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warta-feira, 9 de novembro de 1966 Aula ne 11 2 O movimento romantic. Vida de James Macpherson, « A invengao de Ossian. Opinises sobre Ossian, * » Polémica com Johnson. Reivindicagio de Macpherson, Esta aula vai durar dez minutos menos que as anterio- s, porque prometi dar uma conferéncia sobre Victor Hugo, e modo que peco desculpa a vocés, ¢ falaremos hoje, pre- isamente, do movimento romantico, que é 0 movimento que Victor Hugo desempenhou tao importante papel. O movimento romantico é, quem sabe, o mais impor- te registrado pela histéria da literatura, talvez porque nao i apenas um estilo literério, porque nao inaugurou apenas estilo literdrio, mas um estilo vital. No século passado, vemos Zola', o naturalista. E Emile Zola, o naturalista, é concebivel sem Hugo, 0 romantico. Ainda hoje temos pes- as que sdo nacionalistas ou comunistas, e 0 séo de um odo romantico, embora prefiram alegar razdes de ordem onémico-social, ou seja l4 o que for. Disse que h4 um esti- de vida romantico. Por exemplo, um caso famoso seria o de rd Byron’. A poesia de Byron foi — injustamente, a meu tender — excluida da célebre antologia da poesia inglesa ublicada faz alguns anos. Mas Byron continua Tepresentan- lo um dos tipos romanticos. Byron, que vai para a Grécia Emile Zola, escritor francés (1840-1902). George Gordon Byron, sexto bardo de Rochdale, chamado Lord By- n, poeta inglés (1788-1824). 155 Depois chega 4 Alemanha por obra de difunde por toda a Europa e chega cae Depois panha. Quase poderfamos dizer i a tardiam, figura tanto na imaginaca eae Bt 0 na imaginacao dos Poetas romanti paises, produziu um sé poeta essencialmente Outros s4o muito mais oradores por escrito, refiro é, naturalmente, Gustavo Adolfo Bécquer, discipulo do grande poeta judeu-alemao Heine”, E nao discfpulo de toda a obra de Heine, mas dos comegos, do Lyrisches Inte mezzo, “Intermédio lfrico”, de Heine. Mas voltemos agora a Macpherson. O pai de Macpher- son era sitiante, de origem humilde, ¢ a familia, ao que pa- rece, nao era de origem celta mas de origem inglesa, diria- mos saxa. Ainda hoje na Escécia os ingleses sao chamados, com desprezo e zombaria, de “os saxdes”. Essa palavra € co- mum na linguagem oral da Escécia ¢ da Irlanda também. Macpherson nasce e se cria num lugar agreste ao norte da Escécia, onde ainda se falava um idioma gatlico, isto ¢ um idioma celta, afim, naturalmente, ao galés, a0 irlandés € a lingua bret levada 4 Bretanha — antes chamada oa — pelos bretdes que se refugiaram das invasoes saxas do sé- culo Y. Por isso, ainda hoje se fala de Gra-Bretanha, para distingui-la da pequena Bretanha, na Franga. E na ae chamam de Bretagne aquela regiao do pais em que se vs: 0 idioma bretao, que se imaginou durante certo tempo 2m dos patois, simplesmente porque, como os franceses nao en- & ente a Bs. Um Pais que COs de outros Tomantico, og Este a que me suas viagens nem suas aventuras politicas impediram-no de ee sua vocagao liter4ria, Em sua passagem pela Inglaterra, traduziu ai ravelmente para o castelhano o poema “Elegy Written in a SO Church Yard”, de Thomas Gray, Entre suas obras, contam-se também la Muerte de Mr, William Winston, La Libertad ¢ La Palomilla Ausente- 4 Johann Gottfried von Herder, pensador alemao (1744-1803). » Heinrich Heine, poeta e ensalsta alemao (1797-1856). 152 ta tendem nenhum dos dois, deduzi: ae mas parecidos, oqueé parte de = oR eee fs idio- we Pois bem, ° conhecimento que Macpherson ee do pene tin era um conhecimento oral. Ele nunca foi ca. az de ler os manuscri éli a diferente. foicme aa usavam uma escrita isto é, um homem que tem um oon cals : _ s ‘imento oral do gua- rani, mas que ndo poderia nos explicar direito as leis grama- ticais desse idioma. Esse Macpherson se educou na escola primdria do seu vilarejo, depois na Universidade de Edim- burgo. Ouviu muitas yezes os bardos cantar. Nao sei se ja falei deles. Vocés sabem que a Escécia era dividida —e de cer- to modo ainda ¢ — em clas. Isso foi uma pena para a histéria da Escécia, porque os escoceses se viram lutando nao sé contra os ingleses ¢ os dinamarqueses, mas guerreando en- tre si. Assim, quem percorreu a Escécia, como eu, sentiu-se atraido pelo espetaculo de pequenos castelos no alto das grandes — mais que altas — colinas da Escécia. Aquelas rui- nas que se destacam contra um céu de entardecer. E digo entardecer porque h4 regides do norte da Escécia em que, embora brilhe o sol —a palavra “brilhe” é um termo estra- nho aqui —, ha desde o creptisculo da manhi até o creptis- culo da tarde uma luz semelhante a do entardecer, 0 que n4o deixa de entristecer um pouco o estrangeiro. Macpherson tinha ouvido os bardos, e os grandes clas da Escécia tinham bardos que eram encarregados de relatar a histéria e as facanhas da familia. Eles eram poetas ¢ canta- vam naturalmente em idioma gaélico. E parecida com a or- ganizacio da literatura que houve em todos os paises celtas. Nio sei se lhes disse que na Irlanda a carreira literaria dura- va dez anos. O candidato tinha de passar por dez exames sucessivos. No comego sé podia usar metros simples, diga- mos o hendecassilabo, ¢ sé podia tratar dez temas. Depois, uma vez dado o exame, que era dado oralmente, numa 159 escura, davam © rema ao poeta, O ee ae devia usar, le. y vavam-lhe alimentos. E ao cabo de dois ou trés dias iam in- rerrogé-lo € permitiam que tratasse outros temas € usasse outros metros. E ao cabo de dez anos um poeta atingiag grau mais alto, mas para chegar a ele tinha de terumconhe. / Simento cabal da histéria, da mitologia, da jurisprudéncia, da medicina — que era entendida como magia naqueles tem- pos -, € recebia uma pensdo do governo. Usava além disso uma linguagem tao carregada de metaforas, que sé seus co- legas podiam entendé-lo. E tinha direito a mais provisées, 2 mais cavalos, a mais vacas, que o rei de cada um dos peque- nos reinos da Irlanda ou de Gales. Agora, essa mesma pros- peridade da ordem dos poetas determinou sua ruina. Por- que, segundo a lenda, chegou uma hora em que o fei teve de ouvir seu elogio; pronunciaram-no dois dos principais poe- tas da Irlanda, eo rei nao era versado no estilo gongérico dos poetas, nao entendeu uma sé palavra do elogio. Ele decidiu dissolver a ordem, e os poetas se viram no olho da rua. Mas nas grandes familias da Escécia reatou-se um grau um pou- co inferior dessa ordem: o grau de bardo. E James Macpher- son ouviu isso quando era rapaz. Teria uns vinte anos quan- do publicou um livro intitulado Cantares heréicos da Eseécia vertidos da lingua gaélica a lingua inglesa por James Mac- pherson®. t Esses cantares tinham um carater épico, € havia aconte- cido algo que agora nao entendemos totalmente € que tere! de explicar, mas algo facilmente compreensivel. No lo XVIII, e durante muitos séculos, tinha-se pensado que Ho- mero era indiscutivelmente o maior dos poetas. E, apesat do que disse Aristételes, chegou-se a crer que o género lite . O livro foi editado em 1760, e seu titulo original era Fragment of ncient Poetry Callected in the Highlands of Scotland, and Translate from the Gaelic or Erse Language by James Macpherson. 160 que é a forma escocesa fo: rms SCOCe eH : tma escocesa do nome irlandés Fin, Naturalmente, 4 lendas, que eram de ori que, na Idade Média, Nao sej 9 Sei se Lhes CS, € NAO “escocks” a palavra Scotus” Significaya Assim Cemos 0 grande sofe te : . Brande fi] Pante , ta Scotus Er iy jo nome signi vi ‘Se a s E igena’®, cujo nor ignificaya “Scotus? ; A. “ . » . - i dés, e Erigena » nascido em Erin, Irlanda, E como g iz chamasse Irlandés Irlandés”. Pois bem, 0 que Mag i fez foi recolher fragmentos. Esses fi: sae AgMentos pertenc} ec ’ am a ciclos distintos. Mas o que ele necessitaya, o que ele queria para sua querida patria, Escécia, era um Poema, de modo que reuniu esses fragmentos. Naturalmente, havia que preencher os intervalos, e ele os preencheu com versiculos — depois ve. remos por que digo “versiculos” — de sua invengao, H4 que advertir também que 0 conceito de tradugio que hoje vigo- ra nao € 0 que vigorava no século XVIII. Por exemplo, a Ilig- da de Pope, que era considerada uma versio exemplar, é0 que hoje chamarfamos de uma yersio muito livre. Entao, Macpherson publica seu livro em Edimburgo, e teria podido fazer uma tradugao rimada, mas felizmente es colheu a forma ritmica, baseada nos versiculos da Biblia, so- bretudo os salmos. Ha publicada em Barcelona uma tradu- ao espanhola de Fingal, que Macpherson atribui a Ossian, filho de Fingal. E Macpherson apresenta Ossian como “e velho poeta cego que canta no castelo em ruinas de seu ” ; Aqui j4 temos a sensagao do tempo que é tipico dos 7 ~ ticos. Porque na Mada ou na Odiss¢ia, por exemplo, ou j mo na Eneida, que é uma epopéia artificial, sente-se 0 oo Po, mas nAo se sente que as coisas ocorreram faz muito 8 Po, isso é tipico do moyimento romantico. Ha uns vel * Johannes Scotus Erigena, fildsofo e tedlogo irlandés (8302-8802). 162 Wordsworth” que eu gostaria de recordar aqui. Ele ouve a moga escoctsa cantando — ja voltaremos a estes versos € se pergunta quais sao os temas que est4 cantando, e diz: t4 cantando coisas desventuradas e antigas, batalhas fue ocorreram faz muito tempo.” Diz Spengler que o sécu- XVIII foi o primeiro em que se construfram rufnas artifi- ais, essas ruinas que ainda vemos nas margens dos lagos"*, poderfamos dizer que uma dessas ruinas artificiais foi o ingal, atribuido a Ossian, de Macpherson. Como Macpherson nao queria que os personagens fos- jem irlandeses, fez de Fingal, pai de Ossian, rei de Morgen, ue era a costa setentrional e ocidental da Escécia. Fingal be que a Irlanda foi invadida pelos dinamarqueses. Vai en- (0 ajudar os irlandeses, vence-os e volta. Se léssemos hoje o ema, deparariamos com muitas frases que pertencem ao ialeto poético do século XVIII. Mas essas frases, natural- ente, passariam inadvertidas entdo, e 0 que se notava era que hoje chamariamos de “frases romanticas”. Por exem- lo, hd um sentimento da natureza, hé no poema uma par- re que fala das neblinas azuis da Escécia, fala-se das monta- nhas, das selvas, das tardes, dos crepusculos. Depois, as batalhas nao sao descritas de modo circunstanciado: usam- se grandes metéforas, & maneira romantica. Se dois exércitos ” William Wordsworth, poeta inglés (1770-1850). Borges dedica a ele aaula 12. *“O parque inglés, com suas emog6es atmosféricas, substituiu na dé- cada de 1750 o parque francés; sacrificou as grandiosas perspectivas em nome da natureza sensitiva de Addison e Pope, e introduziu 0 motivo das ruinas artificiais, que dao & paisagem maior profundidade hist6ri- ca. Nunca se imaginou nada mais esquisito. A cultura egipcia restaura- va 0s edificios da época primitiva, mas nunca teria se atrevido a cons truir rutnas, como simbolo do passado.” A decadéncia do Ocidente, pri- meira parte, 2° volume, capituto IV (p. 66 da edigao de 1923 da edi- tora Calpe). 163 celtas, seus inimigos. De modo qu i herdeira desse Pee toda a cee ceeea O outro inesperado admirador de Ossian foi Napoleéo Bonaparte. Um erudito italiano, 0 abate Cesarotti, havia vertido para 0 italiano o Ossian de Macpherson”, E sabe- mos que Napoledo levou consigo em todas as suas campa- nhas, do sul da Franca a Russia, um exemplar do Ossian de Cesarotti. Nas arengas de Napoledo a seus soldados, nessas arengas que precederam as vitérias de Iena, de Austerlitz ea derrota final de Waterloo, advertem-se ecos do estilo de Mac- pherson. Bastam-nos estes dois ilustres e tao diferentes ad- miradores”. Na Inglaterra, porém, a reagao foi um pouco diferente, ou totalmente, por obra do doutor [Samuel] Johnson. O doutor Johnson desprezava e odiava os escoceses, embora seu bidgrafo James Boswell fosse escocés. [Johnson,] além disso, era um homem de gostos classicos. Devia incomod4- lo sobremaneira a idéia de que a Escécia, por volta dos sécu- los VI ou VII, tenha produzido uma longa epopéia. Além disso, Johnson sem duvida sentiu a ameaga que havia para a a origem da palavra “baritus” é incerta. Poderia estar relacionada com os bardos celtas, mas também foi identificada com os sons que fazem os elefantes. 2 Melchiore Cesarotti, poeta ¢ ensaista italiano (1730-1808). Sua tra- dugao da obra de Macpherson, realizada em verso, chamou-se Poesie di Ossian (1763-72). = 2 Os textos de Macpherson também atrafram os musics romanticos. Entre 1815 e 1817, o compositor austriaco Franz Schubert musicou mais de dez extensos textos de Ossian, que Ihe chegaram em tradugdes para o alemao de E. Baron De Harold. Numa data jé tardia, em 1843, © compositor alemao Robert Schumann (que também era escritor) ‘co- Mmentava numa nota jornalistica a estréia de uma abertura dedicada a Ossian, Nachklange aus Ossian, do “Jovem compositor dinamarqués Niels Gade. 165 disse-Ihe que mostrasse esses manuscri Segundo alguns bidgrafos de Macpherson, ele tratou de consegui-los € publicd-los de alguma maneira, A polémica entre Johnson e Macpherson continu Macpherson chegou a publicar um livro para provar a seme. hanca entre seu poema € os textos, Mas, seja como for, Mac- Pherson foi acusado de falsdrio. E sem diivida, se isso nao tivesse sido feito, nao 0 verfamos hoje como um grande poeta, Macpherson passou o resto da vida prometendo a publica- ¢40 dos manuscritos. Chegou a tal ponto, que propés publi- Car Os originais, mas em grego. Isso, é claro, era uma manei- ra de ganhar tempo, que € 0 que cle tratava de fazer, Atualmente, nao nos interessa se 0 poema é ou nio é apécrifo, mas o fato de que nele j4 est4 prefigurado o movi- mento romantico. Hd contudo uma polémica entre Johnson ¢ Macpherson que continua viva. Existe uma troca de cor- respondéncia bastante nutrida entre ambos. Mas, em que Pese a Johnson, o estilo de Macpherson, do Ossian de Mac- Pherson, Propagou-se por toda a Europa e com ele se inau- gura o movimento Tomantico, nele j4 est4 dado o movimen- fo romantico. Na Inglaterra, temos um poeta, Gray, que es- “reve uma elegia dedicada aos Mortos anénimos de um ce- 166 mitério. Em Gray j4 encontramos o tom melancélico do mantismo. [E também] no livro Reliquias de antiga aes Neste, ha tradugdes de romangas e baladas escocesas, ¢ um prélogo extenso em que se reivindi i ca 0 fato de que a poesi é obra do povo. Essa obra do bispo Percy é iano ae seu valor intrinseco e porque inspira um livro de Herder, Vo- zes do povo™, em que h4 nao mais apenas cantares da Escé- cia, mas Lieder alemies, baladas tradicionais, etc. Com ele, ja se estende 4 Alemanha a busca das “criagdes do povo”, como evidencia o titulo do liyro, Vamos ver que, sem Macpherson e essas elegias do bis- po Percy, o movimento romantico teria existido — era, qua- se poderfamos dizer, um algo histérico —, mas com caracte- risticas bem diferentes, Além disso, mostraremos que nao ocorreu a ninguém que a questo poderia se referir a Mac- pherson e que este, como autor do poema, tinha se mostra- do originalissimo. A versificagao que ele emprega nao é ver- sificacZo, mas uma prosa ritmica nunca usada em nenhuma obra original anterior a ele. De modo que por esse simples fato podemos considerd-lo um precursor de Whitman e de todo escritor que tenha trabalhado e escrito em verso livre, Nunca teria podido existir como existiu o livro Leaves of Grass de Whitman, com 0 estilo que emprega, sem a contri- buicao originalissima de Macpherson. E ha um trago nobre que devemos levar em conta ao julgar Macpherson, é que ele nunca quis ser considerado poeta, que o que ele quis foi se sacrificar para a maior gl6- tia da Escécia, que sacrificou a fama e renunciou ao titulo de poeta por isso. Sabemos, além disso, que escreveu uma © Reliques of Ancient English Poetry (1765). Seu autor, que Borges men- ciona a seguir, foi o erudito ¢ bispo inglés Thomas Percy (1729-181 UE * Volkslieder, publicado em 1778-79. 167

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