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EXCLUSAO DO DOLO POR ERRO [BeRNaNDA PALMA I— EXCLUSAO DO DOLO NO ERRO SOBRE A FACTUALI- DADE TIPICA E CONTROLO DAS CONSEQUENCIAS A) Exros sobre 0 processo causal 1. Determinard qualquer erro sobre um certo elemento da faccua- lidade tipica, enunciado na lei ou inerente 2 condura concreta, 2 exclu- sfo do dolo? A resposta ¢, obviamente, negativa, $6 excluiré 0 dolo o erro que incida sobre os aspectos da conduta que constituam objecto do dolo, ou seja, sobre aspectos essenciais do facto tlpico que a vontade do agente pode dominar Esta afirmagao genérica necessita, porém, de uma andlise potmeno- ritada. Tradicionalmente, a questio coloca-se, sobrerudo, a propésito do erro sobre o processo causal, do erro sobre a pessoa ou sobre 0 abjecto ¢ do “erro” na execugio — a chamada aberratio ictus ou exccucio defei- tuosa. No caso do erro sobre o processo causal, a doutrina mais divalgada tem estabelecido 0 critétio de que apenas um desvio essencial entre 0 processo causal representado pelo agente e o processo causal concretizado excluiria 0 dolo nos tipos criminais designados como de forma livee, em que no hé vinculagio a um determinado processo causal descrivo na norma incriminadora, Tais tipos “de forma livre” correspondem ao modelo do homicidio ou das ofensas corporais ¢ si0 0 ponto de refers cia tradicional no estudo dos crimes de resultado, em cuja descricfo coints eort 614 Femanda Pama tipica estd apenas implicito © processo causal que produ o resultado tipico. ‘A questio que se coloca, nesses casos, é saber se 0 processo causal representado ou concebido pelo agente para a producéo do resultado pico € essencial para o dolo ‘ e se um qualquer desvio, que poder no ser previsivel, excluird o dolo quando o tipo criminal nao descrever tum especifico processo causal. Nos exemplos correntes, se uma pessoa dlispara contra oucra para a matar e a vitima, ferida, vem a morrer num desascre a caminho do hospital, ou morre durante um incéndio no banco de urgéncia ou, ainda, nao sobrevive a uma intervengao cirdrgica por falta de sangue para uma transfusio, 0 procssso causal desencadeado pelo comportamento do agente ceri condusido, ainda assim, & morte, mas por uma forma andmala em relagéo & projectada, E irelevance esta alterago do processo causal pata efeito de respon- sabilizagio do agente a titulo de dolo? © ponto central desta questio ecomosesabey saber se 0 agente pode ser responsabilizado, cenclo em conta o modo como a 2cgéo tipica é descrita na sua esstncia, apesar de ter havido uma alcerago do modo de producio do resultado que nfo cesceve sob 0 seu pleno controlo nem correspondew & sua decisio concreta A resposta tradicional, que assenta na verificacio da existéncia de um desvio essencial do processo causal, identifica certos desvios comple- amente imprevisiveis e nfo controléveis, em absoluto, pelo agente. De algum modo, o resultado deixa de sex, nesses casos, relativo a uma con- © Segundo Pupre em “Dolo, curso, caus, impuragio”, texto insrido em Bsrudos de Homenagem ao Profesor Doutrr Figueiredo Dias, 2010, vo. ML, p. 822 ¢ (Grad, Luis Greco), 0 que determinaria a exencalidade do ero seria a nfo suiciéneia, das factosrepresentados pelo autor para fundamentar um perigo doloso, a partir de ‘uma distingio de gravidade enteo perigo que fundamenca o dolo e que Fundamenes ncgligéncia. Como refere a autora, 0 desvio nto serd esencial se, apesae da nfo coincidéncia enue a representagi do agente e a cealdade ainda assim © peigo repee- seatado pelo agence for de uma incensidade tal que segundo o Direito haja uma coincidénciasuficiente com a realidade. Assim diz PUPPE "Nao & 3 avid, e sim a li «quem tem de decir de que mancia a representagio do aucor cem de enincdir com 2 realdade, para que a realidade posse ser tida como algo dolosamence configurado pelo autor e, portato, imputivel ao seu dole”. Coin Biton® cto do dalo por ero _ sis duta do agente ou, pelo menos, a uma acco “intencional”. No entanto, E preciso saber nfo s6 com que ctitério se define a essencialidade do desvio mas também o que se entende por processo causal “suficience- mente controlado” pelo agente, uma vez que esse processo se desenvolve de acordo com multiples factores condicionantes apés ter sido desenca- deado. Antes de mais, esta questéo no é, apenas, uma questio de impu- tagio subjectiva. Ela tem subjacente, como reconhece hoje a dou- trina ©, um problema prévio de imputagio objective. Com efeito, ros exemplos atrds referidos, houve um processo causal acidental que se intrometeu naquele que o agente desencadeou e que frusttou aquilo que seria a sua conclusao normal, Se tal processo for imprevisivel para qualquer pessoa, no haverd sequer, como € manifesto nos exemplos do acidente ou do incéndio, imputagao objectiva relativamente ao resultado & luz da teoria da causa- lidade adequada. Mas também segundo a teoria do tisco, na formulagio ‘menos normativista ¢ mais consentinea com a concepgio do ilicito penal como combinagio do desvalor de acgao ¢ desvalor do resultado, seria negada a imputagéo objectiva. Com efeito, a intromissio de um processo causal imprevisivel ndo autotiza a conclusio de que a criagio do risco proibido ou o aumento do risco se concretiza no resultado. © desvio essencial entre 0 processo causal coneretizado € o proceso causal representado resulta, nestes casos, de uma diferenga entre 0 pro- cxsso causal concrerizado e as acg6es que podem ser consideradas ipicas, de acordo com a ranfo de ser da norma. Deste modo, o agente apenas devers ser responsabilizado por tentativa, sem que se coloque sequet a imputagio a titulo de negligéncia do resultado, dada a inexisténcia de jputagio objectiva. 2. Todavia, nem rodos os casos de erro sobre © processo causal se resolvem como os anteriores. © CE, com muita concisio, STRATENWERTH, Sinefechr Allgemeiner Til I, die Sorafias, 5° ed, 2008, p. 115, CCointes Eton 616 Femand Palma 1H casos em que 0 proceso causal concretizado mas no dominado pelo agente ndo 6 poderia ser facilmente previsto como ainda se desenha, como desenvolvimento previsivel ou sequéncia “normal” do process inicial. ‘Assim, no caso de escola do agente que atira a vitima de uma ponte a baixo, prevendo que ela morra 20 cair no rio, erdirelevante a alteragio do processo causal se a vitima morrer por batet com a cabeca no pilar da ponte. Apesar de esta alteragio do processo causal no ter sido prevista, torne-se claro que © resultado ainda ¢ uma consequéncia previstvel e normal da acco ®, Neste timo exemplo, o processo causal cabe no espago ou na dea de rsco criado pela conduta do agente inclulde na sua decisto, que © tipo pretende abarcar. Assim sucederé danas se atcionar um mecanismo cujo normal funcionamento dard os resultados pretendidos, mas que também os pode originar devido a distiirbios considerados normais ow razpavelmente previsiveis, Note-se que nio se trata de fazer da previsbilidade bitola ou crtério do dolo, o que sempre seria um desvio normativista. Trata-se, isso sim, de reconhecer, num plano psicolégico, que hd um conkecimento implicico — ou se quisermos irefutivel, essalvada a contraprova de circunstancias excepcionais —, quando se desencadeiam processos de risco muito invenso em que a capacidade de controlo é diminuca. Mas deveremos sublinhar que os titimos casos — que nos levaram a formular este critério — apre- sentam uma conexio directa ou uma sequéncia imediata entte a acco inicial e o resultado, que nfo est presente nos primeiros © SyRATBNWERTH afirma que a cesponsabilidade por rscos que seciam indi- ferences para 0 agence ou até desejados nao pode depender de que ele os tenha cons- entemente representado (das er se sich bewws vor Augen gfe hat), ob cits p. 117. E Purve diz “O autor actua dolosamente quando a sia representasie do perigo por le causado de ocorréncia do resultado se efere a algo de temanha magaitude ¢ evi- dencia que uma pessoa razosvel, pasta na situagao do autor, nfo poderia causzr um el perigo sem assumir que seo resultado ocortese, acitélo-ia, comando a sérioo perigo dessa ocorténcia...". Cf. txt cit, p. 825, Note-se que, como refere PUPPE, é muito mporeanceatingir 0 sentde da essencaldade do desvo a partir do entendimento acerca do que esté ands include no Ambito do tipa de iii, © DurPE fala propésito do erro tobre o procesto causal de uma distinggo centre um perigo doloso, como *perigo inerente & acco e 20 processo causal desenca- (/ casessfne aM? seluito do dole por ero a7 Poder-se- pensar, ainda, em casos de erto sobre 0 processo causal ‘em situagées em que é pertinence perguntat se 20 agente deve ser atri- bufda responsabilidade a titulo de dolo perante um processo causal diverso do que ele tepresentou, no canto por ele estar integrado pica ou normalmente no espectro do isco gerado pela conduca, mas na medida em que, dada a sua raridade, sé surge por forca da conduta desencadeada. Tal situacao ocorterd, por exemplo, no caso de 0 cones gio com um certo virusycom que o agente projecta provocar uma doengay vira desencadear uma outra doenca rara, que néo poderia resultar, nor- malmente, de um outro process. Esta questo é diversa da suscitada pelos casos do acidente a cami- rho do hospital ou do incéndio no banco de urgéncia, mas mais seme- thance ao exemplo da ponte, porque o processo causal que gerou a doenga E quase tinico ou exclusivo € nao algo que poderia resultar de factores quotidianos, ‘Trata-se, afinal, de uma espécie de “caixa de Pandora’, em. que a conduta do agente, ¢ sé cla, desencadeia consequéncias graves que de outro modo no ocorreriam, atingindo-se o resultado pretendido, embora por outta via. Tanto nestes casos como no exemplo da ponte, & decisiva a conju- gagdo de uma grande indiferenga pelos riscas produzides com a conexio intrinseca, tipica ou exclusiva entre 0 risco desencadeado e o realizado. deado um prgn meramensnelgee em que os isa epi dos qua cone idem represntagio¢ realdede 38 fundarontam am perigo negligent et 825). Asin por exemple no caso tad pel juapudinca slema elt por Due, am qu os agentes lane prove me expat a cave, prs expuls& inulin aqua deveia fer emer ay predes em des exceatore au 6 enn tmento com conkecmeno de cutee acaba por proveer ua epost muito mas imensa que condaris a una deocida que mato os mortdors erate una seo Ghali da intensdade do penigo do teulado qu, Iicalmene, 0 the ‘Rprsentado ¢ asin s manteve puts um dos agentes como algo no gto, tao ingensamente pessvel¢ com a gravida com que ocotea, BeaL ARE See Cate, dr bavido una lige ergo do proceso enecuivo conereo, signa & demontagio de que a akeragto qualtaiva de pergo entre 8 proceso exsal tepeenade fo conrad msde o fundamen pure dine ene manueng do doe ape do eo eu quaiieago da conde como negligence Colmes ert 2 / Apene & 618 Femends Palme No caso do acidence da ambulancia, embora exista 0 primeiro factor jé no existiré o segundo, registando-se 2 incromissio de um outro processo causal ou de um tisco anémalo, Esta anilise pode ser associada aos casos de contigio com o virus da sida, nos quais sera impossivel prever 0 processo causal concreto que levard & morte da vicima ou o momento em que ela ocorrerd, sendo no entanto esses elementos totalmente indiferentes ou ierclevantes para agente. E hi, de todo 0 modo, uma conexéo singular ou exclusiva do contégio com o resultado. Embora a ocorréncia do resultado morte em fungio do contégio scja apenas, & partida, uma probabilidade clevada — segundo os conhe- cimentos actuais da Medicina —, é certo que, nao estando afectada a imputagéo objectiva se 0 resultado ocorrer, néo hd razées substancizis para no se afirmar a responsabilidade por dolo . A imputacao objectiva no é to duvidesa ou frégil que néo possa sustentar 0 dolo, Conjugam-se, nestes casos, a indispensével conexo de tisco, no plano da imputagao objectiva, ¢ a indiferenga pelo modo concreto como se obtém o resultado, no plano da imputagio subjectiva. (0 facto de um resultado se distanciar cemporalmente da acco no pode impedir a impucacio objectiva, se outros processos anormais inde- pendentes do proceso posto em movimento pelo agente se no intro- mecerem ©, O que é fundamental, nestes casos, cal como nos exemplas © Nao concorde, asim, com a andlise de AUGUSTO Silva DiAs, em “Respon- sabilidade criminal por tansmissio do virus da sida: um olhae sobre o Cdigo Penal de Cabo Verde", em Direto e Gidadenia, 2004, pp. 9-37, que nega sempre a etfs: 0 do ti considera, com fundamentagées diversas, como asinala FIGUEIREDO DiAs, em Direto Penat, ob, cits. pp. 356-357, que nao haverd dolo na generalidade dos casos. © Diferentemente se patsam a5 coisas nos casos elatados por PUPPE, em que ciste uma varagfo do proceso causal, como no caso da exploséo ou ainda num caso decidido pela jurisprudénciaalemi em que 0 agente dercuba um banco de wés meteos de altura, no qual esava sentado to, representando o agente que a viima morera por fractuaro pesogo, acoluna ou 6 exini, mas em que ela apenas facrurou um rornozlo, mas velo a morter de embolia,algum tempo depois, devide ao facto de 0s méaics se terem esquecido de prescrever anticoggulantes. Af € indubieivel que hd apenas ma de homictdio nests casos. E cert, porém, que a maioria da doutrina ointe Edo Bctuco do dola por era 7 : stg cléssicos de erro itrelevante sobre o processo causal, é uma implicita © inevitével consciéncia do concreto processo causal, que torna irrelevance © desvio, como se, na realidade, Pandora no pudesse invocar ter ficado surpreendida com os “males” que sairam da caixa 3. Caso especial de erro que incide sobre o processo causal ¢ a figura a que a doutrina chama dalus generais Trata-se de situagdes em que o agente executa, sem o sabes, 0 facto tipico por um modo diverso do projectado ou representado, sem cons- ciéncia disso, e em que o resultado se verifica em circunstancias concre- tas de tempo, lugar ou modo diversas. Assim, por exemplo, o agente precende matar a vitima por enforcamento e escondet 0 cadaver ati- rando-o a um pogo. Porém, sem que o agente se aperceba, a vitima sobrevive ao enforcamento e sé morte afogads, quando é lancada 20 pogo. Inversamente, também pode ocorter que o agente planeie matar a vitima por afogamento no rio, mas a mate logo que desfere pancadas na cabeca para a deixar inconsciente. Nos dois casos, 0 agente realiza o facto tipico sem consciéncia. No primeiro, por erro, pensa que o realiza quando apenas tenta, mas nfo consuma logo nesse momento. No segundo, consuma o crime num momento da execugio prévio Aquele em que pensa que a consumagio ocorte. No primeira caso, o dolo antecede o momento da produgéo do resultado. No segundo, sucede-the. Ora, a realizacio objectiva do facto, sem uma orientacgo da accio pela vontade no corresponde, de acordo com a definiggo do artigo 14.° do Cédigo Penal, 2 um comportamento doloso. Ao produzir-se 0 resultado inconscientemente, apenas poderia conceber-se uma acgZo negligente, j4 que o agente sempre poderia pre- ver que a morte da vitima pudesse ocorrer daquele modo. A questo que se coloca, nestas situagées (de dolo “antecedente” e tencaciva de homictdio e apenas se poderia impurar 0 homicidio nepligente se ainda se admitsse que teréhavide concreiaago do rieeo dt conduta no resultado — 0 que seria discutivel (Purre entende, porém, que existe homicidio negligent, cf. tx. ez, p. 825). CE, sobre a figura, sobretudo, STRATENWERTH, Senghecht, Algemeiner Teil, 5. ed. 2004, p. 117 es. Cointe are 20 Femenda Palma “consequente”), é saber se 0 comportamento deve ser qualificado como uum concurso de centativa de homicidio (doloso) ¢ homicidio consumado (negligente) ou se, seguindo a légica de que 0 dolo tem apenas como objecto o resultado e é um dolo geral relativamente as circunstincias concreras em que este ocorre, deve ser considerado simplesmente como um homicidio doloso consumado. (© problema que este tipo de casos suscita é semelhante 20 que é colocado pelo erro sobre 0 processo causal. Também aqui o agente representa o desfecho do seu comportamento — o resultado tipico — como sendo produzido por uma accéo e por um processo causal diverso. No entanto, ¢ ele mesmo que conduz, “pelas suas préprias mos”, 0 processo causal acidental, sem saber ou poder controlar. Mas terd alguma justificagio a diferenciacéo de uma acgio dolosa centada ¢ de uma acco negligente — o que, na pritica, corresponde & exclusio do dolo da acco que concretiza o resultado? © tratamento dado por Wetzel ® a estas sicuagdes a partic da andlise de casos jurisprudenciais alemses parece ser © mais adequado. Wetzet entendia que, nos casos em que o agente projectara, desde 0 inicio, uma espécie de “homicidio encoberto”, ceria justificagio atri- buir-se-the 0 dolo como se fosse uma espécie de dolo geral J nos outros casos, em que a deciséo de praticar a acco que redunda (inconscientemente) na morte da vitima nAo foi projectada como sequencial, mas foi furo de uma decisio momentinea (posterior & acgéo que deveria produzir o resultado tipico), a diferenciacto entre uma accéo dolosa tentada ‘© uma aoglo negligente consumada qualifcaria mais correctamente, segundo ‘Welzel, 0 comportamento do agente. A segunda acco, que consuma 0 crime, nao € representada pelo agente como tal, verificando-se um erro de percepgZo sobre 0 abjecto da accéo que exclui o dolo. Assim sucederd se 0 agente decidir, autonomamente (e nao de acordo com o plano inicial), atirar a um pogo aquilo que julga ser um cadaver mas € uma pessoa viva. © CE, Weizet, Sonyfiech, Alleemeiner Teil, ob, cit, © Derecho Penal Aleman, Pearce Genenth, 12.8 ed. (32 ed. cas), trad. de Bustos Ramirez c Visien Péer da 12. e. de Siafcebr, Allgemeiner Til, Chile, 1987, p. 108 ¢ ss Cointe etiene Exclu do dolo por erro 62 No caso do “homicfdio encoberto” de que da conta WeLzEL, h4 uma unidade na sequéncia das duas acg6es que justifica observé-las apenas como a realizagio de um tinico facto pico com um desvio nao cessencial sobre o processo causal. E & luz do que anteriormence foi dito para o erro sobre 0 processo causal, hd uma conexio de exclusividade ‘entre a conduta representada ¢ 0 concreto processo causal O reconhecimento da unidade de acco ow da pluralidade de acces, a partir do critério da unidade ou pluralidade de decis6es de accio, seria, assim, 0 critério que permitiria distinguir a situagao de erro néo essencial, nfo excludente do dolo, da situagto de erro essencial, que fundamenta © concurso entre uma tentative de crime (obviamente dolosa) ® © um crime negligente consumado, “Também na perspectiva da caixa de Pandora, que uma ver aberca desencadearia os diversos perigos, a situago de homicidio encoberto configura um comportamento doloso. Porém, no caso de néo ter sido projectado anteriormente o encobrimento do homic{dio por aquela forma de actuagio sobre o cadéver, subsistiré a diivida sobre se o agente nfo poderia deixar de representar a morte da vitima através do seu compor- tamento, Com efeito, tal afirmacio depende de o agente saber ou nao poder deixar saber que a vitima ainda estava viva. Mais uma vez parece relevante, ainda sem incorrer numa pura andlise de dever ser caracteristica do normativismo, destacar uma racionalidade das consequéncias inevitaveis da conduta, que preside ao dominio psico- Iégico sobre as mesmas como, pelo menos, uma consciéncia implicita. B) A abervatio ictus e 0 exto sobre a pessoa ou sobre o objecto. Os casos de dolo alternative 4. Uma outra figura de erro que pode afecrar dolo é a chamada aberratio ictus , que consiste num ecco de execugio que altera 0 © CE Weize, ob cit, pp. 108-108. 0 CE, STRATENWERTH, ob cit, §§ 8.°, 95°, p. 119, citando a discussio mais recente sobre a distingio entre este exo € 0 erro sobre a pessoa ou 0 objecto, Entre 622 Femanda Palma prdprio resultado da acco relativamence ao previsto. As sicuag6es assim designadas cortespondem aos casos em que agente dispara sobre a vitima, mas devido & falta de pontaria ou a uma circunstincia que néo domina, como uma rajada de venco ou até um comportamento de outrem (um empursio, por exemplo), vem a atingir uma outra pessoa ou um objecto que néo pretendia atingir ¢ cuja existéncia até podia ignorar. Ha, na aberratio ictus, um desvio que no incide sobre 0 processo causal representado, cal como acontece no erro sobre © proceso causal. Diferentemente do erro sobre 0 processo causal, em que se obtém um resultado cipico essencialmente idéntico ao projectado, ha na aberratio ictus uma alteragio da prépria produgSo causal do resultado pretendido como um todo, Nao é alterado sé 0 desenvolvimento causal da accio, mas também o resultado. Assim, o agente mata uma pessoa diferente da que projectara matar ou atinge mesmo um outro objecto tipico —danifica uma montra ou um automdvel em ver de atingit uma pessoa, como pretendia, ou vice-versa. ‘A questio colocada consisce em saber se 0 artigo 16.9, n.° 1, con- templa estes casos e se, consequensemnente, 0 dolo deve ser excluido. A resposta a essa questio depende, obviamente, das possibilidades de incerpretacio do artigo 16.°, n° 1. Mas estas pressupdem a comparagio a aberrasio ictus com outros exros, sobretudo com o chamado error in persona vel objecto, em que tradicionalmente se nfo admite a exclusio do dolo se estiverem em causa objectos tipicamente idéncicos. Nesta outra figura de erro, 0 agente atinge pessoa ou objecto diverso daquele para o qual ditige a sua acco, devido a um exclusive erro de percepgio (¢ nfo a uma enecugio defeituosa, como sucede na aberztio. crus). O agente mata A que confunde com B ou pensa que esté a matar A ¢, na verdade, mata B, que ocupa a posigao de A, num lugar escuro, ‘Trata-se de um erro semelhante, na sua estrutura, aos erros de per- cepgfo que conduzem 2 exclusio do dolo a que o artigo 16., n.° 1, do (0s cextes mais interessantes no pensamento germinico, veja-e PUrFE, em Goldidaramers Archiv, \9B1, p. $e Exclus do dolo por erro 623 Cédigo Penal se refere. Mas, nos casos de objecto tipico idéntico, a semelhanga serd apenas aparente, néo se verificando uma verdadeira semelhanga funcional na perspectiva da realizagio do facto tipico. Com efeiro, o erro sobre a pessoa ou sobre o objecto tipicamente identicos nfo impede o agente de realizar, com dolo, a acgio eipica projectada relativamente ao abjecto tipico visado — por, exemplo, uma pessoa. Nao hd nenhuma perturbago no processo causal ou na obten- ‘Flo do resultado, mas apenas um erro semelhante ao que incide sobre 0s motivos. Deste mado, como se sabe, 0 erro sobre a pessoa ou sobre o objecto ¢ tide come irrelevante quando atinge um objecto tipicamente idéntico a0 visade — por exemplo, o homicidio de B em vez. do homi- cidio de A. Se 0 erro de percepeio conduz a um resultado que atinge objecto tipico distinro — o agente mata uma pessoa mas queria matar um ani- malyou-vice-versy’— deparamo-nos com a situacio normal de erro sobre tum clemento essencial da factualidade tipica exeludente do dolo. A solu- «fo poderd sect punico por tentativa dolosa e crime consumado negl- gente, se, evidentemente, forem puniveis nos termos gerais. A abervatio ictus, cujo tratamento suscitou a comparagio com 0 erro. sobre a pessoa ou sobre o objecto, merecerd também um tratamento desta natureza, mantendo-se o dolo, quando 0 objecto tipico é idéntico ¢ excluindo-o apenas quando ¢ diverso? Durante muito tempo, a doutrina dominante, tanto portuguesa como estrangeira ”, entendeu que a aberratio ictus sobre objectos Lipicos idénticos nao justficaria teatamento diferente do erro de percep- lo, por se tratar da realizagdo, em abstracto, do mesmo tipo de crime, embora sobre pessoa ou objecto diverso do visado, Serd esta solugio correcta? Partindo, também na aberratio ictus, da ideia de que para a lei penal, na sua fungao de proteceao de bens juridicos, éindiferente que o ‘objecto conereto atingido seja x ou y, manter-se-4 0 dolo quanto a0 crime consumado? © Cf, acerca da polémics na douttioa portuguesa, EouaRDo CORREA, 06, it, vol, p. 400 es, inte Eten 624 Femanda Palma Na aberratio ictus — mesmo incidindo sobre objecto tipico idén- tico —, hi uma naturera causal do erro que coma a parte concretizadora do comportamento do agente menos controlével ou até no controldvel ¢ ditigivel pela vontade, Como sustenta WELZEL, de acordo com a sua teoria da accio final, na aberratio ictus existiriam duas acgGes, correspon dentes efectivamente a dois fendmenos da manifestagio de vontade auténomos, a duas decisées distincas, Essa distinta estrutura justificaré, no entanto, no plano valorativo, a exclusfo do dolo relativamente ao facto consumado? Do ponto de vista dos fins do sistema de responsabilidade penal, serd diferente maar, shaggy uma pessoa pensando que €ouge ratae uma pessoa,em vez. de outra, porque se errou na execugia geo agente tem ma pontaria, alguém the“bareu no beago ou o vento rudeu a diteccdio da bala? A tesposta mais concisa ¢ adequada a0 problema &Xafirmativa, Ha boas razées para excluir 0 dolo e qualificar o comportamenco do agente como tentativa de homicidio de A e homicidio negligente de B (uma teneativa quanto ao crime doloso e um crime negligente quanto ao crime consumado). ‘A primeira razio é de ordem descritiva e factual ¢, por isso, deri- vada do direito penal do facto que emerge do principio da legalidade, (© agente pratica uma acgéo controlada pela vontade que no consegue consumar ¢ consuma outra que ndo'tontrolada finalisticamente. Nao é indiferente substituir esta descricao pela ficgdo de uma tinica acgéo, em fungio da convergéncia abstracta ¢ ocasional (devida & execugio defei- tuos2) do facto realizado com o facto tlpico projectado, Na verdade, se negissemos a relevincia da primeira acgio (centada) € apenas deixéssemos subsist a segunda (consumada), niio teria cabi- mento qualificar esta ikima como negligente, Se, por exemplo, o agence, numa situagio de aberravio ictus, estivesse em legitima defesa relativa- mente a visima visada, que era na verdade um agressor, ¢ por erro de ppontaria atingisse outra pessoa, nfo tea sentido transpor o dolo do Facto tentado justificade para o facto consumade néo justficado “. 2B o mesmo se diga, als, relativamente & jostficagfo, Tomacse exsencial, nesces casos, a diferenciagao encre a ago justfiada e a acgio negligente Colne Eton 72 Excluiée do dalopor ero 625 Esce exemplo evidencia, alifs, uma segunda razo de ordem norma- tiva € teleoldgica. A conduca do agence em aberrati ictus sobre objecco tipico idénticofpode revelar um merecimento penal muito diference do x comportamento do agente em erro sobre a pesson ou sobre 0 objecto. Esta andlise corna mais compreensiveis os problemas interpretativos que o artigo 16.%, a I, do Cédigo Penal coloca. Embora néo haja possibilidade de encontrar, liceralmente, critérios legais explicitos dife- renciadores do erro excludente do dolo, nesces casos, a perspectiva para que a norma aponta permite adoptar um critério funcional. A exclusio do dolo depende de o erro retirar a0 agente a oportuni- dade de confronto ¢ motivagéo com a norms incriminadora. Ora, é precisamente essa ideia que impde um critério de base factual ¢ descritive » 9 na abernatio ictus, apoiado na verificagéo da pluralidade de aogbes © na autonomia da deciséo de agir relativamente & acgio conererizada. ‘Um possivel reste sobre a relevancia do erro sera a indagacio sobre se 0 agente agiria caso nfo existsse o erro, 0 que mecece, relativamente a0 crime consumado pelo desvio na execucéo, em principio, uma resposta negativa. E certo, porém, que a mesma resposta poderd ser dada em casos de erro sobre os motives, em certas situacées de erro sobre a pessoa. Assim sucederd se, por exemplo, A quiser macar B, sua mulher, mas por erro de percepcio, no escuro, matar a filha que adorava. Sbvio que o erro sobre os motivos impede o agente de se motivar de acordo com o Direito relativamente & verdadeira vitima. No entanto, neste iltimo caso, podemos mesmo assim reconhecer que, colocado 0 problema no plano de uma acco de marar dirigida a uma pessoa deve ada, que é representada como vitima no momento da accio, 2 questo a levantar é a Je saber se o agente teve condicGes de se motivar K de acordo com a norma que protbe 0 homicidio relativamente & sua acgo nas circunstincias concretas, sendo a resposta afirmativa No caso da abervatio ictus, nfo seré adequada a formulacko genérica rnos mesmos rermos do erto sobre os motivos, porque tal salucto € impedida pela autonomia de cada uma das acg6es realizadas pelo agente, cou seja, pela falta de unidade de acco. A segunda acco nio ¢ finali ticamente controlada pelo agente no momento da deciséo. oink Eto? 626 Fernanda Pala Diferenciada a questo quanco 2 cada uma das acgbes ESS ecretireréarde que a oportunidade de motivacio em termos de verdadeira deciséo de agir relativamente & norma que prevé 0 crime doloso, est4 diminuida na segunda condura, a nfo ser que o prdprio erto na execugio esteja contido numa decisfo dolosa ampla que inelua, a titulo de dolo eventual, as vicissitudes da execugio relat potenciais. Por exemplo, o agente dispara na ditecgio de A, mas prevé © conforma-se com a possibilidade de atingir B, por falca de pontaria, 0 que acaba por acontecer. © pono de vista da andlise, nestes casos, & em conclusto, a verifi- cacio da unidade ou pluralidade de acc6es a partir da incerpretagio da deciséo criminosa, como critério prioritétio, ¢, em simultdneo, o critério de oportunidade de motivacao referido a cada acco concreta realizada pelo agente, mente a oucras vitimas 5. A figura da aberratio ictus pode surgir em certas configuragSes complexas. Poderemos destacar as situagées em que & especialmente Gificil a distingao entre a abernatio ictus € 0 erro sobre a pessoa ou sobre © objecto e as situacées de aberratio ictus com dolo alrernativo. 42) Em certos casos, torna-se dificil saber seo ento & de execugio ou de percepeio, quando o agente nao execuca directamente 0 facto, mas faz através de uma outra pessoa, e em que, por isso, hi, por parte do agente, uma falta de dominio da execusao. A envie uma carta armadi- Ihada para matar B, mas 0 corteio engana-se no endereco e entrega-a 2 C, que nem sequer & conhecido de A, matando-o. Pergunta-se, entdo, se estaremos perante um erro de execugio ou perante um erro sobre a pessoa por parte do autor mediato “, isto é, da pessoa que utiliza outra como instrumento inocente. Deverd o agente ser punido por homicidio doloso consumado ou em concurso por ten- © © problema foi muito discutido, na verdade, na douttina a propésito do caso Rose-Rosahl, trtado em 1858, Ch. STRATENWERTH, ob, city §8 82, 9B, p. 120, 0 yoo 2! faeces L vamp gue coo pent? : Exeluiéo do dalo por ero or tativa de homicidio e homictdio negligente? Prevalece o desvio de execugio ou o erro sobre a pessoa do autor material? estes casos, haveria argumentos a favor do erro de execugio, por- que © autor material se manifesta como uma arma desviada ou um maquinismo avarlado que falha 0 alvo. Mas também hé argumentos contra, j4 que o agente cria um risco muito intenso de erro do autor material, que torna previsivel aSféstltado. E discutivel que haja, aqui, duas acgBes. Serd mais correcto dizer que h4 uma tinica acgdo em que ‘05 motivos do autor mediato nao se conseguem concretizar. Por outro lado, seria sempre complicado qualificar como tencativa de homicidio contra a vitima projectada a mera expedicio da carta no corseio, sem qualquer outra conexdo com ela, ye malt” A solugo que qualificaitémo erro sobre a pessoa e pune pelo crime doloso consumado é, neste caso, a que melhor interpreta e esgora 0 ilicica do facto. O agente que tem 0 domfnio do facto apresenta um dolo especialmente intenso, que néo pode deixar de incluir implicia- mente 9s riscos de erro. Esta andlise nfo se aplica directamente ao caso germanico muitas vezes citado pela doutrina (caso Rose/Rosehal) em que o instigador pretendia que o aucor material matasse uma certa vitima e este, por erro sobre a pessoa, mata outra. A. doutrina alemé dominante tem entendido que haveria aqui uma abervatio ictus do instigador e um erro sobre a pessoa do autor material, sendo ambos, por isso, punidos de modo diferente. Justificarse-d esta solugio ¢ uma diferenca de tratamento entre este caso ¢ 0 anterior? ‘A qualificagio como aberratio ictus do ero do instigador teria con tra si a inexisténcia de perigo real efectivo contra a vitima projectada, 0 que tornaria a tentativa uma consteugio artificial, Também a qualifica- Gio do homicidio projectado como uma tentativa imposstvel, por ine- xisténcia do objecto tipico, nfo teria cabimento, pois hd uma pessoa, que corresponde ao abjecto tpico ¢ é atingida. Os casos tratados pela jurisprudéncia alema em que se admiciu 2 aberration ictus So casos de instigagio e nfo de autoria mediata, em que 6 agente apenas determinou dolosamente outrem & prética de um crime oink tar 628 Femanda Palma contra certa pessoa e o autor material, por erto, velo 2 confundic a vitima, © 2 cometer o crime contra outra pessoa, Neste caso, o instigador, nos termas do artigo 26., in fine, do Cédigo Penal néo detém 0 dominio do facto e, embora tenha sido ele a determinar a vontade dolosa do aucor material, nfo a pode controlar durante a execugo do crime, pois o autor material ¢ também um agente doloso autonomamente responsive ‘A questo que se coloca é se deve ser atribuide 20 dolo do instiga- dor 0 “desvio de mandato” ou utilizar antes, por analogia, a figura da aberrato ictus. Também, aqui, se veré de concluit que nfo é concebivel uma verdadeira tentativa e ha um erro do autor material sobre objectos tipicos idénticos. Se, na autoria mediata, tem sentido reconduzir todos as erros sobre 2 pessoa ou sobre 0 abjecto ao dominio do facto do autor mediato, jé ‘num caso em que este dominio nao existe, por estarmos no ambio da comparticipacio criminosa, néo terd justificacao alterar « doucrina tra- dicional do “excesso de mandato”. Ressalva-se apenas a hipérese de se demonstrar, em contexto de erro, a existéncia de dolo eventual Deste modo, o instigador seria punido pelo crime consumado do autor material, a titulo de dolo ou de negligéncia, conforme o grau do seu conhecimento ¢ aceiracio prévios do desfecho da acco. A parcilha de responsabilidade entre o instigador ¢ o autor material justifica esta solucio diferenciada. 4) Uma outra sitmagio que a doutrina penal tem considerado € a do dolo alternative (".” Nesses casos, 0 agente pretende atingir 4, sendo-lhe indiference que venha a atingir B, Nao tem de se tratar sequer de dolo directo relativamente a uma das vitimas e dolo eventual relati- vamente & outra mas pode tratar-se mesmo de um dolo directo aleer- Verifica-se um dolo que admive uma acgio imprecisa ¢ sem um desenvolvimento concreto assegurado a priori, relasivamente a uma de "0 CE, sobre a figura, RoxIN, Soupiecht,Allgemeiner Tel, 3. ed, 1997, $5 12.%, 49, p. 02 Coinor tons Exclasto do dole por ero duas vitimas, embora se possa prefer atingir a vitimas quanto & qual se falhs, Nesses casos, a duvida que se coloca é saber se estamos também perante uma tencativa e um crime doloso consumado ou se apenas perante um s6 crime doloso consumado, por se er atingido apenas uma das vitimas. 4 Dales aed ceeeosuacat does eau ad €0 crime doloso consumado. A acsio promovida pelo agente era biva- lente — encerrava em si, em altecnativa, uma possbilidade de atingir qualquer uma das vitimas (embora se prefersse atingir uma delas)xe era sustentada numa decisio de atingir qualquer uma delas. Ambas as viti- mas foram objecto da acco e ambos os concretos bens juridicos — a vida de cada pessoa — foram postos efectivamente em perigo ‘A demonstragio da existéncia de perigo pode fazer-se com recurso a0 exemplo em que uma das potenciais vitimas ndo estivesse presence, embora o agente,’ distinciy, de-wie-dispere pensasse, por erro, que poderia estar, ¢ 4 vitima présente nao viesse a ser atingida, E ébvio que nao deixaria de existir uma cenrativa de homic(dio quanto & vitima presente. Nessas condigées, a conclusio a retirat € 4 de que a punigao das situagies de dolo alrernativo se deve fazer considerando um cone curso entre centativa (necessariamente dolosa) e a de crime dolosa consumado, Il — O ERRO SOBRE PROIBICOES LEGAIS E ELEMENTOS: NORMATIVOS DO TIPO 6. A complexa estrucura dos tipos legais de crime, que compreen- dem elementos de diferente nacurera, tadicionalmente classficados em desctitivos ¢ normativos, leva-nos a analisar com algum pormenor os, ertos que incidem sobre os elementos normativos do tipo ou as préprias proibigdes legais que formam 0 contetido de ilfcivo dos tipos legals de crime. Nestes casos, as fronteiras entre um erro sobre a factualidade tipica verdadciramente excludente do dolo, enquadrével no artigo 16.% n.° 1, 179 do Cédigo €0 erro sobre a ilicitude cujo regime seja 0 do a Coinse etre 630 Femand Palma Penal, meramente excludente de culpa, sfo, por veves, dificeis de tragar e até podem revelar uma instabilidade doutrindria, O regime legal portugues é sobrecudo influenciado pelo pensamenco de FIGUEIREDO Dias “, que distingue os ertos de tipo intelectual dos extos de tipo moral, mas que também nesta macéria sempre fez repercu- tir na naturera do erro 0 respectivo objecto. Assim, se o dolo tiver como objecto elementos constitutives do tipo de ilfcito, mesmo que esses elementos sejam normativos ou até puras proibigées legais, estarcmos sempre perance um erro do artigo 16.°, n.° 1, excludente do dolo, Dois aspectos néo verdadeiramente autnomos se conjugeriam, deste modo, para que um erro sobre valoragdes ou proibig6es seja ainda erro do tipo, excludente do dolo: a prépria posigéo do agente perante 0 conhecimento — a ignorncia de cariz intelectual sobre o significado da conduta ¢ néo 2 divergncia com o legislador sobre a valoragio da con- duta — e 0 objecto sobre que incide o erro, distinguindo-se as situagBes conforme o erro incida sobre elementos constitutivos do ilicito tipico, dos quais depende a prépria matéria da proibigio, ou apenas sobre 0 significado valoracivo da conduta tipica. Desea conjugagéo resultaria, afinal, que 0 erro excludente do dolo deveria sempre impedir o agente de comar conhecimento dx matéria proibida (mesmo que ela seja constituida por elementos nfo percepcio- ndveis pelos sentidos) e nao apenas do significado dessa matéria. A doutrina portuguesa nao tem acompanhado sem hesizagbes esta dogmética, inspirada em FIGUEIREDO DIAS e enfortmadorido artigo 16.°, ne I, in fine. A solugio é sobretudo discutivel na medida em que 0 critétio referido apele a uma ouera distingio, que se refere & relevancia do erro sobre proibigées quando estiverem em causa condutas aparen- temente neutrais no plano axiolégico — ¢ nfo condutas cuja relevancia axioldgica seja evidence. Segundo tal distinglo, excluiia 0 dolo, por exemplo, a ignorancia sobre a necessidade de efecenar um pré-aviso para realizar uma manifes- A past da sua obra © Problema da Conscigncia da Iicitude em Dineito Penal, 1 e., 1968. Exclasto do dolo por ero tagio (sob pena de incorrer em desobediéncia), na medida em que a condutz é, em si mesma, neutra (até corresponde, em abstracto, a0 exercicio de um direito fundamental). Mas jd no excluiria o dolo 0 desconhecimento quanto ao prazo legalmente previsto para a interrupeso voluncéria da gravidez, visto que a conduta, por atentar contra a vida incra-uterina, nunca seri axiologicamente neutea. As diividas que a doutrina portuguesa tem suscitado sfo de duas ordens: dividas quanto & relatividade e subjectividade cultural do que se entenda como eticamente neutro “® ¢ dlividas quanto & existéncia de deveres especiais de conhecimento em certas esferas socioprofissionais. A primeira dessas diividas apenas contesta a imprecisio do critério em certas casos. Por exemplo, em matéria de crimes ambientais, como 2 poluigéo, que estejam dependentes do escudos vécnicos e cientficos, bem como de regulamentos complexos, existird, eventualmence, no préprio desconhecimento da proibigso pelo agente, uma repercussio écica negativa sobre toda a sua conduta. A cisio entre a conduta e 0 significado conferido pela proibi¢io, dada a natureaa de conduta neces- satiamente regulada, néo tem justificacio. O mesmo se poderd dizer dos comportamentos que subjazem a crimes econémicos como a especulagio ou o acambarcamento, Mas 0 exemplo mais fictica ¢ 0 seu desvalor normativo é 2 conducio auromével. Conduzir nunca é um facto neutro, apesar de, prima facie, a sua relevancia éxica ser muito diferente de disparar uma arma ou envenenar um alimento. Mas conduzir nfo é, na realidade, um facto neutro porque cia riscos € xugestivo desta impossibilidade cle cisio enere a conduta corresponde a uma actividade necessariamente licenciada e regulada. A esta ditvida acresce a existéncia de deveres especificos de conhe- cimento em certas Areas profissionais que so pressuposto do exercicio de uma actividade e da prética de condutas inseridas nessa actividade. Por exemplo, o desconhecimento por um empresirio de regras contabi- 6 CE Tenusa Beteza e FReDenico Costa Pino, em O Regime Legal do nro as Normas Penais em Branco, 1999, e JOSE ANTONIO VELOSO, Erro em Direito Penal, Lisboa, 1933, p. 22.6, listicas ou a ignorincia por um produror alimentar de regras sobre a composigéo de um produto exprimem, cambém, uma situagio de indiferenca acerca das limitagées da actividade regulada ¢ dos efeitos nocives de toda uma linha de comportamentos. A pertinéncia destas diividas e erfticas quanto & distingSo entre condutas eticamente relevantes ¢ neutras ¢ irrefutdvel. Mas também é verdade que nio é legicimo confundir o elemenco intelectual do dolo com o mero dever de conhecer que catacteriza a negligéncia. Por outro lado, é sabido que a multiplicagéo de regras técnicas torna olfmpico 0 exercicio de certas actividades sociais. ‘A questio a resolver transfere-se, deste modo, para a procura de um equilibrio juridicamente fandamentado entre 0 erro sobre proibigées excludente do dolo e erro que s6 pode relevar em sede de culpa, na base da existéncia de condigées ou oportunidades razodveis de conheci mento, pelo agente, do sentido efectivo da sua conduta. Essas condig6es ¢ oportunidades decorrem de witios factores como a insercio profissional do agente, a evidéncia das regras e a propria perigosidade das condutas Seri, assim, na base da razoivel aquisigfo a partir da conduta, em todo 0 seu contexto socal, da consciéncia da lcitude que te cabimento distinguir o erro do artigo 16.9, n.2 1, do erro do artigo 17.° do Cédigo Penal. A metodologia da distingao passard, deste modo, pela anilise daqueles factores refetidos ¢ que sinteticamente produsieo um resuleado de evidencia do sentido cipico da conduta, 2 luz da conexio entre a nser¢io do agente na actividade social ¢ a relevancia do licenciamento dessa mesma actividade. O erro nfo excludente do dolo nesses casos baseia-se ainda numa representagio inevitével da gravidade da conduta, tal como acantecerd na condugio em contramao a alta velocidade, numa estrada com circu- lagéo normal, com toral indiferenga pelo risco, O que ¢ importance, nestes casos, € que 0 agente nfo é surpreendido com o sentido da acco conferida pela regra, que nfo procura conhecer. Ele aceica implicicamence 9 CF, Jose ANTONIO VELOs0, text. cit, lo. cit. ein tron Exclus do del 633 © resultado tipico que deriva de no procurar conhecer a conduta que a regra preconiza, Diferencemence se cerd de concluipy num caso em que 0 agente contacta de novo com uma actividade que passou a ser regulada ou que veio a ser regulada com novos critérios. Assim, no caso versado num Acérdgo do ‘Tribunal Constitucional, em que um grupo de mulheres se candidatou numa lista de cidadios independentes, nas primciras cleigées autdrquicas em que tal foi admitido, o alegado desconhecimento de que tinham o dever de prestar contas como os partidos politicos, mesmo na auséncia de despesas, isto é a ignorincia da extensio do dever, pareceu impedir que elas caracterizassem o comportamento como ilicito, dada a sua falta de experigncia politica “®. A falta de experiéncia terd motivado a falea de oporcunidade de conhecer os deveresjuridicos que impendiam sobre elas. 11 — 0 DOLO COMO PROBLEMA CONSTITUTIVO DA IMPU- ‘TACAO SUBJECTIVA E © ERRO A definigéo de dolo e os seus limizes, configurados pelo problema do erro, foram considerados no presente texto como questio de impu- taco, ou seja, de atribuiczo de conduras determinadas 2 certos agentes. HA, por isso, uma dimensio diversa de uma mera andlise conceptual estitica da ideia de dolo que perpassa na lei. Estamos, na verdade, perante 0 problema de saber como se constr6i um juizo de atribuigko de significado e valor a uma conduta do agente, no plano da identidade do acontecimento attibuivel subjectivamente Nio se trata, apenas, de fazer a andlise das caractertsticas que uma conduta tem previamente e em si mesma para ser considerada dolosa, mas ainda de uma andlise em que se decide’ ‘que esti em jogo, como intengo normativa na qualificagio de um comportamento como doloso. {8 Ck Acérdfo do Tribunal Constitucional n.° 452/99, beiprwwuseribunal- constnuconal ptlclacordaesl19990452bem eaouatirnente do Para &rabelecer um paraelismo com um exemplo quotidian, néo se trata“penes de, por identificheSo, e descritvamente, concluic quais as caracteristicas exactas que fornam uma pessoa ou um objecto belo, mas de compreender 0 que implica ¢subjez & atribuigio da qualificagéo como belo a um objecto,/em rermos sociais € linguisticos. Noutros termos, a consideragio de uma pessoa como bela pode tet alguma fun- gio em certa situagdes, como a utlizagéo da sua imagem para vender um produto de beleza ou, menos prosaicamente, como concretizacio de um ideal estético, endo, por isso, necesséio cragar os crtéros da beleza em fungio dessas consequéncias que se pretendam aleangat. A pesoa bela para efeitos de marketing ndo o serd necessatiamente em texmos artisticos. © juizo de imputagio no Direito Penal envolve, também, uuma deciséo sobre o sentido em fungio das consequéncias, neste caso das consequéncias penais e no sistema penal, q.v0 clorccunlye @ coueghz@ sect ‘Assim, na impucagio subjectiva existem estes dois planos: a carae- terizagio conceptual de tipos de condutas e 2 atribuigéo de um valor em fungio das consequéncias para a responsabilidade penal do agente. A decisio que envolve a qualificagao de um comportamento como doloso tem a sua dimensio de ponderagio ¢ de repercussio das implicagées numa decisfo concreta das finalidades do sistema penal. Quando nos conftontamos com o significado de impurar o dolo & conduta do agente, reremos de apurar se procuramos uma matéria psicolégica realmente existente e vivida pelo agente, um modo objectivo exterior de compor- tamenta que, como uma espécie de “fordgrafos” identificamos ou se apenas falamos de um jutzo baseado em certas premissas que constituem uma inquiticio racional sobre o significado que o comportamenta pode- ria te. Existe, na Filosofia, um debate entre uma concepgfo introvertida e outra extrovertida de voncade que afecta 0 que seja concebido como ‘comportamento intencional. Esté em causa saber se a intencionalidade €um fenédmeno mental, rclativamente privado e intimo (concepgao introvertida de vontade) ou antes um modo de comportamento identi- ficével pelas suas caracterfsticas externas, como, por exemplo, a direesio (em que se aponta uma arma ou se move um objecto (concepgio extro- vertida de vontade).. « do cag) cul fete haber ho ce hee yer Excite do delo por erro 635 Esta discussio da Filosofia cem um interesse fundamental para 0 Dircico, mas nfo esgora o problema que estd em causa na imputaczo do dolo. Enquanto na Filosofia, se procura saber 0 que significa e pode ser designado como acco intencional ” ¢ que sentido tltimo tem dis- tinguir acg6es intencionais das que 0 no séo (procura-se, na verdade, conhecer 0 sentido iiltimo da atribuigéo, pela linguagem, de certas qua- lidades a alguns comportamentos), no Direito interessa, sobretudo, distinguir formas comportamentais que justificam a atribuigdo de res- ponsebilidade ¢ 0 grau de responsabilidade ‘Com efeito, na Filosofia,procurar-se-d saber, por exemplo, se hé fenémenos mentais que se fepercutem na realidade como verdadeiras causas, de que as intengées seriam uma espécie, ou qual é 0 significado, em termos de linguagem, de designar um comportamento como inten- cional. ANSCOMBE diz que o comportamento intencional é aquele que, sendo sujeito a uma pergunta de “porqué”, obtém como resposta as raabes de agir ®, Também na Psicologia se procura entender como se processa mentalmente uma acco intencional, na perspectiva dos fens- ‘menos observiveis ou que podem ser compreendidos ‘Mas, no Direito, © que pracuramos saber é se as acgbes, concebidas pela Filosofia ¢ descritas pelas Ciencias (Psicologia, Neurociéncia) como cencionais, devern ser suscepriveis de um nivel especifico de responsa- bilidade, se apenas elas merecem a mais elevada distingio de responsa- bilidade e como se identificam em termos processuais. # claro que a0 Direito, com estas finalidades especificas, podem nao imporear em absoluro os conceitos das outras éreas de pensamento, por nfo se adequarem aos seus fins. Porém, sendo essencial para o Direito © Que, neste context, funciona em total paralelisme com 0 coneciojunidco ée esio dolass. CF fobre este pono, a minh diseragio de mesteado, Dittingdo ene dolo eventual e neglgénca concente — Jusificegto de um ertéio de vowtade, 982, p. 149 ess, eA Vontade no Dolo Eventual, em Eitudor om Homenagem & Priore Doutare abel de Magalbder Colle, s2p., 2005. 89 CEG. E. M. ANSCOMBE, fenton, 2. ed, 1963, $$ 5.8, 8°, pp. 7-261 cf, JEFF SPEAKS, A guide ro Anscombe’ Intention’, $§ 1.°,31.% 2004, em tp vwow.nd edufjspeaksimagil’. Coint Eto 636 Fomanda Palma saber que formas de comporamento justificam responsabilidade e dife- renciagées de responsabilidade, cerd de se utilizar como referéncia 0 conhecimento acerca do significado de designar uma conduta humana como intencional. E, deste modo, néo pode o Dircito prescindir nem da Filosofia nem das préprias Cigncias, como a Psicologia, a Sociologia ou mesmo a Neurociéncia, que Ihe podem fornecer informacio sobre 0 comportamento humano. Significa esta dkima reflexio que um pensamento extra-juridico édica compreensio das consequéncias das distingSes entre dolo e negligncia, bem como das consequéncias excludentes ou no da responsabilidade das diversas figu- ras de erro. Nao é, assim, uma tabela de figuras de comportamento doloso ou de situagées de erro com as suas consequéncias 0 que imporra a0 Direito Penal. Inceressa-Ihe a compreensio dinamica do merecimento das conduras — superior nas condutas dolosas, na medida em que elas revelam a mais elevada opornunidade (por forga da representagio e von- tade relativamente a0 facto eipico) de o agente opcar por alternatives de acgio em face do conhecimento disponivel sobre 0 abjecto ¢ os efeitos da sua conduta. sobre a accio intencional é constitutivo de uma met

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