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Ondina Ferreira, «Dijidiuy — Pequena Monografia», Africa, pp. 263-267, para uma avaliacdo da literatura SAO TOME E PRINCIPE Capitulo 11 AS ILHAS DAS ROCAS DE CAFE E CACAU Tal como a Guiné-Bissau c Cabo Verde, as ilhas de Sto Tomé € Principe ostentam um processo aculturativo algo diferente do ‘que ocorreu em Angola ¢ Morambique. Naturalmente, So Tomé f Principe, Guiné-Bissau e Cabo Verde diferem entre si na sua histéria colonial de uma maneira marcada. Seria legitimo esperar, porém, um certo desenvolvimento em comum entre Sto Tomé ¢ Principe © 0 arquipélago caboverdiano, pois sfo ithas e eram ina bitadas na altura da chegada dos curopeus. E ss condigées das ithas equatorais também favoreceram a érioulizagéo social, cultural ¢ lingulstca, Mas ao contrario de Cabo Verde, que nunca recuperou do seu declinio econémico, Séo Tomé e Principe, depois da subida queda da industria agucarera (1530-1700), realizaram uma nova prosperidade, em principios do século XIX, com a introdugfo. do ‘afe edo cacan. Este perfodo de ressurgimento econémico coincidiu com o decti- nio do tréfico de eseravos, e quando, em 1869, se deeretou a abo- lislo, surgiu uma crise laboral, Esia crise deu inicio, em 1876, & Importagio de mao-deobra na forma de trabalhadores contratados. Isto foi © comego da era do servical, com todo 0 drama ¢ abuses para mifhares de angolanos, mogambicanos e caboverdianos. ‘0 povoamento de 8. Tomé e Principe comesou aproximada- ‘mente em 1486, quinze anos depois do descabrimento das ilbas. 1554, os habitantes cram portugueses da Metrépole © da Madeira, alguns espanhsis e genoveses, os sobreviventes de 2000 criangas Iusojudaicas deportadas para S. Tomé, em 1492, a fim de serem dou- trinadas no cristianismo, e, naturalmente,escravos oriundos da costa cidental da Africa, desde a Guiné atf Angola, No século XIX, com a estabilizagao da base econémica das ilhas, a populagto alean ou uma estratifcagio social definitiva, B até 1950, 8. Tomé contava 60.000 habitantes, dos auais 43.391 eram oficialmente «civlizadoss, dos quais 37.950 negros, 4279 mestigos, 1152 europeus, 9 indianos 1 oriental. Dos 16.768 clasificados como «nko-ivilzaosy, 16.747 exam negros ¢ 21 mestigos.* Francisco José Tenreiro excreveu que «A. palavra ‘erioulo’ nfo € corrente em Sio Tomé; a ela corresponde a expressio, por vezes 237 de sabor um tanto vago, de ‘filho da terra’: Isto 6, por crioulo de- vyem entenderse os descendentes das relagdes entre europeus © ne- que levaram & aculturacio,. termos referentes a grupos sociais, explica que em iporineos a palavra «tongay veio a set usada para ‘ou racial, Ao de termo ¢ outros, ‘Tenreiro coloca-os no seu. fase moderna de reocupagio das terras, em € sociaiso, (p. 190). E «0 forro, por outro yvocada pela aboligéo do trabalho escravo fe que, permanecendo na ilha, veio en- ‘grossar subsequentemente e através de geracées, o grupo dos “filhos da terma'.» 'Note-se que na Tiha do Principe o forro se chamava amoncé», Embora houvesse uma tendéncia entre os diversos grupos para adoptar © modo de vida dos «filhos-da-terra», intensificando assim 5 processos aculturativos, as cstratificagdes sociais e as justapo- sigBes por vezes conflituosas entre © grupo dominante e 08 grupos dominados impossibilitavam 0 tipo de homogeneidade real ow ima- ginada que dou origem, entre membros da elite caboverdiana, a um senso de um eihos crioulo que atravessava os estratos socio-econ6- ‘micos. Tenreiro observa que «Nem angolarcs nem tongas pam das manifestag6es culturais dos chamados ‘filhos da corresponde a gente ‘embora uns e outros, com 0 decorrer dos anos, tendam a aproxi- ‘marse deles». (p. 190). Os angolares, descendentes dos sobreviven- tes do naufrégio, no século XV, de um negreiro, constituem um grupo que através dos séculos tem vivid da pesca no sul da itha, © que normalmente tem evitado contacto com outros grupos. Devido em parte aos fluxos humanos nas ilhas do Golfo da Guiné, a lingua crioula, chamada forro, tem tendido a cair no de- ‘sus0 entre os varios grupos. Os contratados «semi-assimilados» pro- vindos de Angola ¢ Mocambique contribuiam para a heterogenci- dade éinica e para uma espécie de separacio entre duas sociedades, uma mais puramente africana e @ outra erioula, E 0s servigais caboverdianos, por serem Iegalmente «civilizados», constituiam a élite» dos contratados. Tenreiro escreveu que «Angolanos, mogam- bbicanos e caboverdianos raramente se misturam, ¢ isto compreen- ddistingue, mas muito particular ..(P. 191). Também no se pode forgosamente em contacto com a populago «de cor, © grupo minisculo de proprietirios ¢ administradores euro- 238 pews, desejoso de manter a sua egemonia, promovia as estratifi- ‘cages sociais. ‘A roca ¢ a literatura colonial pocsia c narrativa de Si ‘mos perspectivas caboverdianas Onésimo Silveira (Toda a Gent Anshory (eCangio da Rosas), ‘especificamente em de José Lins do Hee, ¢ on do eielodoencay, de Jorge ressupgem um tratamento memoriaistfctiio, nos mok- des do regionalismo sociol6gico, de mudancas provocadas por osci- ial, Deste modo, nos romances de Lins do uusina mecanizada, que retrata, entre outras mudancas cataclismi- eas, a decadéncia da velha oligarquia rural. Na narrativa da roca em G. Tomé, a visio 6 mais ciclo mais um eirculo estitico do que uma trajectéria; sia prevalecente nas tico-realista nove: np romance do lagto conflituosa entre patric e servical na sua novela, mas na narrative formulada de uma perspectiva ultramarina, os conflites tomam-se apenas justaposictes postivistas a serem resolvidas por ‘mas com o Angulo de visio do narrador detcrminado, em parte, pela perspectiva de um autor implicito que se vé entre dois mundos, lum pouco ao estilo do angolano Oscar Ribas. O titulo da coleogao € também 0 de um dos contos do volume, ¢ no crioulo de 8. Tomé ‘Maid Pécon quer dizer «Matia da cidade». Mas 0 narrador explica ‘que Maid era da ropa Aguadzé, Assim, a jd cl ji 8 elinde © 0 campo ganba wm relevo romfatco ¢ iedtinats ucélicas no de manhf) as justaposigdes sociais dissolvem- 239 «Oh! mas, so domingo, tem uma vibraeio gérrula © canta no ar puro, © timbre 6 de uma tal docura eristalina, que mals parece Fate ara chamar a uma festa, que para obrigar ima pessoa a deixar celor da cama exactamente quando ela 6 mais docen.* Logo a seguir, o narrador, mantendo 0 mesmo registo, especi- fica um compromisso entre o trabalho ¢ o lazer: «Ao domingo © trabalhador acha-se revestido da sua dignidade de homem. Tra- balha-se de manhi, mas, depois, pode-se comer & vontade e, & tarde, temse aquilo que € to necessario a vida como a fala ou como 0 trabalho: a danga ou melhor o batuques. (p. 72, 0 itilico 6 meu). © segundo autor do ciclo-da-roga & Fernando Reis, um portu- gués do Ribatejo, mas com longos anos de residéncia em 8. Tomé. vAinda mais do que Viana de ‘Almeida, que pelo menos tinha que as da Roga (1970) exaltam a macro-etnicidade ide sZotomense a fim de suavizar e quase obli- visoras entre o colonizador e 0 colonizado, Reis, fe cuja pele bronzeada atesta a presenca lusitana no seu sangue, ez herdada de algum poeta portugues, © terceiro escritor do ciclo-da-roca foi revelado por Améndio César, um dos maiores proponentes da literatura ultramarina apologista do regime, é Lufs Cajfo, autor de A Estufa (1964), um romance sobre os contratados na Tillha do Principe, 6, como Fer- nando Reis, um metropolitano que viveu uns tempos no anquipé- lago. Sobre Cajéo ¢ o seu romance —que desconheco —Amandio \César diz: «Aquele que sobrou dos meses que trabalhou no trépico, ‘meses durante os quais contactou, observou e analisou o compor- tamento de brancos, pretos ¢ mestigos no seu meio ou fora do seu meio (© caso dos contratados); mas dentro de uma dimensio dife- rente do homem portugi A narrativa do ciclo-da-roga, rina, de certo modo prepara 0 condigées em que surgiu uma literatura de Sio Tomé e Principe forjada na intersecgfo entre o mundo agrfcofa © tropical das ithas © uma perspectiva desse mundo ganha fora dele. 1 questio de um ethos crioulo interdito pela prépria importincia econdmica das ‘has ¢ pelo deslocamento daqueles «filhos-da-terray que primeiro estavam em condig6es de dar forma e conteiido a um movimento culturalliterdrio autéetone. ida por uma visto ultrama- para um entendimento das oO 2 Ver Maria Manuela Margatido, ¢De Costa Alegre a Francisco José hha de Sdo Tomé, p. 189. Maid’ Pocon: Contes Africanos, Eéig6es Momento, Lisboa, 1937, R tura Oral de Siéo Tomé, Editora Pax, Braga, 1965, p. 19. de Literatura Uliramarina, Sociedade de Expansio Cuk 961, p. 112 Capitulo 12 «FILHOS-DA-TERRA» D'AQUEM E D'ALEM-MAR Viana de Almeida foi levado a idealizar a vida Ura dos traba- Ihadores nas rogas de café, mas as condigSes da sua propria vida, em Lisboa, levaram-no a tentar explicar Africa e a sua itha natal, em particular, para um pretenso leitor europeu. Em varios dos con- tos incluidos em Maid Pécon, como «0 Odio de Ragas», «Vulto na Gombran ¢ a vinketa doutrindria e lirica «Africa», o autor implicito, adopta a postura de um apologista 20 confrontar Africa e Europa. Em ¢Vulio na Sombra, a personagem principal entrega-se, invejo- samente, a umas comparagbes metereol6gicas entre Lisboa e a sua itha tropical 4 Que calor, hein? Esta Lisboa, no Vero, & insuportivell B depois ‘esta gente tem o descaramento de falar no ca'or de Africa, homem! Eu faunca sent! isto em Sio Tomé, Qual So Tomé! Basta que recorde do ‘bom fesquinho que se gozava nas noites do tempo quente, ao pé da ribeira —lembras-ie? — Debaixo do, tamarindeiro grande, que ficava jostamente no limite da minha roga ‘Belo Horizonte"y. (p. 97) Juntamente com estes sentimentos nativistas, reminiscentes do patriotismo saudosista cultivado pelo poeta brasileiro Goncalves gorieiam como lé»)*, ha também nos contos de Viana de Almeida, como no Godido do’ mocambicano Joo Dias, o correlative da sen sibilidade racial. © africano «desterrado» na Europa enfrenta 0 Gabo Verde mas, no caso de Sko Tomé ¢ Principe, a visio da Africa, e das ithas, vis @ vis Europa ¢ acentuada por um conjunto de factores s6cio-histérices. De certo modo no seria errado afir- mar que @ literatura de Sio Tomé e Principe nasceu em Portugal, No tempo colonial o sistema econémico rural impediu o tipo de desenvolvimento institucional que em cidades como Luanda, Maputo farques) e Mindelo favorecia a formacio de mo- iterdrios, Por outro lado, havia a classe de «filhos- ~da-terra», da qual emergeriam uns poucos intelectuais e escritores. 243 ‘Mas sem as bases institucionais © educacionais nas ilhas, estes «fi- Thos-da-terra» iriam realizar-se em Portugal, Caetano da Costa Alegre, um beletrista siotomense (0s relativamente poucos escritores de Sio Tomé ¢ Principe, quase tem a distingtio de ser ‘¢ Principe, Nascido, na Wha de S. Tomé, numa femflia tradicional de «filhos-da-terra», Costa Alegre embarcou para Portugal com dezanove anos e ai viveu ‘os restantes anos da sua curta vida. O poeta negro pode ser um fenémeno isofdo no contexto intelectual ¢ literério do Portugal dos fins-do-século, mas nfo & por acaso que cle se revelaria, neste perfodo, como um africano «cultoy e sensivel. Citando Alfredo Mar- gariéo, @A obra poética de Costa Alegre € escrita num dos mo- ‘mentos mais criticos da evoluego social do arquipélago, quando de ‘uma economia ainda com fundamentos esclavagistas e feudais, se ‘transite, de forma muitas vezes violenta, para uma economia de tipo capitalista, com base no latifindio e na monocultura, onde as cculturas ricas do cacau e do café punham termo a vida limitada, cembora folgada, dos filhosda-terra que, durante quase trés s& tinham governado 0 arquipslagos.* Costa Alegre, se bem qu jum fenémeno nico como poeta, representa uma faceta signifi- cante desse fim de uma época em que umas quantas familias da al da terra ainda lutavam por manter 0 seu ico € os seus ideais como aculturados face as mudan- furas econémicas das ilhas. E nos anos que Costa Alegre viveu cm Portugal, um crescente republicanismo governava ‘tugal. © seu amigo Cruz Magalies perguntou, retoricamente, na ocasiéo da morte do poeta, em Alcobaca : «Nao sentiria, insistente, uma revolta, a protestar contra essa suprema injustiga de ser negro, ‘quem tio branca alma possuia?»* As palavras elegiacas —sem di vida, sinceras—de Cruz Magalhies exprimem um sentimento libe- ar ral, ainla vigente em certos meios, de que dentro de cada negro ‘hé um branco Iutando para sair. Cruz Magalhies, oferecendo mais provas da sua propria formacio ideolégica dentro dos preceitos da liberal, declara que Todo aquele que for que no decorrer dos anos tem comentado a vida e obra de Costa ‘Alegre, Cruz Magalies dé por ser rejeitado Ue (Lisboa, © props mnsbes amorosas nos circulos sociais sare parece corsoborar esta conten- sio critica no poema or veres meu rosto negro/Ta me ‘chamaste carvao.../Nao me admiro: fui lenha/(No fogo des xo» p. 43). E noutro poema, que traz por titulo um ponto dt ‘Parece l6gico supor que Costa Alegre era vitima do racismo visceral inevitavelmente existente numa sociedade que justificava primeiro a escravidio ¢ logo 0 colonialismo na base da suposta inferioridade do africano, cuja cor veio a ser um emblema da sua baixa posigio na escala humana. Por outro fado, Lopes Rodrigues, ‘ecoando a marca da ideologia oficial promulgada nos anos de 1960, fa sua interrelagio de gentes de vérias racas; ¢ aqui nfo encontra- mos mais um portugués branco entre portugueses pretos na Africa Portuguesa, sempre do maior interesse, mas um portugués preto entre portugueses brancos na Europa Portuguesa, o que é de ex- cepcional interessev.* Enquanto destaca 0 poeta como um fend- meno isolado, Lopes Rodrigues prociama 0 ideologema nivelador da supra-etnicidade, Ainda mais veemente na sua refutago do ra- cismo no «espago portugues», Amindio César escreveu: «Final- mente, nos breves afloramentos da sua pigmentagio como motivo de @ presenga real de uma nostalgia que gar—'Inma da noite escural/Seras tu minha inmi 1as no 0 leva a renunciar, a revoltar-se ou a odiar, Como seria isso possivel num Poeta do Amor, num Poeta da Vida. Podemos descontar as declaragdes de Améndio César como nada mais do que propaganda ultramarinista ¢, com respeito a (Cruz Magalhiies, o seu encémio, Publicado sob o titulo «Saudades, reflecte o estilo amancirado pr6- prio da época, assim como as altitudes e percepgdes também pr6- prias da idade. Em Ultima andl leva a interro- (0 € tanto questiio de saber ae (Costa sAle- “desprezado e alienado na alta sociedade lisboeta, mas se 0 poeta, por meio Wa ficco da sua imaginagio, assume a sua pose intimista e ultra-romantica a fim de criar um «feito emotivo. Costa Alegre, como produto dos seus tempos, nfo ms podia deixar de ter uma visio do mundo condicionada, em parte, numa forma lirica “ultra-romantica e sau- estava consciente das posses que ele im- nfo 6 emitia as magons de um negro, cego de amores e rejeitado por damas alvas, mas também formulava o seu discurso poético— preto e branco © o tom as vezes nfo era social que Costa ‘tar, era pelo menos uma reluténcia perante as iam parte dessa reatidade. Passeantess, um poema frequentemente citado va irrefutavel da desilusio que Costa Alegre sentia, «Passa uma inglesa, E logo acode, ‘Toda surpresa: What lack my God! Se € espanhola, Que alto, Dios mio! B, se € francesa: © quel beau negrel Rindo para mim. Se 6 portuguesa © Costa Alegre! ‘Tens um atchim!y ©. 2) © que transparece, e que ninguém comenta, é 0 humor que dade fécil (nota-se que a portuguesa 0 chama pelo nome, a i ‘cando que ou se conhecem ou ele é conhecido pela sua fama como vez, como uma figura de certo destaque no meio social curso altissonantemente autodepreciativo de poemas como 0 ferido Maria», com as suas imagens quase cémicas de «c e «lenha no fogo desta paixdon. B importante, notar que se insere no volume uma carta, em diz seguinte «Se a minha, alma transparcce em alguns dos versos, vibrando Prefaciando estas declaragées, Costa «Alegre afirma que «A carta, portanto, niio € minha, isto é no subjectivay. A carta 6, afinal de contas, um poema com uma estrutura formal, ¢ 03 comentarios cconsciente das poses do sujeito post fundido com 0 pocta, Nao quero que as poses ¢ a entes 20 amor (0 amada) nada tém ¢ sentimentos do homem atrés da persona. 2 suposicdes que resultaram em equivocos, de- {que estava consciente da sua poesia como um acto de sisténcia, pelo menos a afvel individual. Quando Costa Ales ccontemporaneo brasileiro Joo da Cruz ¢ Sousa © célebre poeta negro da escola simbolista, fazia um jogo vagamente reminiscente de um soneto de Camées, © poeta aceite as conotagbes das cores opostas, isto € branco (pureza) € negro 27 (étrico). Mas o sew uso das imagens do carvéo e da pomba quei- mada pelas chamas do amor constituem um acto agressivo dentro da forma da poesia comedida. Parece-me, enfim, que, no se con- junto, os poemas de Costa Alegre sio uma manifestacso beletrista de um compromisso ineémodo que o jovem negro fez com a sua fusitanidade, (Era um compromisso incémodo porque atrés dele hhavia uma relutdncia e resisténcia fatentes. os muitos poemas em que as imagens da cor branca tadas como reflexdes da sua sensibilidade como ‘Poemas inseridos no Versos de Costa Alegre alu- cor da sua pele. E embora a sua lusitanidade ieio ocidental implicitamente evoque as suas ori- dois poemas no volume — «Serées de Sto Tomé» antomenses» —fazem mencdo directa & sua ilha natal. ivesse escrito poemas alusives & sua cor, provavelmente ‘nfo teria recebido uma nota de rodapé na historia da literatura portuguesa. O pocta negro, por ser negro, pode ser, para alguns, Juma curiosidade. Mas para os estudiosos, desejosos de fixer as ori- gens da literatura de Sto Tomé © Principe, Costa Alegre 6 um fenémeno que primeiro sugeriu alguns dos termos da problemética do eseritor «filho-da-terray daquém ¢ d’além-mar. ‘Francisco José Tenreiro e o fenémeno da negritude Cactano da Costa Alegre viveu a sua vida breve sob o signo da ‘monarquia em decifnio, © escreveu os seus versos em vista da estrela crescente do liberalismo republicano, Quase cinquenta anos passaram desde a morte de Costa Alegre em Alcobaca até A apa- igo de outro poeta siotomense de destaque. Este poeta, Fran- cisco José Tenreiro (1921-1963), filho de um admnnistrador portu- gués ¢ de uma mie africana, passou a maior parte da sua vida, também breve, em Lisboa, onde faleceu, O seu pai mandou-o para Portugal, ainda garoto; ¢ af ele tomnou-se um fenémeno auténtico, atingindo alturas sem precedente como um intelectual respeitado, um professor universitério, um politico e um escritor, Tenteiro actuava em todas estas esferas sob o signo da ditadura Salazarista € na Iuz dos acontecimentos momentosos e globais posios em mo- vimento pelas duas guerras mundiais. ‘A fim de particularizar algumas observagées inseridas no nosso primeiro volume (p. 39), convém tentar caracterkzar os componen- tes estético-ideotégicos da marca da negritude de Francisco José que Tenreiro insistia na negritude como 1, uma tomada de conscitneia perante Africa 10 entre intelectuais africanos ¢ europeus, nO & sugerir que ele simplesmente desejava acomodar, uma com a 248 foutra, duas ideologias aparentemente antagénicas—isto & a me- gritude © 0 lusotropicalismo, Contudo, nfo seria errado afirmar que Tenreiro © professor de geografia ¢ o deputado a Assembleia ‘Nacional usava estas funedes para abrir um espaco politico libera- fizante no sistema reacionério e colonialista. Neste respeito, Raquel Sotiro de Brito, escreveu sobre Tenreiro que «Quando a sua voz se ‘elevava, pausada e forte, na sila de sessbes da Assembleia Nacionel, ‘© burburinko parava, Todos queriam ouvir o que ele ia dizer, prin- cipalmente os que o conbeciam ¢ sabiam de antemio que cle in focar objectiva e Iealmente mais um problema da sua terra ‘Ocupando uma posi¢do simultancamente contestatéria ¢ concilia- toria, Tenreiro, como africano, intelectual e poeta (também cra 4imites da ordem politica, Além de mais, a poesia de Tenreiro serve ‘como medianeira entre a especificidade ctaocultural do «filho-da- terra» ¢ 0 panafricanismo de um individuo emaranhado nas teias do supranacionalismo ¢ da macro-etnicidade do estado portugués. Em Iiha de Nome Santo (1942), a sua primeira colecsio de poc- ‘mas, pocmas escritos na juventude, Tenreiro realga um sentimen- talismo etnocultural que antecede 0 surto de uma literatura crioulo- texpressio poética do ethos caboverdiano. O titulo tha de Nome Santo, 0 subtitulo Nove Cancioneiro e as secybes do volume, €Ro- Tam, com certs irnia, oma perpectiva deinada a or em Ghesto apectos de. experéncia colonial e a elevar 8 crluliéade Slotomense, Ao optar pelo romance (lads) Tenriro Tange mo desta forma antiga de origem earopla para maar poqlenos us dros populares em que 0 colonizador ¢ o colonizado se justapoem. Oe quafo Fomances que complem «Romanceton oentam us Gocuno se esctnio e puroia. Em «Romance de Seu Siva Coxtay trtae da lonia da aseendencia econdmica do colono pobre @ sus moeda no tem. mais ilusio!..»? on pa ested ances aoers Se ae ea aed tet gt xin caine Darts ane Soa ce ce ae en a Sap anette mee SME Shire en oom 2 ie a al re it te sen fo ommenn ur ns ee ee toi nitars channel Ua ae a cone poesia avendona! na um tonite e ctliicnselvndenGrias Aor talldede de poemas como «Represo do Homem Negro» vem dessa procura de ua Tinguagem adequada para expres os satimentos ae protest, portanto 1 originalidade do dscurso ebb Temioando caso da mogambicina Notmia de Sous. Mas em vez de atingr a alloqincla de we Me Quieres Conbe- cern, de Nota de Sous, ondena ith ssn converscionl em aus aparece uma noia de im e frinirag. Ba fnistracto do de Sensano, lustada, em ¢Regreo do Homem Negro, pela meté que sangra ¢ no chio rola/Sob todo punho iracundo. imagem aparece, com uma intensidade onomatopaica, no poema 4A Jotio Santa Rosay: «O preto & bola,/f pim-pam-pum! /Vem um;/— Zést na cachola. Bvidentemente o poet lugar entre os poctas militants. ‘Tomés Medeiros ¢ Maria Manuela Margarido: da resisténcia cultural a militancia Francisco José Tenreiro escreveu que «o socopé & equele ritmo que melhor traduz as transformagées por que 2 estrutura social passou desde 0 final do século XIX fruto de um ‘alargamento” dos nati lado, ¢, por outro, aos europeus, que ali passaram a encontrar também motives de distraccAo e prazer». Logo, do seu Polclore Musical da Wha de S. Tomé ( terra atribui a alteragio do sooopé A ‘ocorrénca da fusio das racas’.» (A Itha de Sto Tomé, p. 188). Embora Tenreuro qualifique a decla- ago do hhistoriador citado, ele acha que 0 socopé (ou sdc6pé) 6 a ponta de lanca da crioulidade sfotomense, ¢ como i ‘que a danga ritmada viesse a desempenhar um papel emblemético 253 ‘na expresso poética da reivindicagio cultural, O préprio Tenzeiro € autor de um poema chamado «Sbc6pé>, inserido no «Cancioneiro» do Ilha de Nome Sano. Este poema, de ritmos sincopados, 6 uma mediagao estético-ideolégica que transmite um significado populista, por meio do seu uso do crioulo, E 0 poeta € também um dos pon- tos de contacto entre a visio etnocultural de Tenreiro e a de Maria ‘(Manuela Margarido e Tomas Medeiros. ‘Maria Manuela Margarido (9. 1925), da Tha do Principe, tam- ‘bém escreveu um poema chamado «Sdcdp60: 40s verdes longos da minha ilha so agora e sombra do océ, névoa da vida, ‘nos dorsos doBrados sob a carga (copra, café ou escsu — tanto faz), Ouro 06 passor no ritmo calculado do soedpé, (queixa ou protesto — tanto faz), Mondtona se arrasia até explodir na alta dnsia da tiberdade» (in No Reino de Caliber, v. Th p. 470) niais da colectividade. Em seguida, o sujeito poético coloca-se numa osigio de intermediério entre a dindmica da danga ¢ o seu sentido simbélico. Ao passo que 0 pocma de Tenreiro retrata o socdpé como uma expressio idealista da crioulidade, no poema de M. M. ‘Margarido o «ritmo calculado» da danca ¢ a vor monétona do coro que explore «na alta ansia de liberdade» so premincios de mu- dangas. © uso mais explicito de certos simbolos poéticos, oriundos dum contexto popular, como uma mediagio estético-i 180 de esciirnio, nos seus poemas de indole popular, ¢ as reivindicagées negritudinianas que medem um espaco fisico © tem- poral mais amplo e mai ‘Tomés Medeiros (n. 1931), um médico de 8. Tomé, formado ‘na Unio Soviética, produziu alguns dos poemas mais revoltados a0 Ambito da literatura «clandestinay de Sio Tomé ¢ Principe. Ele, como Tenreiro e M. M. Margarido também tangou mio ao motivo 24 musical mais emblemAtico da crioulidade para compor o seu «Um Socopé para Nicolds Guillén: Nao? Tu nfo 2 conheces? Atha dos cafezais floridos ‘Bembom, Nicolés Guillén, bembom, icolés Ouilén "Tu nfo conheces a iha-riqueza ‘onde a miséria caminha ‘noe pasios da gente?» (in M0 Reino de Caliban, v. I, pp. 477-478) Neste poema retérico, originariamente publicado na antologia Poeias de S. Tomé e Principe da CiBIL., 0 sujeito pottico de Me- deiros dirige-se a0 poeta cubano que ganhou celebridade com a sua série de pocmas de motivo musical afrocubano © primeiro dos cito poemas de Guillén, reunidos sob 0 tftulo Morivos de Son (1930), chama-se «Negro Bembén». Em (Cuba a palavra bembén refere-se ‘bom» e «vem, que ¢ bom») procura, ivo © negative, emulando o que 0, Maria Manuela Margarido © Alda Espirito Santo participaram nas actividades da C.E.L em Lisboa, ¢ devido duas poetisas foram press pela RIDE nos ‘és poctas teve primeiro saida em revisas, -m Portugal e em Angola e Mocambique, sob © controlo editorial de grupos ou individuos opostos as posigdes tivos escritos por poetas de todos os territ6rios sob dominio colonial. ‘Tomis Medeiros escreveu «0 Novo Canto da Mie», um poema publicado, em 1960, na Mensogem da CEL Trata-se dum poema ‘que revela um discurso quase idéntico a tantos outros poemas da mesma temética (apontamos «Nos, Mie» do proprio Tenreiro, se 255 bem que este poema seja caracterizado por um humanismo conci- liatério em vez da determinacio implicitamente combativa que se vetifica no poema de Medeiros). nestes estudo, particular © papel de uma literatura de circunstincia num dado momento his- térico. Discutimos o seu papel emocionalideol6gico na segunda Libertagdo de Sio Tomé ¢ Principe (CLS. poeta que mais chamou a si a responsabilidad no protesto colérico ¢ mordaz. Inserindo 0 seu ideolecto no discurso, jd consagrado por poetas como José Craveirinha, do afticano marzi- aalizado na san propria terra, Medeiros compés 0 seu ¢Meu Canto ‘me estampaste no rosto/os primores da tua civlizag gunto, Europa,/eu te pergunto: AGORA» (In No Reino de Ca- tafeira de Paixio/sai- ia casa/a minha fa- (Demonstrando certa destreza retérica dentro do género da lite- ratura de circunstincia, Medeiros cultiva uma poesia imprecativa ‘que, de certo modo, simboliza a desintegracio completa do espago hhabitado pelos «fithosda-terray. Maria Manucla Margarido, por ‘outro lado, no mesmo trilho protestativo, fala, através da sua per- sona, no registo mais subtil e lirico. Os seus poemas, como «Me- méria da Iha do Principe», eRocar, «ervicais» e €V6s que Ocupais 8 Nossa Terra, t8m em comum uma imagistica oriunda da paisa- gem exuberante da sua idha tropical. Sao poemas que reintegram 0 meio fisico em torno do passado e futuro de um povo, Assim, em aisagem», um pocma bem executado na sua organicidade, a flora ea fauna da ilha integram-se com a palavra num prelidio impli cito @ revolta “¢Bntardecer.. capim nas costas ‘como’ coquciro na borda do mar ‘com os seus frutos dourados e dures 256 como pedras oclusas ‘rcilando ‘no ventre do tornado, fuleando o eéu com o seu penacho oido, No ofa perpasa a angistia austera da revolia ‘com suas garras suas nsias suas certezas. uma figura de linhas aerestes se apodera do tempo ¢ da palarra.» (ln No Reino de Caliban, v. I, p. 471) ‘A poesia de Maria Manuela Margarido traz a baila a questo da mulher como escritora militante, B uma questo que ganha o maior relevo na poesia de Alda Espirito Ganto. ‘Alda Espirito Santo, * © a poesia sfiotomense em casa Ge nfo tivesse escrito mais nada, Alda Espfrito Santo (a. 1926) teria assegurado 0 scu lugar na literatura de Sio Tomé e Principe ‘com © seu poema Onde Estio os Homens Cacados neste ‘Vento de Loucura», publicado originariamente (salvo erro) na Antologia da Poesia Negra de Expressio Portuguesa (1958) organizada por Mério de Andrade, © poema foi inspirado pelo massacre de Batopa, em Fevereiro de 1953, quando morreram cerca de mil sfotomanses. * E na sua coleccio # ser incluido entre «Poemas da Juventuden, a primeira seecio do volume. Os ingredientes que constituem os poemas nesta seccio e ‘que também aparecem em certos dos seus poemas mais maduros, caracterizam a visio poética de \A. spfrito Santo ao passo que de- finem 0 seu papel no contexto etnocultural de Sio Tomé e Principe. Para apreciarmos alguns dos aspectos mais salientes dos poemas de Espirito Santo, Iembrar que a literatura de Sio Tomé ¢ Principe nasceu e foi, em grande parte, cultivada fora das ilhas. auséncia de um movimento to cra, para todos os cfeitos, loco durante os derradeiros cisSo de permanecer em S. Tomé jcas a abandonar as ilhas, explica, em parte, os * Em dado momento Alda Espirito Santo omitin a contragio «do» do seu nome (Alda do Espirito Santo). 237 estratagemas inerentes a0 e6digo poétic Tratase dum c6digo que presta uma dot tum sistema, que teria de ser abalado nos que se foi acumulando para estuar em processo organizado, nos Tongos anos em que se ia ganhando consciéncia de um v% 1pe para escritores militantes que se viam impedidos pelo censor na expresso dos seus sentimentos mais revolucionérios) 0 que emerge nos poemas da #0 do seu canto do mundo. O 10 de A. Espirito Santo vem a ser uma expressio emotiva iliaridade doméstica que fica a componente etnocul tural a0 nivel da familia nuclear ¢ estendida. A familia pode sér Vista como uma metéfora da comunidade num poema como «Des- sentimento de direitos proprietirios, caminha por este pequeno es- aco depois de anunciar 0 objective de dar relevo dramético 20 ‘seu povo, ‘Bu vou trazer para 0 paleo da vida pedacos da minna. gent a fiuéneia quente da mi ian dis de pooageloes @. A familiaridade doméstica, além de se originar na permanéncia do posta no seu espaco fisico ¢ etnocultural, ¢ também uma mani- 258 festagio da sua consciéncia como mulher, Dando f6 a esta cons- ciéncia, A, Espirito Santo diz, no prefécio a sua colecgio de poe- ‘mas, que «a mulher africana duplamente colonizada, escrava do- mistica, serva da colonizagio, tem uma missio secular a desem- penhar na etapa da bertagio» (p. 20), B a consciéncia de mulher ssugere, nos poemas de A. Espirito Santo, um discurso feminino fbaseado na socializacio da muller nas circunstincias peculiares «_ criadas pelo colonialismo. como exemplo da perspectivaciio doméstica exprimida ‘uma eptincia de sete versos, © sujeito poético discursa brevemente sobre os festejos de Natal em S. Tomé. Logo, nas partes il ¢ Il, Jemos «Mas 0 exo dra um dos aspectos da acomodaco efectuada numa sociedade aculturada. Dentro desta sociedade, necessariamente incoesa con- ue respeita as suas componentes dispares, a unidade comunal con- ccentra.se na figura da mulher e na sua vida doméstica «Na hore do ‘engu? Do cléssico calulu de peixe Os pratos tradicionais so emblemas etnoculturais do convivio, ¢ a forca unificadora deste rito comunal € a «mée velhinhay, uma designagéo de carinho e veneracio para a avs." Esta cena domés- tice © matriarcal, projectada para o primeiro plano dum mundo crioulo, é uma confrontacdo feminina com a realidade hist6rica do coloniatismo, (No volume, 1 (pp. 120-121) deste estudo comento 2 poesia da angolana Deolinda Rodri «A Consoadan é um poema que ‘compartilha certas cara ; particularmente um discurso fe minino, com o Natal na Tas, A. Espirito Santo, num geo mido num discurso familiar ¢ feminino, emerge em ¢Voz Negra das Américas», um pocma de louvor a Angela Davis, uma militante norte-americana. 259 A solidariedade feminina de A. Espirito Santo € inseparével da ‘deologia de unidade racial em torno da autodeterminacdo dos povos oprimidos. B € claro que varios poemas recolhides em # Nosso 0 Solo Sagrado da Terra respondem & urgéncia do momento hist6rico. HG, por exemplo, 0 pocma «Acordo de Argeln, sobre a reunigo de ‘quo resultow a data de 12 de Julho de 1975, marcada para a inde- pendéncia de Sio Tomé ¢ Principe. E o potma «Giovani» capta 0 drama da iltima vitima mortal da repressio colonialista em Sio ‘Tomé ¢ Principe. Se bem que estes poemas que respondem & urgén- cia do momento histérico com uma forca emocional confiram uma ‘mensagem poderosa aos pretensos leitores, eles carecem duma in- ‘tencionalidade etnocultural. Deste modo, a intervengao individual de Alda Espfrito Santo no processo colectivo é, afinal de contas, © que empresta mais valor aos scus poemas de uma dramaticidade doméstica. s primetros anos apés a independéncia Sem 0 beneficio de um movimento culturabliterério coordenado, € com a dispersio da maior parte dos poucos escritores (Maria ‘Manuela Margarido tinha fixado residéncia em Paris) e 9 siléncio de Alda Espfrito Santo, ainds em S, Tomé, a produgSo literdria

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