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Sem desaparecer por completo, o neoplatonismo, tao influente em Agostinho ena Pa- tristica, cedeu lugar paulatinamente ao aristotelismo, Nesse processo de intenso debate, a vo que sobressaiu no periodo medieval foi a do fildsofo e tedlogo italiano Tomas de Aquino. @ Filosofia tomista: a unidade entre a razao ea fé A doutrina de Tomas de Aquino é uma das principais referéncias da filosofia crist. Seguindo seu mestre, 0 bispo alemSo Alberto Magno (c. 1200-1280), Tomas de Aquino buscou a sintese entre o aristatelismo ¢ 0 cristianismo, partindo da compreensao de que a razao e a fé poderiam e deveriam caminhar juntas, porque ambas seguiriam a mesma direcdo: a da verdade. “Se 6 verdade que a verdade da fé crista ultrapassa as capacidades da razdo humana, nem por isso os principios inatos naturalmente a razio podem estar em contradicdo com esta verdade sobrenatural. Bum fato que esses principios naturalmente inatos & razio humana s&o absolutamente verdadeiros; so tao verdadeiros que chega a ser im possivel pensar que possam ser falsos. Tampouco é permitido considerar falso aquilo que cremos pela fé, e que Deus confirmou de maneira tio evidente. Ja que s6 o falso constitui o contrario do verdadeiro, como se conclui claramente da definigao dos dois conceitos, é impossivel que a verdade da £6 seja contraria aos principios que a raz4o humana conhece em virtude das suas forcas naturais. AQUINO, Tomas de. Suimuta contra os gentios. S80 Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 143. (Coleco Os Pensadores) Assim, nao seria possivel que a teologia (as verdades da fé) ea filosofia (as verdades da razo) se contrariassem. Para que houvesse colaborac3o.ad equada entre elas, entretanto, o cam- po de atuagao de cada uma deveria ser claramente definido, ou seja, seria preciso estabelecer 0 dominio particular das duas areas. A filosofia caberia 0 estudo da natureza, fundamentado na investigaao empirica e na busca racional dos principios gerais de tudo o que existe. A teologia caberia o estudo do sobrenatural, isto ¢, das verdades reveladas por Deus sobre os mistérios, como a encarna¢ao, a ressurrei¢3o, a Trindade etc —as verdades que nao poderiam ser demonstradas pela razao. Segundo 0 pensamento tomista, no poderia haver, entao, contraposicao entre a filosofia e a teologia, pois os objetos de estudo de ambas, as verdades reveladas e as verdades da raz3o, fariam parte da unidade ou totalidade da verdade. Contrapor uma & outra seria confrontar uma verdade coma outra. Assim, seria necessario haver concordancia entrre fé € razao; caso exis- tisse conflito entre as conclusdes racionais e os dogmas crist os, haveria algum erro ou incompreensao do pensamente racional, pois no poderia ocorrer erro na palavra de Deus (revelaco). Ocatores Christian Slater e Sean Connery em cana do filme ‘O nome da rosa (1986), dirigido por Jean-Jacques Annaud. Com base no romance homénimo de Umberto Eco, atrama temcomo pano de fundo.os embates entre a fé e arazao. Sh ® As comprovacées da existéncia de Deus A clara distingSo entre a filosofia (razo) e a teologia (fé) permitiria a contribuicao entre elas. Tomas de Aquino exemplificou essa ideia por meio das cinco provas da exis téncia de Deus, que esto em uma de suas principais obras, a Suma teoldgica. Veja na primeira prova, citada a seguir, como o filésofo usa argumentos racionais para concluir a existéncia de Deus. “Nossos sentidos atestam, com toda certeza, que neste mundo algu- mas coisas se movem. Ora, tudo o que se move é movido por outro. [...] E impossivel que sob 0 mesmo aspecto e do mesmo modo algo seja motor e movido por outro. Assim, se o que se move é também movido, o é neces- sariamente por outro e este por outro ainda. Ora, nao se pode continuar até o infinito, pois nesse caso nao haveria um primeiro motor, por con seguinte, tampouco outros motores, pois motores segundos s6 se movem pela mog4o do primeire motor, como o baste, que s6 se move movido pela mao. £, entdo, necessario chegar a um primeiro motor nao movido por nenhum outro, e este, todos entendem: ¢ Deus.” AQUINO, Tomas de, Suma teoldgica. 2. ed. ‘Sao Paulo: Loyola, 2003. p. 166. Nesse texto, Tomas de Aquino se apoiou na teoria aristotélica do Motor Imével para argumentar que a explicag3o do movimento da natureza exigiria um ponto de partida, um inicio. Come tode movimento tem uma causa, um motor, se retrocedéssemos movimento por movimento, causa por causa, encontrariamos o Primeiro Motor ou a Causa Primeira, Deus Sobre a natureza das coisas (século Xi), iluminura de autoria desconhecida. Abadia de Saint-Amand- -les-Eaux, Franca. A imagem representa Alberto Magno, o mestre de Tomas de Aquino que primeira propésa clara delimitagao entre a filosofia e a teologia. Aquino sustentava a ideia de que a disting3o entre razSo ¢ fé permitiria a contribuigao entre elas. ® Abusca do bem eo Llivre-arbitrio Na teoria tomista, as criaturas tendem naturalmente para o criador, isto é, todos os seres criados buscam o bem supremo. Mesmo que, come criatura terrestre, o ser humano ndo possa compreender a esséncia divina, sua condigao natural ¢ caminhar em diregao a Deus. No entanto, o ser humano é dotado de razdo; por isso, pode conhecer, julgar, ponderar e, portanto, fugir de algo ou ir ao seu encontro, afastar-se ou aproximar-se das paixdes, viver ou ndo em busca de Deus. No pensamento. tomista, o livre-arbitrio é um berm humano fundamental. Ter o poder da livre escolha diferencia o ser humano dos outros animais. Se tudo fosse deter- minado por Deus, os conselhos, as exortagées, as recompensas, os castigos € as proibicées seriam intiteis e, o mais importante, o ser humano nao seria responsavel por suas acdes. Diante da mesma sit uagSo, os individuos podem tomar decisées diferen- tes. No mundo humano, em vez de determina¢3o, ha o contingente. Assim, por meio de sua vontade e de suas ages, o ser humano pode afastar-se de Deus e tomar 0 caminho do vicio ou dominar suas paixdes ¢ desenvolver virtudes, isto 6, buscar a verdade e a divindade, o bem mais perfeito. Tomas de Aquino retomou o problema de livre-arbitrio acentuando ainda mais que Agostinho a liberdade de escolha como um bem humano funda- mental. Desse ponto de vista, a existéncia de agoes humanas mas ou com consequéncias danosas é justificada, pois, se Deus as impedisse, o ser humano. nao teria liberdade de escotha. Trata-se, portanto, de aceitar a existencia do mal a fim de preservar um bem maior, o livre-arbitrio, mesmo que alguns seres humanos fagam escothas danosas © problema do livre-arbitrio, embora tenha tratamento bastante destacado na filosofia medieval, transcende o ambito religioso, pois diz 0 4 liberdade humana. O ser humano é realmente livre para decidir ou agir ou é determinado por fatores externos a ele —imposicSes naturais, econémicas, sociais, religiosas ou de qualquer outra ordem? > Tomas de Aquino [c. 1224-1274) Nascido em uma familia de nobres, fez os primeiros estudos no Castelo de Monte Cassino, localizado ao sul de Roma. Em 1239 foi para Ndpoles, onde estudou artes liberais e ingressou na Ordem dos Dominicanos, em 1244. Além de padre, foi tedlogo e fildsofo. Ele representou o apogeu da Escolastica medieval ao estabelecer o equilibrio nas relagdes entre fé € rozBo, ou seja, entre teologia € filosofia. Suas posigées foram combatidas inicialmente por varios tedlogos, mas aos poucos 0 tomisma foi se estabelecendo come doutrina oficial da igreja Catdlica, Tomas de Aquino realizou uma integragSo entre a filosofi filosofia crist8. Entre suas principais obras estao Suma teoldgica e Sumacontra 0 gentios. No ano de 1323. 0 papa Jodo Xi o declarou santo. Foi praclamado doutor da Igreja em 1567. aristotélica ea ® Livre-arbitrio ou determinismo? Pademos supor, por exemplo, que as condicdes socicecondmicas determinem a si- tuagao dos individuos, que © destino humano jé esta tracgado por Deus, au, ainda, que os pensamentos sao definidos pela genética. Observe que. nos exemplos elencados, nao se afirma simplesmente que o meio social, Deus ou a natureza influenciam nossos pensa- mentos e agdes, mas que uma determinac3o necessaria define o modo camo somos & vivernos. Isso significa que nao ha maneira de as coisas serem diferentes, poise pressupde uma relacdo de causa e efeito imodificavel. De acordo com a tese determinista, nao ha livre-arbitrio, pois, independentemente do que fazemos, as coisas s30 como sao. Alids, o. que escolhemos fazer é predeterminado pela causa. Nesse caso, nao hd urna escolha verdadeira. Jé iniciamos urna discussao so- brea liberdade e o determinismo na abertura do capitulo 4, quando debatemos sobre a principal tese do determinismo: tudo que acontece tem uma causa. Os acontecimentos sd0, entdo, efeitos necessdrios de causas. Entretanto, se existe livre-arbitrio pleno, nossas decisdes e acdes nao sao predeter- minadas por nada nem por ninguém e, portanto, cabe ands definir o rumo de nossa vida. Somos, entao, responsaveis diretos por ela. Se, por outro lado, Deus ou qualquer outra causa predeterminar nossas decis6es, como poderemos ser responsabilizados por nossas escolhas? Nossas agées nunca serao voluntérias. Como afirmou Tomas de Aquino, os conselhos, as exortacées, as recompensas, os castigos e as proibicées serdo inuteis. Dito de outra maneira, a reprimenda moral ou legal sé faz sentido para quem tem liberdade de escolha. © mesmo vale para os conselhos: eles serdo Uteis se, e somente se, houver a possibilidade de agir de modo diferente. Isso nos faz pensar sobre nossa vida e sobre nossos atos. As ages que realizamos $30 frutos de nossas decisées ou consequéncias necessarias determinadas anteriormente? So- mos agentes ou simplesmente realizamos vontades alheias? Por exemplo, nesse momento, vocé decidiu ler este livro de filosofia: essa agao foi realmente uma decisao sua ou uma determinago divina? Est udar no ensino médio foi uma deliberag3o sua ou uma determina- So econémica? Seus pensamentos so mesmo seus ou so determinados pela sociedad e? Ha diversas posigtes sobre o problema de livre-arbitrio, que podem ser resumidas da seguinte maneira. + Determinista radical — nega a possibilidade de o ser humane ter livre-arbitrio, ou seja, ter liberdade e responsabilidad por suas aces. + Determinista mod erada - defende aideiade que.aliberdade humana nao ¢ incom- pativel como determinismo, pois, mesmo que as escolhas sejam determinadas por causas anteriores, 0 individuo pode escolher e, portanto, deve ser respansabilizado por suas acées. + Indeterminista —defende © livre-arbitrio e @ ideia de que a vontade e a maioria das escolhas humanas nao sao causal mente determinadas. 8

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