2006, significativa quanto 0s elementos que compdem os rituai pd. Com 0 intuito de ilustrar ritmos utilizados no candomblé, apresento algumas figuragdes ritmicas similares & Aria (O Canto da Nossa Terra), presentes no ramunha (também chamado de avaninha ¢ avamunha). O ramunha serve como acompanhamento para as cantigas, sendo esse “toque” associado com a saida ¢ entrada dos figis no barracado. O ramunha apresenta a possibilidade de todos os instrumentos que compdem 0 quarteto instrumental Nagé executarem organizagdes sonoras diferentes, através dos instrumentos rum, rumpi, Ié e g (CARDOSO, 2006, p. 261). A figura 19 apresenta algumas figuragdes utilizadas no ramunha, muitas vezes sendo realizadas simultaneamente. "Também chamada de Dancas Caracteristicas Africanas, Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) ISaN ontop 98 62 EDS tS ae ere Cececy Ci psp ph: FIGURA 19: TRANSCRICAO DOS PADROES SONOROS DO “RUMPI”, “LE” E “GA” NO RAMUNHA (CARDOSO, 2006, P. 262) Observamos nestas figuragdes ritmicas apresentadas no ramunha uma similaridade com as figuragdes utilizadas por Villa-Lobos. Além das figuragdes ritmicas, notamos 0 ostinato, caracteristico do candomblé. A figura 20 apresenta um excerto da figuracZo ritmica presente na segdo B da Aria (O Canto da Nossa Terra). Podemos associar com 0 ramunha as figuragdes de colcheias no contratempo e as quatro semicolcheias seguidas de uma colcheia ¢ duas semicolcheias. Vale ressaltar que essas figuragdes do ramunha podem variar, sem mencionar a vasta abrangéncia ritmica que o candomblé apresenta, FIGURA 20: FIGURACAO RITMICA Da ARIA (O CANTO DA NOSSA TERRA), REDUCAO. TOPICA “AFRO-BRASILEIRA”, CC, 26-28. Nesta segio B da Aria (O Canto da Nossa Terra) ocorre uma sobreposi¢o ou até mesmo uma Jjungo de diversas t6picas, estando presente a t6pica “nordestina”, “indigena” e “alro-brasileira Consideragdes finais Nas andlises aqui apresentadas constatamos a sobreposicdo de diversas t6picas musicais presentes nos quatro movimentos da Bachianas Brasileiras n° 2. Essas linguagens sio dispostas através de intertextos com diversos elementos origi 1ados da mtisica popular Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) anenes e 63 simpésio, Y/ ViLtA-COB0S. Sean brasileira. Observamos varias linguagens herdadas do choro, das modinhas e serestas, da misica caipira, nordestina, indigena e afro-brasileira, No Preliidio (0 Canto do Capadé das t6picas-_musicais, io), por meio da teor observamos elementos caracteristicos da linguagem musical brasileira. Trés t6picas so ocorrentes neste movimento, sendo elas “brejeiro”, “época de ouro” e “caipira”. A melodia apresentada na segio A, que segundo diversos autores alude A figura do capadécio, & associada com o choro e sua malicia, repleto de sincopas, glissandos, Essa deslocamentos ritmicos ¢ cromatismos, sendo nomeada como t6pica “brej melodia que é apresentada pelo saxofone tenor, sendo dobrada e/ou intercalada pelos violoncelos ¢ trombone durante toda a seco, também traz as caracteristicas da t6pica “época de ouro”, remetendo ao lirismo das modinhas, valsas, polcas e serestas brasileiras, © caracterizada pelos rubatos e suspensdes da melodia. A segio B deste movimento (Andantino mosso) traz a singeleza da 16} “4 “caipira”’ caracterizada pela alusio aos ritmos da miisica sertaneja e pela simplicidade harménica e melddica. Na Aria (O Canto da Nossa Terra) ocorre uma variedade de t6picas, oferecendo diversas estilizagdes da musica popular brasileira. O contraponto apresentado pelos violoncelos & contrabaixo na s .¢0 A pode ser relacionado com a “baixaria do choro”, que remete & linguagem do violdo de sete cordas caracteristicos da tépica elementos esses que s “€poca de ouro”. Jé na segdo B, juntamente com a textura de ostinato, ocorre uma sobreposigo de t6picas. Temos nessa seco a t6pica “indigena” “nordestina” e “afro- brasileira”. A t6pica “indfgena” esta associada ao uso de intervalos de quarta e quinta justapostos, ostinatos e estruturas paralelas, que sio presentes nessa seco. A t6pica “nordes 1a” & apresentada pela melodia executada pelo saxofone tenor, aludindo a géneros da miisica nordestina como 0 baido, sendo caracterizada pelas escalas em modo mixolidio, aparecendo em figuragdes especificas. Ainda neste excerto a t6pica “afro- brasileira” traz ritmos das influéncias africanas, como nesse caso, do Candomble, O terceiro movimento, a Dansa (Lembranca do Sertdo), é provavelmente 0 movimento mais contrastante desta Bachianas Brasileiras. As t6picas musicais também siio presentes neste movimento, ocorrendo na segdo A. O ostinato em pizzicato e staccato dos segundos Violinos e violas, realizado por tergas paralelas com nota pedal, remete a idiomiética da Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) SNS OE is 64 arnico wiLceORTS Sean misica sertaneja, evocando a viola caipira, configurando em uma t6pica “caipira”. A melodia apresentada pelo trombone, também nesta seco, é abordada como uma t6pica “época de ouro”, caracterizada pela suspensiio melédica. A Toccata (O Trenzinho do Caipira) 6 marcada pela referéncia descritiva da locomotiva sendo colocada em movimento, alusiva a obra Pacific 23/ de Arthur Honegger. A t6pica “caipira” € presente em todo este movimento, sendo caracterizada pela melodia realizada Por graus conjuntos, sobreposta a textura em ostinato, notas pedais dos violoncelos & contrabaixos, ed estabilidade harméni Dentro dessa sobreposicio de linguagens presentes na Bachianas Brasileiras n° 2, Villa- Lobos apropria-se de elementos da mtisica popular brasileira, desenvolvendo seu proprio estilo, em busca de uma identidade musical erudita brasileira. Referéncias CANO, Raiben L. Més alld de la intertextualidad. Tépicos musicales, esquemas narratives, irr en la hibridacién musical de Ia era global, Nassarre: Revista aragonesa de musicologia, v.21, °1, pp. 59 76, La Rioja: 2005, Masica e intertextualitad. Cuadernos de teoria y critica musical 104, pp. 30-36, Habana: 2007. CAPLIN, William E. On the relation of musical topoi to formal function. Eighteenth-Century Music, vol. 2/1, pp. 113.124. United Kingdom: 2005. CARDOSO, Angelo N.N. A Linguagem dos Tambores, Dssertagio de mestrado. Salvador: UFBA, 2006, CORREA, Roberto. d arte de pontear viola. Brasilia / Curitiba: Ed. Autor, 2000. MONELLE, Raymond. The Musical Topie: Hunt, Miliary and Pastoral Bloomington: Indiana University Press, 2006 MOREIRA, Gabriel F, O elemento indigena na obra de Villa-Lobos: observagies musico-aaliticas € consideragGes histéricas, Dssertagdo de mestrado. Forianépolis: UDESC, 2010 MUSEU VILLA-LOBOS. Villa-Lobos: sua obra. Rio de Janeiro: MinC; IBRAM; Museu Villa-Lobos, 2009, NOBREGA, Adhemar. 4s Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos, 2° ed. Rio de Janeiro; Museu Villa-Lobos, 1976. PALMA. Bnos da C.e CHAVES JR., Bdgard de B. As Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos. 1 ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1971 PIEDADE, Acécio T. de C. A teoria das tépicas ¢ a musicalidade brasileira: reflexdes sobre a retoricidade. El vido pensante,v. 1,1°1, pp. 1-23. Buenos Aires: 2013, Expressio ¢ sentido na _misica brasileira: retérica ¢ anélise musical. Revista eletrénica de ‘musicologia, v.11, pp. 1-11. Curitiba: 2007, Musical topics, intertextuality and rhetoricity in Heitor Villa-Lobos Bachianas Brasileiras n® 2. Topical Encounters and Rhetories of Identity in Latin American Art Music. Oxford University, 2015. ‘Tépicas em Villa-Lobos: 0 excesso bruto e puro. Simpésio Internacional Villa-Lobos, v.11, pp. 127- 147. Sao Paulo, ECA/USP: 2009. Anais do II Simpésio Villa-Lobos (ECA/USP 2017) sia 65 iOS PIEDADE, Acicio T. de C. e MOREIRA, Gabriel F. Estrutura em Villa-Lobos: uma andlise do preliédio das Bachianas Brasileiras n° 4. Revista da Pesquisa, v.3, °1, pp. 1-24. Floriandpolis: 2007. PINTO, Jodo Paulo do A. A viola caipira de Tido Carreira. Dissertagio de mestrado, Campinas UNICAMP, 2008. RATNER, Leonard G. Classic Music: Expression, form, and style, New York: Schirmer, 1980, RAYMUNDO, Sonia M. R. A Influéncia do Baio na Mdsica Brasileira Erudita para Contrabaixo. XI/ Encontro Anual da ANPPOM, pp. 1-8. Salvador: 1999. SALES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: Processos Composicionais. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. TRAVASSOS, Elisabeth. Modernismo e misica brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. VILLA-LOBOS, Heitor. Bachianas Brasileiras n° 2. Milano: G. Ricordi, 1949. wins Voltar para sumirio, p. IX

You might also like