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fungao do poeta nao é contar as listas nos diversos matizes do verde, deve tratar do individual, mas escreve para a posteridade. Diz portar o local, da tulipa ou deter-se da folhagem. O Pocta nao do genérico, j4 que o poeta ree que ao poeta nao deve im- rt © proprio de uma classe humana, de uma regiao, de um pais. Que, ja que a poesia tem essa alta missao de ser eterna, 0 poeta nao deve se ocupar dos problemas ~ ¢ claro que Johnson nao usa a palavra “problemas”, que na- quele tempo se aplicava especificamente 4 matemética = que nao deve se ocupar do que inquieta sua época, mas deve buscar 0 eterno, as paixdes eternas do homem, portanto te- mas como a brevidade da vida humana, as vicissitudes do destino, a esperanga que temos da imortalidade, os vicios, as virtudes, etcétera. Ou seja, Johnson tinha uma concepgio da literatura que difere totalmente do contemporaneo, do nosso. Agora a gente sente instintivamente que cada poeta é devedor da sua nagdo, da sua classe, das inquietudes contemporaneas. Mas Johnson visava algo mais elevado. Johnson pensava que um poeta deve escrever para todos os homens do seu século. Por isso em Raselas, além de haver uma referéncia geografi- ca — fala-se da origem do pai das 4guas, o Nilo, ha alguma referencia geogrdfica ao clima —, embora tudo acontega na issinia, poderia acontecer em qualquer outro pafs. B isso, repito, Johnson nao fez por negligéncia ou por ignorancia, mas porque correspondia a sua concep¢ao da literatura, Nao levemos esquecer, além disso, que Raselas foi escrito fax mais de duzentos anos e que, ness¢ lapso de tempo, os habi- tos € as convengoes da literatura mudaram muito. Ha, por plo, uma convencio literéria que Johnson aceita ¢ que ra nos é incémoda: a do mondlogo. Seus uate undam em soliléquios, ¢ Johnson 030 fez isso por y que as pessoas fossem dadas 20 monélogo, mas com? 5 i ao mesmo maneira cémoda de exprimir 0 que sentia & 123 jue se fala POUCO No texto ~ Johnson ues peitava o leitor, lembremos aquele dito de qu: “Old que res- cés / deve ser respeitado” de Boile aE 1D leitor fran- . ‘au, que se aplicavs ae : Va a t os leitores da época —, [mas também] a0s prazeres sti tuais, aos prazeres das ciéncias e das artes Agora, nest ay = Saal » Nesta idéia de um principe condenado a i iz h4 xo, etek we: cane a a feliz bum rfl. oe prio Johnson, da lend: do Buda, que teria chegado até ele na historia de Barl, ik Josafa°, que foi utilizada como tema de uma De mah f de Lope de Vega: a idéia de um principe educado no es de uma felicidade artificial. A lenda do Buda, podemos re- cordar, pode ser resumida assim: havia um rei na India, uns cinco séculos antes da era crista, contemporaneo de Herd- clito, de Pitagoras, a quem ¢ revelado por meio de um so- nho de sua mulher que ela dard 4 luz um filho, que esse fi- lho pode ser imperador do mundo, ou pode ser o Buda, o homem destinado a salvar os homens da infinita roda das reencarnagoes. O pai, naturalmente, prefere que seja impe- rador do mundo e nao redentor da humanidade. E sabe que, se o filho conhecer as misérias da humanidade, renun- ciard a ser rei e serd o Buda, o redentor—a palavra Buda sig- nifica “desperto”. E entao resolve que ele vai viver recluso num palacio, sem saber nada das misérias da humanidade. O principe é um grande atleta, um arqueiro, um cavaleiro. Tem um harém populoso e chega aos vinte ¢ nove anos. Quando alcanga essa idade, sai para dar uma volta de car- ruagem e chega a uma das portas do palicio, que di para o norte. Enxerga entdo um ser que nunca viu antes, uma pes- * “Barlago e Josafa” ¢ uma adaptagio cristi da aa 3 Buda, Sat em grego no século VII por um monge chamado Joao, do mosteir pera perto de Jerusalém. Essa obra teve grande difusto io. Média e influiu em varios autores, entre os quais se incluem, além Lope de Vega, Raimundo Lilio e dom Juan Manuel. 125 7 soa esquisitissima, Cujo rosto est4 Ba, apdia-se num cajado, iene Pelas ry, eg cabelo € branco. [O principe] Pergunta ee Yaci te, estranho, que mal € humano, eo cocheine di é Aquele se, ciao e que, com o passar dos anos, ele serd ae SUM ap. todos os homens serao ou foram, Ele volta - » Que perturbadfssimo com 0 espetaculo e, ao ae © Palio, da outro passeio, por outro caminho, e se enc ea po, homem caido no chao, muito Palido, descarnado, a com a brancura da lepra. Pergunta quem € e dizem 2 ae doente e que ele, com 0 tempo, ser doente, ice homens serao. Depois faz sua terceira saida, para o ae é gamos, e acontece algo ainda mais estranho. Ve Vatios ho. mens que levam um homem que parece adormecido, mas que nao respira. Pergunta quem é€e lhe dizem que é um mor. to. E a primeira vez que ouve a palavra “morto”, Faz uma quarta saida e encontra um homem velho mas robusto, que traja um habito amarelo e pergunta quem é. E lhe dizem que € um asceta, um “iogue” —a palavra “ioga” tema mes ma raiz de “jugo”, que significa uma disciplina -, ¢ que esse homem esté além de toda a adversidade do mundo, Entao o principe Sidarta foge do seu palécio e decide bus- car a salvagao, torna-se o Buda, ensina a salvacio aos homens. E segundo uma versio dessa lenda — vocés vio me perdoar essa digressio, mas a histéria é bonita —o principe, © cocheiro e os quatro personagens que ele vé, 0 anciio, 0 doente e o asceta sao a mesma pessoa. Ou seja, ele assum diversas formas para consumar seu destino de Bodisatv de pré-Buda. Ha um eco dessa palavra no nome de] i Agora, um eco dessa lenda deve ter chegado a Johnso™ Porque o princfpio dessa lenda é 0 mesmo: re i ef cipe recluso no cativeiro do Happy Valley, do “vale ‘i roso”. E esse principe faz vinte e seis anos — pode eco dos vinte e nove da | 126 Zo de ver que todos os seu: ‘ = ape ea ee. ene a — hoes Quan- desespero. Afasta-se do palacio, dos mee ceed ge sai do palacio e vai caminhar sozinho. Entao vé eee as gazelas, os cervos. Mais acima, na encosta da montaniia, il os camelos, os elefantes. E pensa que esses animais sho elizes, porque lhes basta desejar algo e, tendo satisfeito suas oo. a dormir. Mas no homem ha que nseio infinito, tendo satisfeito tudo o que pode desejar, gostaria de desejar outras coisas e nao sabe o que sao. Depois conhece um inventor. Esse inventor inven- tou uma maquina para voar. Isso sugere ao principe a pos- sibilidade de embarcar nessa maquina, fugir do Vale ventu- roso e conhecer diretamente as misérias da humanidade. Vem em seguida uma passagem um pouco jocosa que AL fonso Reyes cita em seu livro Rilindero, como se aqui esti- vesse prefigurada a ficgao cientifica dos nossos dias, a obra de Wells ou de Bradbury, porque o inventor se atira de uma torre em seu avido rudimentar, leva um tombo tremendo, quebra a perna € entdo o principe compreende que deve procurar outras maneiras de fugir do vale. Fala entéo com Imlac, 0 poeta cuja concepsao da poesia ja discutimos, fala com sua irma, que est cansada como ele da felicidade, da satisfacao imediata de todos os desejos, € resolvem fugir do vale. E aqui a novela se transforma de repente num relato psicolégico. Porque Johnson nos diz que durante um ano 0 principe estava tao contente por ter tomado a deciséo de evadir-se do vale, que essa resolug4o jd lhe bastava, que nao fez nada para po-la em execugao. Todas as manhis pensava: “Vou me evadir do vale”, ¢ entao se entregava a0s banque- tes, 4 musica, aos prazeres dos sentidos e da inteligéncia. E assim se passaram 0s anos. E uma manhi ele compreendeu que vinha vivendo simplesmente de esperanga. Pés-se entao a explorar as montanhas, pafa ver se encontrava algo, € €n- 127 co, ha uma muisica monétona mas muito gil, ¢ foi o qu a ’ ce eee pensando na morte da mae, a quem ama- _Finalmente chegam ao Cairo. O leitor entende que o Cairo é como uma metifora, uma imagem de Londres, Fa- Ja-se do comércio da cidade, da princesa e do principe, que esto como que perdidos entre essas multiddes humanas que nao os satidam, que os acotovelam, que os empurram, E Imlac vende algumas das jéias que levaram, compra um pa- lacio, se estabelece ali como mercador e conhece as pessoas mais consideraveis do Egito, isto ¢ da Inglaterra, porque Johnson tomou toda essa roupagem oriental emprestada das Mil e uma noites, que haviam sido traduzidas no in{cio do século XVII por um orientalista francés, Galland’, Mas ha pouco de cor oriental, isso n&o interessava a Johnson. Fala-se entao das nacoes da Europa. Imlac diz, que eles, com- parados com as nag6es da Europa, sao barbaros. Que as na- gées da Europa rém meios para se comunicar. Fala das car- tas que chegam em pouco tempo, fala das pontes, volta a falar das muitas naus. Eles ja viajaram numa, da Abissinia ao Cairo. E o principe Ihe pergunta se os curopeus sio mais felizes, Imlac responde que a sabedoria ¢ a ciéncia sao prefe- riveis 4 ignorancia, que a barbdrie ea ignorancia nao podem ser fontes de felicidade, que os europeus sao certamente mais sdbios que os abiss{nios, mas que ele nao pode afirmar, pelo comércio que teve com eles, que sejam mais felizes. Depois assistimos a diversas conversas com fildsofos. Um 6 Antoine Galland, erudito e orientalista francés (1646-1715). £ conhe- cido por sua versio das Mile uma noites, intitulada Mille et une Nuits, que adaptou para 0 francés em tradugio livre de manuscritos ie Borges critica e compara as diversas tradugoes dessa obra no ensalo a traductores de las 1001 noches”, do livro Historia de la ercrnidad (1936). Borges também incluiu wma selecio da tradugio de Galland como volume 52 da colegio Biblioteca personal ‘de Hyspamética, 129 roprio engenho de Voltaire serve para desmentir sua tese. eibniz *, contemporaneo de Voltaire, havia proclamado a iteoria de que vivemos no melhor dos mundos poss{veis, ichamaram isso, por piada, de “otimismo”. A palavra “otis mismo”, que agora utilizamos para significar “bom humor”, foi uma palayra inventada para ir contra Leibniz: ele acredi- tava que vivemos no melhor dos mundos possiveis. E ha uma pardbola de Leibniz em que se imagina uma piramide. Essa piramide nao tem base, mas tem Apice. Cada um dos niveis da piramide corresponde a um mundo, e o mundo de cada nivel é superior ao mundo que esta abaixo, e assim in- finitamente, porque a piramide nao tem base, é estritamen- te infinita. Entao Leibniz faz que seu herdi viva uma vida inteira em cada um dos nfveis da piramide. No fim, ao cabo de infinitas reencarnac6es, chega ao dpice. E quando chega ao Ultimo nivel tem uma impressao parecida com a felici- dade, cré que chegou ao céu, e entao pergunta: “Onde es- tou agora?” E entao lhe explicam que esta na Terra. Quer dizer que nds estamos no mais feliz dos mundos posstveis. Agora, claro, este mundo esta cheio de infelicidades, creio que basta uma dor de dente para nos conyencer de que nao somos habitantes do Paraiso. Mas Leibniz explica isso di- zendo que equivale as cores escuras que ha num quadro. Ele nos inventa uma ilustragao tao engenhosa quanto falaz. Diz para imaginarmos uma biblioteca de mil volumes. Cada um desses volumes ¢ a Eneida. Pensava-se que 4 Eneida era a obra mais elevada — ou a Iliada, se preferirem — da literatu- ta humana. Essa biblioteca consta de mil exemplares da Enci- da. Agora, 0 que voces preferem, uma biblioteca com mil exemplares da Eneida—ou da Titada, ou de qualquer outro ® Gottfried Wilhelm Leibniz, fildsofo matematico alemao (1646- 1716). 133 um terremoto de justiga divina, Agora, zet contra 0 Candido e a favor de Yaa S€ Poderia di- i Raselas é brincando com a idéia de que o seguramente, quando escreveu 0 Cindi el. Porque, do como terry el. Estava expondo uma muito ao er — compensacao, no vida era ssccialmente hare Boner Pra clea - mie el. E a mesma pobreza de in- — iM existe em Raselas faz que Raselas seja mais con- Veremos pelo livro que daremos da préxima vez a pro- funda melancolia de Johnson. Sabemos que ele sentia a vida como horrivel, de um modo que Voltaire nao péde sentir. E verdade que Johnson também deve ter derivado um consi- deravel prazer, no exercicio da literatura, da sua facilidade de escrever longas sentencas musicais, sentencas que nunca sao ocas, que sempre tém um sentido. Mas sabemos que foi um homem melancélico. Johnson vivia, além disso, ator- mentado pelo temor de ficar louco, era muito consciente das suas manias. Creio que comentei da tiltima vez que era comum eles terem uma reunido e ele se pér a dizer em voz alta o Pai-Nosso. Johnson era uma pessoa bajulada pela so- ciedade, mas conservava deliberadamente sua rusticidade. Estava, por exemplo, num grande banquete, tinha ao lado uma duquesa, do outro um académico, e quando comia — principalmente se a comida estava um pouco passada, ele gostava da comida um pouco passada— inchavam-lhe as veias da testa. A duquesa fazia-lhe uma observacao cortés, ¢ ele respondia afastando-a com a mao e emitindo um munis qualquer. Era um homem que, digamos, aceito pela soci ; : de, a desdenhava. E em sua obra literdria ha, como na obra 135 tese ¢ divertindo-se Raselas de Johnson literdria de Swinburne, mui a que costumava se entre, dia perdao a De : . Ccometido er g vida. Mas tudo Isso, 0 exame do carter de Johnson, : Seas vamos deixar para a outra aula, porque as Intimidades de Johnson s4o reveladas menos por ele ~ que Procurou ocultd-las ¢ niio se queixou delas — do que por um personagem extraording. tio, James Boswell, que se dedicou a freqiientar Johnson eg anotar dia a dia todas as conversas de Johnson, e deixou assim a melhor biografia de toda a literatura, segundo diz Macay- lay'*. De modo que dedicaremos nossa proxima aula 4 obra de Boswell e ao exame do carter de Boswell, tao discutido, negado por uns ¢ enaltecido por outros “O comentério de Macaulay é, na realidade, um cumprimento de dois gumes. Em seu ensaio de 183 1, Macaulay afirma que Boswell era pesado, fraco, vaidoso, cacete e tagarela”, nada mais que um imbecil dotado de boa meméria, Apesar disso, de seu encontro com Johnson surgiu a melhor biografia ja escrita. “Nao estamos seguros de que haja em toda a histéria do intelecto humano um fendmeno mais estranho do que esse livro” — afirma Macaulay. “Muitos dos maiores homens que viveram escreveram biografias. Boswell foi um dos homens mais insignificantes que viveu e, apesar disso, ganhou de todos eles,” 136

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