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Franeysco Pablo Feitora Goncalves é Mestre em Direito pela Universidade Cardia de Pemambuco (Unicap), Professor na Faculdade Estdcio do Recife (Estdcio - FIR) ena Faculdade Integrada de Pernambuco (Facipe) cAdvogado. A Inclusao das Pessoas com Deficiéncia e as Problematicas Isengées do ICMS na Compra de Veiculos Automotores Francysco Pablo Feitosa Goncalves 1. Consideragées Primeiras ‘As pessoas com deficiéncia sao um dos grupos vulnerd veis que mais sofreram preconceito ao longo da histéria Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Esta- tistica - IBGE, cerca de 14,5% da populacao brasileira pos- sui alguma deficiéncia. Vale lembrar que no Censo 2000 hravia quase 170 milhoes de pessoas habitando o Brasil, ni mero que aumentou para mais de 190 milhdes, de acordo com 0 censo de 2010. Um célculo simples nos revela que, hoje, cerca de 27.550.000 pessoas teriam alguma defi cia no Brasil. Isso faz com que essas pessoas sejam “nossa ‘Mais de 27 milhoes meio de brasileiros com alguma deficiéncia e, por conta disso, em condigao de vulnerabili- dade social, lutando pelo reconhecimento ¢ afirmacao de seuss direitos. O presente trabalho pretende contribuir para o debate em toro dos direitos dessas pessoas, abordando 0 Direito Tributario e, mais especificamente, analisando os problemas das isengdes do ICMS na compra de veiculos automotores, quando empregadas visando a promogio da inclusio social das pessoas com deficiéncia. Para a consecugao desse objetivo, abordaremos breve- mente as questdes referentes a inclusdo das pessoas com deficiéncia, tentando estabelecer os conceitos ¢ premissas, que nos guiardo na efetiva anilise das isengdes. Na sequén- cia, faremos a andlise das isengdes do ICMS quando da com- Foderamos zener ures esbtando tts afimalive. Apes «ula de exemplo, itanos Damien Hazard, que iz qe "a efiiacia nota un longa Ista de ducrininaio ede enleso" ("Os Dieitos das Pesoas Potadras de Defiiécia" nv MOSER, Claudio; e RECH. Daniel (orgs). Diets Hmanos no Bran. io e Janeiro Css, 2005, p08) e Nelon Kp, pre quem "As pessoas ‘com dficiaea ‘lve enon igostmeafetadae por presonesto reigoro © ‘Gsceiminago social ma hatisia de hamansdade" (Rypirinalidadee Compromis 4. Sio Leopoldo: Sinodal. 2008, p. 70) * CL hpi diitnhumanos pv bpessons-com-defcieneslcensoleaso 2010, ‘SANTOS, Wederton Rufio do, “Pessos com Deficit nota Mar Mira Physi: Revise de Sade Coeiva "3. VoL 8. Ro 6 Tani, eter de 2008, Disponve em ps seo bacco pp pidaS0105-735 1200800000008 serps ater pra de automéveis, procurando avaliar de forma critica os problemas priticos que tas isengdes ocasionam, bem como as solugdes que a jurisprudéncia vem dando aos ‘A forma de abordagem permanece a mesma de trabalhos anteriores que reali- zamos no Direito Tributério, Continuamos considerando a tributagao um fendme- no demasiado complexo para ser visto pelo jurista apenas em seu aspecto normati- vo, devendo considerar, igualmente, os efeitos que ela provoca na sociedade, Nessa perspectiva, antes de passar ao contetido do trabalho propriamente dito, convém re- gistrar que, diante da complexidade dos temas que estamos abordando, nao temos a menor pretensio de exauri-los em um trabalho tio breve como o presente. Nosso objetivo ¢, tao somente, contribuir para o debate em torno deles. 2. Sobre Deficiéncia ¢ Inclusio Nesta segao iremos apresentar algumas premissas e conceitos necessérios a0 desenvolvimento do tema do presente artigo, uma vez. que nao temos como falar no potencial inclusivo das isengoes sem antes deixar claro o que entendemos por in- clusdo, Falar em incluso na perspectiva deste trabalho, por sua vez, pressupde es- clarecer como vemos a questio da deficiéncia. Compreendemos a deficiéncia como uma construgao social, e nao como uma caracteristica essencial & pessoa, Nossa compreensio, que num primeiro momento pode soar estranha ou contraditéria, é facilmente constatével quando deslocamos a questao de o que é deficiéncia? para deficiéncia para qué? Um cadeirante certamente possui uma deficiéncia diante de uma escada, mas, se tiver acesso & formagao adequada, poderé set eficiente para atividades intelec- tuais; ja uma pessoa com deficiéncia mental poderé ter dificuldade para as mesmas atividades intelectuais, mas poderé se revelar perfeitamente eficiente no desempe- ho de atividades mais simples. A deficiéncia, nessa perspectiva, sempre depende do contexto em que as pessoas se encontram ¢ das expectativas que nos, enquanto sociedade, temos em relagao a elas. Nesse sentido, Luiz Alberto David de Araiijo lembra que “hd relacionamento fntimo entre deficiéncia e tarefas a serem desenvolvidas, ou seja, a pessoa portadora de deficiéncia deve ser, de preferéncia, analisada no meio em que vive, na sua condigo social. Muitas vezes, numa cidade como Sao Paulo, determina- da pessoa é tida como portadora de deficiéncia, podendo, em outra realidade social, com certeza, desempenhat, de forma satistatéria, tarefas rarais simples." Claro que sempre haverao argumentos contrérios a essa compreensio, notmal- mente no sentido de que existem condigdes ¢ caracteristicas tao limitantes - por exemplo, a etraplegia - que sempre seriam deficiéncias. Fm resposta a tais argumen- tos sempre mencionamos as pessoas que, embora possuam caracteristicas limitan- tes, conseguem se mostrar plenamente eficientes,* e como contra-argumento, desa- + ARAUIO, Lai Alero David de. A Proterdo Conttuional dar Perron Portadoar de Deficéncia Bras Ci ep. Coma exemploe de pesout fetes peta dat ss imitaSex, menconamor Stephen Hawking, us das menter sais bulates de todos os txpos que, embore pracamente inoblizad,cousege ser exuemaneste eile fiamos quem apresenta os argumentos contrérios a questionar seus préprios (pre)conceitos e, sobretudo, a0 qué suas opiniGes se vinculam, Sim, porque nenhum discurso provém de um vacuo social nem é nele proferi- do.* Todos os nossos discursos provém de nossas (pré-)compreensdes e sao recepcio- nados pelos nossos interlocutores a partir de suas prOprias (pré-)compreensies. Todo discurso acaba se vinculando a um estado de coisas e pretendemos vincular 0 nos- so & causa da inclusio de todas as pessoas, independentemente de suas caracterfsti- E nesse ponto que deixamos a pergunta: seré que um discurso que rejeita a de- ficiéncia como construgao social nao é um discurso vinculvel ao preconceito ¢ & exclusio? Acreditamos, portanto, que a forma mais adequada de compreender a deficién- cia € a partir de um modelo social.” Nesse sentido, se uma sociedade normal e ot- ganizada “é aquela que consegue estabelecer um sistema que, razoavel ¢ eficiente- mente adaptado ao meio fisico, também permite aos seus componentes a sobrevi- véncia e 0 cumprimento das tarefas geralmente entendidas como necessérias, dese- Jéveis ou simplesmente toleradas pelo grupo”,* entao parece razodvel contrapor 0 modelo social de deficiéncia a um modelo, também social, de eficiéncia. ‘Num mundo povoado por cerca de seis bilhes de pessoas humanas - onde ine- xistem duas sequer que sejam rigorosamente iguais em tudo - habitando socieda- des extremamente complexas, parece adequado afirmar que todos so, simultanea. mente, capazes de fazer determinadas coisas ¢ incapazes de fazer outras. Todos so deficientes em relagao a determinadas coisas ¢ situagées, da mesma forma como sio cficientes em relagao a outras. Nao por acaso, o texto da Convengao sobre os Direitos das Pessoas com Defi- cigncia registra expressamente em seu preambulo que os Estados-partes, no ato da sua assinatura, estavam: “Revonhecendo que a deficigneia é um conceito em evolugio e que a deficiéncia re- sulta da interagao entre pessoas com deficiéncia eas barreiras atitudinais e ambientais ‘que impedem sua plena eefetiva participagio na sociedade em igualdade de oportuni- dades com as demais pessoas.” A partir do que viemos refletindo até o presente momento em relagao & questo da deficiéncia - um estigma que acaba representando alguma forma de exclusio qualidade da obra do ese argentino Jorge Luis Borges parece er melboado& media em qe ele peta a visio Asiamor segue exemplifeando inésiidaets, ras nese momento 0 propo leer provanelmeate js deve ete Iman de outros Uns cass em que pessons se mostam ecenles em deiento de suas elites. tes concopsio, evident «quem tem atliaidade com or ests da linguage, eves pata despereebids sot {Sociedade Recife: Appodi. 2011, passim ep. p 405, Bra a efledo sire o model social em eporgho ao todslo mica de deficitci,reomendamoy a dvseragso de Ceisiane Pasgua Prunes (Ser Deficient ser Brvelhescente ser Deseonte. Cuso de Mesto em Gong. ‘Sto Palo: Pots Universidade Calica de So Paulo, 200, 108) ROSA, Pelppe Anguto de Miran. Patologia Sociol uma Inrodusdo ao Eetuds da Desorgonzag Soca, Rio te Tani: Zao, 197%, pp. 28.2. Organizasio dus gies Unidas, Conencdo sobre or Diets das Peston com Defiléci,aprovad pla Aten ‘eta Geral dus Nagaes Unidas, vo dia 6 de ezetbco de 2006, ataves dx Reselogie AI/SI1- Como notin, ‘efein Consens ingresion no ost ordenameato com satus de Eten 4 Contig, social -, pela via oposta, concluimos que é exatamente nisso que consiste a inclu- so, na ideia de se construir uma sociedade apta a receber todas as pessoas, em to- das as suas especificidades," proporcionando a tais pessoas os meios necessirios para que elas possam contribuir eficientemente para a prdpria sociedade. A cons- trugao dessa sociedade inclusiva passa, necessariamente, por uma reformulagao do nosso modo de pensar a deficiéncia ¢ das politicas piiblicas, inclusive tributérias Nesse ponto & conveniente trazer mais um excerto da Convengao sobre os Di- reitos das Pessoas com Deficiéncia, porquanto os Estados-partes estavam: “Reconhecendo as valiosas contribuigdes existentes ¢ potenciais das pessoas com de- ficiéncia ao bem-estar comum e & diversidade de suas comunidades, e que a promo- a0 do pleno desirute, por pessoas com deficiéncia, de scus direitos humanos ¢ liber dades fundamentais e sua plena participagao na sociedade resultaré na elevagio do seu senso de fazerem parte da sociedade e no significative avango do desenvolvimento lnumano, social ¢ econdmico da sociedade, bem como na erradicacao da pobreza." Convém notar que a incluso, conforme a concebemos, possui intima ligagao com ideia de direitos humanos, Qualquer discurso que pregue a universalidade dos direitos humanos, alids, vai ser um discurso que direta ou indiretamente trata da questo da incluso. A incluso se vincula, ¢ também com muita intimidade, & de- ‘mocracia, enquanto valor e enquanto procedimento, Joao Mauricio Adeodato nos Jembra que “As democracias vivem a partir da domesticagao da intolerancia, pois a democracia significa inclusao, regras comuns, reconhecimento do outro, fragmen- taco do poder”! Nossa concepgao de incluso, em suma, nao pretende ser algo inédito ou ino- vador, pretende, muito mais, reafirmar os ideais de todos que, anteriormente, defen- deram a construgio de uma sociedade para todos. Dito isso, passamos & andlise das isengdes do ICMS. 3. As Isengdes do ICMS e seu Potencial Inclusivo Visto, ainda que superficialmente, o que representa a ideia de incluso, temos, enfim, o momento adequado para analisar, especificamente, o Comvénio ICMS 03/2007 ~e suas alteragdes posteriores ~ no que interessa 4 inclusao social das pessoas com deficiéncia. A cléusula primeira mostra a que veio o Convénio c estabelece os re- quisitos para a concessao do beneficio, dispondo que ficam jsentas do ICMS as safdas internas e interestaduais de vefculo automotor novo com caracterfsticas especificas para ser dirigido por motorista portador de deficiéncia fist- ca, desde que as respectivas operagdes de saida sejam amparadas por isengo do Im- posto sobre Produtos Industrializados - IPI, nos termos da legislagao federal vigente Para compreendermos quais veiculos fazem jus 3 isengao, portanto, precisamos recorrer & Lei 8.989/1985 (¢ altcrayées posteriores): “Ant. 1° Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados -IPT os automéveis de passageiros de fabricagao nacional, equipados com motor de cilindrada no supe- * CE SASSAKI. Romeu Kazumi Indo: condo sna Sociedade para Todo. Rio 6 Inez: WVA, 1997 ® ADEODATO, oto Masco. “Fungo Retrics do Ditto 1 Consrio das Fronters a Tolernea In: CAS- "TRO JUNIOR, Terquato da Siva (Coord). Anu des Cursor de Pir graduaio em Diet 17, de 207. Reck- fe Bape, 2008. p11 rior a dois mil centimetros cibicos, de no minimo quatro portas inclusive a de acesso a0 bagageiro, movidos a combustiveis de origem renovével ou sistema reversivel de combustao, quando adquitidos por: (...) IV - pessoas portadoras de deficiéncia fisica, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legal; § 1° Pata a concessio do beneficio previsto no art. 1° € considerada também pessoa portadora de deficiéncia fisica aquela que apresenta alteragio completa ou parcial de lum ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da fungie fisica, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monopa- resia, ettaplegi, tetraparesia, iplegia, riparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputa- ‘¢io ou auséneia de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congénita ou adguirida, exceto as deformidades estéticas ¢ as que néo produzam dificuldades para © desempenho de fungdes. § 2° Para a concessio do beneficio previsto no art, 1° € considerada pessoa portadora de deficiéncia visual aquela que apresenta acuidade visual igual ou menor que 20/200 (labela de Snellen) no melhor olho, apés a melhor correcao, ou campo visual inferior 20°, ou ocorréncia simulténea de ambas as situagées.”" Interessante perceber que, 20 selecionar 0 que so as deficiéncias para fins de concessdo da isengao, a norma acaba confirmando a nossa tese de que a deficiéncia € uma construgdo social e uma questo contextual. Nesse caso, para fins de obten- ga0 da isengao, o legislador estabelece a fronteira entre a eficiéncia e a deficiéncia. De posse dessas informagées, podemos voltar cléusula primeira do Convénio ICMS 03/2007. Ela estabelece, em seus pardgrafos, uma série de exigéncias e for- ‘malidades que sao exigidas para a concessao da isengao, Este € um primeiro aspec- to para o qual temos necessariamente de atentar, a clausula supratranscrita estabe~ leceu um procedimento burocratico complexo para a concessao do beneficio. Estas referidas exigéncias ¢ formalidades parecem se destinar a assegurar um pretenso felos da norma, Melhor explicando, se a isengao tem por finalidade favo- recer a aquisigao de vefculos por pessoas com deficiéncia e, com isso, facilitar a sua inclusio social, devem existir requisitos ¢ instrumentos de controle a fim de garan- tir que ela nao seja usufrufda por pessoas sem deficiéncia, pessoas que, portanto, nao precisem da isengGo cm questo. Como exemplo temos o parégrafo 3°, I, “b”, da clusula primeira, anteriormente mencionada, que exige a apresentagao de laudo de pericia médica, fornecido pelo Detran do domicilio do interessado, que “discrimi- ne as caracteristicas especificas necessérias para que © motorista portador de defi- ciéncia fisica possa dirigir 0 veiculo”. Por caracteristicas especificas no veiculo, pressupde-se que 0 mesmo seja adap- tado para as pessoas com deficiéncia, Esta exigéncia, que a primeira vista parece ser razoavel - quem pode dirigir um veiculo normal precisaria da isengao? - pode, 1a pratica, se tornar injusta. E que as montadoras nem sempre se preocupam em dis- ponibilizar adaptagdes para os vefculos de acordo com as deficiéncias reconhecidas em lei. Além disso, em alguns Estados, so poucas as oficinas que adaptam veicu- Jos para pessoas com deficiéncia, A jurispradéncia, entretanto, vem sinalizando no sentido de que a dire¢o hidréulica ou modificagdes no cambio dos veiculos pode- 1 Brasil Lei n° #989, de 24 de fevered 1995 riam ser consideradas adaptagdes para fins de concessio da isengao. Sobre o tema separamos a seguinte decisao do Superior Tribunal de Justiga “Tributério, ICMS. Isengo. Motorista com Deficiéncia Fisica. Estado da Paratba Enquanto esteve em vigor o Convénio ICMS n° 43/94, o portador de deficiéncia fisica tinha o dreito de adguirir um veiculo com ditegao hidréulica e cdmbio autométio, ou com a alavanca manual adaptada, sem o pagamento do Imposto sobre Operagies Re- lativas & Circulagao de Mercadorias Prestagao de Servigos;jé a isengio do Imposto sobre a Propriedade de Veiculos Automotores s6 aproveita a0 portador de deficiéneia fisica se o vefeulo, de fabricagio nacional, oi especialmente adaptado (Lei n* 5.698, de 29 de dezemibro de 1992, do Estado da Paraiba, art, §°, VID), Recurso ondinstio pro vido em parte" Outro problema decorre da exigéncia de que o veiculo se destine a ser dirigido por motorista portador de deficiéncia fisica - vide o caput da cléusula anteriormente mencionada -, sendo exigido inclusive que a pessoa apresente cépia da Carteira Nacional de Habilitagao, sendo feita excecao apenas quando a aquisigao do vefculo se destinar & obtengao da referida carteira, nos termos do pardgrafo 5° da mesma cléusula Essa exigéncia, que provavelmente se destina a impedir que pessoas sem defi- ciéncia se aproveitem de pessoas com deficiéncia para adquirir vefculos com isen- 0, eventualmente se torna injusta. Primeiro porque nem sempre ¢ facil s pessoas com deficiéncia, sobretudo as que residem no interior dos Estados, obterem a CNH - seja por falta de autoescolas com instrutores e vefculos adequados, seja pelo fato de os proprios Departamentos de Transito instituirem poucas comissées para ava- liar tais pessoas. Além disso, e ainda mais grave, € que pessoas que tenham uma deficiéncia tao incapacitante que nao possam, elas mesmas, dirigir um automvel, podem ser pre- judicadas, na medida em precisem de um. Exemplificando, pensemos em uma pes- soa com tetraplegia que precise de um automével para ir & fisioterapia ou alguém com deficiéncia visual total que precise de um automével para ser conduzida & es- cola ou ao trabalho. Em ambos os casos, se a norma que estamos analisando for aplicada de forma pretensamente literal, o vefculo que seria instrumento facilitador da inclusao seré negado a quem mais necesita ‘Agora vamos imaginar alguém que, porventura, tenha perdido um dedo de uma das maos € que, por conta disso, somente possa guiar um carro que tenha direcao hidréulica, Esse alguém, eventualmente, podera precisar menos da isengio do que as pessoas do exemplo anterior ¢ ainda assim obté-la, ao passo que, se as disposi- ges do convénio forem seguidas a risca, as pessoas com deficiéncia que por algu- ma razao estejam incapacitadas de dirigir no poderiam obter a isengao, por mais, que necessitem dela para ter acesso a uma Vida digna, Desconhecemos qualquer julgado dessa natureza, referente a0 ICMS, no ambi- to do STI, havendo, contudo, interessante precedente referente ao IPI: ‘onsticucional. Tributério. IPI. Isengo na Compra de Automéveis. Deficiente F sico Impossibilitado de dirigit. Ado Afirmativa, Lei 8.989/95 Alterada pela Lei n* 10.754/2008. Principio da Retroatividade da Lex Mitior. “RMS 9051, Rel Minio Avi Pagene, Segunda Tuma, jlgago em 312.1998, DJ de 2221999, p. 88, 1.A ratio legis do benefivio fiscal conferido aos deficientes fsicos indicia que indefe- rr requerimento formulado com o fim de adquirir um veiculo para que outrem 0 diti- ja, A mingua de condigées de adaptéclo, alronta ao fim colimado pelo legislador a0 aprovar a norma visando facilitar a locomogio de pessoa portadora de deficiéncia fi- sica, possibilitando-Ihe a aquisigao de veiculo para seu uso, independentemente do pagamento do IPI. Consectariamente, revela-se inaceitével privar a Recortente de um beneticio legal que coadjuva 4s suas razées finais a motivos humanitéios, posto de sabenga que os deficientes fisicos enfrentam inimeras dificuldades, tais como 0 pre~ cconceito, a discriminagio, a comiseragio exagerada, acesso ao mercado de trabalho, 0s obstéculos fisicos, constatagdes que conduziram & consagragio das denominadas agées afirmativas, como esta que se pretende empreender, () 12, Recurso especial provido para conceder & recorrente a isengo do IPI nos termos do art. 1*, § I°, da Lei n® 8.989/95, com a novel redagéo dada pela Lei 10.754, de 31.10.2003, na aguisigao de automével a ser dirigido, em scu prol, por outrem. Se esse precedente nao garante que casos semelhantes referentes a0 ICMS re- cebam o mesmo tratamento, ele - assim como o outro anteriormente transcrito - si- naliza que 0 STJ é sensivel & causa das pessoas com deficiéncia quando elas se de- param com a aplicagdo injusta de uma norma tributéria, Nesse ponto, os mais afei- tos ao formalismo, lembrariam do art. 111 do CTN, que dispoe o seguinte: "Art, 111. Interpreta-scliteralmente a legislagao tributéria que disponha sobre: I suspensio ou exclusio do crédito tributério, IL- outorga de isensio: II -dispensa do cumprimento de obrigagées tributérias acess6rias.” Paulo de Barros Carvalho'* entende que o dispositivo em questi ¢ inécuo ¢ que nao € possivel, em virtude da semantica ¢ da pragmiética, prescrever uma interpre- tagdo meramente literal. Nao ha texto sem contexto ¢ uma norma nao pode ser pen- sada isoladamente em detrimento do restante da ordem juridica, principalmente em detrimento das normas hierarquicamente superiores. Acrescentamos que as isengdes tributirias devem ser interpretadas em conso- nncia com a Constituigao Federal assim como, da mesma forma, 0 préprio art. 111 também deve ser compreendido & luz da Constituigao. Desse modo, qualquer inter- pretacdo pretensamente literal de leis tributérias - no que estas se refiram & suspen- so ou exclusio do crédito tributério, & dispensa do cumprimento de obrigagoes tri- butérias acessérias, ou & outorga de isengdo - nao pode levar a uma afronta & Cons- tituigao.”” ‘Voltando ao ICMS, ¢ em didlogo com as questdes referentes & problemética da interpretacao, os Tribunais de Justiga estaduais ¢ os juizos de primeira instancia contém farta jurisprudéncia no sentido de conceder a isengao as pessoas com defi cigncia impossibilitadas de dirigir. A titulo de exemplo, citamos, pelo seu teor, a seguinte decisdo do Tribunal de Justiga de Minas Gerais: "© Rap 5674796, Rel, Mini Lais Fan, Peta Tra, julado em 1022004, DY e 25.2.2004,p. 120, CARVALHO, Pauio de Bartos, Curse de Diet» Triburio 198, St Palo: Sasiva, 2007 ‘ina forma stressete de problemas esa busca por ma terpelaio ral sta apa dat quests da fe ‘urn aera da linguagem eda pr-compreensi, So teflendes qu neoeonarns deseavolver em ovat octie, ‘Ementa: Remessa oficial e apelagao efvel voluntiria. Ago de mandado de seguran- a. Deficiéncia visual. Lei estadual n° 15.757, de 2008. Isengao de ICMS. Admissibi- lidade. Seguranga concedida. Sentenga confirmada. 1. A Lei estadual n° 15.757, de 2005, autoriza o Poder Bxecutivo a isentar do ICMS a aquisigao de veiculo automotor por pessoas portadoras de deficigncia fisica, visual, mental severa ou profunda e au- tistas. 2. A lei tributéria nfo admite interpretagio extensiva, A tipicidade do tibuto, em face do nosso sistema constitucional, congrega 0 concurso da Constituigao, das leis complementares e das leis ordinérias. O peril tipico de um tributo & normativo, para ating-lo € necessério o exame de virias les, inclusive das que concedem isengées. 3. © Estado deve propiciar meios que atenuem a caréncia de oportunidades dos deficientes fisicos e visuais, 4. Deve preponderar o principio da protegio aos deficientes, porque (9s interesses sociais mais relevantes devem prevalecer sobre os interesses econémicos ‘menos significantes. 5. Assim, a Lei estadual n° 15.757, de 2008, que é mais abran- gente, deve ser interpretada em conjunto com o Convénio Confaz n° 3, de 2007, para conceder a isengio de ICMS as pessoas mencionadas. 6. Remessa oficial a apclagio voluntéria conhecidas. 7. Sentenga que concedeu a seguranca confirmada em reexa- me necessério, prejudicado o recurso voluntério."** Como jé foi registrado, entendemos que no conceder a isencdo as pessoas com deficiéncia que nao podem guiar automével poder consistir- e em regra consistira - em uma discriminagao injusta. Resta, entretanto, o problema do controle para que as isenges sejam concedidas apenas em beneficio das pessoas com deficiéncia, e sobre isso temos algumas ponderagdes a fazer. Claro que nao estamos nos referindo apenas ao controle realizado pelo Judicié- rio, quando as isengdes forem negadas, até porque, temos alguma ressalva & judi- cializacao excessiva de questdes politicas. Temos de observar que a dependéncia ex- clusiva do Judicidtio pode representar uma demora e um desgaste desnecessétio a quem precisa das iseng6es; além disso, acreditamos que podem existir altemativas mais coerentes ¢ eficazes, que tormam desnecessérias as medidas discriminatsrias ¢ injustas de que jé tratamos. Se tais medidas ¢ exigéncias - que, na pritica, podem resultar em verdadeiras politicas de exclusao - se destinam a evitar fraudes ¢ irregularidades na concessio da isencao, primeiramente temos que considerar que nao se pode simplesmente pre- sumir que todas as pessoas sem deficiéncia irdo tentar adquirir a isengao em ques- Nimero do proceso 10702 07-545855.00I1), umeragi dea 3858584. 2007815 0702 Relator Castano Levi Laer, dita co juigamento 2122008, data da pobiagio 91.2009 Do mesmo Tubusal,atesentanes amin 9 seule jlgade,tormando mis uta a coneesto das engiee do TICMS:“Enveata Manado de Seguranga - Agusgto de Veleulo por Menor, Ponadorée Parla Cereal Lek Estadual 157572005 -lengo de ICMS - Adresse, Cabe ao Estado propecia conde hibels de ora 4 atenae a carociados detente ics, reponéerando opicpio va protege, pos os iaeresse socias mais {elevates dover prevelecer sobre os inlereacseconncot de menor sgeiicado, A Lei Estadual ar 15°757/2005, ‘deve se interpreta em cojanto com o Convésto Cntnz n° 3/2007, amitngs a ieagio de CMS ‘ous alt menctonaas Se a epi lk ate que un prtader de parla cerebral ses neabuma cond [pr seul pose adgi-lo com eds da carga tuts, ¢inmistvel que ingetir oped por fla espa etal Nepartal dro ria exclsto soll da als eves Simul: conemarnns Sentega, a0 Reenane cesscio, Veneidoo Relator.” (mero do proceso 1 OLO5 08, 272840.0/001(1), aumeragtoGaies: 2728400. 10,2008'8.13,0105, Relator Edivalde George dos Santos, data do julgamento 159.2009, data da publcagio 27112008), {Go nem, muito menos, podemos sequer supor que as pessoas com deficiéncia irdo compactuar com tal aquisieao indevida, Em suma, nao podemos supor, simplesmen- te, que todas as pessoas estdo interessadas em fraudar 0 beneficio. ‘A segunda é que, mesmo em relagao & minotia que poderia tentar obter o bene- ficio indevidamente, € possivel controlar a aquisig40 e 0 uso do automével em be- neficio das pessoas com deficiéncia sem recorrer a requisitos que na pritica obsta- culizem e segreguem pessoas que estejam impossibilitadas de dirigir. Algumas das, cléusulas seguintes do Convénio ICMS 03/2007, alids jé se prestam a esse controle: ‘Cléusula segunda: O adquirente devers recolher 0 imiposto, com atualizagio moneti- ria acréscimos legais, a contar da data da aquisigao constante no documento fiscal de venda, nos termos da legislagdo vigente ¢ sem prejuizo das sangoes penais cabiveis, na hip6tese de: I. transmissio do vefculo, « qualquer titulo, dentro do prazo de 3 (ts) anos da data da aguisicao, a pessoa que nao faca jus a0 mesmo tratamento fiscal IL- modificagao das caracteristicas do vefculo, para Ihe retiar o cardter de especial- mente adaptado; IIT - emprego do veiculo em finalidade que nao seja a que justificou a isengao; IV - nio atender 20 disposto no § 8° da cléusula primeira Pardgrafo inico. Nao se aplica o disposto no inciso I desta clsusula nas hipsteses de: 1- transmissdo para a seguradora nos casos de roubo, furto ou perda total do veiculo; I~ transmissio do vefculo em virtude do falecimento do beneticiério; IM -alienagio fidueidria em garantia, Cléusula terceira: O estabelecimento que efetuar a operagio isenta devers fazer cons- tar no documento fiscal de venda do vefeulo: - 0 mimero de inscrigio do adquirente no Cadastro de Pessoas Fisicas do Ministério da Fazenda - CPF; IL-0 valor correspondente ao imposto nao recolhido; II -as declaragées de que: a) a operagio ¢ isenta de ICMS nos termos deste convénio: ’b) nos primeiros 3 (trés) anos, contados da data da aquisi¢ao, o veiculo nao poderd ser alienado sem autorizagao do fisco: Além disso, diversas outras medidas poderiam ser tomadas para o controle € coergao de eventuais fraudes na venda e utilizagao dos vefculos destinados a pes- soas com deficiéncia. Uma primeira medida possivel - e extrema - seria tipificar es pecificamente a fraude em questo.” Outras medidas possiveis, ¢ diga-se de passa- gem tao simples como vidveis, seriam o registro nos documentos do vefculo da des- Uinagdo a que ele se presta, desde eventual registro na nota fiscal, até nos certifica- dos de registro ¢ de licenciamento, bem como registro na CNH daquele que conduz © veiculo da pessoa com deficiéncia - a exemplo, alids, da observacao que ja ¢ feita na CNH das pessoas com deficiéncia, Enfim, existem varias possibilidades, penais, ¢ administrativas, que seriam mais efetivas do que as medidas discriminatérias pre- sentes na cldusula primeira do Convénio ICMS 03/2007. 1 argo, dependendo de como prods par obtrindevidameate a iensso em questo, eat inconendo a tosis prviion na Lai 1377190, dliniora do crimes conten erdec ita Quand alarce em Gp ‘noe eerie ea de infago, penal fro ego, com stbigs de sang sever aos ranadoes Se ‘es do JCMS concdids be pesto com defini, cluinalizagio ela qo, a nsto vet, poderia ve rear pee tego de tas pean, 4, Consideragies Finais Nas linhas anteriores do presente trabalho apresentamos brevemente a nossa compreensio do que é deficiéncia e incluso social, e procuramos defender, sobre- tudo, a concepgao de inclusto enquanto construgao de uma sociedade para todos. Posteriormente, analisamos as isengdes do ICMS direcionadas & aquisi¢ao de vef- culos automotores por pessoas com deficiéncia, ¢ tivemos a oportunidade de verifi- car alguns problemas referentes 2s normas isentivas e sua aplicagao, bem como a sua correcdo pelo Judiciario. Aproveitamos para relembrar que os temas abordados nao foram aqui exauri- dos e permanecem merecendo outros estudos, por exemplo, no que concerne & re- lacdo entre isencio ¢ seletividade, & isengao de outros bens que promovam a inclu- sio da pessoa com deficiéncia, as préprias questies relativas & deficiéncia, teorias da isengao ¢ da interpretacao tributéria etc. Sao temas que pretendemos retomar no futuro mas que, sobretudo, gostariamos de ver abordados por outros estudiosos do Direito Tributirio. As questées relacionadas 20 potencial inclusivo da politica tri- butitia, sobretudo, nao nos parece ter despertado o devido interesse dos estudiosos da matéria Para encerrar, lembramos que no inicio do presente trabalho trouxemos o registro de que 14,5% da populaeao brasileira possui alguma deficiéncia, um néimero cor siderdvel de brasileiros. Quantas destas pessoas teriam uma vida mais digna se pu- dessem adquitir um veiculo automotor? Quantas deixam de fazé-lo em decorréncia da aplicagao equivocada da cldusula primeira anteriormente transcrita? Nao temos como responder a estas perguntas, mas estamos convencidos de que elas merecem. ser refletidas, Se parece haver um consenso no sentido de que a politica tributaria brasileira deve ser revista, gostariamos de acrescentar mais uma varidvel & equacio: a politica tributéria brasileira deveria ser mais inclusiva,

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