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CAPITULO XVI O VELHO MUNDO: ISLA E AFRICA Os curopeus no constituem o tinico fator externo de desenvolvimento no Velho Mundo. O Isla, utilizando outras vias ¢ formas diferentes, ndo se revela menos eficaz. No mundo mugulmano, o Império otomano, estendendo-se do Marrocos a Pérsia € da Moscévia a Etiépia, possuidor de cidades sagradas e cujo soberano é 0 chefe dos crentes, sucessor do Profeta, constitui a pega principal, mas no o tnico Estado importante. No século XVI, ele representa ainda uma forga militar e politica, mas sua decadéncia impede aos olhos dos europeus a expansio mugulmana na Africa ena Asia. (0 MUNDO MUCULMANO Interrupgao da expansao otomana © Império otomano constitui um mundo diferente da Europa cristi, se bem que os Estados cristiios submetidos ao sultfio tenham mantido a sua autonomia qualquer contato cultural ou econdmico nao tenha desaparecido entre esses cristdios € 08 da Europa central e ocidental. Lembremos que o império turco repousa antes de tudo na armada dos otomanos cujo sultdo é o chefe. Os sucessos ou os reveses dessa armada condicionam o governo do império. Solimao, 0 Magnifico (t 1566), fora 0 soberano mais poderoso da Europa. Todavia fracassara em Viena em 1529 e somente consolidara seu dominio na Hungria. Cinco anos depois de sua morte a derrota de Lepanto assinala uma interrupgao no Mediterrineo. Os motivos da interrupgdio da ofensiva turca so ao mesmo tempo externos ¢ internos. O Império otomano combatia em fronteiras bastante distanciadas. Além da frente curopéia e mediterrdnica, ele devia ter uma frente oriental em que se encontrava em contato, na Asia, com o Império persa e, no oceano Indico, com os com os portugueses. Os turcos instalados em Suez, Aden e Bassorah recebiam pedidos de auxilio por parte dos paises mugulmanos do oceano {ndico onde o comércio portugués drenava 0 ouro e criava uma crise econdmica. Como tinica poténcia estabelecida a0 mesmo tempo no Mediterrneo ¢ no oceano indico, eles reabriram a passagem de Suez, As guerras da Pérsia tinham por objetivo a posse de regides importantes: Arménia, Mesopotdmia, Azerbaidjaio, Curdistio, Tabriz. Possuiam igualmente um aspecto religioso. Os otomanos, mugulmanos de rito sunita, consideravam os persas, de rito xxiita, como heréticos. Apés cingilenta anos de guerras confusas, apesar do apoio longinquo que o imperador, depois Filipe Il, davam aos persas, os turcos ‘conseguiram instalar-se 4s margens do mar Céspio. No X4 Abbas I, 0 Grande (1587- 1628), encontram um adversirio perigoso. Este ataca Bagdé que é por ele conquistada ‘em 1623. Esse fato determina uma reagio dos turcos que, sob 0 comando do sultio Murat V (1623-1640), retomam a cidade em 1632. Os turcos nfo podiam, pois, fazer pesar toda a sua forga na parte oeste resolveram manter relagdes normais com os Estados cristios. Jé haviam estabelecido relagdes comerciais com Veneza e com os franceses. As convengées efetuadas com a Franga no século XVI foram renovadas, principalmente em 1604. Elas reconheciam aos franceses uma situago privilegiada nos portos ou escalas do Levante. Os estabelecimentos franceses formavam pequenas repiblicas, instalados num bairro fechado, administrados pelo cénsul sob a protegdio do paxé da provincia. Os comerciantes podiam ai fazer seus negécios quase que normalmente, se no fosse 0 aborrecimento acarretado pelas avanias (presentes exigidos pelos funciondrios do sultdo). Dedicavam-se a um proveitoso comércio de franquia. Igualmente, os ingleses € 08 holandeses obtinham privilégios para suas companhias do Levante. O sultdo assinou com o imperador o tratado de Constantinopla que punha um fim provisério a quase cingUenta anos de guerra (1568). Este iltimo pagava um tributo humilhante, abandonava a Hungria, com excegdo de uma estreita faixa de terra com Presburg (atual Bratislava), reconhecia a suserania turca sobre os principados romanos. Tendo ressurgido a guerra, no final do século XVI, o imperador aproveitou- se da atitude independente de um vassalo do sultdo. Miguel, o Bravo, que conseguira ‘unir temporariamente sob sua autoridade os principados romanos da Valéquia, Moldavia e Transilvania (1599-1601). O tratado de Svitatorok , assinado em 1606, dispensava o imperador do tributo. Os siditos do imperador tinham 0 direito de comerciar livremente no império otomano por meio do pagamento de uma taxa de 3% ad valorem das mercadorias e, por fim, o livre culto da religiio catdlica estava garantido. Decadéncia da autoridade declinio do Império otomano deveu-se, sobretudo, a causas internas. Todo 0 Império repousava no sultio, chefe da armada, que em 1517 se tomou o chefe religioso. Ele tinha o direito de dispor das pessoas e dos bens. Por causa disso, a personalidade do sultio importava muito. Os sucessores de Solimio, 0 Magnifico, foram, em geral, inferiores a sua missdo. Em virtude da existéncia da poligamia, ndo existia regra segura de sucessio. ‘As sultanas faziam com que seus filhos fossem designados como herdeiros e, educando-os no harém, teciam planos ao seu redor. O sultéo no podia afirmar sua autoridade, senzio massacrando seus irmios. Estragados pela devassidao, morriam freqlientemente jovens, deixando a sucesso a uma erianga. Abandonavam 0 governo aos vizires, ¢ $6 por capricho intervinham nos negécios do Estado, Como eram raramente vistos testa de suas tropas, perdiam a autoridade sobre elas. Pela auséneia de estruturas politicas s6lidas, a falta do sultéo provocava a anarquia. A nomeago dos grélo-vizires dependia em grande parte de intrigas. As finangas enfraqueciam-se ¢ multiplicavam-se os impostos. Puseram-se 4 venda os dominios piblicos, os cargos de juizes, de wlemds (doutores e professores), de imames (chefe de oragées), enfim de janizaros. Para aumentar as rendas dessas. vendas, multiplicavam-se os cargos e, amitide, seus titulares eram demitidos. Por outro lado, reduziam-se 0 devotamento ao suitio ¢ a consciéncia profissional. No século XVII, 08 Janizaros haviam perdido todo o valor militar. Em 1582, a venalidade estendeu-se aos feudos militares ou timares. Chegaram até a ser distribuidos como presentes a ‘eunucos ou a mulheres, dados como reembolso ou cumulados pelos vizires ¢ paxés. O recrutamento do exército viu-se comprometido. Os beis e os paxds possuidores de grande dominios agiam de maneira cada vez mais independente, por pouco que sua provincia estivesse distante de Constantinopla e cobravam taxas ilegais. ‘Uma conseqiiéncia imprevista dessa decadéncia da administragao foi a importancia adquirida pelos cristios. O sultio, desde a tomada de Constantinopla, utilizava seus servigos por-bem ou por mal: A participagio dos cristéos na administragaio no desapareceu. O sultio permitiu até a formagio de municipalidades cristis; era o caso do Fanar de Constantinopla dirigido pelo patriarca dessa cidade. Para o combate as pilhagens nas montanhas, autorizaram-se as milicias das aldeias. Ocortia que um sultdo enérgico como Murat IV ou um grio-vizir como Koeprili (1566-1568) reprimiam os vicios da administrago. Mas tais esforgos sem futuro nao conseguiram deter a decadéncia, Acxpansio mugulmana Ela continuou no Império mugulmano e fora dele, gragas ao cardter universal do dogma, & adaptagio constante de técnicas emprestadas ‘a Europa ocidental e, enfim, ‘a ago dos missionérios e dos comerciantes mugulmanos. Um dos principais fatores de expansio ¢ a simplicidade da religido mugulmana. A crenga mugulmana tem em algumas palavras a unicidade de Deus, 0 abandono confiante sua vontade, auséncia de sacerdécio, simplicidade dos ritos, flexibilidade da moral que no exclui a possibilidade de uma vida mistica, ao mesmo tempo que se adapta aos costumes locais (admite-se a poligamia) ¢ as condigdes politicas (moral do chefe e moral do povo), enfim a promessa de um paraiso concreto, acessivel a todos os crentes, principalmente sem julgamento aos que morreram na guerra santa, Essa fé tanto convém aos cristdos que encontram no Alcordo 0 eco do Antigo. do Novo Testamento, como aos bramanistas ¢ até aos animistas (R. Mousnier). ‘Na Europa turea, certos cantées encontram-se completamente islamizados (Albania). Além disso, mudam de religiéo numerosos cafivos que dessa forma compram a liberdade, refugiados ocidentais com casos na justiga de seu pais ou com dificuldades diversas, comerciantes que se fixam em pais mugulmano, inclusive desertores das guarnigdes espanholas ou portuguesas da Africa ou da Asia, enfim mouriscos que voltam ao Isla. Esses renegados desempenham um papel consideravel no comércio © na administragio. Facilitam a adogio das técnicas européias. Entretanto, convém no exagerar. A Europa cristi rejeitou o Isl no somente na Espanha ou as portas de Viena em 1683, mas nos Baledis pela dedicagdo da maioria da populacdo a sua religidio. Na Africa e na Asia a expansiio mugulmana é menos militar e politica do que comercial e missiondria. Sobre todas as margens do oceano {ndico os comerciantes mugulmanos se instalam constituindo coldnias nos portos as quais autoridades locais haviam reconhecido uma autonomia administrativa. Os portugueses preferiram utilizar essas redes comerciais a destrui-las e, por sua vez, os comerciantes mugulmanos seguiram os portugueses sobre as vias novamente abertas. Entre os mais ativos auxiliares dos portugueses estavam os malaios da Insulindia que desempenharam um papel importante na Indochina e na China. Com 0 apoio do sultio, as ordens religiosas © as grandes mesquitas enviavam missionérios que fundavam mesquitas: casas de oragdes as quais estavam ligados hospicios, escolas alcoranistas ¢, algumas vezes, universidades onde os ulemés ensinavam. Nos itinerdrios comerciais da Asia ¢ da Africa, o Isla se fazia presente bem além dos Estados mugulmanos. . Entretanto esse esquema no se aplica sempre sem variantes. Na Africa do Norte, além dos poderes locais nas mos seja de soberanos indigenas, seja de janizaros representantes da suserania turca, depara-se com a ago dos corsarios ¢ dos némades. Os corsérios formam verdadeiras corporagdes que tém em seu comando beis que disputam 0 governo dos Estados com os paxas turcos na Argélia e na Tunisia ou com os sultdes do Marrocos. Na Tunisia, um bei impde sua autoridade em 1590. ‘Na Argélia, um membro da familia de corsérios cognominado Barba-Roxa, Khayr al-Din, constituiu a Regéncia de Argel (1518) e rende homenagem ao sultio mugulmano. Argel torna-se a principal base turca no Ocidente, mas com a decadéncia do Império otomano, janizaros ¢ corsérios disputam 0 poder. Se bem que o Estado "barbaresco" tenha expandido sua autoridade sobre uma parte dos altiplanos, vivia sobretudo do comércio ¢ do corso. Conseguiu eliminar as guamigées espanholas ou francesas. Os comerciantes néo mugulmanos, sobretudo judeus e marselheses, podiam-se instalar nos portos por meio do pagamento de uma licenga ¢ de direitos. sobre produtos exportados. As armas ¢ os tecidos europeus eram trocados por couros, cera, las, cereais e produtos adquiridos do corso. Certos prisioneiros renegavam suas religides e se fixavam na Argélia, mas, com excegéio de mogas e jovens destinados 4 prostituigao ou de artesios especializados, os corsérios preferiam exploré-los negociando sua liberdade com os sacerdotes definitivamente estaveis, principalmente 0s lazaristas de So Vicente de Paulo. No conjunto, é com os franceses que os barbarescos mantém mais amitide relagdes normais. Os corsarios e os comerciantes de Argel ¢ de Tinis cercavam-se de um grande luxo. Na metade do século XVII, época ‘em que 0 corso atinge seu apogeu, Argel possuia cerca de 100.000 habitantes, dos quais 25 a 35 000 eram prisioneiros, mantinha mais relagGes com a Europa e com 0 Mediterraneo do que com o continente africano. Nas extremidades ocidentais do mundo mugulmano, os portugueses dominaram a costa atléntica durante o século XVI e obtiveram das caravanas o tréfico do ouro de Mina, mas 0 dectinio comegou a surgir a partir da metade do século e, em 1637, os holandeses se apoderaram de Mina. A caravana teve a sua desforra sobre 0 tréfico maritimo ¢ os némades retomaram uma importincia militar e politica que haviam momentaneamente perdido. Voltaram-se para 0 lado do Marrocos onde despertaram a guerra santa, expulsaram os portugueses da maior parte de suas feitorias, impuseram uma dinastia no Sul, a dinastia sadiana (1553) e permitiram aos corsérios de Sale desenvolver suas atividades. Marrocos toma-se um Estado organizado sob o reinado de Al-Mansur que institui Marrakech como capital, organiza © Makhzen, administracdo militar das tribos submissas e consegue conter os zauias, centros religiosos exaltados e freqilentemente indéceis. Em 1578, Al-Mansur arrasou a cruzada portuguesa do rei D. Sebastido. Em 1591, destruiu o império negro de Tombuetu. Por fim, mantém relagdes comerciais com os europeus, notadamente como 08 ingleses. Com sua morte (1603), Marrocos novamente se esfacela. Uma repiblica de corsérios mouriscos ¢ algumas vezes ingleses constituiu-se em Sale ¢ se liberta do sulto em 1628. Renunciando a guerra santa, os habitantes de Sale fizeram do corso um meio auxiliar do comércio, trocando principalmente prisioneiros por armas, A dinastia sadiana foi substituida pela dinastia alauita sustentada primeiramente pelos zauias do Sul, cujo representante mais ilustre foi o sangiindrio e faustoso Mulay Ismail (1672-1727) que instalou a capital em Meknes, onde construiu uma cidade real, retomou a guerra santa, conquistou dos espanhéis quase todos os presidios finalmente reatou com os cristaos, primeiro com Luis XIV de quem esperava uma alianga contra a Espanha e, depois de 1700, com os ingleses. Com sua morte, ‘Marrocos entra em anarquia, Sobre seus limites orientais. " Isla estava enfraquecido pela existéncia de heresias. Estas eram encontradas no seio do império turco fora dele, como os haichaschins, figis de Agha Khar, mas os mais importantes e os mais perigosos para a unidade do Isli eram os xiitas do Ira que, contrariamente ao conjunto dos mugulmanos de rito sunita, rejeitavam a tradigao, ou suna, para se aterem to somente a0 Corio. Os sunitas ¢ os xiitas se odiavam profundamente. O xiismo era uma religiéio de autoridade © nao de consentimento, apresentando um aspecto austero. Tornou-se a religiéo nacional dos persas com a dinastia dos Sefévidas fundada no comego do século XVI. Os Sefévidas eram ndmades que se apoiavam em tribos tureas. Com 0 xé Abbas I, o Grande (1587-1629), a monarquia persa se revestiu de um novo carter. Ao invés de escolher seus conselheiros ¢ funcionérios entre as tribos habitualmente xnémades constituiu uma tribo de "amigos do xa" vindos de todas as tribos iranianas ¢ possuidores de feudos. Dividiu seus Estados em provincias, estabelecendo uma capital fixa, spahan. Tradicionalmente, essa monarquia estava completamente contida no rei, vigério do profeta, posto acima das leis, x4 Abbas. O soberano formou uum poderoso exército gragas aos conselhos de dois gentishomens ingleses, Anthony ¢ Robert Sherley que o dotaram de 500 canhdes e de 60.000 mosquetes. A administragio centralizada impediu os némades de saquearem, assegurou 0 policiamento das estradas, fez prevalecer uma justiga cruel, arrecadou os impostos. O restabelecimento da ordem permitiu a manutengo das estradas ¢ 0 desenvolvimento do comércio, Os estrangeiros chegaram. X4 Abbas conseguiu reconstituir a unidade da Pérsia ¢ organizou incursées as fronteiras. Trangliilo nessa parte, voltou-se contra 8 turcos expulsando-os do Azerbaidjdo, da Gedrgia e da Mesopotiimia. Com a ajuda da companhia inglesa das indias, apoderou-se do posto portugués de Ormuz (1622), nele instalando comerciantes ingleses e holandeses, 0 que evitou 0 recurso as caravanas que passavam pelo Império otomano. X4 Abbas atribuiu-se o monopélio da seda que fornecia boa parte das exportagdes na india, Insulindia e Europa. Por outro lado, as casemiras ¢ las da Holanda e da Inglaterra e os produtos de Iuxo da Europa penetraram na Pérsia. Ispahan tornow'se uma cidade magnifica onde eram encontrados artesiios vindos da india, da China e da Europa. Foi com os seus palicios ¢ suas mesquitas um notivel saldo de arte nacional, Depois do x4 Abbas, a dinastia sefévida declina, Corrompidos pela Iuxtiria e pelo alcool, os soberanos deixaram que 0 exército se desorganizasse ¢ as fungdes administrativas se tomassem venais ¢ hereditérias. Os turcos disso se aproveitaram para retomar Bagdd (1638). O coméreio permaneceu muito florescente, mas para vantagem dos europeus, principalmente dos holandeses e depois dos franceses. Luis XIV obteve privilégios para a companhia francesa das indias e depois a protegio dos cristios do reino persa (1683). Recebeu em 1715 uma embaixada persa em Versalhes, que concluiu um novo tratado de comércio, Entretanto, os afegis se revoltavam em 1722 ¢ os russos se tornavam ameagadores. A Pérsia caiu na anarquia. Apesar das suas divisdes, 0 mundo mugulmano representava um bloco relativamente unido por uma civilizagao. A lingua persa era a da poesia, a lingua turca a dos exércitos ¢ da administragio, a lingua drabe, a da religido e das ciéncias. Cada ‘uma delas continuou a progredir externamente, ressaltando-se 0 drabe falado em todas as feitorias do oceano indico. Os mugulmanos participavam da vida do mundo hindu, do mundo chinés e do mundo negro da Africa. BIBLIOGRAFIA: F. MAURO, L'expansion européenne, op. cito R. GROUSSET, Histoire de I'Asie, "Que sais.je?", 1957. A, MIQUEL, L'Islam et sa civilisation, “"Destins du monde", 1968. APUD : CORVISIER, André. Histéria Moderna. Sio Paulo:DIFEL, 1976. Pag.232- 238.

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