You are on page 1of 23
Revista Eclesidstica Brasileita, vol, 23, fase, 1, Margo de 1963 13 A Defensibilidade da Suficiéncia Material da S. Escritura, Pelo Pe. Dr. Frei Boaventura Klop ’ penburg, O.F.M,, Professor de Teologia Fundamental, Petropolis, R. J. No dia 14 de novembro de 1962, no inicio da décima nona Congregacgao Geral do Concilio Ecuménico Vaticano Il, o Car- deal Ottaviani, na qualidade de Presidente da Comissio Teolé- gica, apresentou aos 2.215 Padres Conciliares um projeto de Constituigdo Dogmatica com o seguinte titulo: De Fontibus Re- velationis. O titulo do primeiro capitulo era ainda mais preciso: “De duplici fonte revelations”. Estes dados so de dominio pu- blico. O texto prdpriamente dito do esquema, no qual se desen- volve a doutrina das “duas fontes da revelagao”, ainda nao o vi publicado; deixemo-lo, pois, atras da cortina do sigilo. Basta o titulo para saber, exatamente, de que se trata: que a Revelacaio Divina, principalmente a do Névo Testamento, ndo nos foi trans- mitida integralmente pelos livros inspirados da S. Escritura, mas parcialmente também pela tradicao que €, ao menos em alguns casos, a tinica via ou fonte de conhecimento de verdades reve- ladas. Ha, pois, segundo esta doutrina, duas fontes da Revela- ¢40, uma independente da outra: a Sagrada Escritura e a Tradigao. Qualquer manual de Teologia Fundamental podera fornecer os necessarios esclarecimentos. Tanquerey, por exemplo, que parece ser o mais difundido. Na sua Synopsis Theologiae Dogma- ticae Fundamentalis (tomamos a 25* edicdo), p. 718, define a Tradigdo em seu sentido estrito nos seguintes térmos: “Doctrina revelata, circa fidem vel mores, Scripturis Sacris non relata, a Deo Ecclesiae commissa, et per legitimos pastores infallibiliter transmissa”. O. inciso que agora interessa é éste: Scripturis Sa- cris non relata, que & assim explicitado pelo Autor: “Et sic distin- guitur a verbo Dei scripto quod in solis libris divinitus inspiratis invenitur”. O “verbum Dei” (a revelag&o publica), Pportanto, é separado em dois grupos bem distintos, a saber: 0 verbum Dei traditum (cuja fonte é a Tradicao) e o verbum Dei scriptum (cuja fonte é a Escritura). Vemos desta maneira claramente a existéncia e a funcdo de duas fontes bem distintas da revelacdo. Na pagina seguinte, ainda mais incisivamente, 0 mesmo manual fala da “traditio mere oralis” (diferente da inhaesiva e decla- rativa) que é descrita com estas palavras: “quae comprehendit id quod nullo modo in Scriptura significatur’. Esclarecidos éstes conceitos, 0 manual lembra a doutrina dos adversdrios (arianos, ia Material da S. Escritura 4 Kloppenburg, Sufi pelagianos, protestantes, anglicanos, liberais e modernistas), a qual opde a seguinte proposigéo: “Catholici credunt christianam revelationem contineri partim in Traditione, quae a Scriptura Sa- cra distinguitur...” E’ entéo anunciada a tese: “Exsistit Tradi- tio divina, fons Revelationis a Scriptura distinctus”, Tal doutrina, sempre segundo o mesmo manual, é “de fide”; e vém entao as costumeiras citagdes do Concilio de Trento (Dz 783), do Va- ticano I (Dz 1787), da prépria S. Escritura, dos SS. Padres e dos Tedlogos. E’ esta a doutrina comum, que todos nés aprendemos, des- de o Catecismo, nio sem visar, mais ou menos diretamente, a posicdo protestante da “sola Scriptura”. Esta mesma doutrina € claramente anunciada também no titulo do projeto de Consti- tuigao Dogmatica que o Cardeal Ottaviani propés aos Padres Conciliares do Vaticano Il: De Fontibus Revelationis, “de duplici fonte revelationis”. Sabe-se também que, no dia 20 de novem- bro de 1962, sdbre 2.209 Padres Conciliares, 1.368, a abso- luta maioria, rejeitaram simplesmente o “esquema Ottaviani”, nao querendo nem ao menos discuti-lo; e que, no dia seguinte, o Papa Joao XXIII nomeou uma nova comissio (chamada “mista”, porque composta de membros da Comissao Teolégica do Car- deal Ottaviani e membros do Secretariado para a Unido, do Cardeal Bea) para refazer totalmente o esquema que, agora, se chamara: De Divina Revelatione, com os seguintes capitulos: 1) de revelatione; 2) de inspiratione, inerrantia, ete; 3) de vetere testamento; 4) de novo testamento; 5) de scriptura in ecclesia.* Tanto do titulo geral como dos subtitulos desapa- receu completamente a alusdo as “fontes”, ou as “duas fontes da revelacao”. Pois um dos motivos por que o “esquema Otta- viani” fOra téo rudemente atacado, impugnado e rejeitado nas cinco histéricas Congregagées Gerais de 14 a 20 de novembro era precisamente éste: porque propunha definir a existéncia de duas fontes distintas da revelacao; ou melhor, porque queria definir a existéncia da Traditio Constitutiva. Que acontecera? Nao se tratava entéo de uma doutrina cer- ta, “de fide”, como doutrinava Tanquerey? Nao era esta a dou- trina j4 firmada no Concilio de Trento contra o principio da “sola Scriptura” dos pseudo-reformadores do século XVI? Por que nao podia, tranqiiilamente, repetir o Vaticano Il a doutrina que o Vaticano I (Dz 1787) aceitara do Tridentino? Que acontecera? Simplesmente o seguinte: Um dos mais reendentes debates entre dois venerandos tedlogos catélicos, surp) Ch La Civilta Cattolica, 15 de dez, de 1962, p. 597, nota 9. Revista Eclesidstica Brasileira, vol. 23, fasc. 1, Marco de 1963 15 Josef Rupert Geiselmann, Professor de Teologia na Uni- versidade de Tubinga, e Heinrich Lennerz, S.J., Professor de Teologia na Universidade Gregoriana de Roma, agora fale- cido. Muitos outros entraram no debate, como Yves Congar, Johannes Beumer, Karl Rahner, John Murphy, Paul de Vooght, George Tavard, Daniel Iturrioz e outros; mas Geiselmann e Lennerz sao os dois pélos extremos desta interessante discussao. Essencialmente 0 debate gira em térno do sentido do texto do Concilio de Trento que definiu que a verdade revelada esté nos livros escritos e nas tradigdes orais, contineri in libris scriptis et sine scripto traditionibus (Dz 783). JA em 1949 Edmond Ortigues, num artigo excelente e fundamental para toda a discussdo*, chamara a atencdo para*a notavel diferenca entre a formulacgéo primitiva do esquema apresentado no dia 22 de marco de 1546 4 Congregacgao Geral do Concilio de Trento e © texto definitivo aprovado no dia 8 de abril de 1546. No pri- meiro esquema se lia: “Hane veritatem partim contineri in libris scriptis, partim sine scripto traditionibus...”; mas no texto de- finitivo o “partim... partim” nao aparece mais e é substituido por um simples “et”: “Hane veritatem contineri in libris scriptis et sine scripto traditionibus”. Por que esta mudanga? Que sentido e importancia teria? Eis o pivé da discussao Geiselmann-Lennerz. O debate nao tem apenas interésse histérico, tem sobretudo um valor doutrindrio, teolégico e ecuménico de imenso alcance, como se viu ainda agora na Primeira Sessao do Vaticano II. Tentarei, por isso, expor seus elementos mais importantes e decisivos, para que 0 leitor mesmo possa decidir-se. I. A Definico no Concilio de Trento. Infelizmente as Atas do Concilio de Trento, com relagao ao ponto que aqui nos interessa, nao sao suficientes para resolver com clareza o problema em discussa0. Féssem mais explicitas, nem haveria controvérsia. Daremos primeiro os fatos, depois as interpretagées. 1) Os Fatos. No més de fevereiro de 1546 0 Concilio de Trento iniciou a discussio do decreto sObre a Escritura e a Tradigdo, Havia dois tipos de debates: um, na Congregagéo Geral, com todos os * Edmond Ortigues, Ecritures et Traditions apostoliques au Con- cile de Trente, em: Recherches de Science Religieuse, tomo XXXVI (1949), pp, 271-299. 16 Kloppenburg, Suficiéncia Material da S. Escritura Padres (Bispos e Superiores religiosos) presentes; outro, em trés grupos, chamados classes, cada um déles presidido por um dos trés Cardeais Legados (Joao Maria del Monte, Marcelo Cer- vini e Reginaldo Pole). Restringindo agora nossa atengaéo exclu- sivamente a histéria do texto acima mencionado, podemos assi- nalar, com base nas Atas, Didrios e Cartas publicados pela So- ciedade Goerresiana (Freiburg, 1901 ss), os seguintes fatos: 11-2-1546: E’ distribuida nas varias classes uma comunicagéo anun- ciando que o Concilio iria comegar a discussdéo do decreto sobre a Sa- grada Escritura: “Quod in futura sessione suscipiantur libri sacrae scripturae et qua via et modo sint recipiendi: an praevia aliqua con- quisitione vel examinatione facienda per theologos deligendos a Rmis. Dmis. legatis, ut responderi «possit rationibus adversariorum. Item pro- ponendum, quod ultra scripturas novi testamenti habemus traditiones apostolorum, de quibus est facienda aliqua mentio in concilio...” (V, 4, linhas 4 e ss). Aqui j4 damos com a preocupacao fundamental: “Ulira scripturas novi testamenti habemus ‘traditiones apostolorum”. 12-2-1546: Durante a Congregacdéo Geral (a 12°). 0 Cardeal Presi- dente, del Monte, apresenta a proposta de definir a doutrina da Igreja acérca da Tradicado: “Noverunt Paternitates Vestrae, qualiter omnis fides nostra de revelatione divina est, et hance nobis traditam ab ecclesia partim ex scripturis, quae sunt in veteri et novo testamento, partim ex simplici traditione per manus” (V, 7; cf. I, 30 e 435). A -expressio “partim... partim” ja esta presente. 18-2-1546: Estas mesmas idéias sao discutidas separadamente nas classes. O grupo reunido com o Cardeal Cervini deixou consignado nas Atas: “Laudavitque, post sacros libros statim recipi traditiones, cum istae ab illis non differant nisi tantum, quod illi scripti sunt, haec non, sed ab eodem spiritu et illos et istas descendisse” (V, 11; cf. 1, 484). 20-2-1546: O esquema para o decreto conciliar é provisdriamente discutido por uma comisséo de tedlogos (que em Trento eram chama- dos “tedlogos menores”, pata distingui-los dos “tedlogos maiores”, que eram os préprios Padres Conciliares). As Atas referem o seguinte: “Die sabbati 20. eiusdem mensis februarii 1546 hora 20. fuit congregatio theolo- gorum minorum... de traditionibus apostolorum, an simul cum ipsis libris sacris sint recipiendae, an separatim” (V, 11). 23-2-1546: Retinem-se as classes para tomar conhecimento da opi- niéo dos tedlogos menores, que julgaram oportuno tratar simultanea- mente, no mesmo decreto, a Escritura e as tradicdes apostélicas. Anun- cia-se também que sera constituida uma comissio de seis Bispos en- carregada de elaborar 0 esquema provisdrio. 26-2-1546: E’ constituida a comissio dos Bispos para elaborar o projeto sobre a S. Escritura e Tradico, Durante a Congregacéo Geral déste dia deu-se a intervengio de Nacchianti, O.P., Bispo de Chioggia (clodensis), totalmente contréria A inclusio da Tradi¢fo no decreto: “D. Clodensis omittendam omnino esse receptionem apostoli- carum traditionum uti minime necessariam inquiens: Nemo enim ignorat, contineri in sacris libris omnia ea, quae ad salutem pertinent” (V, 18). epee es: © texto do esquema provisério é apresentado por Cervini ntbae Peas. Geral Grifamos, aqui, as palavras que no texto defi- fina synodny. modificadas: “Sacrosancta occumenica et generalis Triden- us... perspiciensque, hance veritatem partim contineri in libris Revista Eclesiastica Brasileira, vol, 23, fase. 1, Marco de 196317 scriptis, partim sine scriptis traditioni 8 ‘ ab apesta tspine eas elem, NE YL sus. Chit ore Per manus traditae ad nos usque pervenerunt... omney tie ante, gues traditiones ipsas tamquam vel oretenus a Christo vel a Sogn, eee dictatas et continua successione in ecclesia catholica conse e et Sancte par pietatis debetur affectus, summa cum reverentia pro sane, tious cis suscipit et veneratur suscipique ab omni falitidel bus aie roe pique ab omnibus Christifidelibus statuit et ee 7‘ Si ae Te ipsos et traditiones praedictas. viola erit: anathema sit” (V, 31-32). i % 23-3-1546: Durante a discussio do texto, is vini (Sanctae Crucis), o Padre Geral dos Servitas, Bon veel tae nucgy Bonutius) ataca a expressao partim-partim. Eis como Masarelli, no seu Diario, refere a discuss: “Post quem [Seripandum] D. Angelus Bo- nutius generalis Servorum dixit: Quae in decreto mihi minus recte posita sunt, haec sunt: .., Alterum quod asserit: veritatem evangelicam partim contineri in libris scriptis, partim sine scripto traditionibus. fudico omnem veritatem evangelicam scriptam esse, non ergo partim” (1, 525). 29-3-1546: A Congregacio Geral discute o texto. Nota-se, porém, que entre as dificuldades resumidas nos “capita dubitationum” nao ha nenhuma referéncia ao partim-partim e a objecao de Bonucci. 1-4-1546: Durante a Congregacio Geral déste dia os Padres Con- ciliares dao suas respostas ao elenco das 14 diividas do dia 29-3. O Padre Geral dos Servitas, Bonucci, aproveita a ocasiao da sétima diivida (que se referia A expresso “par pietas”) para acrescentar: “Non placet veritatem evangelicam partim in scriptis, partim in traditionibus contineri” (V, 47). 5-4-1546: Durante a Congregacdo Geral o Secretdrio do Concilio, Masarelli, 1é 0 texto corrigido do esquema; mas as Atas nao reprodu- zem éste texto, de maneira que no sabemos se o partim-partim ainda estava ou nao. E’ certo que ainda houve necessidade de novas corre- goes, pois o Presidente Cardeal del Monte propds: “Nos et Cardinales imponemus ultimam manum decreto. Synodus universa respondit Placet” (V, 72, linhas 10-11). 8-4-1546: E’ o solene dia da “Sessio quarta oecumenici concilii Tridentini”. O Arcebispo de Sassari (turritanus) leu o texto, agora de- finitivo, ao qual os Padres iam dando o “placet”; sémente Nacchianti, em vez de “placet”, disse: “Obediam” (V, 92). O texto definitive, agora aprovado pelo Concilio (no qual damos em grifo as palavras _modifi- cadas) é o presente: “Sacrosancta oecumenica et generalis Tridentina synodus... perspiciensque, hanc veritatem et disciplinam contineri in libris scriptis ef sine scripto traditionibus, quae ab ipsius Christi ore ab apostolis acceptae, auf ab ipsis apostolis Spiritu Sancto cictante quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt..., nec non traditiones ipsas, tum ad fidem, tum ad mores pertinentes, tamquam vel magene a Christo, vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in ec! fe sia catholica conservatas, pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ¢ veneratur... Si quis autem libros ipsos,.. pro sacris et canonicis son susceperit, et traditiones praedictas... contempserif: anathema sit” (V, 91). Caiu, portanto, a formula partim-partim. Estes sao os fatos histéricos. Agora, sua interpretagao. 18 Kloppenburg, Suficiéncia Material da S. Escritura 2) A Interpretacdo. 1. J. R. Geiselmann, retomando as Ruse Oeil oe tigues, abriu o atual debate na conferéncia pronul Agee Serie contro teolégico entre catélicos & protestantes em Dice ie estudo mais acurado sobre 0 sentido exato da definigao trl" dentina.? Sua grande pergunta € esta: o que significa 0 et no texto definitivo? A investigagao das Atas do Concilio reve- la, em todo o caso, que 0 “et? tem sua historia e dela podemos inferir ao menos como o “et” nado deve ser interpretado. Pois parece certo que com o “ep” 0 Concilio nado quis. definir uma relagio quase mecanica entre Escritura e Tradigéo, como se, mecAnicamente, cada uma quisesse dar apenas uma parte da Revelacaio. Tal, porém, era, de fato, o pensamento do Cardeal del Monte, no discurso de 12-2-1546, quando apresentou a Con- gregagao Geral o problema que 0 Concilio deveria enfrentar. Como vimos, o Cardeal usou diretamente a férmula partim- partim. Esta mesma concep¢ao mecanica do partim-partim é de- pois reencontrada no projeto apresentado ao Concilio no dia 22-2-1546. Como foi que, em Trento, se chegou a éste modo de con- siderar as relagdes entre Escritura e Tradicgdo? Geiselmann res- ponde que se tratava, de fato, apenas de uma bem determinada e bastante limitada orientagéo da teologia controversista (contra os protestantes que entdo surgiam) pré-tridentina. Veremos adian- te, em pardgrafo especial, que, antes do Concilio de Trento, ce ae ee ee oe nime ser a Sagrada Escritura fo feeircaie: pans me dades de fé; i HGS. MIS 2 SEUSS GELS Mid eo é; e que, conseqiientemente, nao teriam admitido o prin- cipio do partim-partim. Parece que esta ultima formula surgi precisamente na teologi. i + ‘ rgiu gia controversista pré-tridentina. Ela é cer- tamente usada por John Fisher, Bispo de Rochest Assertionis Lutheranae Confutatio (de 1 erred concer do pseudo-Dionisio Areopagi rosa eects lal passazeI A eopagita, segund 6 Bre eraranulaoucniaeanoetin seeieiy alialiosepostolos nos Sena coisas “partim scripti i Teil institutionibus suis”.* Joa ptis, partim non scriptis F io Eck, no De Sacrifici is io Missae (de 70 titulo da conferénci i daa vor Wferéncia de Geiselmann: “ issverstindnis i das Verhaltnis von Schrift und. Tradition trdbee eee ae He a qolischen Theologie”. O texto fol primeiramente publicado me Te. Teta aaa i, PP, LBIIMD; depois em “outras pubearocs. A i » 1958, pp. 197-214, pu 4 ; «0 texto original rego do seddo-Dion 3 Paneer eae cio gee lot Fisher” uso Pieeavels Comalduteniy, motesio|Traversari (também coniteeldo, como Revista Eclesidstica Brasileira, vol, 23, fase. 1, Margo de 1963 19 1526), com evidente apoio no mesmo texto, ensina: “Apostoli partim scriptis, parti non scriptis institutionibus mysteria nobis tradiderunt”. Um terceiro Jofio, chamado Driedo, no De Ecele. siasticis Scripturis et Dogmatibus (de 1533) escreve: “Quarta pars huius capitis, in qua tractantur veteres ecclesiae mores, ritus et consuetudines, acceptae partim ex scriptura, partim ex apostolorum et antiquissimorum patrum traditione”.’ Este tltimo, alias, Driedo, teve provadamente grande influéncia na formu- lagao do texto do tridentino. * __ Esta perspectiva do partim-partim dissolve, separa e clas- sifica como valores auténomos ¢ justapostos a totalidade tnica da Escritura, da TradicZio e da Igreja. Mas, observa Geiselmann, nem todos os Padres do Concilio concordaram com éste modo de ver. E lembra a oposigao de Nacchianti no dia 26-2-1546 e de Bonucci nos dias 23-3 e 1-4-1546, que, a insuficiéncia da Escritura, tal como a entendiam a controvérsia pré-tridentina ¢ a férmula partim-partim, opunham a suficiéncia da Escritura, ao menos com relagdéo as verdades de fé necessarias para a salvagao. A afirmaciéo de Bonucci (“omnem veritatem evange- licam scriptam esse, ergo non partim”) poderia até parecer uma posi¢ao favoravel ao principio protestante da “sola Scriptura”, contra o qual o Concilio de Trento queria justamente fazer o seu pronunciamento doutrindrio. Nao consta, porém, das Atas nem dos Didrios que alguém tivesse argijido assim contra Bo- nucci. Contra Nacchianti, sim, que parecia contestar simples- mente a Tradicdo apostdlica como tal (“omittendam omnino esse receptionem apostolicarum traditionum uti minime necessa- riam”), houve forte reagdo. Mas nao contra Bonucci que, alias, tinha a fama de ser bom tedlogo. Veremos ainda que Bonucci podia, de fato, basear sua posigio sobre uma boa série de Pa- dres e tedlogos medievais que também afirmavam a_suficién- cia da Escritura, ao menos substancial, para conhecer as verda- des de fé reveladas. Assim, para adiantarmos apenas um exem- plo, 0 Commonitorium de Vicente de Lerino (praticamente des- * Note-se que, no texto, Driedo sé fala das antigas “mores, ritus et consuetudines”, que estariam partim na Escritura e partim na Tradi- G40, Porque Driedo é, na realidade, um dos detensores da suficitncia fa Escritura. Sobre Driedo escreveu-se bastante, iiltimamente, O estudo mais completo é o de John 1. Murphy: The motion of, Pradition in John Driedo, Milwaukee 1959, com 321” paginas. Com relacao sufi” Gencia da S, Escritura escreve Driedo: “Concedamus quod doctrina Christi et apostolorum in libris canonicis expressa sulficienter nos doceat, continens omnia dogmata ad salutem humani generis necessaria”. “CE R. Draguet, Le maitre louvaniste Driedo inspirateur du décret de Traité sur la Vulgate, em: Miscellanea historica in honorem Alberti de Meyer, Louvaina 1946, II, 836-854. 2* 20 Kloppenburg, Suficiéncia Material da S. Escritura oca da alta escoldstica, impresso pela tanto na melhor fase dos debates pré- turarum canon sibique ad conhecido durante a ép primeira vez em 1528, por! , tridentinos) fala do Reiicenad scrip ja satis superque sufficiens’. F — pace Pred me Galeelinani que, “impressionado pela ee de Nacchianti e Bonucci ao partim-partim do _projeto pri iu , o Concilio deixou cair esta definigéo da relagao entre Escritura e tradigdes nao-escritas, e substituiu 0 partim-partim por um el: assim a redagao final define esta relagao de tal modo que o Evangelho de Jesus Cristo se encontra na Escritura e nas tradigdes orais’ Per ee ue significa entéo o “et”? E’ ee Greeny — que o “et” nao tem nem pode ter 0 sen- tido do partim-partim. Pois pela expressa substituigao do partim- partim por “et”, 0 Concilio manifestou claramente nao ser sua intengdo definir que parte do Evangelho deve ser procurada na Escritura e outra parte na Tradigao. Ter-se-ia, entao, 0 Con- cilio decidido em favor da suficiéncia da Escritura? Geiselmann confessa que por muito tempo julgara que a resposta devia ser afirmativa. Considerando, porém, que no Concilio havia Padres favoraveis 4s duas posicdes, pensa que o “et” foi simplesmente uma solugdo de compromisso e, portanto, nao tem nenhuma signi- ficagdo exata, deixando assim o Concilio aos tedlogos plena li- berdade. Eis as palavras textuais do tedlogo de Tubinga: Was hat also das Konzil mit dem “et” iiber das Verhaltnis von Schrift und Tradition entschieden? Die Antwort kann nur lauten: nichts, gar nichts. Mit dem “et” ist das Konzil einer Entscheidung ausgewichen, weil diese Frage noch nicht entscheidungsreif war. Das ist das Ergebnis unserer Untersuchung... Und so hat das Konzil angesichts dieser Tatsache, wie spiter noch dfters, die Frage in der Schwebe gelassen und ihre weitere Klarung der Theologie iiberlassen” (loc. cit. p. 139). cere a8 Aas do Conc fram pubicadas apenas Pep eTariatiioWw el” 808 pos-tridentinos de fato nao conheciam Peas cs ie ey Conseguinte, sua exata significacao. fe6logos tiveram mpreender o sentido da definigéo de Trento, os rie ie ae recorrer 4 literatura teolégica pré-triden- como vimos Ze dae aoversia com os protestantes, na qual, Também o Gatacia fA © partim-partim era bastante difundida. mio, parecia favorsees ean? (ae 1566), na questo 12 do proé- ratio quae fidelibus tradenda sit we “Omnis autem doctrinae scripturam traditionesque Srnec Dei continetur quod in PMU areblbologia ptsctridenting, ale ace nto ee trina do Concilio de Trent a ina, até aos nossos dias, a dou- do Partim-partim e nao nto de fato fosse entendida no sentido no sentido indeterminado do “et”. Foi, logo evidente — Revista Eclesidstica Brasileira, vol, 23, fase. 1, Marco de 1963 21 diz Geiselmann, um auténtico que se perpetuou, infelizmente, Santos e Doutores da Igreja, mino, com grande influéncia mal-entendido (Missverstandnis) » até nos catecismos. Ja os dois Pedro Canisio e Roberto Belar- a nos tedlogos posteriores, usaram despreocupadamente e repetidas vézes a formula partim-partim, como se fdsse esta a doutrina oficial da Igreja no Concilio de Trento. A constante controvérsia com os protestantes, que exa- cerbaram cada vez mais o principio da “sola Scriptura”, favo- receu naturalmente a posicéo considerada “catélica”. 2. H. Lennerz, S.J., Professor na Gregoriana de Roma, reagiu vigorosamente contra a interpretagéo de Geiselmann. * Apresentou, se bem compreendemos sua argumentacao, duas ra- z0es_principais: a) O Concilio de Trento quis condenar precisamente o prin- cipio protestante da “sola Scriptura”; e nZo se vé como, na inter- pretacdo de Geiselmann, os protestantes poderiam considerar-se atingidos. Pelo contrario, deviam estar radiantes! JA pelo ti- tulo que Lennerz deu ao primeiro de seus trés artigos contra Geiselmann (“Scriptura sola?”) percebe-se que o Professor da Gregoriana parece identificar a posicio do Professor de Tubin- ga com o principio da “sola Scriptura” dos protestantes. Isso é mais evidente ainda no tiltimo artigo, de 1961, no qual argu- menta como se, segundo Geiselmann, 0 Concilio tivesse deixado a livre discussaéo dos tedlogos o principio fundamental de todo 0 protestantismo do século XVI. b) Se o Concilio quisesse mesmo mudar sua posi¢ao ini- cial, tal como estava consignada no projeto de 22-3-1546 (com © partim-partim), nado o teria feito sem prévia discussao. Ora, argumenta Lennerz, nao consta das Atas do Concilio tenha ha- vido debate sébre esta questao. A oposicéo de Nacchianti, no dia 26-2, nado era contra o partim-partim, mas contra a Tra- digdo como tal, com nao pequeno escandalo dos outros Padres Conciliares. Alias, 0 préprio Nacchianti acabou concedendo a exis- téncia de tradigdes apostélicas e depois nao interveio mais nos debates da presente questao. O tinico que realmente se opds ao partim-partim foi Bonucci. Do atento estudo das Atas, toda- via, pode-se concluir, diz Lennerz, que Bonucci se colocara numa posicéo absolutamente singular e isolada, sem que os outros 7H, Lennerz, S.J., Scriptura sola?, em: Gregorianum 1959, pp. 38-53 (artigo escrito em alemo); Sine scripto traditiones, em: Gre- ‘orianum 1959, pp. 624-635 (em latim); Scriptura et Traditio in decreto 4° Sessionis Concili Tridentini, em: Gregorianum 1961, pp. 517-522. 0 primeiro déstes trés artigos de Lennerz € 0 mais importante. 22 Kloppenburg, Suficiéncia Material da S. Escritura a minima importancia. Se tivesse havido de- 5 is ia sido naturalissimo que a mo supde Geiselmann, teria aiabeiey ee Lee ti -partim entrasse no elenco dos “capita dubita. eA are fat discutido nos dias 29-3 e 1-4. Nada dis- aa NE rats discussdes dos dias 5, 6 e 7 de abril. Ab TERNS ATSCA se encontra nas Atas ou nos Didrios. E outras fontes nao ha. Se, nao obstante, no texto seas ae 8 de abril, o partim-partim aparece surpreendentemente substitui- do pelo simples “et”, deve-se concluir que tal substituigao nao queria significar modificagéo doutrindria, mas apenas oan © partim-partim Ihes pareceu supérfluo, pensa Lennerz (“weil es villig iiberfliissig war”). O “et”, portanto, segundo Lennerz, deve ser interpretado no sentido inicial do partim-partim: Wenn die Konzilsvater zuerst das Dekret mit partim-partim ange- nommen haben ohne eine Bemerkung dazu zu machen (ausgenommen natiirlich der Servitengeneral), und wenn sie nachher das Dekret ohne partim-partim wiederum in gleicher Weise angenommen haben, ohne eine Bemerkung dazu zu machen, so diirfte das doch ein Zeichen dafiir sein, dass es nach der Ansicht der Vater fiir den Sinn des Dekretes und seine Lehre ohne jede Bedeutung ist, ob das partim-partim im Dekret gesagt wird oder nicht. Der Sinn des Dekretes wird dadurch nicht beriihrt. ... Wenn man nun fragt, warum ist denn das teils-teils im endgiiltigen Dekret nicht beibehalten worden, so diirfte nach dem bisher Gesagten die nachstliegende Antwort doch wohl sein, weil es véllig liberfliissig war” (Gregorianum 1959, 50). Assim, segundo Lennerz, seria esta a doutrina do Concilio de Trento: “Nao t0da a doutrina de Cristo est4 escrita, isto 6, contida na Sagrada Escritura, mas muitas coisas (“manches”) nao foram escritas, e estas se encontram nas tradigdes apost6- licas”. E’, exatamente, a doutrina ou teoria das “duas fontes da revelacdo” que nestes dias reapareceu no esquema De Fontibus Revelationis © que nao foi aceito pela maioria dos Padres Conciliares, Ihe tivessem dado 3. Geiselmann replicou, num vol 2 Agi : , lume de 287 paginas, Puneada em 1962, um més antes da solene abertura oc oe Vaticano Ie que foi citado em plena Aula Conciliar. * S ponderagées de Lennerz Tesponde, em substanci : a) Sola Scriptura: Este Principio protestante nao pode ser Peete identificado com a afirmagao da Suficiéncia_ma- aS. Escritura. Bem compreendida, a “sola Scriptura” 4; Josef Rupert Gei ditton 2 eiselmann, Di ili i i Seinen ee peteren Kontroversen Uber dag yea der ‘Heiligen Disputatae”’ Neat eschriebenen Traditionen. Na cole do “Guacstiones 287 pn . Herder, Freiburg 1961. 1 vol br apy ase iones . br. m, Revista Eclesidstica Brasileira, vol. 23, fasc. 1 Marco de 1963 23 dos pseudo-reformadores inclui tres da suficiéncia da Escritura, todas as verdades revelada é para S_elementos: 1) a afirmagao 3) epee bape mesma intérprete suficiente tucripiieas as iBaiis in terpres); 3) 0 principio da Escritura como norma de fé e juiz nas controvérsias (scriptura norma normans et iudex conned siarum). Somente a jungao déstes trés elementos (in sensu com- posito) € que perfaz o principio protestante da “sola Scriptura”. Por Sonseguinte, nado basta defender a suficiéncia de conteiido da S. Escritura, para ser logo acusado de cair no principio protestante condenado pelo Concilio de Trento.’ Geiselmann, como todos os tedlogos catdlicos (e, alids, hoje também nao pou- cos protestantes), admite absolutamente a Tradig&o (e sobre- tudo também o Magisterium Ecclesiae) como norma proxima, ou norma normans, intérprete e juiz da fé cristé.** Se algum perigo houver, hoje, nao estara tanto na negacao da Tradicao (que, 6 evidente, contém também a totalidade das verdades reve- ladas), mas antes numa exagerada afirmacao da influéncia da Tradigao (a “Parddosis” dos Apdstolos) na formacao dos tex- tos escrituristicos (a assim chamada “formgeschichtliche Metho- de”, o método da historia das formas primitivas do Kérygma apostélico). Ao “partim in sacris libris et partim in sine scripto traditionibus” da teologia controversista pés-tridentina, ou ao “partim in sacra scriptura, totaliter in viva traditione’ de Les- sing, ou ao “sive in scriptura relatum sive viva dumtaxat voce traditum” de Kliipfel, op6e Geiselmann a formulagao de Méhler- Kuhn: “totum in sacra scriptura et iterum totum in viva traditione”. b) Modificagdo real ou apenas estilistica? Lennerz, baseado sobretudo na insuficiéncia das Atas, julga que a modificagao do partim-partim para o “et” foi puramente estilistica. Geiselmann * Os proprios textos que Lennerz cita na nota 1 da p. 39 (Grego- rianum 1959) e que sao ainda do séc. XVI (pois nos séculos seguintes a controvérsia protestante levou aos extremos os principios iniciais), ja mostram claramente que o principio protestante nao se contentava em absoluto com a mera afirmacéo da_suficiéncia da Escritura. Na Formula Concordiae de 15717 se afirma: “Credimus, confitemur et doce- mus, tnicam regulam et normam, secundum quam omnia dogmata, omnes- que Doctores aestimari et iudicari oporteat, nullam omnino aliam esse, quam Prophetica et Apostolica scripta cum Veteris, tum Novi Testa- menti”. E outra vez: “Sola Sacra Scriptura iudex, norma et regula agnoscitur, ad quam, ceu ad Lydium lapidem [lapis lydius, quer dizei pedra de toque], omnia dogmata exigenda sunt et iudicanda, an pia, an impia, an vera, an vero falsa sint”; ete. 3 3 *° Veja-se a recente monografia de Geiselmann: Die lebendige Uberlieferung als Norm des christlichen Glaubens, dargestellt im Geiste der Traditionslehre Joh. Ev. Kuhns (Freiburg i. Br. 1959). 24 Kloppenburg, Suficiéncia Material da S$. Escritura algumas corregoes meramente esti- do Concilio de per si debate propriamente dito Pois apenas sabemos que concede que houve, de fato, listicas; concede também que as Atas nao permitem afirmar tenha havido um i 6 im-partim, e teolégico em torno do partim parti 1 y e Nacchianti e Bonucci fizeram objegdes, mas ignoramos se efe tivamente influiram ou ndo na correcdo do texto, Mas ° siléncio das Atas (que é o argumento decisivo de Lennerz) ndo exclu tenha havido também modificagdes de alcance doutrinario no texto. Pois Geiselmann lembra que no mesmo decreto houve outras modificagdes reais (e no apenas estilisticas) acérca das quais, todavia, as Atas também silenciam. Exemplos: no esque- ma inicial o Evangelium Christi é tido como regula que serve 4 Igreja “in constituendis dogmatibus”; mas no texto definitivo a palavra “regula” € substituida por fons e o “in constituendis dogmatibus” por “in confirmandis dogmatibus”. Outro exemplo: no primeiro esquema lé-se: “ut evangelium conservetur’”; no tex- to definitivo esta: “ut evangelium in ecclesia conservetur”. Sao modificagGes reais e de grande alcance: a conservagao do Evan- gelho € confiada 4 Igreja e nado a Sagrada Escritura e & Tra- digao; a Igreja deve anunciar 0 Evangelho nao como norma, mas como fonte; Escritura e Tradigao servirio A Igreja nao para constituir as verdades de fé, mas para confirma-las. Sado, pois, corregdes profundas, de imenso alcance doutrindrio e nao puramente estilisticas e, no entanto — e isso é importante — as Atas do Concilio néo nos falam dos debates que levaram a tais modificacdes. Basta isso para desvirtuar a argumentacao de Lennerz, Portanto, mesmo que nao conste das Atas, é bem poseivele ae também a substituigao do partim-partim por “et” a sido uma Correcao real. Por outro lado, se fésse apenas modificagao estilistica, teria sido melhor deixar 0 partim-partim Sear ate saeeimo, em vez de substitui-lo por um “et” . S assim, se fOsse apenas correcdo estilis- tica, em vez de ser melhorado 0 texto, teria si jotavelmen- : , » teria sido notaveli tura, Bonucci podia bem podia inserir-se numa as boas razdes. Pois imponente série de Santos Padres Revista Eclesiastica Brasilej vol. 23, fase, 1, Marco de 1963 25 e Tedlogos que pareciam pensar da mes i ) sar da mesma maneira, e ; por Geiselmann "* e Congar, eens Il SS. Padres © Tedlogos sdbre a Suliciéncia da Escritura. 1. O Pe. _Damiao Van den Eynde resume nestas pa- lavras a posig&o dos Padres pré-nicenos: “Os Padres derivam do Noévo e Mesmo do Antigo Testamento toda a doutrina pro- priamente dita da Igreja, todos os pontos que séo compreendi- dos naquilo que éles chamam a regra da verdade ou a prega- ¢ao dos apéstolos. E’ certo que Ireneu invoca muitas vézes em favor da fé eclesidstica as palavras dos presbiteros e anciaos. Mas éles Ihe servem para confirmar, nao para completar as verdades escrituristicas; é@le mesmo acentua isso habitualmen- te’. ** Para Tertuliano, por exemplo, uma doutrina é falsa sim- plesmente porque nao esta nas Escrituras. Em Ady. Hermog., 22 (ed. Kroymann, 151) escreve Tertuliano: “Adoro scripturae plenitudinem, qua mihi et factorem manifestat et facta... An autem de aliqua subiacenti materia facta sint omnia, nusquam adhuc legi. Scriptum esse doceat Hermogenis officina. Si non est scriptum, timeat vae illud adicientibus aut detrahentibus desti- natum”. Tertuliano — continua van den Eynde — “apresenta a f€ como coisa insepardvel da Escritura: a modificagdo de uma traz consigo modificagéo de outra e a intacta conservacao da doutrina € impossivel sem a integridade dos meios ou das fon- tes que servem para expd-la” (p. 122). Em De praescriptione, 38, lemos a seguinte significativa passagem: Illic igitur et scripturarum et expositionum adulteratio deputanda est, ubi doctrinae diversitas invenitur. Quibus fuit propositum aliter do- cendi, eos necessitas coegit aliter disponendi instrumenta doctrinae. Alias enim non potuissent aliter docere, nisi aliter haberent per quae docerent. Sicut illis non potuisset succedere corruptela doctrinae sine corruptela instrumentorum eius, ita et nobis integritas doctrinae non competisset sine integritate eorum, per quae doctrina tractatur. Etenim quid coi trarium nobis in nostris? Quid de proprio intulimus, ut aliquid contra- rium ei et in scripturis deprehensum detractione, vel adiectione, vel transmutatione remediaremus? Quod sumus, hoc sunt scriptiurae ab initio suo: ex illis sumus, antequam aliter fuit, antequam a vobis interpolarentur. “ Cf, Geiselmann, Die Heilige Schrift und die Tradition, Her- der 1962, pp. 222-249, nik . 7 * Cf Y, M-J, Congar, O.P., Traditions apostoliques non écrites et suffisance de l’Ecriture, em: Istina 1959, pp. 297-304. . ; * Damien van den Eynde, O.F.M., Les Normes de l'Enseigne- ment Chrétien dans ta Littérature Patristique des trois premiers siécles, Gembloux-Paris 1933, p. 274, Na p. 279 van den Eynde diz que 0 pri. meito autor que menciona tradigoes doutrinais ndo-escritas (dgrapha) € Clemente de Alexandria, e acrescenta: “Mas acentuemos também que, na medida em que a tradi¢éo oral de Clemente ultrapassa o contetido das Escrituras, ela ultrapassa também a fé e a tradicao das igrejas”. 26 Kloppenburg, Suficiéncia Material da S, Escritura Este trecho exprime vigorosamente a identidade da doutrina cristé com o ensinamento real e total da Escritura. Todos aqué- les que reivindicam a verdade deverdo, pois, apelar aos do- cumentos da verdade, 4 S. Escritura. A verdadeira fonte das heresias é a filosofia: “Tirai-lhes — exclama Tertuliano em De carnis resurr. 3 — as idéias que lhes s4o comuns com os pa- gaos, para que resolyam suas quest6es tinicamente mediante as rituras, e j4 no poderdo sustentar-se”. Mas os Cristéos pos- suem nas Escrituras e nao na filosofia a fonte de sua fé: “A igreja romana — escreve éle em De praescriptione, 36 — associa a lei e os profetas aos escritos evangélicos e apostélicos: é déles que cla haure sua fé (inde potat fidem)”. Também Hipélito de Roma tem o mesmo modo de falar. Ainda éle faz depender a 6 crista da integridade da S. Es- critura. Em Adversus Noetum, 9, chega a dizer que “ha um sé Deus, que nés conhecemos pelas santas Escrituras”; e continua: “Se quisermos adquirir a sabedoria déste mundo, sé podere- mos consegui-lo pela leitura das opinides dos filésofos; assim também todos nds, que queremos exercer-nos na piedade, sé Poderemos fazé-lo mediante as palavras de Deus. Por conse- guinte, saibamos tudo o que as Escrituras pregam, conhegamos tudo que elas ensinam. Creiamos como o Pai quer ser crido, glorifiquemos o Filho como Ele quer ser glorificado e recebamos 0 Espirito Santo como Ele quer ser dado. Esforcemo-nos em adquirir 0 conhecimento nio Segundo nossas preferéncias e sen- timentos Pessoais, violentando o que Deus nos concedeu, mas tal como Ele no-lo quis indicar nas santas Escrituras”, Continua o Pe. Van den Eynde analisando textos de Cle- mente de Alexandria, Origenes e S. Cipriano, para, na p. 130, resumir a posicao dos Santos Padres nos seguintes pontos: 1. Eles apdiam a doutrina cristé sébre a revelacdo divina, manifestada pelos profetas, por Cristo e pelos Apéstolos, iden- tificando esta revelacao com as Escrituras do Antigo e do Névo Testamento. 2. Todos admitem que entre a Revelacdo e Escritura reina perfeita harmonia que vai até a identidade de contetido. autoridade absoluta, Por isso os Padres a apresentam como cri- tério do verdadeiro ou do falso, como a tinica demonstragaio da tee norma do ensinamento cristdo, a peiselniann € Congar, que até aqui também seguiram Van BS Ra preccuian depois Passagens, com a mesma doutri- eon “a tanasio, Sao Joao Criséstomo, Sao Jerénimo, Tedfilo exandria, S. Cirilo de Alexandria, S. Agostinho, S. Vicente Revista Eclesidstica Brasileira, vol. 23, fase. 1, Marco de 1963 on de Lérins e S. Gregério Magno. Lembraremo: expressdes mais marcantes: “As Escrituras fa ape Soa bastam para a defesa da verdade”, proclama 5, Atand ee do é claro e reto nas divinas Escrituras, elas ‘nos ne ie cer tudo que € necessario”, ensina 8, Jodo Criséstona™ sou, deve ser ensinado sem as santas Escrituras”, eee cue * s uras”, declara S. Cirilo de Jerusalém. " E Sao Jerénimo escreve: “Quid loquar de physi- ca, ethica et logica? Quidquid sanctarum est Scripturarum, i ids quid potest humana lingua proferre, et mortalium sensus ed e- Tey isto volumine continetur”.'' “Seria uma inspiragao diabolica seguir as elucubragdes do espirito humano e pensar que haja ai qualquer coisa divina fora da autoridade das Escrituras”, escreve Tedfilo de Alexandria em sua carta pascal de 401.” E Sao Cirilo de Alexandria pergunta: “De que modo poderia- mos provat e certificar como verdadeira qualquer coisa que nao € atestada pela Sagrada Escritura?” ” E segundo S. Agostinho contém as Escrituras téda a verdade: “Quidquid homo extra [sc. scripturam sanctam] didicerit, si noxium est, ibi damnatur, si utile est, ibi invenitur”. 2. Passando agora a Idade Média, a época escolastica, a gente simplesmente desiste de recolher e citar textos, tantos sao éles e tao incisivos em identificar a revelagdo divina e as ver- dades da é crista com a S. Escritura. O beneditino Paul De Vooght publicou sobre éles um grosso volume de 495 pa- ginas: Les Sources de la Doctrine Chrétienne (Desclée de Brouwer, 1954). Na p. 32 diz o erudito beneditino belga: “Se perguntassemos aos escolsticos se téda a verdade crista € reve- Jada na Biblia, éles responderiam em coro: Sim”. E na p. 148 faz um primeiro resumo de suas pesquisas: “Verificou-se de uma maneira que nao deixa, creio cu, nenhuma diivida que, se consultarmos as paginas metodolégicas de nossos tedlogos [da Idade Média], nelas sempre e s6 encontraremos a indicagao de uma tinica fonte: a Sagrada Escritura, Jamais leremos a for- mula que se nos tornou tao familiar depois do Concilio de Trento, esta frase estereotipada pela qual designamos as fontes nas quais haurimos a verdade revelada como compreendendo os libri scripti e as sine scripto traditiones”. Na Idade Média “Teo- logia” ¢ “Sacra Pagina” sfio simplesmente sindnimos; estudar a i 4, 1 Contra Gent, n, 1, PG 25, 4A. a6 = frac Ar) peat 6, In Ep. 2.ad Thess, hom. 3, 4, PG 62, 485. 4S Cirito de Jerusalém, Cateck IV, PG 33, ‘477. 7S, 6nimo, In Is. * . uo Tebtite de Alexandri Epish, 964.6 PL 22, 178, » § Cirilo de Alexandria, Glaphyr, lib. Il, n, 2, PG 9, 53. 8 Agostinho, De Doctr. Christ. Il, PL 42, 63. ciancia Material da S. Escritura 28 Kloppenburg, Suficiéncia Escritura; “praticar a teo- i é-la e tirar dela con- i explica-la, defendé | alata ponto diante duma doctrina com- is vigoroso da palavra. i is pleno e o mais vigoros' F no sentido o mais pleno | > apatites ARESHRTEH 59 Carmelitas, Dominicanos, Seen tide a mistas, agostinianos ou escotistas, fees At ee Sta ae stas, ag ises german > s panha, da Franga, dos pais T 2 enemas bes © testemunham no mesmo sentido. Foi um Lae es trati-los todos, um apés outro. Eles formam sem eee teoria sem muita graga e sem grande Pea cco - ae Fi ou ‘ temo-o, de produzir alguma fadiga at n C x Mas, afinal de contas, seu testemunho nao deixou de ea ne nente e eficaz. Seria vao querer quebrar a bonis Certo cole [Beumer] escreveu que os escolasticos de quando ene ane dizem (zuweilen davon sprechen) que a Escritura con} nt o que é necessdrio para a fé. Mas éste pudico de quan ener quando falseia totalmente a perspectiva. Pois todos os besos ticos, sem excecao, a partir de Santo Anselmo até muito além da primeira metade do século XIV, construiram sua concepcgao da propria teologia sébre o axioma fundamental de que a Es- critura é a fonte da qual tiramos as verdades reveladas”. E depois de ter estudado, um por um, os autores dos sé- culos XIV-XV, Paul de Vooght conclui, na p. 254: “E’ fora de divida que durante todo éste periodo reinou unanimidade em algumas posigdes basicas. Fiéis a tradicdo escoldstica dos sé- culos XII e XIII, os tedlogos do século XIV, sem excec4o, con- sideram a Escritura como a fonte da doutrina crista”. E’ certo que ¢les argumentam também com os simbolos da fé, as obras dos Santos Padres e os textos dos Concilios para determinar 0 contetido da f€ crista, para explicd-la e tirar novas conclusdes. Mas no pensamento déles 0 conjunto destas auctoritates jamais € considerado como sendo uma outra fonte, ao lado da Sagrada Escritura. Segundo @les, tais auctoritates sao simplesmente a Escritura prolongada, explicada, constituindo a veritas catholica ou a veritas ecclesiae, feita, porém, sdbre ou em torno da Es- pcan en poe ey a Escritura © a Teologia Veauos'Sinbolon: 4 1g et tradicao manifestada atra- € 8, dos Padres e dos Concilios é para Gles, essen- cialmente a teologia do Passado, mas sempr ‘ iraveMictmb ve afice v0) mas Sempre uma teologia cen- ) » na Escritura, identificada com ela. Escri- teologia significa estudar a Sagrada logia” & crer na pli clusdes. “Encontramo-nos neste * Paul tienne dapres’ les Bice ee Sources de la Doctrine Chré- (Desclée de Brouwer 1954), p, 149, Ve siécle et du début du XVe Revista Eclesidstica Brasileira, vol. 23, fasc, 1, Marco de 1963 29 tura, Tradi¢ao, Teologia, Doutrina do Magistério, € tudo uma coisa So. 3. Vamos a um exemplo. Tomemos o mais representativo déles: Santo Tomas de Aquino. Sera facil, porque varios estu- dos ja foram publicados. ** Daremos apenas alguns textos con- siderados caracteristicos da scriptura sola, sem considera-los em seu contexto imediato e histérico, pois que isso nos levaria mui- to longe. Alias, os textos que selecionamos sao em si bastan- te claros: Ea quae ex sola Dei voluntate proveniunt, supra omne debitum crea- turae, nobis innotescere non possunt nisi quatenus in sacra Scriptura traduntur per quam divina voluntas innotescit (S. Th. III, 1, 3, in corpore). _ Innititur enim fides nostra revelationi apostolis et prophetis factae, qui canonicos libros scripserunt, non autem revelation si qua fuit aliis doctoribus facta (S. Th. I, 1, 8, ad 2). __ Tamen dicta expositorum necessitatem non inducunt, quod necesse sit eis credere, sed solum Scriptura canonica, quae in veteri et in novo testamento est (Quodl. 13, 17, 26, ad 1). Omnia media, per quae ad nos fides venit, suspitione carent. Prophe- tis enim et apostolis credimus ex hoc quod Deus eis testimonium perhibuit miracula faciendo, ut dicitur Marci ultimo (v. 20): Sermonem confirmante sequentibus signis. Successoribus autem apostolorum et prophetarum non credimus nisi quantum nobis ea annuntiant quae illi in scriptis reliquerunt (De Ver. 14, 10, ad 11). Videtur quod inconvenienter articuli in Symbolo ponantur. Sacra enim Scriptura est regttla fidei, cui nec addere nec subtrahere licet... ergo illicitum fuit aliud symbolum constituere quase regulam fidei, post sacram Scripturam editam. — Ad primum ergo dicendum, quod veritas fidei in sacra Scriptura diffuse continetur, et variis modis, et in quibusdam obscure; ita quod ad eliciendum fidei veritatem ex sacra Scriptura requi- ritur longum studium et exercitium, ad quod non possunt pervenire omnes illi quibus necessarium est cognoscere fidei veritatem; quorum plerique aliis negotiis occupati studio vacare non possunt; et ideo fuit necessa- rium, ut ex sententiis sacrae Scripturae aliquid manifestum summarie colligeretur, quod proponeretur omnibus ad credendum; quod quidem non est additum sacrae Scripturae, sed potius ex sacra Scriptura sumptum (S. Th. II/Il, 1, 9, obi. 1 et ad 1; cf. HI Sent. d. 25, 1, 1, q. 3, in cor- pore, ad 1 et ad 2). ‘Ad primum ergo dicendum quod ad verba sacrae Scripturae non licet aliquid apponere, quantum ad sensum; sed quantum ad expositio- nem sacrae Scripturae multa ei verba a doctoribus apponuntur; non tamen licet etiam verba sacrae Scripturae apponere ita, quod dicantur esse de integritate sacrae Scripturae; quia hoc esset vitium falsitatis (S. Th. Ill, 60, 8, ad 1). = B. Decker, Sola Scriptura bei Thomas von Aquino, em: Festschrift fiir Bischof Dr, Albert Stohr, Mainz 1960, pp. 117-129; Y. Congar, Traditio und Sacra Doctrina bei Thomas von Aquino, em: Kirche und Ueberlieferung, Festgabe [-B. Geiselmann, Freiburg ' 1960, pp. 170-210; Paul de Vooght, O.8.B., Le rapport Ecriture-Tradition d’aprés saint Thomas _d’Aquin et les théologiens du XIlle siécle, em: Istina, 1962, pp. 499-510.

You might also like