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0 Brasil éo-que tem talher de prota Ow aquele que sc come com w mia? Ow sera que o Brasil &o que nao come? Gelso Viafora e Vicanta Barreto “Acara do Brasi AssisTéNncia SociAL E TRABALHO: Diretos (In)Compativeis? Digitalizado com CamScanner Assisténon "Soca. No Basi. uu Dincto ere Onamationoe € Coxsenva0oniso AssistéNcia Sociat & TraBatno: Dinetros (IN)Compativeis?——____ N ao constitu exatamente uma novidade afirmar que a assisténcia social, historicamente, se configurou como campo de intervengao politica e social nebuloso. Esta é uma leitura corrente da literatura especializada na area (Sposati, 1985; Faleiros, 1989; Pereira, 1996) e nao parece ser uma caracteristica especifica do Brasil. Em outros paises, como a Franga, que dispde de uma Lei de Assisténcia Social desde meados do século XIX, atualizada pela Loi d’Aide Sociale de 1953, a literatura, igualmente, indica a presenca de relagdes nebulosas entre o poder pUblico eas instituigdes privadas assistenciais e a dificuldade de superar a visdo da assisténcia como filantropia assistencialista' (Bec, 1994; Castel, 1989, 1998). As tentativas de entendimento deste fendmeno apontam para varias diregdes e muitos elementos de explicagao ja foram indicados. Uma das mais correntes é a afirmacao de que aassisténcia social é uma agao publica e privada que, tradicionalmente, nao se constituiu como componente das politicas de desenvolvimento econdmico e social, néo avangando, em conseqiiéncia, para além das classicas medidas reparadoras e/ou amenizadoras das situagGes de pobreza (Alayon, 1989). A questao da definigao (e, por decorréncia, da avaliagao) do que é assisténcia social, de qual deve ser 0 seu campo de agao e quais sao as suas finalidades surge quando se assume politica e legalmente a assisténcia como dever politico determinado por uma condigdo de cidadania e nao como dever moral (Pereira, 1996; Boschetti-Ferreira, 1998a). No caso brasileiro, o reconhecimento da assisténcia social como direito do cidadao, 7 Guta diiculdade Tor de fal porte que a Franga “rebalizou" o termo assisténcia @ na Lei de 1953 as agdes assistencials, sob a dtica do direito, passeram ser denominadas de ajuda social (aide sociale), como se © abandono da expressao também provocasse nova viséo @ novas formas de agdo. 41 Digitalizado com CamScanner Wanere Boscvern Portanto dever do Estado na sua garantia, acontece tardiamente, com 4 Constituigdo Federal de 1988. Embora esse reconhecimento legal seja recente, sabemos que a intervengao do Estado brasileiro institucionalmente organizada data da década de 1940 com a criagao da LBA.? Essa constatagao tarna inevitave| questionar por que so tardiamente a assisténcia social se configurou coma direito social e dever politico, diferentemente de outros paises, em que assumiu o carter de politica social instituinte do Estado de direito (Oonzelot, 1994: Murad, 1993; Castel, 1995a). O que instiga esta questao nao 6 um interesse em comparar paises com situagdes é contextos hist6ricos 8 socioecondmicos diferentes. Trata-se, mais, de apontar indicadores que permitam melhor entender a situagao brasileira, pois os mesmos elementos que retardaram o reconhecimento legal da assisténcia como direito podem estar agindo como obstaculos para sua concretizagao. Nesse sentido, é possivel identificar, ao menos, dois tipos de respostas que podem ajudar a decifrar esta questao.? Existe uma resposta classica, que tenta explicar as dificuldades e entraves 4 consolidagao da assisténcia como direito social com base nas particularidades intrinsecas a propria assisténcia social e que sao, também, uma decorréncia desse nao reconhecimento como direito. Tem-se aqui um movimento circular: a mesma particularidade que dificulta 0 reconhecimento e a materializacdo do direito se alimenta e se reproduz da condigao de nao direito. Entre as particularidades historicamente sinalizadas por diversos autores como inerentes a pratica da assisténcia social brasileira, € possivel destacar: a) sua subordinagao aos interesses clientelistas dos governantes @ de muitos parlamentares que fazem das verbas e subvencdes publicas um patriménio privado; nao esquecamos da CPI do orcamento que, em 1992, desmontou 0 complexo esquema * A Legido Brasileira de Assisténcia (LBA), foi criada em 1942 pelo Governo Vargas ¢ foi extinta em 1985 belo presidente Fernando Henrique Cardoso. Embora a extingdo estivesse prevista na Lei Organica de Assisténcia Social, aprovada em dezembro de 1993, 0 reordenamento institucional realizado por Medida Provisoria foi autortario, sem um perfodo de transi¢do que assegurasse a continuidade dos servigas ¢ 0 debate sobre a nova estrutura a ser implementada i Asreanas ‘Seguintes foram parcialmente desenvolvidas em artigo publicado na revista Katalysis, n° 4, 42 Digitalizado com CamScanner Assisténcia Sociat No Bast: uu Dinero ene Oncmaionoe € Consenvanoriso envolvendo parlamentares, Conselheiros do entéo Conselho Nacional de Servigo Social (CNSS) € funcionarios da Comissao de Orgamento da Camara dos Deputados, revelando o comprometimento de um Grupo de deputados com o desvio das subvengGes sociais e os Projetos/emendas direcionados no orgamento da Unido; b) em consonancia e até decorréncia desse uso clientelista da assisténcia, ela é freqiientemente implementada em fungao dos interesses Politico-econémicos do governo de plantao; sé para ilustrar, 0 gasto com assisténcia social no governo Collor em 1991 representou uma redugdo de 46% em relacdo ao ano anterior (Boschetti-Ferreira, 1993), a0 mesmo tempo em que os recursos destinados a LBA eram utilizados pela familia da primeira dama em Canapi-AL, conforme divulgaram os jornais da época; c) tratada como pratica assistematica e descontinua (governamental ou nao), a assisténcia enfrentou dificuldades até mesmo para receber a nomenclatura de politica social; embora o aparato institucional governamental nao seja recente — a LBA foi criada em 1942, o MPAS em 1974 eo SINPAS em 1977 (lamamoto & Carvalho, 1982; Faleiros, 2000) - somente em 1985 a assisténcia passou a compor um plano nacional de desenvolvimento (1 PND da Nova Republica) recebendo, pela primeira vez, a designagao de politica social; é justamente esse movimento, que se inicia na década de 80, que vai desaguar na criagao da seguridade social em 1988, e que elevou a assisténcia ao patamar de direito social, ao lado da previdéncia e da satide (Boschetti-Ferreira, 1998b), d) a eterna (e muitas vezes intencional) confusao entre assisténcia e filantropia é reforgada pela opacidade das relagdes entre pliblico e privado no Brasil, esta confusao nao é resultado de mero «desconhecimento» das diferengas e, por que nao dizer, antagonismo, entre assisténcia social como politica publica e benemeréncia; trata-se, na verdade, de uma atitude orientada por uma intencionalidade de manutengao da assisténcia sob a otica 43 Digitalizado com CamScanner Wanete BoscHeTT: do dever moral e submetida a interesses clientelistas , paternalistas. Aessas particularidades intrinsecas a pratica hist6rica da assisténgi, brevemente referenciadas aqui, é possivel adicionar uma segunda respogy,’ que extrapola estas caracteristicas. E possivel afirmar que esta politic, social enfrentou muitas resisténcias para ser legalmente reconhecida com) direito e continua sofrendo enormes resistencias na sua implementacay como tal, porque ela é uma politica em constante conflito com as formas de organizagao social do trabalho. Analises historicas mostram que a assisténcia social publica sempr, se debateu para encontrar seu lugar e sua identidade ao lado da organizacap social do trabalho: em uma sociedade fundada no primado liberal do trabalho qual € 0 campo reservado 4 assisténcia? seria direito de cidadania para todos? politica compensatdria e restritiva para as pessoas incapacitadas ao trabalho? politica de complementacao e/ou substituigao de renda aos trabalhadores pobres? politica de promogao e/ou geragao de emprego? Esses sao alguns dos dilemas deste campo de intervengao que sempre esteve presente na cena social e politica e que permeia todas as Politicas sociais (Sposati, 1985; Pereira, 1996). Cabe, portanto, tentar entender porque a assisténcia é uma politica em constante conflito com a organizagao social do trabalho no capitalismo. 1.1. Assisténcia Social e Trabalho: uma Antiga Tensao* Em uma sociedade onde “a ordem social tem como base o primado do trabalho” (Constituigao Federal, Artigo 193), quais sao os atributos eas fungdes destinados a assisténcia social em sua conformagao de direito social? Qual deve ser seu papel na herctlea tarefa de garantir bem-estaré justiga sociais? Pela primeira vez na historia, um principio simples, cravad0 na Constituigao brasileira permite reorganizar sob novas bases a relaga0 * Este item no consta na primeira edigao do livro. 44 Digitalizado com CamScanner ASSIsTENCIA SOCIAL No Bras: um Dineito EnTRE OAIGHIALIOADE € CONSEAVADOAISMO entre trabalho e assisténcia Na construgao do Estado social: “Sao direitos sociais a educagao, a sade, o trabalho, o lazer, a seguranga, a previdéncia social, a protegao a maternidade e a infancia, a assisténcia aos desamparados, na forma desta Constituigéo” (Artigo 6°). Colocada no mesmo registro das demais politicas sociais e do trabalho, a assisténcia, contudo, apresenta uma particularidade: diferentemente dos outros direitos elencados de forma genérica, ela recebe uma qualificagao propria — assisténcia aos desamparados. Aqui, ja aparece a primeira delimitagao deste direito, que nao é de todos, é destinado aos “desamparados”. Mas quem so os desamparados que passam a ter direito a assisténcia social? O artigo 203 da Constituigdo Federal, ao referir-se especificamente a este novo direito social, define a quem ele se destina e (re)produz uma distingao que sera decisiva para a concretizagao deste direito: A assisténcia social sera prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuigao 4 seguridade social, e tem por objetivos: |-a protegao 4 familia, 4 maternidade, a infancia, 4 adolescéncia e a velhice; Il - 0 amparo as criangas e adolescentes carentes; Ill = a promogao da integragdo ao mercado de trabalho; IV-a habilitagao e reabilitagao das pessoas portadoras de deficiéncia @ a promogao de sua integragdo 4 vida comunitaria; V—a garantia de um salario minimo de beneficio mensal a pessoa portadora de deficiéncia e a0 idoso que comprovem no possuir meios de prover 4 propria manutengao, ou de té-la provida por sua familia, conforme dispuser a lei. Jassisténcia é, certo, um direito legalmente garantido. Mas, 6 um direito de quem e para quem? Ao afirmar que serd “prestada a quem dela Necessitar”, assegura que é um direito de todos os “desamparados” ou de todos os que dela tiverem necessidade. Ao desdobrar seus objetivos, entretanto, o texto estabelece uma distingao na aplicacao do direito entre 45 Digitalizado com CamScanner IwaneTe BoscHeTT: aqueles que sao ou nao capazes de trabalhar. Observe-se que a protegao, 0 amparo, a habilitagdo e a garantia de uma renda minima destinam-se especificamente aqueles cuja situagéo nao hes permite trabalhar. maternidade, infancia, adolescéncia, velhice, deficiéncia. Aqueles que nag se inserem nestas situagGes, 0 objetivo é outro: nao assistir, mas promover a integragao ao mercado de trabalho. Assim, 0 reconhecimento legal da assisténcia social como direito retoma e mantém uma distingao entre assisténcia e trabalho, entre capazes e incapazes que estrutura secularmente a organizacao social. O primado liberal do trabalho ou, mais precisamente, do trabalho assalariado, materializou na hist6ria o principio segundo o qual o homem deve manter asi e 4 sua familia com os ganhos de seu trabalho, ou com a venda da sua forga de trabalho (Polanyi, 2000). Este principio esta de tal forma cristalizado, que a perspectiva e/ou iniciativa de sustentagao dos individuos por meio de politicas assistenciais, sejam aquelas de transferéncia de renda (em geral denominadas programas de renda minima) ou agdes de outra natureza, séo profundamente permeadas por debates tedricos tensos, conflituosos e, como nao poderia ser diferente, orientadas por perspectivas politicas e ideoldgicas antagénicas (Boschetti-Ferreira, 1999). Enquanto os liberais “aceitam” politicas assistenciais minimas voltadas para “inaptos ao trabalho” e reconhecem que programas de transferéncia de renda podem garantir a livre oferta da mao-de-obra no mercado, autores com perspectiva social defendem a instituicéo de amplos programas de transferéncia de renda com 0 objetivo de proteger a forca de trabalho excluida do processo produtivo (Ferry, 1995; Gorz, 1997; Mauss, 1996; Leleux, 1998; Euzéby, 1991; Caillé, 1994; Van Parijs, 1995). Este debate, principalmente em momentos de reestruturaca0 produtiva com redugao de empregos estaveis e permanentes, tanto nos paises europeus como na América Latina (Castel, 1995a; Pochmann, 1999), € conseqiente proliferacdo de iniciativas de politicas de transferéncia de renda (Sposati, 1997; Silva e Silva, 1997; Boschetti-Ferreira, 1999), éntretanto, ndo é recente e seus componentes nao constituem novidade. E antiga, tensa e nao resolvidaa relacdo entre o (nao) trabalho e a assisténcia 46 Digitalizado com CamScanner : Assist¢ encM Soct no Brust: un Dero entne Onsonaioaoe € Conservaoonisua social como politica governamentals Analisando as “metamorfoses da questo social”, Castel (1998) reconstrdi o percurso das primeiras medidas de protegao social, publicas e privadas, no ambito do que ele denomina de “social-assistencial” Para demonstrar que “as Populagées que dependem de intervengGes sociais diferem, fundamentalmente, pelo fato de serem ou ndo capazes de trabalhar, e sao tratadas de maneira completamente distinta em fungao de tal critério” (Castel, 1998, p. 41). As populagdes pobres que nao podem trabalhar, devido a algum tipo de incapacidade em fungao da idade (criangas e idosos), de uma deficiancia fisica ou psiquica, de uma enfermidade, ou até de alguma situagao familiar ou social mais vulneravel, sao isentas da obrigatoriedade do trabalho, enquanto os pobres em condig6es de trabalhar (adolescentes, homens e mulheres adultos ndo acometidos por nenhuma das situacdes descritas acima), historicamente foram repelidos pelas agdes assistenciais. Trabalho e assisténcia assim, mesmo quando reconhecidos como direitos sociais, vivem uma contraditéria relagao de tensdo e atragao. Tensdo porque aqueles que tém 0 dever de trabalhar, mesmo quando nao conseguem trabalho, precisam da assisténcia, mas nao tém direito a ela. O trabalho, assim, obsta a assisténcia social. E atragdo porque a auséncia de um deles impele o individuo para o outro, mesmo que nao possa, n&o deva, ou nao tenha direito. Em uma sociedade em que o direito a assisténcia é limitado e restritivo, como sera demonstrado adiante, e o trabalho, embora reconhecido como direito, ndo 6 assegurado a todos, esta relacao se torna excludente e provocadora de iniqiidades sociais. Essa tensdo, levada ao extremo, conduz a pior das serviddes, ou como ressalta Castel (1998, p. 44), “a liberdade sem protego pode levar a pior servidao: a da necessidade”. Nesta perspectiva, sao as diferenciadas formas de organizagao do trabalho e da assisténcia social que conformam os sistemas de protegao social e sua capacidade de responder a questao social, em suas expressdes Contempordneas. Autores como Castel (1998), Polanyi (2000) e Hatzfeld = i * Quando nos referimos a assisténcia social, no enfoque aqui adotado, estamos falando de politica publica, Nao de praticas assistenciais voluntarias e filantrépicas. 47 Digitalizado com CamScanner Ivanere BoscHertt (1989) langam uma forma nova de olhar e perceber 0 papel eas fungdes da assisténcia na organizagao social a partir de sua relagao com 0 trabalho Muitas das caracteristicas predominantes nas legislagdes que regulamentaram as primeiras intervengGes sociais sobre os pobres aptos ou inaptos ao trabalho, ressaltadas por estes autores, podem ser identificadas na primeira lel que reconheceu a assisténcia social como direity no Brasil. Nesse sentido, ao resgatar caracteristicas hist6ricas que foram se tecendo na Europa desde a Idade Média, inicialmente pela via qa filantropia, e, em seguida, pela via das politicas pUblicas assistenciais, Caste (1998, p. 47), afirma que “as disputas contemporaneas da assisténcia ainda sao constituidas em torno de coordenadas de que sO se percebe o sentidg quando relacionadas com as situagdes histdricas em Cujo seio se constituiram desde a Idade Média”. E continua “(...) essa configuracag assistencial interferiu e continua interferindo (para, a0 mesmo tempo, assumi-la em parte e oculta-la) na outra grande face da questao social que 6, sobretudo, a problematica do trabalho”. Quais sao, entao, essas caracteristicas histéricas da assisténcia, que atravessaram séculos e fronteiras, que nao se limitam a estruturar especificamente esta politica em si, mas que interferem na prépria organizagao social a partir de sua relacdo com o trabalho? Sera que tais caracteristicas sao universais, no sentido de que podem explicar a estruturagao da assisténcia social hoje no Brasil? Uma breve visita a tais caracteristicas pode ajudar a responder estas questdes. A primeira caracteristica sublinhada por Castel, (1998, p. 57-59, 69- 94),® 6 que a assisténcia social, mesmo quando ainda nao tinha o status de direito, resulta da construgéo de um conjunto de praticas com fungao protetora, integradora e preventiva, que se inicia em sistemas relacionais comunitarios (familia, vizinhanga, trabalho), sob a ética da benemeréncia, mas que vai se deslocando destas relagdes e origina estruturas de atendimento privado e publico cada vez mais complexos e sofisticados. Ou seja, a assisténcia social como politica publica guarda tragos das * As caracteristicas estao sinalizadas em Castel, 1998 (tradugo brasileira), p. §7-59. A quinta caracterstica. ue interessa mais particularmente para este traballio, esta detalhada nas p. 69 a 94. 48 d Digitalizado com CamScanner Assisréncia Social no Brast: um Direrro Ente ORIGINALIOADE € CONSERVADORISMO primeiras medidas filantropicas, o que ajuda a explicar a insistente permanéncia de confusao entre assistencialismo, assisténcia e benemeréncia. A segunda caracteristica é que tais praticas ja apresentavam esbogos de especializagao que, posteriormente, constituiram os nucleos de profissionalizagao, ou como indica Castel “a delimitagao de uma esfera de intervencao social suscita, assim, a emergéncia de um pessoal especifico para instrumentaliza-la” (1998, p. 58). Em decorréncia desta, a terceira caracteristica sera, justamente, o surgimento de uma tecnicizagao minima, ja que os “prestadores” da agao assistencial assumem atribuigdes como: avaliar as situagdes em que deve intervir, selecionar os “merecedores” de auxilio, definir categorias, conhecer a populacao, seja para assisti-la ou para exclui-la dos beneficios. A quarta caracteristica é 0 surgimento de uma clivagem entre praticas “intra-institucionais”, por exemplo, em internatos, e “extra-institucionais”, por exemplo, atendimentos em domicilio. A quinta, e mais importante caracteristica para os propésitos deste trabalho, é que a assisténcia sempre estabeleceu dois critérios de selegdo da populacao pobre: 0 primeiro, 6 do pertencimento comunitario ou da proximidade, isto é, a prioridade e, as vezes, exclusividade de atendimento, 6 para 0 pobre morador da cidade; o segundo critério, ja mencionado anteriormente, é a inaptiddo para 0 trabalho, pois a assisténcia prioriza a crianca, 0 drfao, 0 deficiente e 0 idoso, 0s quais sao incapazes de suprir sua propria subsisténcia através do trabalho. Para Castel (1998, p. 59), “essa distingdo (...) circunscreve 0 campo do social-assistencial em sua diferenga quanto as outras formas de intervengao social, voltadas para aS populacdes capazes de trabalhar.” Todas as caracteristicas acima é Tealizada pelos 6rgaos publicos desde a década d n 0 Com aLBA, desde a década de 1970 coma criacdo de Secretarias especificas para gestio da assisténcia em ambito estadual e, mais recentemente, nas Prefeituras Municipais que organizaram corpo técnico e definiram regras de funcionamento. Mas 6, sobretudo, aps a Loas que estas caracteristicas Se intensificaram, conforme sera abordado no capitulo dois, inclusive em algumas entidades assistenciais. A quinta caracteristica merece atencao Mais detalhada, pois ajuda a explicar nao apenas o funcionamento da sto presentes na assisténcia social década de 1940 em ambito nacional 49 Digitalizado com CamScanner Wanete BoscHerti assisténcia social enquanto politica publica, mas permite compreender estruturalmente o sentido e a dimensao do direito a assisténcia social. 0 segundo critério — aptidao/inaptiddo ao trabalho — constitui, a meu ver, 0 fio condutor e 0 principio estruturador dos beneficios, programas, projetos e servigos que concretizam os direitos previstos na Loas. Em relagao ao critério do pertencimento comunitario, este deve ser entendido nao apenas como proximidade geografica, mas também como proximidade social. Castel (1998, p. 69) ressalta que o conceito cristao de fraternidade entre os homens esta na esséncia deste critério e mostra como aassisténcia sempre se organizou localmente e historicamente estabeleceu critérios de domiciliagao, no sentido de que nos remotos séculos XVI e XVII cada pardquia era responsavel pelos “seus” pobres. Este critério agia no sentido de excluir e banir estrangeiros, proibir a mendicancia, recensear e classificar os necessitados, diferenciar os auxilios em funcao das Categorias de necessitados e priorizar os auxilios aos indigentes domiciliados e incapazes para o trabalho. Tais medidas, diz 0 autor, adotadas inicialmente em ambito local, foram retomadas pelas legislagdes nacionais em quase todos os paises que hoje constituem a Europa, sendo as mais conhecidas as poor laws inglesas que irao resultar na Lei Elizabetana de 1601,’ mas predominando igualmente na legislagao francesa e dos paises baixos. Na interpretagao do autor, as politicas de reclusdo dos Mendigos nas workhouses, implantadas em escala européia no século XVII, devem se vistas como medidas mais elaboradas de continuidade quelas iniciadas no século XVI com vistas a manter o pertencimento comunitario e manter a ordem social: “Tolerar a condigéo mendicante seria aceitar que se constituisse, no seio da comunidade, um grupo totalmente desfiliado que se tornou estrangeiro a cidade. Diante dessa ameaga, a reclusao é apenas um meio, radical sem duvida, mas que se apresenta como um desvio necessdrio para restaurar o pertencimento comunitario” (Castel, 1998, p. 75). O tratamento era diferenciado segundo a aptidao ou inaptiddo para o trabalho. O autor mostra que, do ponto de vista institucional, o requlamento das workhouses combinava o enclausuramento com trabalho forgado € oragdes para “corrigir” os mendigos. Quanto aos pobres “beneficiados” 7 Pelo seu significado para 0 ponto de vista aqui sustentado, voltaremos a ela adiante, 50 Digitalizado com CamScanner Assisrencia Soci no Bras: uv Dinero ctr OnIGIALIOADE € CoNSERVADORISMO por tais medidas “assistenciais”, a reclusaio visava apenas os mendigos domiciliados, sendo que os estrangeiros e “vagabundos” deveriam sair das cidades e voltar para seus locais de origem sob repressdo policial: “Os individuos tidos como mais dessocializados, mais indesejaveis, mais perigosos, sao assim excluidos da reclusao (e nao por meio da reclusao). (...) Em sua intengao profunda, a reclusao é antes de tudo um instrumento de gestéo da mendicancia, no interior de um contexto urbano, para os indigentes autoctones” (Castel, 1998, p. 77). Do ponto de vista das técnicas de intervencao assistencial no interior das workhouses, 0 autor assinala que a disciplina, o trabalho forgado, as incessantes oragdes, a aprendizagem da ordem e da regularidade nao eram técnicas de exclusdo, mas de inclusao, ja que utilizavam uma pedagogia repressiva e autoritdria que objetivava “reeducar” o recluso e permitir seu retorno 4 comunidade como um “membro Util para o Estado” (Castel, 1998, p. 77). Tais caracteristicas constitutivas da assisténcia, sugere o autor, foram modeladas com base na concepcao e na pratica cristés da caridade® e mesmo sua passagem para a gestao laica, ao assumir status de politica publica e direito social, no significou uma ruptura completa com tais critérios, que continuam Presentes em muitas acdes assistenciais na Europa atual. Este principio da domiciliagao, que predominou com forga repressiva nas origens das medidas assistenciais, nao esta completamente ausente de muitas acGes assistenciais predominantes hoje no Brasil, em sua verso moderna. Nao segue esta mesma ldgica a exigéncia de cinco anos ou mais de residéncia para acesso a programas como bolsa-escola e outros? ou ainda os auxilios concedidos aos migrantes para retornarem aos seus locais de origem? ou ainda as “pequenas” atividades de trabalho que sao Solicitadas como contrapartida aos moradores de albergues pliblicos é 40s usuarios dos programas socials? Em sua versao repressora € autoritaria OU “educadora e emancipatoria”, o principio do pertencimento comunitario € da domiciliagao ainda sustenta muitos critérios de acesso a programas assistenciais contemporaneos. cispensado aos pobres pela “caridade crista", mostrando base na distingdo entre “bons e maus™ ee Nosse sentido, o autor desmistifica o tratamento “A Lenda Evangélica” (p. 60-69). Que 0 cristianismo sempre praticou a selegdo dos pobres com Pobres, Sobre esta questio, of Castel (1996), sobretudo o item 51 Digitalizado com CamScanner Wwanete BoscHeTT! O critério da inaptidao para o trabalho é outro eixo de estruturagi, da assisténcia social, e talvez, o mais definidor de sua esfera de abrangéncj, Nao basta ser pobre ou indigente e cumprir o requisito da domiciliagag Por séculos, a assisténcia dirigiu-se apenas a0s pobres que comprovadamente, demonstrassem sua incapacidade para 0 trabalho, Em sua longa travessia da caridade religiosa e laica ao direito puiblico, “o nticleg da assisténcia constitui-se na interseccao desses dois eixos. Sua extensig depende do sentido, que nao é imutavel, dado a cada um dos critérios”, conforme demonstrou Castel (1998, p. 86) com magistrais exemplos. 0s critérios da proximidade e da inaptidao ao trabalho sao componentes estruturais definidores da amplitude que pode assumir a assisténcia como direito. Quanto mais elasticos. e flexiveis forem tais critérios, maior a extensdo que pode assumir a politica de assisténcia social. Ao inverso, quanto maior a rigidez na sua aplicagdo, mais restritas serao as possibilidades de acesso. E neste ponto de interseccdo que trabalho e assisténcia podem ser direitos opostos ou convergentes. Quanto mais se conjuga assisténcia e trabalho, sem cristalizé-los como direitos para Populagdes clivadas pela aptidao ou inaptidao ao trabalho, maior sera 0 universo daqueles que tero acesso a estes direitos pela sua situagdo de necessidade. Historicamente, 0 que se vé é 0 predominio de uma relagdo de oposigao entre trabalho e assisténcia. Somente no século XX, os pobres sem trabalho mas capazes de trabalhar passaram a ter direito a assisténcia social, em forma de programas de transferéncia de renda, E isso, em alguns paises da Europa. No Brasil, como sera demonstrado adiante, a assisténcia como direito incorporou com toda a forga o critério da inaptidao ao trabalho. Claro que a aplicagao destes critérios nao foi e nao é mecanica e absoluta; sua construgao é hist6rica e processual, e, como tal, modifica-se e insere- se na dindmica dos movimentos e das pressdes sociais e, como sinalizou Castel, “Toda assisténcia se move com essa contradicao. Apresentae reitera a exigéncia da incapacidade de trabalhar para ter os beneficios dos auxilios, e também amilde a adapta e a trai” (1998, p. 92). 52 Digitalizado com CamScanner AssisTéncia Soctat No BRaSiL: um Dineiro entre Onicinatioaoe & CONSERVADORISNO Os pobres e mendigos “invalidos”, até 0 sécuo XIX, sempre puderam contar com medidas assistenciais, sobretudo quando preenchiam o critério da proximidade de domicilio. Para esta populagao, as agdes poderiam ser limitadas, restritas em fungao dos recursos disponiveis, mas nao colocavam problemas de principios e estavam na ordem das prioridades. Os pobres e mendigos “validos”, contudo, sempre foram considerados como vagabundos, como incapazes de exercer um trabalho ou, para usar um termo da época, “maus pobres” (Mollat, 1978), j4 que eram considerados como responsaveis por nao trabalhar, devido a um espirito ocioso € indolente, Para estes, o conjunto de acdes tinha um significado claro: submeter ao trabalho obrigatério. O que aparecia designado como “lei dos pobres” era, na verdade, um conjunto de regulages pré-capitalistas (Pereira, 2000) destinadas a “separar” os capazes dos incapazes, a assistir minimamente os “invalidos” e a forgar ao trabalho e reprimir os “yalidos”. Embora predominantes em toda a Europa, as legislagdes seminais e freqilentemente citadas para retratar esta relacdo de tensao ou oposigao entre trabalho e assist@ncia sao as leis inglesas, que assumiram carater mais sistematico. Elas se iniciam com o Estatuto dos Trabalhadores de 1349, e seguem com 0 Estatuto dos Artesdos (Artifices) em 1563, com as leis dos pobres elizabetanas que se sucedem entre 1531 e 1601, a Lei de Domicilio (Settlement Act) de 1662, o Speenhamland Act de 1795 e a Lei Revisora das Leis dos Pobres (Poor Law Amendment Act) em 1834 (Castel, 1998; Polanyi, 2000; Pereira, 2000; Schons, 1999). Estas legislagdes impunham um “cédigo coercitivo do trabalho” (Castel, 1998, p. 176) € possufam carater muito mais punitivo e repressivo do que protetor (Pereira,.2000, p. 104), mas sao exemplares da intersecgao entre assisténcia social e trabalho. Castel (1998, p. 99) mostra que 0 conjunto destas regulamentagoes, que se espalharam por toda a Europa antes da “revolucdo Industrial”, era sustentado por principios comuns: estabelecer o imperativo do trabalho a todos que dependiam de seus bragos para sobreviver; obrigar 0 pobre a aceitar o primeiro trabalho que Ihe fosse oferecido; proibir a retribuigdo ao trabalho efetuado, ou seja, o pobre nao poderia negociar formas de remuneragao; proibir a mendicancia dos pobres 53 Digitalizado com CamScanner waere Bosctet! validos, obrigando-os a se submeter aos trabalhos “oferecidos”. Nesse sentido, diz Castel, “o cddigo do trabalho é formulado em oposicao explicita ao codigo da assisténcia” (1998, p. 99). Assisténcia e trabalho, assim, se conjugam nas regulagdes da ordem social e na organizagao social do trabalho entao predominante: assisténcia minima aos invalidos e trabalho forgado aos validos. E preciso notar, entretanto, uma diferenca significativa entre estas legislagdes. Todas aquelas promulgadas antes da Speenhamland Act, de 1795, caracterizavam clara oposigao entre trabalho e assisténcia. Conforme jd ressaltado, a assisténcia era garantida mediante dois critérios: domicilio e incapacidade para o trabalho. Polanyi (2000, p. 101), na mesma linha analitica de Castel, afirma que, sob estas leis, “os pobres eram forcados a trabalhar com qualquer salario que pudessem conseguir e somente aqueles que nao conseguiam trabalho tinham direito a assisténcia social; nunca se Pretendeu e nem se concedeu qualquer assisténcia sob a forma de abono salarial’. O principio estruturador destas leis era obrigar ao exercicio do trabalho todos aqueles considerados em situagdo de “capacidade”. A assisténcia, por sua vez, tinha como horizonte induzir o trabalhador a manter-se por meio de seu trabalho. Associada ao trabalho forgado, garantia auxilios minimos (como alimentagao) aos pobres reclusos nas workhouses. Os critérios eram de tal modo restritivos e seletivos que poucos conseguiam ter acesso as medidas assistenciais. E mesmo aqueles que 0 conseguissem, eram obrigados a realizar uma atividade laborativa para justificar @ assisténcia recebida (Polanyi, 2000; Castel, 1992, 1995a, 1998). Estas leis estabeleciam uma distingdo entre pobres “merecedores” (aqueles comprovadamente incapazes de trabalhar e alguns adultos capazes considerados pela moral da época como pobres merecedores, em geral Nobres empobrecidos) e pobres “nao merecedores” (todos aqueles que possuiam capacidade, ainda que minima, para desenvolver qualquer tp? de atividade laborativa). Aos primeiros, merecedores de “auxilio , era assegurado algum tipo de assisténcia, minimalista e restritiva, sustentada pelo dever moral e cristao de ajuda, nao sob a forma de direito, ms cardter esmolar. Nas interpretagdes de Polanyi (2000) ¢ Castel 0 1995a), a principal fungao destas legislacdes era impedir a mobilidade trabalhador e, assim, manter a organizagao tradicional do trabalho. 54 4 Digitalizado com CamScanner Asistencia Soci. no Brust: un Dinero etme Onana.oAoe € CONsePVADORISMO A Lei de Speenhamland, instituida em 1795, ao contrario das anteriores, pode ser entendida como uma medida assistencial de protegao ao trabalhador. A lei garantia um sistema de abonos, em complementacado aos salarios, cujo valor baseava-se no. Prego do pao. Diferentemente das leis dos pobres, a Speenhamland garantia assisténcia a todos (empregados e desempregados) que recebessem abaixo de determinado rendimento, independentemente do critério da inaptidao ao trabalho, mas mantendo o critério da domiciliagao: “Renda minima antes mesmo da definicgao de seu conceito, Mas que tem como contrapartida uma exigéncia estrita de domiciliagéo e a interdig&o da mobilidade geografica da mao-de-obra” (Castel, 1998, p. 178). Esta lei é considerada como a primeira iniciativa de estabelecimento legal de uma politica assistencial de transferéncia de renda dissociada do exercicio de uma atividade laborativa, ou o que se denominaria hoje de renda minima. Embora o montante fosse irrisorio, era um direito assegurado em lei. Na interpretagéo de Polanyi (2000), esta iniciativa protegia o direito a vida e agiu como forma de resisténcia a implantagao da Sociedade de mercado, ja que a instituigdo deste sistema de abonos pela Lei Speenhamland, em 6 de maio de 1795, assegurando aos pobres uma renda minima independente dos seus proventos, “(...) introduziu uma Iovagao social e econdmica que nada mais era que 0 ‘direito de viver’ e, até ser abolida, em 1834, ela impediu efetivamente o estabelecimento de um mercado de trabalho competitivo” (Polanyi, 2000, p. 100). Enquanto as leis dos pobres anteriores induziam o trabalhador a aceitar qualquer trabalho a qualquer prego, a Lei Speenhamland, ao Contrario, “protegia” o trabalhador e Ihe permitia “negociar” o valor de sua forga de trabalho, impondo limites (ainda que restritos) ao mercado de trabalho competitivo, j4 que “durante a vigéncia da Speenhamland Law, o Ndividuo recebia assisténcia mesmo quando empregado, se seu salario fosse menor do que a renda familiar estabelecida pela tabela. Ora, nenhum rabalhador tinha qualquer interesse material em satisfazer seu empregador, ima vez que a sua renda era a mesma qualquer que fosse o seu saldrio” (Polanyi, 2000, p. 101). Em certa medida, esta lei freou ou reduziu o ritmo 9 processo de proletarizagao imposto pela revolugao industrial "ascente, Tratava-se, como indica o autor, de uma primeira medida de 55 Digitalizado com CamScanner Wanete BoscHeTn Protecao “a vida e aos salérios com fundos publicos”. Apesar do otenci inovador desta lei em relagdo as anteriores e de seus efeitos no impedimen,, (ou retardamento) de um mercado de trabalho competitivo, o autor ressalty Seu carter contraditério, pois na mesma medida em que Protegig trabalhador garantindo-Ihe um minimo de subsisténcia, também Contribuiy Para reduzir a produtividade, baixar o valor dos salarios e aumentar a indigéncia, Este paradoxo era inevitavel, considerando a forca Competitivg da sociedade de mercado que se instalava sob a Revolugdo Industrial ¢ que exigia um mercado de trabalho livre, onde os trabalhadores fossem Obrigados a vender sua forca de trabalho ao preco que conseguissem, A sua revogacao, em 1834, pela Poor Law Amendment Act, também conhecida como New Poor Law, marcou o predominio, no capitalismo, do primado liberal do trabalho como fonte tinica e exclusiva de renda, e relegoy a ja limitada assisténcia aos Pobres ao dominio da filantropia. A nova lei dos pobres revogou os direitos assegurados pela Lei Speenhamland, aboliy 0 “direito de viver” nas palavras de Polanyi (2000, p. 105), restabeleceu g assisténcia interna nos albergues para os pobres “invalidos”, re-instituiua Obrigatoriedade de trabalhos forgados para os pobres “capazes” e deixou a propria sorte uma Populacao de pobres e miseraveis Sujeitos 4 “exploragao sem lei” do capitalismo nascente. 0 sistema de salarios baseado no livre mercado exigia imperativamente a aboligao do “direito de viver”. Afinal, Por que alguém trabalharia por um saldrio se pudesse viver da assisténcia? Essa pergunta sustentou um dos principais pilares do liberalismo: 0 principio moral de que a assisténcia estimula o Gcio, a preguiga e desestimula o trabalho, devendo ser ou abolida, ou garantida apenas para Os pobres incapazes de manter sua sobrevivéncia pelo trabalho: criangas, idosos e deficientes (Boschetti-Ferreira, 1993). A necessidade da liberdade de trabalho faz com que o capitalismo regrida mesmo em relacéo a estas formas restritivas de “protecao assistencial” 4 populagao pobre. A “descoberta” do trabalho livre como Produtor de valor de troca e sua potencialidade na e para a acumulagao capitalista (Marx, 1987, p. 41) precisou o significado do trabalho para as relagdes sociais, mas isso néo mudou sua contraditoria telagao com a 56 Digitalizado com CamScanner Asstt Noi Soci Ho Bast: uu Dineito extne OnnLosoe € ConsemvsooR'sMo assisténcia social; ao contrdrio, aprofundou a cisaio ja apontada. Ainda que na sociedade pré-industrial OU Nao capitalista as atividades de trabalho fossem indissociaveis das demais atividades da vida social (Marx, 1987), arelagao estabelecida entre trabalho e assisténcia cristalizou determinados vinculos de atragao e rejeigao que perduraram nas sociedades capitalistas burguesas. Nestas, 0 trabalho perde seu sentido para a sociabilidade humana, sendo incorporado como categoria universal, como atividade natural de produgao e troca, independente de seu contexto histdrico. Na critica feita 4 perspectiva da economia classica presente em David Ricardo e Adam Smith, Marx desmistifica o significado “natural” atribuido ao trabalho por estes autores e mostra que o trabalho é atividade humana, resultante do dispéndio de energia fisica e mental, direta ou indiretamente voltada a produgao de bens e servigos, contribuindo para a reprodugao da vida humana, individual e social. No capitalismo, ao ser tratada como mercadoria, a forga de trabalho possui o duplo carter de ser produtora de valor de uso e valor de troca, ou, como explicita Marx (1987, p. 54), “todo trabalho é, de um lado, dispéndio de forga humana de trabalho, no sentido fisioldgico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria valor de mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispéndio de forga humana de trabalho, Sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho Util e concreto, produz valor-de-uso”. E nesse sentido que 0 valor de uso “SO se realiza com a utilizagdo ou 0 consumo (p. 42), e que “um valor de Uso ou um bem sé possui, portanto, valor, porque nele esta corporificado, Materializado trabalho humano abstrato” (p. 45). onstitui a partir do dispéndio de Por outro lado, o valor de troca sé Cc ! : d energia humana que cria.o valor das mercadorias e consiste na relacao i jutro. Que se estabelece entre uma coisa € outta, at aa aol 7 Como mercadoria, a forga de trabalho perde Sua Le i 4 produgao, troca e distribuigao ee ae en a grandeza do valor, portanto, “0s bens praduzidos, jd que “o que gr portant, ba vant nebath socialmente neces olen Oh tally lente necessario para a produga© deum 48), 57 Digitalizado com CamScanner WaneTe BoscHert: Assim, as relagdes capitalistas constituem relagGes de Producao de valores de troca (mercadorias) para acumulagao de capital, através da expropriagao da mais valia e o trabalho livre provoca a Separagao entre 4 forca de trabalho e a propriedade dos meios de produgao. 0 sentido do trabalho sofre profunda modificagdo com a instituigao das relagdes Capitalistas, pois assume o carater de trabalho abstrato, produtor de valores- de-troca, ja que “o trabalho, como criador de valores-de-uso, como trabalho Util, é indispensavel a existéncia do homem, — quaisquer que sejam as formas de sociedade, — é necessidade natural e eterna de efetivar 9 intercambio material entre o homem ea natureza, e, portanto, de manter a vida humana” (Marx, 1987, p. 50). Tendo como parametro esta concepgao de trabalho, entendemos que, apesar da profunda transformagao do valor da forga de trabalho nas sociedades pré-industriais e nas sociedades capitalistas, a relagdo de atragao € rejeigao entre assisténcia e trabalho predominante no capitalismo, tem origem anterior 4 consolidagéo da sociedade de mercado, tendo sido mantida e mesmo aprofundada com o livre mercado, como elemento necessério a sua produgao e reproducao. E isto porque o valor do trabalho como produtor de riqueza sobrepde-se ao principio da protegao social ao trabalho. Se as legislagdes pré-capitalistas eram restritivas e agiam na interseccao da assisténcia ¢ do trabalho forcado, o “abandono” das timidas medidas de protegao ao trabalho langa os pobres a “servidao da liberdade sem protegao”, provocando o Pauperismo como fendmeno especifico da revolugao industrial, que predominara durante todo século XIX ou como retratou exemplarmente Polanyi: Se durante a Speenhamland cuidava-se do Povo como de animais néo muito preciosos, agora esperava-se que ele se cuidasse sozinho, com todas.as desvantagens contra ele. Sea Speenhamland. significava a miséria da degradagao abrigada, agora o trabalhador era um homem sem lar na Thain * Nao é propésito e ndo cabe neste trabalho aprofundar o debate sabre o valor trabalho, Inimeros estudos {a \rauzem e interretam a tese marxiana. Aldm da visita obrigatdria ao Capital, sobretudd 0 LWt0 | interessante andlse pode ser encontrada em Antunes (1995, 1999) 58 Digitalizado com CamScanner Assisténcia Sociat. no Brasic: um Dinero ert OnIGINALIOADE € CONSERVADORISMO sociedade. Se a Speenhamland havia sobrecarregado os valores da comunidade, da familia e do ambiente rural, agora 0 homem estava afastado do lar e da familia, arrancado de suas raizes e de todo 0 ambiente de significado para ele. Resumindo, se a Speenhamland significava a decomposi¢ao da imobilidade, agora o perigo era a morte por exposigao. Sera necessario que as “lutas pela jornada normal de trabalho” (Marx, 1987) imponham limites ao “trabalho livre” e abram caminho para as novas regulamentagGes sociais e do trabalho. As principais politicas que conformaram e consolidaram o Estado Social" nos paises capitalistas desenvolvidos foram orientadas pelo primado do trabalho e instituiram-se como direito do trabalho. Na impossibilidade de garantir 0 direito ao trabalho para todos, os Estados capitalistas desenvolvidos garantiram direitos derivados do exercicio do trabalho para os trabalhadores capazes e inseridos no mercado de trabalho. Este principio orientou a construgao do Estado social em praticamente todos os paises europeus no século XX. Os critérios da inaptid&o ao trabalho continuaram a prevalecer na assisténcia social, mesmo apos sua inclusao no Estado social como direito de cidadania. E é inegavel a incorporagao de alguns destes principios pela seguridade social brasileira, sobretudo no que se refere aos beneficios e servigos garantidos pelas politicas de previdéncia e assisténcia sociais. 1.2. Assisténcia na Seguridade Social: uma Unidade de Contrarios" Embora o sistema de seguridade social, instituido legalmente pela Constituigdo de 1988, constitua um conjunto formado pelas politicas de previdéncia, assisténcia e saude, nao existindo enquanto complexo se assim nao for implementada, raramente a seguridade social é tratada e analisada " “mo Estado social para designar genericamente a ago do Estado capitalista na requlagio tas polices souls. Preferimos sua ulilizagdo a terminolagias como Wei fare State. Estado providdncia e Estado de bem-estar social por entendermos que cada uma dessas categorias referem-se a cuntestos histéricos e socioecondmicos bem especificos, com caracteristicas préprias aos paises a que se referem Paya um nistbrico da constituigao do Estado social nos paises capitatistas ct. Potyara Pereira (2000), i versidade e Sociedade, n. 22, sob o titulo "Previdéncia " {oi parcialmente publicado na revista Universi 0 caster: una Unidade de Contrdrios na Seguridade Social” (ct. Boschetti-Ferreira, 2000a). 59 Digitalizado com CamScanner WwaneTe Bosovert: Na sua totalidade. Em muitas das produgdes tedrico-académicas sobre g tema, assim como nos planos governamentais, 0 que se percebe 6 um duplo movimento: ou se restringe a seguridade social 4 sua dimensaq previdenciaria, ou se considera cada uma das politicas que a compée isoladg e autonomamente, tentando relaciond-las a uma suposta seguridade socia| que, efetivamente, esta longe de materializar-se no Brasil.'* Esta, contudo Nao constitui uma tendéncia exclusiva do Brasil. Em outros paises da América Latina, a seguridade social 6, igualmente, confundida e entendida festritivamente com previdéncia social (Filgueira, 1997). No Brasil, a tendéncia de restringir e/ou confundir a seguridade social a previdéncia pode ser explicada por diversos arqumentos. Ha aqueles que ressaltam a precocidade da seguridade social brasileira e, em particular, Sua dificuldade historica de metamorfosear-se de seguro Para seguridade Social (Teixeira, 1990). Outros enfatizam o papel da esfera politica nos limites & consolidagao das orientagdes preconizadas na Constituicdo (Vianna, 1998). E outros, ainda, resgatam as determinagdes econdmicas do Estado capitalista na contiguragdo de um determinado Padrdo de seguridade social (Fleury, 1994). Para além das diferencas de enfoque. todas as abordagens indicam, entretanto, que a seguridade social ndo ée nao pode ser entendida restritivamente como previdéncia social." E isto por algumas razdes bastante simples, ainda que nao tio evidentes aos olhares de muitos analistas e formuladores de politicas publicas. Primeiro, 0 conceito de Seguridade social traz em si a nogdo heuristica de “seguranga social” (no Brasil, 0 mais apropriado seria o terme Protegao social) que, para se efetivar, deve assegurar direitas que ndo sé festrinjam & logica do seguro Previdenciario. Segundo, a construgdo da seguridade social em diversos paises, independentemente de suas especificidades econdmicas, Politicas @ sociais, incluiu diversas politicas ee © Embora esta soya a tenaéncis majontans, sera pe analisat a sepurigade socral am sev Conjurda. cor 1999) e Sénia Fleury (1954), pare oxar apenas ' No Brasil, uilza-se 0 terme previoéncie pare oe veremos adiante Este termo nko poste sm. ‘enuinamente brasiiewa CHC OS astiudas que sw astorgam D3" ana Lica Werneck Vianna (1958 funaadtes ma lagica da segura, ai ‘Gute idigma, sando uma eapre! 60 Digitalizado com CamScanner Assisténcia Soci no Brust: uw Dero entre Oriana inane & Conseco sociais ea l6gica do seguro social foi cada vez mais abrandada, sobretudo pela incorporacao da légica da assisténcia social, Estas duas lagicas, do seguro e da assisténcia, estao presentes em todos os sistemas de seguridade social existentes,"* impondo-se com maior ou menor predomindncia, segundo as relacdes econdmicas, sociais e politicas que caracterizam cada pais. E este aspecto da seguridade social que sera abordado a seguir: a relacao histdrica entre as ldgicas da previdéncia (seguro) e da assisténcia inerentes a seguridade social, que faz com que, contraditoriamente, estas politicas vivam uma relagao de atracao e rejei¢do, constituindo assim uma unidade de contrarios. Este movimento dialético pode ser mais um elemento explicativo para a dificuldade de consolidagao da seguridade social brasileira e da assisténcia como direito. 1.2.1. Previdéncia e Assisténcia: uma dustaposigao Classica N&o constitui novidade que a consolidagdo e universalizagdo dos sistemas de seguridade social piblicos e regulados pelo Estado nos paises Capitalistas europeus datam do inicio do século XX, embora as primeiras iniciativas sejam originarias do final do século XIX (Murad, 1993; Pierson, 1991; Ewald, 1986). Duas formas de acao social estiveram na origem da seguridade social: as caixas de poupanga e previdéncia (sociedades de mutualidade)'® e a assisténcia publica obrigatéria para a populacdo pobre. As sociedades mutuais, baseadas originalmente no principio da livre adesio, foram institucionalizadas pelo governo alemao no final do século XIX, vindo aServir como referéncia para o modelo bismarckiano'* de seguridade social, Aassisténcia social, restrita originalmente aos pobres tidos como incapazes * Para um panorama geral da sepuridade social no mundo, consulta o s/f# aa Assaciagdo Internacional ae Seguridade Social: httpy/www.issa inUFsD4/Intobases/span/pagel htm ™ Em meados do século XIX, no auge da RevolugSo Industnal, 4s socigdades mutuals taram inigiadas & Utilizadas pelos trabalhadores como estrategia de tune: zagdo para tomentar 40 apenana, Olivo Germinal, de Emile Zola, transtormado en : : u ee Es ue as primeitas legis 100 25 Givaas estatars campulsovias se aignagta nscru dat Ce ee unas! ara Guo Vn arch 61 Digitalizado com CamScanner Ivanete BoscHeT para 0 trabalho, em geral idosos, deficientes e criangas, foi o embrido do modelo beveridgiano de seguridade social, implementado na Inglaterra na década de 40 do século XX, e que assumiu a conformagao de welfare state (Beveridge, 1943; Dorion & Guionnet, 1993)."” As andlises internacionais, ainda que utilizem terminologias distintas (Titmuss, 1974; Flora & Heidenheimer, 1981; Esping-Andersen, 1991), raramente deixam de tomar como referéncia os classicos modelos bismackiano e beveridgiano como parametros para caracterizagado dos principais sistemas de seguridade social predominantes nos paises capitalistas desenvolvidos. Os principais critérios para distingao destes modelos sdo seus objetivos. Enquanto os direitos assegurados pelo modelo bismarckiano destinam-se a manter a renda dos trabalhadores em momentos de risco social decorrentes da auséncia de trabalho, o modelo beveridgiano tem como principal objetivo a luta contra a pobreza (Beveridge, 1943; Palier & Bonoli, 1995; Castel, 1998, 1995b). Nao se trata de mera distingdo conceitual. Dai derivam as orientagdes operacionais que irao nortear os sistemas de seguridade social em quase todos os paises capitalistas, com variagdes segundo as especificidades de cada um. O modelo bismarckiano é identificado como sistema de seguros sociais, pois suas caracteristicas assemelham-se as de seguros privados. Em relagao aos direitos, os beneficios cobrem principalmente (e as vezes exclusivamente) os trabalhadores, 0 acesso é condicionado a uma contribuicao direta anterior e 0 montante das prestagdes 6 proporcional 4 contribuigdo efetuada. Quanto ao financiamento, os recursos sa0 provenientes, fundamentalmente, da contribuigao direta de empregados € empregadores, baseada na folha de salarios. Quanto a gestao, teoricamente (e originalmente), deveria ser gerido pelos contribuintes, ou seja, empregadores e empregados.'® "7 0 Plano Beveridge oi publicado no Brasil, em 1943, sob 0 titulo O Plano Beveridge: relatdrio sobre 9 seguro social e servicos afins. Traduzido do inglés Social Insurance and allied services (Report 0! Sif William Beveridge, presented to parliament by Command of His Majesty, november, 1942. Published bY His Majesty's Stationery Office). O texto fala de freedom from want (liberar ou satisfazer as necessidade) © Na Alemanha e na Franca ainda predomina este tipo de gestao, com Caixas por modalidade de seguros. AS centrais sindicais gerem as caixas, mas com forte intervengao e regulagdo estatal. No Brasil, es'? ‘conformagao esteve na origem da previdéncia social, com as Caixas de Aposentadorias e Pensoes (CAPS): 62 Digitalizado com CamScanner Asistencia Sociat No BrAsit: um Dinero Evrae OniGInaLioAoé € CONSERVADORISNO No sistema beveridgiano, considerado como um modelo assistencial, ao contrario, os direitos devem ser universais, destinados a todos os cidadaos incondicionalmente ou submetidos a condigdes de recursos (testes de meios), mas garantindo minimos sociais a todos em condigdes de necessidade. 0 financiamento é proveniente dos impostos fiscais e a gestao é publica, estatal. Os principios fundamentais sao a unificagao institucional e uniformizacdo dos beneficios (Beveridge, 1943; Palier & Bonoli, 1995, Castel, 1995b). Evidentemente que estas sao diretrizes gerais que devem ser observadas em suas nuancas, pois, efetivamente, hoje nao existe um “modelo puro”. As politicas existentes e que constituem os sistemas de seguridade social em diversos paises apresentam as caracteristicas dos dois modelos, com maior ou menor intensidade. No Brasil, como se sabe, os principios do modelo bismarckiano predominam na previdéncia social e os do modelo beveridgiano orientam o atual sistema publico de saide (com excecao do auxilio-doenga, tido como seguro-salide e regido pelas regras da previdéncia) e de assisténcia social. 0 interesse nas caracteristicas destes modelos é que elas permitem mostrar que todos os sistemas de seguridade social sao constituidos por politicas que incorporam tanto elementos do seguro, quanto da assisténcia social. Quanto mais diluidas e mescladas forem as caracteristicas indicadas acima, maior a justaposigao entre previdéncia (seguro) e assisténcia. Alguns autores, referindo-se ao modelo francés, afirmam mesmo que este evoluiu do modelo puramente assistencial predominante até o século XIX para um modelo de seguridade fundado predominantemente na légica do seguro social entre as décadas de 40 a 70, tornando-se, mais recentemente, um misto dos sistemas bismarckiano e beveridgiano, com a distingao entre seguro e assisténcia cada vez mals diluida (Dufourcg, 1994). O autor considera que a seguridade social fundada na ldgica do seguro nao passa de um mito, ja que: 0 financiamento das politicas que compGem a seguridade organades por ro ob Esa ra se erga, Ge APs oa wniados no NPS et $906. Os habatnadores e empregadores foram sendo gradativamente excluidos da gestio, que se tornou estalizada ¢ eentvalizada, embora continuem sendo os principas financladores da previdéncia social. 63 Digitalizado com CamScanner Ivanere BoscHeTn social esta cada vez menos baseado na contribuigao direta de empregados e empregadores incorporando cada vez mais fontes derivadas do orgamento fiscal; os direitos sociais esto cada vez mais baseados na ldgica da cidadania e menos no carater contributivo; o montante dos beneficios esta cada vez mais definido em fungao da renda familiar e das necessidades sociais e menos na contribuigdo efetuada; os modelos de gestdo estao cada vez mais estatizados e sob 0 controle dos poderes Legislativo e Executivo e menos sob o controle auténomo dos trabalhadores e empregadores. Mas, para além desta progressiva mescla de caracteristicas, 0 que mais determina a justaposicao entre previdéncia e assisténcia é 0 elemento comum que define a capacidade e possibilidade destas politicas de garantir 0 acesso aos direitos: 0 trabalho.’ O trabalho é o elemento que assegura a inclusdo na previdéncia, definindo a natureza e 0 montante dos direitos existentes. SO tém acesso aqueles que, via trabalho, contribuiram diretamente para a previdéncia. De forma inversa, as prestagdes monetdrias asseguradas pela assisténcia sao destinadas aos que, por algum tipo de incapacidade (idade e/ou deficiéncia) estao impossibilitados de trabalhar e, assim, contribuir para a previdéncia. A secular intersecgao entre assisténcia social e trabalho, assim, estrutura os “modernos” Estados sociais capitalistas. Esta combinagao — previdéncia decorrente do exercicio do trabalho e assisténcia aos pobres inaptos ao trabalho — pode parecer coerente @ garantir protegdo social universal nos paises onde predomina (oU predominou) 0 que se denomina de “sociedade salarial” (Castel, 1992, 1995a, 1998), porque ela assegura cobertura social a todos os trabalhadores integrados no sistema produtivo. Mas, esta combinacao deixa completamente em descoberto a questéo de como assegurar renda 40S pobres economicamente ativos, ou seja, aqueles que estao em condigdes de trabalhar, mas que sao rejeitados ou expulsos do sistema produtivo, OU Brasi de auxtio-doenga, segue alogica do seguro soda” nas ° Seou"e-saude, au o que chamames 0 64 Digitalizado com CamScanner ‘ Assisténcis Sociat no Brasi.; uu DIREITO ENTRE ORIGINALIOADE € CONSERVADORISMO que, mesmo desenvolvendo algum tipo de atividade remunerada, esta nao é suficiente para permitir que contribuam para a previdéncia social. No Brasil, segundo a PNAD/1998, 0 contingente de trabalhadores ocupados (que desenvolviam algum tipo de atividade remunerada)” nao contribuintes naquele ano foi de 38,6 milhdes contra 26,7 milhdes de contribuintes no setor privado.2' Em 2001, estes nimeros ja haviam crescido € correspondiam a 40,6 milhdes de nao contribuintes e 29,8 milhdes de contribuintes, ou seja, entre os 70,5 milhdes de pessoas com mais de 10 anos ocupadas no setor privado, o percentual de nao contribuintes (57,7%) é bastante superior ao de contribuintes (42,3%). Em cada 100 trabalhadores ativos no setor privado, aproximadamente 58 nao contribuem e, portanto, nao tém e no terao acesso aos beneficios previdenciarios. Mais grave é a constatacdo que, entre os 40,6 milhdes de nao contribuintes em 2001, 50,12% (20,4 milhdes) nao possufam rendimentos ou recebiam menos de um saldrio minimo, sendo aproximadamente 5 milhdes de trabalhadores rurais e, portanto, potenciais beneficiarios do Sistema de Previdéncia Rural como segurados especiais e outros 15,4 que, segundo 0 proprio estudo do MPAS, sao “potenciais ios de programas de assisténcia social focalizados no combate a pobreza” (Pinheiro & Baar, 2003, p. 2). 0 estudo dos técnicos do Ministério da Previdéncia Social ressalta que do total de nao contribuintes, trés grupos estado impossibilitados de contribuir: o primeiro é composto por um contingente que percebe menos de um saldrio minimo e estd “impossibilitado de contribuir por insuficiéncia de renda”; 0 segundo grupo refere-se a pessoas com idade entre 10 e 16 3 0 IBGE considera como ocupadas “as pessoas que no periodo de referéncia tinham trabalhado durante todo ou parte desse perfodo. Incluiram-se, ainda, como ocupadas as pessoas que ndo exerceram o trabalho remunerado que tinham no perfodo especificado por motivo de férias,licenga, greve, etc” (PNAD/1999, p. XXV)). 21 Dados citados no artigo “0 perfil dos ndo-contribuintes da Previdéncia Social", publicado no Informe de Previdéncia Social, v. 12, n. 3, mat, 2000 (para os dados de 1998) e Cobertura da previdéncia social no Brasil: pertil dos nao contribuintes e evalugdo recente, v. 15, n. 3, mar. 2003 (para 2001). Ambos de autoria de Vinicius Carvalho de Pinheiro e Renata Mello Baare disponiveis no site http:/Avww.mpas.gov.b. Os dados excluem os ocupados militares e estatutarios, 65 Digitalizado com CamScanner Ivanete BoscHeTT! anos que, apesar de serem considerados como populagao economicamente ativa, estao aquém da idade minima a partir da qual a legislacao brasileira autoriza 0 trabalho; nesse sentido o estudo ressalta que “este contingente configura-se como um problema para o programa de erradicacao do trabalho infantil”,”* 0 terceiro grupo é constituido pelas pessoas com mais de 60 anos que dificilmente podem vir a contribuir diante da dificuldade de “preencher as condigdes de elegibilidade relacionadas a caréncia e tempo minimo de contribuigao. Estes também sao potenciais beneficidrios da assisténcia social” (Pinheiro & Baar, 2003, p. 2). A conclusao, triste, dbvia é inevitavel € que, se estes grupos nao forem inseridos nos programas assistenciais urbanos ou rurais, estarao definitivamente sem Protegao social alguma. Em relacao aos pobres aptos ao trabalho, a assisténcia social nao Possui um Unico programa para protegé-los, como seré demonstrado adiante. Quanto as pessoas acima de 60 anos, um contingente entre 60 e 67 anos esta excluido de qualquer possibilidade de acesso a um programa de transferéncia de renda, visto que nao ser inclufdo pela previdéncia diante de sua impossibilidade de atender os requisitos de contribuigao, e esta fora do beneficio assistencial dirigido aos idosos, pois este absorve apenas aqueles que tém mais de 67 anos e renda per capita inferior a um quarto do salario minimo. Quanto as criangas trabalhadoras, o programa existente no mbito da assisténcia (Peti) 6 absolutamente timido em face da realidade brasileira. Apds “desconsiderar” estes trés grupos que deveriam estar sendo assistidos pela assisténcia social e que totalizam 21,9 milhGes de pessoas, os autores calculam que o niimero de trabalhadores que poderiam estar sendo incorporados na previdéncia social e nao contribuem corresponde a 18,7 milhdes de pessoas. Entre estes, chama a atencdo que a maioria (8,2 milhdes) trabalha por conta prépria e 7,6 milhdes trabalham como empregados, mas sem nenhum tipo de contrato de trabalho. Outro dado que impressiona é que 59,4% (aproximadamente 11 milhdes) recebem entre 1 e 2 saldrios minimos, ou seja, embora inseridos em alguma atividade de trabalho, situam-se abaixo da classica “linha da pobreza”. Ainda, somente ® Mais adiante mostraremos qual ¢ a abrangéncia deste programa no Brasil. 66 Digitalizado com CamScanner . Assisténcts SociaL no Brasi.: um DinéiTo eNTRE ORIGINALIOADE € CONSERVADORISMO 9,2% ou 1,7 milhdo auferia acima de 5 saldrios minimos (R$ 900,00 em setembro de 2001). Estes dados sdo expressdes numéricas da dramatica situacao de exclusdo do acesso aos direitos impostos pela associagao previdéncia- assisténcia com base nos seculares critérios da aptidao/inaptidao ao trabalho. Em paises onde nao se instituiu a “sociedade salarial”, como é 0 caso do Brasil, esta forma de organizagdo da assisténcia e da previdéncia torna-se injusta, provocadora e reprodutora de desigualdades sociais, sobretudo quando se considera que dos 19 milhdes de beneficios previdencidrios pagos em 1999 no setor privado, 77% estavam abaixo de 2 salarios minimos (equivalente a R$ 480,00 em 2003) e 97% nao alcancavam 7 salarios minimos (equivalente a RS 1.680,00 em 2003) (Dieese, 2001, p. 241). O predominio de uma estrutura econdmica com relagdes informais de trabalho, baixos salarios e reduzidos beneficios faz com que a seguridade social brasileira néo responda as dramaticas situagdes apontadas acima, pela propria dinamica e funcionamento do capitalismo. O capitalismo central, com os ajustes ortadoxos conduzidos inclusive pela social democracia em nome da crise fiscal, também vive paradoxo semelhante. O crescimento da informalidade e de relagdes precarias e instaveis de trabalho tem levando alguns autores a usar a expressdo “brasilinizagdo” para se referir ao processo vivido pela Franga e outros paises da Europa (Lipietz, 1996). A justaposigao da previdéncia e da assisténcia revela-se também pela natureza de complementaridade inerente a estas politicas. Enquanto a previdéncia se destinaria aos trabalhadores “capazes” e em condig6es de exercer uma atividade laborativa e assim assegurar os direitos contributivos, aassisténcia, em tese, cobriria aqueles que, por “incapacidade” ao trabalho (em decorréncia de idade e/ou deficiéncia) ou por insuficiéncia de renda (auséncia de trabalho ou baixa remuneragao) nao teriam acesso a previdéncia. Sao politicas destinadas a amparar aspectos ou manifestacdes diferentes de um mesmo fenémeno: a relagao do homem com o trabalho. Esta justaposicao, entretanto, produz uma dupla categorizagao: 6 a obrigacdo do trabalho (assalariado ou n&o) que garante o direito aos 67 Digitalizado com CamScanner Ianete BoscheTT! beneficios previdenciarios de cobertura dos riscos sociais; € 6a obrigacag de se ter sérias razGes que justifiquem o nao exercicio do trabalho que garante o direito as prestagGes assistenciais que asseguram transferéncig de renda. A repulsao entre estas politicas, por outro lado, se coloca Porque, historicamente, a assisténcia sempre foi considerada como incompativel com 0 trabalho. Sao muito recentes as iniciativas de garantia de rendg dissociadas do trabalho, que atualmente se materializam nos programas de renda minima (Sposati, 1997; Boschetti-Ferreira, 1999; Silva e Silva, 1997). Uma questao, ja indicada acima, de forte apelo moral, é reiteradamente utilizada para restringir politicas assistenciais de garantia de renda: por que alguém trabalharia por um saldrio se pudesse viver da assisténcia? Nao é por acaso que um dos Principais objetivos da politica de assisténcia indicado na Constituigao Federal de 1988 é a “promogao da integragdo ao mercado de trabalho” (art. 203, Ill). Atualmente, o que se observa, contrariamente ao Propagado pela ideologia neoliberal (Navarro, 1998; Anderson, 1995), 6 que a seguridade social, que constitui o nucleo central dos sistemas de Protegao social, nao esta sendo desmantelada, mas sendo transformada em sua |6gica interna. Aquela configuragdo que se edificou até os anos 70, baseada predominantemente no modelo keynesiano e Sustentada por um modelo fordista-keynesiano de regula y igdo das relagdes econdmicas e sociais, comprometida com e dependente do pleno emprego, esta hoje ameagada (Pierson, 1991; Behring, 1998; Yazbek, 1998, Mota, 1995). Eisso Porque a lgica do seguro esta fundada No que alguns autores denominam de “solidariedade Profissional” (Bichot, 1991: Laroque, 1989). E a insergéo em uma atividade Profissional que assegura 0 direito e 0 acesso aos beneficios previdencidrios,23 E a Contribuigao dos trabalhadores ativos que assegura os direitos daqueles que, por algum motivo, encontram- se em situagao de “inatividade”, para utilizar 0 jargaio préprio dos especialistas governamentais. Essa ldgica é, portanto, dependente do pleno Esta caracteristica da previdéncia social brasileira levou Wanderle a0" ley Guilherme dos Santos (1987) a forar? festejada expressio “cidadania regulada” para designar a natur t net crc 20 uso deta expresso esta em Ree (1960). za das politicas sociais brasileias. 68 Digitalizado com CamScanner AssisTENcin Sociat no Brasiu: um Dineito ertre ORIGIALIOADE & CONSERVADORISMO emprego. Nao é preciso ser especialista em técnicas atuariais para constatar que, quanto maior o indice de desemprego, de relagées informais de trabalho e de reduzidas contribuigdes em fungao de baixos salarios, menor serd a capacidade de inclusao dos cidadaos no sistema de seguridade social. Menor ainda sera a capacidade de o sistema assegurar direitos sociais universais. E, proporcionalmente, maior sera a demanda por protegdo social via assisténcia. Esse é 0 paradoxo vivido pelos paises capitalistas ditos desenvolvidos atualmente, e que muitos autores vem denominando de “nova questao social” (Castel, 1995; Rosanvallon, 1995). Tornar mais brandas as regras do seguro social e incorporar cada vez mais a ldgica assistencial na seguridade social parece que vem sendo uma das alternativas implementadas nos paises capitalistas ditos desenvolvidos (Bichot, 1991). No Brasil, seguimos 0 caminho inverso. 1.2.2. Seguridade Social Brasileira: entre Seguro e Assisténcia A légica do seguro que sustenta a previdéncia brasileira desde sua origem nao foi eliminada com.a instituigao da seguridade social em 1988. Em alguns aspectos, foi até mesmo reforgada, como no caso da previdéncia social, cujos beneficios sao cada vez mais condicionados a uma contribuic¢ao prévia e seus montantes sao proporcionais as contribuigdes efetuadas. Nao 6 por acaso que, em 1990, 0 INPS (Instituto Nacional de Previdéncia Social) foi “renomeado” para INSS (Instituto Nacional de Seguro Social). Com excecao do salario familia, todos os beneficios assistenciais que estavam sob a guarda da previdéncia foram transferidos para a assisténcia social (renda mensal vitalicia, auxilio-natalidade e auxilio-funeral). A sadde, com excegao do auxilio-doenga, desvencilhou-se dessa ldgica e passou a ser orientada por todos os principios do modelo assistencial beveridgiano (universalizagao, descentralizagao, uniformizagao dos direitos, unificagao institucional, financiamento predominantemente de origem fiscal). A assisténcia, embora reconhecida como direito, mantém prestagdes 2" jnstigante debate sobre a pertingncia do uso da terminologia “nova questio social” esta publicado na revista SER Social (n. 6, 2000), do Programa de Pos-Graduagao em Politica Social da Universidade de Brasilia e na revista Temporalis (n. 3, 2001), 0a ABEPSS. 69 Digitalizado com CamScanner Ivanere BoscHern assistenciais apenas para pessoas comprovadamente pobres (renda Mensa familiar per capita abaixo de um quarto do salario minimo) e incapazes para o trabalho (idosos acima de 67 anos e pessoa portadora de deficiéncia “incapacitada para a vida independente e para o trabalho"*) e implementa Programas e servigos cada vez mais focalizados em populacoes tidas como de “risco social” pelo jargao técnico. Além de restringir-se a essas tras politicas sociais, muitas das diretrizes previstas na Constituicao nao foram implementadas, o que coloca em risco o proprio conceito de seguridade social.” Ainsisténcia da politica governamental na predominancia da ldgica do seguro é, sem duvida, um dos elementos dificultadores da ampliacaoe da consolidaco da seguridade social publica. Partindo da ldgica do seguro, a previdéncia social, embora ao longo de sua histéria tenha incorporado varios elementos prdprios da assisténcia social, nao conseguiu romper com a légica contributiva (Teixeira, 1990). A perspectiva e a intencionalidade de transformar a previdéncia em um verdadeiro sistema de seguridade social, contudo, nao sao recentes e nem datam da Constituigao de 1988. Ha bastante tempo elas permeiam o debate de especialistas e as proposigdes dos técnicos ligados a previdéncia. O Plano Beveridge, publicado na Inglaterra em 1942, e que aponta para um modelo de seguridade social diferenciado da ldgica do seguro, foi traduzido e publicado no Brasil em 1943. Desde entao, sua légica teria influenciado a previdéncia social brasileira, segundo varios analistas, @ teria contribuido para tornar mais flexiveis as regras do seguro social. Malloy (1986) afirma que, embora os especialistas do Ministério 40 Trabalho, onde a previdéncia estava institucionalmente alojada naquele ano, tenham reagido desfavoravelmente ao Plano Beveridge, muitos de seus Principios foram incorporados e contribuiram para a defesa de uma proposta de previdéncia que veio a constituir a seguridade social. Esta proposta deveria fundar-se nos principios de universalizagao da cobertura a todos * Ct. Artigo 20, parégrafo 3° da Lei Organica de Assisténcia Social (Loas), de 07 de dezembro de el % Ct, Vianna (1999) sobre os mitos e mentiras que vém contribuindo para a ndo consolidacao da segu" ‘social. 70 Digitalizado com CamScanner Assisténcia Soci. no Bras: un Dinero enn Onvaiiatioace € Consemvaoonisno os cidadaos, de uniformizagéo das contribuigdes ¢ dos beneficios, de unificagao administrativa, de ampliacdo dos servicos sociais e da assisténcia médica, e de financiamento baseado na solidariedade social (impostos fiscais) e néo em contribuigGes diretas (Malloy, 1986). O fato é que, desde a década de 1940, elementos proprios ao modelo beveridgiano passam a ser incorporados pelos Institutos de Aposentadorias e Pensdes (IAPs) e pelos discursos e textos do Ministério do Trabalho entao divulgados, que mencionavam a necessidade de assegurar, além da previdéncia stricto sensu, politicas amplas de satde, assisténcia e habitacao que, por sua vez, promoveriam a “seguranga social” do trabalhador (Oliveira & Teixeira, 1985). Esta influéncia, entretanto, foi parcial, lenta, gradual e limitada. Parcial, porque muitos principios bismarckianos foram mantidos e nem todos os principios do modelo beveridgiano foram incorporados, de modo que a seguridade social brasileira permanece entre o seguro e a assisténcia. Lenta gradual porque, ainda que tenhamos iniciado a instituigao de politicas sociais de cunho mais nacional na década de 1930, 0 processo de ampliacao da cobertura e de expansdo dos direitos, programas e servicos ocorreu Qradativamente e jamais chegou a assegurar direitos iguais a todos os cidadaos.) E limitada porque, ainda hoje, permanece a tensdo entre consolidar uma seguridade social publica, ampla e universal ou restringir sua fungao publica as camadas mais pobres da populagao.”’ 0 que se quer mostrar, assim, é que a justaposigao entre a ldgica do seguro e a logica da assisténcia sempre esteve presente na historia destas politicas sociais e foi acentuada pela Constituigao de 1988, ainda que a dimensao assistencial tenha sido (e permanece) marginal (Fleury, 1989). Do ponto de vista do financiamento, é conhecida a historica tendéncia de predominancia da contribuigao dos trabalhadores, em detrimento dos 7 A Reforma da Previdéncia de 1998 jé alingiu esse objetivo para os trabalhadores do setor privado. O regime geral de previdéncia social sO assegura aposentadorias publicas até o valor nominal maximo de RS 1.869.34 em julho de 2003 (cl. Salvador & Boschett-Ferreira, 2001). A proposta de retorma da previdéncia do governo Lula estabelece telo de AS 2.400,00 para trabalhadores do setor privado @ novos Ingressantes no servigo publico. Alé o momento de conclusdo deste texto, a proposta tina ja sido aprovada em segundo turno no Congresso Nacional, em contexto de reve nacional dos servidores pdblicos. 71 Digitalizado com CamScanner Wanere Boscvern empregadores e do Estado.” A contribuigao direta dos trabalhadores ¢ empregadores continua representando aproximadamente 70% das fontes da previdéncia social (Fraga, 2000), apesar do financiamento tripartite (empregados, empregadores e Estado) previsto na Constituicao, Outras fontes de financiamento, de natureza fiscal e contribuigdes sociais, entretanto, vem sendo introduzidas, mas so minoritarias ou direcionadas especificamente para custear as politicas de saide.29 A perspectiva de um fundo da seguridade social, com financiamento tripartite e redistributivo, destinado a financiar as trés politicas da seguridade social jamais foi efetivada, minando uma das bases necessarias a efetivagao da concep¢ao de seguridade social. A proposta técnica do MPAS de separagao das fontes de recursos com base na contribui¢do direta de empregados e empregadores para custear exclusivamente a previdéncia e com base no orgamento fiscal para as politicas de sade e assisténcia indica uma Perspectiva de clivagem ainda mais nitida das légicas do seguro e da assisténcia social.2° Em relacao ao aparato institucional, a opgao pela “estatizagdo” destas Politicas sociais, iniciada coma transformagao das Caixas de Aposentarias e Pensdes (CAPs) em Institutos de Aposentarias e Pensdes (IAPs), unificados no INPS na década de 60, 0 qual foi renomeado Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em 1990, além da criagdo dos respectivos Ministérios da Sadde, Previdéncia e Assisténcia Social, indica uma aproximagao a0 modelo beveridgiano, mas revela varios paradoxos. 0 primeiro deles é a nao efetivacdo de um Ministério da Seguridade Social,” * E conhecida também a perda de receitas em fungdo da sonega¢do e da frauda fiscal. Na area previdencian. Bese eae est atinalu RS36 bilbes,representando §vezes valor do presume tein arn ero nese ano (Ap, 1988). Em 2001 feria chegado a RS 115 bindas {IEE soo, * Em 2001, apenas 60% da Cons, 21% da CSLL e 62% da CPRIF foram apheadas nas tds golicas Qué gempbem a Segurdade social (sade, previdéncaeasssténcia socal) O estan ig leanne areas ou ficou retido no Tesouro Nacional (Antip, 2002) ® Motivo de reivindicagéo dos trabalhadores e estudiosos nas areas de sage e assisténcia, a destinagda d2 or Percentual especitica do arcamento da seguridade social para cada uma das polities nunca tor ace pela equipe governamental, sobretudo os técnicos da previdéncia, Social ¢ da drea econdmica 0 capitulo trés aborda especiicamente ofinanciamento da assisténcia seca > A proposta de criagdo de um Ministerio da Se Constituigéo. Seja pelo poder politico que acumulata o titular 72 Digitalizado com CamScanner Assisrcia Soca Wo Brasu: uw Deo extn OntanAuoaDe€ CONSERMOORSMO conforme se imaginava que aconteceria apés a Constituigdo de 1988. A permanéncia de ministérios setorizados, e sem articulacao entre si na definigao de uma politica de seguridade Social, reforga a fragmentagao e independéncia de cada politica. Além de ministérios especificos (com excegao da assisténcia, que até dezembro de 2002 estava alojada em uma Secretaria no Ministério da Previdéncia e Assisténcia Social) cada uma das politicas Possui seus fundos orgamentarios proprios e conselhos e conferéncias também especificos.*3 No ambito da previdéncia, um dos principais paradoxos é a exclusdo quase que total dos trabalhadores e empregadores (principais “financiadores”) da gestao da politica. Ainda que sustentada predominantemente e direcionada especificamente para uma parcela precisa da populagao — os contribuintes diretos e seus dependentes —, as decisdes a respeito do contelido e abrangéncia dos direitos e modalidade de financiamento (s6 para citar alguns elementos) sao tomadas pelo aparato burocratico estatal, baseadas em pretensas andlises e calculos técnicos que, falsamente, tentam impingir 0 mito da “seguridade social como matéria de natureza técnica” (Vianna, 1999, p. 40). Na sade, o principal paradoxo é que o Sistema Unico de Satide, fundado nos principios de universalidade, eqiidade, integralidade das ages, regionalizagao, hierarquizagao, descentralizagao, participagao dos cidadaos e complementaridade do setor privado, vem sendo minado pela péssima qualidade dos servicos, pela falta de recursos e pela ampliagdo dos esquemas privados que sugam os Tecursos publicos. A proposta de satide publica e universal parece estar, na pratica, sofrendo um processo de privatizacao passiva (Draibe, 1990). Na assisténcia, o sistema descentralizado e participativo, aos moldes do SUS, vem sendo constantemente desrespeitado, com programas, projetos @servicos definidos na esfera federal e liberagao de recursos condicionada sua execucao, desrespeitando assim 0 principio de respeito e atendimento 4S necessidades identificadas localmente, como sera demonstrado no Capitulo seguinte. Se * Em janeiro de 2003, foi criado o Ministério da Assisténcia e Promogao Social pslogovema La En unto, {ste foi renomeado para Ministério da Assisténcla Socal, por iniillva de parlanvenat Seguridade Social e Familia, apés articulagdo do Férum Nacional de Asistencia ” OConseo Nacional de Seguridade Social, planejado como mecanismo institucional destinado a promover essa atticulagdo, e que asseguraria a participacao de trabalhadores, empreg: Teas que compdem a seguridade, foi extinto em 1999 por medida proviséria 73 Digitalizado com CamScanner Wane BoscHeTti Ena dimensao dos direitos assegurados, entretanto, que se evidencia a maior ambigiiidade entre a ldgica do Seguro é a ldgica da assisténcia, Historicamente, as CAPs, os IAPs e posteriormente oINPSeo INSS foram, gradativa e lentamente, implementando beneficios que fogem a légica Contributiva ¢ com valores proporcionais a contribuigéo efetuada, Alguns exemplos sao 0 salario-familia (1963), 0 auxilio-funeral eo auxilio-natalidade (1957), 0 Prorural que garantia o beneficio de meio salario minimo aos trabalhadores rurais (1971 ), € a renda mensal vitalicia aos idosos acima de 70 anos eas pessoas Pobres portadoras de deficiéncia que nunca haviam contribufdo para a previdéncia (1974). Sao beneficios que, ainda que limitados, mesclam Caracteristicas i Essa imbricagao histérica entre ele elementos Proprios ao seguro social poderia ter provocado a instituigéo de uma ousada Seguridade social, de carater universal, Tedistributiva, Publica, com direitos amplos e fundados Na cidadania. Nao foi, entretanto, que ocorreu, ea sequridade Social brasileira, ao incorporar uma tendéncia de separacao entre a logica do seguro e a l6gica da assisténcia, e nao de reforco a classica justaposigao existente, acabou Materializando Politicas com Caracteristicas Préprias e especificas que mais se excluem do que se complementam, fazendo com que, na pi npler 7 n ratica, 0 conceito de Seguridade Social fique no meio do Caminho, entre o Seguroea assisténcia, Mentos prdprios a assisténcia e > Data de extensio destes auvlos a todos os APS entao existentes, De: assegurado apenas peo Instituo de Aposentadrias ePensoer 0 % 0 Funrural foi criado em 1963, mas somente com a criagdo do Prorural efetivamente, * 0 Grupo de Reforma da Previdénca era composto por intelectual, técnicos Sovernamentais, especialistas a area previdencidriae representantes de trabalhadores v empregadons 8 foi nomeado por decreto presencia em malo de 1988. oro tabalhouduantecincomeses A ange das reunibes totaza 1.014 paginas € 0 relatério sucinto de 28 paginas, com as principais delibera MPAS com o titulo Aumas da Nova Previdéncia, em 1906."4 presidente d Wanderley Guilherme dos Santos. 74 de 1952, o auxiio-natalidade era idustrdrios (IAPI) 8 benelicios foram implementados 'GOes, fol publicado pelo este grupo era o professor Digitalizado com CamScanner AssisTENcia SOCIAL No BRASIL: uM DIREITO ENTRE ORIGINALIOADE E CONSERVADORISMO esforgo de precisar os conceitos, de delimitar as caracteristicas que diferenciariam o seguro da assisténcia e a apresentar propostas de como a seguridade social brasileira deveria incorporar estas duas ldgicas de protecao social. Apés longas e polémicas discussGes, 0 relatorio final, que registra a auséncia de consenso entre representantes de trabalhadores e técnicos governamentais, sugere a criagao da seguridade social, mas com uma separacao clara entre a previdéncia (seguro), a assisténcia e a satide. A previdéncia deveria seguir de modo mais puro a légica do seguro: seus beneficios deveriam ser contributivos, proporcionais 4 contribuigdo e diretamente vinculados A cobertura de um risco derivado da auséncia de trabalho. A assisténcia social, por sua vez, deveria ser nao contributiva, financiada pelo orgamento fiscal, destinada aos comprovadamente pobres, e seus beneficios nao precisariam corresponder a um risco social definido, além de apresentar cardter nao permanente.” A satide nao foi objeto de longas discussGes nesse grupo, pois um grupo especifico ligado ao movimento de reforma sanitaria havia sido constituido para apresentar as reformas nesta area. O relatdrio final do grupo de reforma da previdéncia apresenta um Plano de Seguridade Social que inclui essas trés politicas, mas sugere uma nitida separacdo entre os beneficios previdenciarios movidos pela ldgica do seguro € 0S beneficios assistenciais e servicos de satide, movidos pela l6gica da assisténcia. A Assembléia Constituinte, em 1987, retoma esta propostae absorve, em parte, as proposigdes constantes desse plano, mas ela vai mais além e incorpora algumas reivindicagdes dos trabalhadores e da populagao em Geral, o que amplia a seguridade social, sem, contudo, deixar de incorporar essa tensdo e mesmo a ambigilidade entre a lOgica do seguro e a logica da assisténcia.2* Como implicagdes desse movimento tem-se que, decorridos Gh MPAS. Relatarios Rumo da Nova Previdéncia, p. 875 na transcricdo das reunites @ p. 23 do relat6rio final 2 A anilise sobre o processo de construgdo @ institucionalizagao do concelto de seguridade social na Constituicao de 1888 foi objeto de minha tese de doutorado, defendida na EHESS/Paris em 1998 eintitulada La sécurité sociale au Brésil dans la Constitution de 1988; entre I'assurance @ l'assistance, sob orientagao do professor Robert Castel 75 Digitalizado com CamScanner Ivanete BoscHeTT! 15 anos de sua criagéo formal, a tendéncia que vem se delineando dp modo cada vez mais claro é de fragmentagao e pulverizagao das trés politicas que constituem a seguridade social, perdendo de vista sua potencialidade como sistema integrado de protegao social (Pereira, 1998). Outra tendéncia, ja apontada inicialmente, é a de restringir a seguridade social a sua dimensio previdenciaria, confundindo seguridade com seguro social e, desta forma, restringindo sua dimensao assistencial. Quanto aos direitos da seguridade social, a diregao atual 6 de predominio da seletividade e privatizagao, em detrimento da universalidade e estatizagao. A “reforma” da previdéncia de 1998 introduziu critérios que, no ambito do regime geral (INSS), focalizam ainda mais os direitos na Populagao contribuinte, a exemplo da transformagdo do tempo de servico necessario para aposentadoria em tempo de contribuigao, a instituigao de idade minima de 48 anos para mulher e 53 anos para homem para aposentadoria proporcional, acréscimo do tempo de contribuigdo para os atuais segurados, estabelecimento de um teto nominal maximo aos beneficios (R$ 1.869,34 em julho de 2003) e sua desvinculacao do salario minimo, reforgando claramente os esquemas e planos privados, fim das aposentadorias especiais e inclusao do critério de renda para acesso a0 salario-familia (Salvador & Boschetti-Ferreira, 2001). A sadide publica vem agonizando pela falta de recursos e seus leitos vam sendo reduzidos. Corre- se 0 risco de transformar a satide publica universal em um pacote de cesta basica para populagao pobre.’ A assisténcia é a Politica que mais vem sofrendo restrigdes: morosidade na sua regulamentagdo como direito (2 Lei Organica sd foi sancionada em 1993 e efetivada a partir de 1995): baixa cobertura; redugao de recursos em varios projetos; e, finalmente, teforgo do carter filantropico e clientelista na condugao da politica, em Getrimento de seu fortalecimento como direito social e politica integrante da seguridade social. » Cr. Jornal Fatha de S. Paula, Cotidiano, 24 maio 1998: Crise na Saude pode reduzir sistema de assisténc? Gratuita; Pais discute quem vai pagar a sade; Regras do governo seguem a lama ‘quem pade pagar dev? desembolsar pela saude’, 76 4 Digitalizado com CamScanner AssisTeNcia SociAL No Brasit: uM DineITO ENTRE ORIGINALIOADE € CONSERVADORISMO A previdéncia e a assisténcia acabam se constituindo como unidade de contrarios porque se mantém e se alimentam em um processo cuja dinamica interna é marcada pela polarizagao. Sao campos onde a presenga de uma provoca auséncia da outra, mas ambas se atraem e se afastam enquanto dimensGes de um mesmo fendmeno: a necessidade de constituir um campo de protegao social que responda as demandas criadas pela dinamica excludente do capitalismo, sem, contudo, restringir sua logica de produgao e reprodugao. 1.3. Assisténcia como Direito Social: Dialética da Originalidade e do Conservadorismo A inclusao da assisténcia social no Sistema de Seguridade Social, juntamente com as politicas de satide e previdéncia esta provocando, desde entdo, transformacoes legais e institucionais, regulamentadas em diversas legislagdes.° Ao ser regida por novas regras, a assisténcia social, especificamente, deve reorganizar tanto os beneficios, servigos, programas e projetos assistenciais, quanto os mecanismos de financiamento e de gestao politico-institucional. Por outro lado, ao institui-la como politica de seguridades social, o Estado brasileiro passa a reconhecer a assisténcia como parte de um sistema mais amplo de protecao social, de modo que sua articulacdo com as demais politicas torna-se obrigatéria e indispensavel, sendo condicionada, mas também condicionando as politicas sociais governamentais. A implementagao das mudangas legalmente propostas assume um cardter de verdadeiro desafio se consideradas as caractéristicas histéricas que marcaram a assisténcia social no Brasil: descontinuidade, pulverizagao e paralelismo, além de forte subjugagao clientelista no ambito das agdes e servicos; centralizagao tecnocratica, fragmentagao institucional, auséncia de mecanismos de participagdo e controle popular e opacidade entre o @ As principals s40% Lel Organica de Assisténcia Social (Loas) n® 8.742, de 7 de dezembro de 1993: Politica Nactonal de Assisténcia Social (PNAS) e.a Norma Operacional Basica (NOB), publicadas no Didrio Oticial da Unido, de 16 de abril de 1999. 77 Digitalizado com CamScanner Ianere Boscuern publico e o privado na esfera da gestéo governamental € da atuacag qa entidades assistenclais que recebem recurso publico. No ambito 4, financiamento predominava a auséncia de critérios claros e transparentes que definissem as fontes e 0 destino dos recursos é inexisténcia de yy fundo especifico para a area, 0 que impedia 0 acompanhamento ¢ 4 monitoramento tanto das formas de financiamento quanto dos montantes, previstos, orgados e executados. A assisténcia social, entretanto, sempre esteve associada institucionalmente a previdéncia social’ e, embora nag existam dados detalhados dispontveis, sabe-se que SeUs recursos eram provenientes, majoritariamente, das arrecadagées previdencidrias ¢, minoritariamente, do orgamento fiscal. Desfalcada de uma legislagéo que a amparasse, carente de normase procedimentos claros de planejamento e gestao, utilizada como moeda Clientelista e facilmente apropriada pela filantropia voluntarista, a assisténcia constituiu-se, historicamente, como “parente pobre” das demais politicas sociais brasileiras, destinando suas ages a categorias especificas, configurando-se como politica nao obrigatéria e sendo constantemente subalternizada (Yazbek, 1993). Do ponto de vista legal, portanto, a Constituigao Federal de 1988 e a Lei Organica de Assisténcia Social (Loas) de 1993 é que introduzem uma nova concepcao de assisténcia social como direito e como politica social integrante do Sistema de Seguridade Social e atribuem ao Estado o dever de garanti-la. Por outro lado, nao se pode deixar de considerar que, além de constituir-se como politica setorial especifica regida pela Loas, ages assistenciais estao presentes em praticamente todas as outras politicas sociais. Estas agdes, entretanto, ndo sao regidas pelo disposto na Loas, mas absorvem um montante expressivo de recursos federais destinados 4 assisténcia social, como sera demonstrado no capitulo 3. * Desde 1974, a LBA integrou o MPAS fazendo parte, a partir de 1977, do extinto Sistema Nacional de Previdéncia e Assisténcia Social (SINPAS). Entre 1989 e 1995, esteve vinculada a trés ministérios diferentes: do Interior, da Agao Social e do Bem-estar Social; em 1995, a LBA foi extinta na Reforma Ministerial pelo presidente eleito e suas agdes foram parcialmente absorvidas pela Secretaria de Estado de Assisténc Social (Seas) do Ministério da Previdéncia e Assisténcia Social, que vigorou até dezembro de 2002 Conforme consta nos relatdrios anuais da LBA, que nao detalham as fontes e montantes orgamentérios. 78 Digitalizado com CamScanner Assisténcia Sociat No Bras: uo Dineito ENTE ORIGINALIOADE & CONSERVADORISMO Neste trabalho, apenas as agGes assistenciais regulamentadas pela Loas e normatizadas no ambito da Seas/MPAS foram objeto de andlise, embora se reconhega a absoluta necessidade de se realizar uma apreciagao minuciosa das agGes assistenciais implementadas nos diversos ministérios que absorvem uma importante fatia de recursos publicos. 1.3.1. Inovagdes Juridico-Conceituais no Ambito dos Direitos Assistenciais As inovagdes asseguradas legalmente, ao estabelecerem uma relagdo de direitos e deveres, submetem a assisténcia social a alguns imperativos e particularidades.** Primeiro, a Loas institui a primazia da responsabilidade estatal (artigo 50, III) na condugao da politica em cada esfera de governo, de modo que a obrigagdo de assegurar as condigGes financeiras, institucionais e politicas necessdrias a sua materializagao é do Estado, em seus diferentes niveis € esferas, ja que 0 “direito sé existe no Estado” (Coutinho, 1998). 0 status de direito social atribuido 4 assisténcia Ihe confere, assim, Obrigatoriedade governamental na implementacao, amparo legal para sua reclamagao pelo cidadao, responsabilidade politica dos representantes pUblicos na sua consolidagao e ampliagao, e possibilidade de o usuario reconhecer-se como cidadao portador de direitos. Segundo, a assisténcia social ¢ concebida como direito nao contributivo, o que significa que é uma politica social publica e nao pode submeter-se a logica do mercado (Pereira, 1996). Nao pode, portanto, ser comprada e/ou vendida como mercadoria e nem pode gerar lucro para quem a implementa, seja 6rgao governamental ou néo-governamental. Disto decorrem duas implicagGes: 1) 0 acesso do usuario ao direito assistencial no pode ser vinculado a nenhum tipo de contribuigao direta; 2) as 3 A andlise que segue (ol elaborada am minha tese de doutorado ¢ publicada parclalments sob o titulo “AS Politicas de Seguridade Social: A Assisténcla Social", no médulo Ii! do Programa de Capacitagao Continuada para Assistentes Socials, implementado pelo Canselho Federal de Servico Social e Assoclagao Brasilelra de Ensino ¢ Pesquisa em Servico Social, em convénio com a UnB (Boschetti-Fereira, 2000), 79 Digitalizado com CamScanner Wanere BoscHerT entidades assistenciais ndo-governamentais nao podem obter lucro, devendo ser, por natureza, sem fins lucrativos. »Terceiro, os direitos previstos legalmente e materializados em programas, projetos, beneficios e servigos na LOAS apresentam caracteristicas diferenciadas. Os beneticios que asseguram uma prestacdo monetaria continuada (salério minimo para idoso e pessoa portadora de deficiéncia) ou eventual (auxilio-natalidade e auxilio-funeral) caracterizam-se por ser: 1) um direito pessoal e intransferivel, devendo, obrigatoriamente, ser repassado ao usuario a quem foi destinado; 2) condicionado a existéncia e comprovacao da situagdo de necessidade, de modo que, a0 organismo pUblico Tesponsdvel pela gestdo do beneficio cabe avaliar objetivamente a existéncia desta situagao, nao tendo o poder de objetar o acesso ao direito em fungao de julgamentos morais; 3) categorial, na medida em que 0 acesso a uma destas prestagdes sd seré assegurado se o usuario situar-se em algumas das categorias ou situacdes definidas em lei: renda, idade, deficiéncia fisica ou mental, natalidade ou morte. Tais caracteristicas, reconhecidamente restritivas, tornam esses beneficios uma espécie de renda social minimalista e reforcam a histdrica clivagem entre aptos e inaptos ao trabalho: ~ Beneficio de Prestagao Continuada - BPC (artigo 20): garante um salario minimo mensal 4 pessoa portadora de deficiéncia e a0 idoso com 67 (sessenta e sete) anos ou mais, Cuja renda familiar per capita mensal nao ultrapasse um quarto de salério minimo. Embora a lei tenha sido aprovada em dezembro de 1993, o BPC sé entrou em vigor em 1996. Segundo a Loas (art. 38), 0 beneficio Seria destinado para os idosos com mais de 70 anos na data de Sua publicagao, devendo ser reduzida Para 65 anos em 48 meses. Medida Provisdria, transformada na Lei n° 9.720, de 30 de novembro de 1998, congelou o limite de idade em 67 anos o que, Na pratica, reduziu o numero de pessoas que passaram a ter Possibilidade de acesso ao beneficio. A legislagao entende como pessoa Portadora de deficiéncia aquela incapacitada para o trabalho € para a vida independente. Com a implementagao deste direito 80 Digitalizado com CamScanner

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