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DISCURSOS, PRATICAS E ATORES NA CONSTRUGAO DO IMAGINARIO NACIONAL Fernando Purcell OQ. durante a primeira metade do século XIX, deu pas- sos significativos em diregéo a construgao da nagao. Isso foi possivel por meio de um complexo processo discursivo € simbélico no qual o estado chileno cumpriu uma fungao de protagonista. Nas paginas seguintes tragarei 0 caminho desse processo entre 1810 e 1850, destacando também 0 papel que diferentes atores sociais desempenharam na formagao da estru- tura da identidade nacional.|Ao mesmo tempo, procurarei desta- car algo caracteristico do processo de construcao nacional no Chile que é 0 paradoxo gerado pela coexisténcia de um projeto nacional unitario e aglutinador, e outro, freqiientemente repres- sivo, que tentou implantar uma ordem social e colaborou para a fragmentagao social da populacao, incidindo em formas especi- ficas nas quais 0 denominado “baixo povo” chileno expressou seus sentimentos de apego ao nacional, as quais diferiram bas- - tante daqueles da elite chilena. Apés os acontecimentos na Peninsula Ibérica que levaram 0 rei Fernando VII a perder o controle direto de suas possessdes coloniais americanas, um grupo de moradores seletos, ou “vizi- nhos”, de Santiago organizou um cabildo aberto em 18 de setem- bro de 1810, do qual participaram aproximadamente 350 pessoas. Por ocasidio desse cabildo foi organizada uma Junta de Governo 17 4,- margens | volume 1 - Regiao do Prata ¢ Chile que obteve um grau importante de legitimidade enquanto mante- ve a lealdade com a monarquia sem manifestar uma postura {_aberta de ruptura.' No final de outubro de 1810, todos os cabildos do Reino do Chile tinham reconhecido a legitimidade da Junta estabelecida em Santiago, com a qual se consolidou o inicio de uma etapa na histéria do Chile que a tradigao historiografica de- nominou de Patria Velha. Apesar do epiteto que assentou a origem da patria em 1810 e que conferiu um sentido quase teleolégico ao projeto republicano a partir da mesma data de 18 de setembro de 1810, a classe dirigente crioula nao deu sinais claros de ruptura com a Coroa espanhola, ao menos de forma generalizada, pelo menos até 1812. Nos primeiros dois anos apés 0 estabelecimento da Junta, os que exerciam o poder foram sumamente precavidos, lutando mais para legitimar uma autonomia alcangada de forma circunstancial que para se aventurar no caminho da independén- cia.? Dentro desse contexto, a criagaéo de um imaginario nacional, junto com o projeto republicano, nao ocupou um espago signifi- cativo entre a emergente elite crioula até 1812. Entretanto, logo depois da Independéncia em 1818, o estabelecimento da Junta em. 1810 acabou sendo interpretado como um claro exemplo da busca de autonomia politica tendente a “vingar cerca de trés séculos de oH escravidao, submissao e insultos”. Se houve algo que facilitou o aparecimento de um projeto republicano e os primeiros esbogos de um imaginario nacional Estado en Chile (1800-1837). Democracia de los “pueblos” santiago: Sudamericana, 2005, p. 96. azar. Construccién de Militarismo ciudadano. Golpismo oligdrquico. 2 Alfredo Jocelyn-Holt. La Independencia de Chile, Tradicién, modernizacién y mito. Madti: Mapfre, 1992, p. 150. 5 £1 Observador Chileno, de 24 de setembro de 1822. Ver também El Telégrafo, de 18 de feve- reiro de 1820. Revolugoes de independéncias e nacionalismos nas Américas + 1 7 5 foi a conotagao repressiva e ameagadora do projeto de restaura- cdo monérquica por parte da Coroa espanhola. O que foi dito anteriormente ajuda a entender que jé em 1812 tivessem sido criados no Chile os simbolos nacionais que procuravam diferen- ciar a comunidade imaginada de chilenos dos realistas peninsu- | } lares. Naquele ano, 0 Chile contou com sua primeira bandeira, composta de trés faixas nas cores azul, amarela e branca, e com um escudo que tinha como lema Post Tenebras Luz, e que incluia uma coluna dérica, uma palma e uma langa cruzadas, junto a um homem e uma mulher com trajes indigenas.' Além disso, comegaram a ser utilizados “novos” meios, como os jornais, com. a finalidade de difundir discursos com um forte carater republi- cano e um discurso independentista. O aparecimento do primeiro jornal chileno em 1812, La Aurora de Chile {A Aurora do Chile], resultou ser um poderoso mecanismo de socializagao de idéias, tal como destacou seu fun- dador, frei Camilo Henriquez, que celebrou a chegada da imprensa no Chile avaliada como um “precioso instrumento da ilustragaéo universal”.’ No primeiro numero do jornal, Camilo Henriquez insiste na idéia de que 0 homem estava destinado por natureza a viver em sociedade, enfatizando que a ordem e a liberdade nao poderiam ser mantidas sem a existéncia de um governo que deveria repousar na soberania popular e ter como garantia um regulamento fundamental que possibilitasse a constituigao de um estado.’ José Emilio Buructia e Fabidn Camp itos y simbologias nacionales en los pafses del cono sur”. In: Antonio Annino ¢ Francois Guerra (coords.). Inventando la nacién. Iberoamérica. Siglo XIX. México: Fondo de Cultura Econdmica, 2005, p. 458. 5 surora de Chile, Periédico Ministerial y Politico, Prospect, de fevereiro de 1812, © Jurora de Chile, Periddico Ministerial y Politico, de 13 de fevereiro de 1812. 176 margens | volume 1 ~ Regido do Prata e Chile O anterior é digno de nota uma vez que durante 0 periodo da Patria Velha coexistiram dois projetos paralelos: 0 de fomen- tar a identidade nacional e o de dar forma ao estado republica- no. Apés a independéncia definitiva em 1818, ambos os proces- — sos continuaram coexistindo, mas|o estado republicano conse- guiu se estabelecer antes da nacao e se transformou na entidade } com base na qual se tentou organizar a estrutura nacional.\Nes- \_se sentido, é importante afirmar, tal como ressaltarJoséi Carlos Chiaramonte, que a nagdo teve um carater de resultado, e nao de ~| fundamento do processo de independéncia no cendrio ibero- americano.’ Apesar da afirmagao anterior, as idéias tendentes a criagdo de um imagindrio nacional comegaram a rondar 0 am- biente depois de 1810, permitindo, como argumentou Barbara Silva, que surgissem durante a Pdtria Velha dois tipos de concei- los de nacao: um de carater politico-discursivo e outro, cultural- simbélico, que tinham se complementado para a criagéo de um imaginario coletivo precoce.* Entretanto, tal imagindrio nao con- tou com um grau de articulagado suficientemente poderoso nos anos que precederam a independéncia. Com relagao ao /politico-discursivo, Barbara Silva explica que as propostas estiveram caracterizadas pela ambigiiidade propria da conjuntura do momento,’ sem que 0 anterior fosse um impedimento para que setores da elite crioula tivessem como primeiro desafio encontrar mecanismos adequados para a fado en Iberoameérica. El lenguaje politico en tiempos judamericana, 2004, p. 20. 7 José Carlos Chiaramonte. Nacién y de las independencias. Buenos Aires: * Barbara Silva. “Simbolos y discursos en torno a la nacién. Vieja y Centenario”. Tesis Bicentenario 2004. Colegio Tesis Bicentenario, Comissio Bicentendrio. Santiago, Centro de Investigaciones Barros Arana, 2006, p. 21. * Ibidem. Revolugdes de independéncias e nacionalismos nas Américas - 1 7 7 socializagdo e difusao dos ideais patrios e nacionais que come- caram a circular no Chile depois de 1810. Tal como destaca Rafael Sagredo, foi utilizada uma série de meios impressos para divulgar as idéias e sentimentos independentistas, dentro dos quais se destacam os catecismos politicos, que permitiram imbuir e educar a populagado com relagao aos conceitos politicos republicanos." Apesar de sua origem colonial, varios desses do- i cumentos foram utilizados no Chile a partir de 1810 para deta- Ihar temas de inter sse politico por um sistema de perguntas e respostas que combinava a formulacao de interrogantes com a entrega de respostas claras e simples para ensinar os valores proprios do republicanismo." A definigao de conceitos como patria, povo, soberania e cidadania foram recorrentes nos cate- cismos* politicos patriotas e republicanos."” Tal como explicou o influente religioso Camilo Henriquez em seu Catecismo de los patriotas (Catecismo dos patriotas] de 1813, a patria era uma grande familia cuja lealdade estava acima das que existiam naturalmente para com as familias de sangue, © que apelava para a criagéo de uma identidade que estava acima do familiar, do local ou do regional.” Em outras palavras, a formulacao de Camilo Henriquez implicava 0 transito de uma comunidade tangivel e proxima (a familia, neste caso) para uma mais abstrata, na qual, tal como destacou Benedict Anderson, © Rafael Sagredo. “Actores politicos en los catecismos patriotas americanos. 1810-1821”. In: Historia, v. 28, 1994, p. 274. " Ibidem, p. 275. *Tratado redigido em forma de perguntas ¢ respostas (N. do T,). " Ibidem, p. 279. Tbidem, p. 281. 178 margens | volume 1 - Regio do Prata e Chile o mais provavel era que 0s membros nem sequer se conheces- sem por ser ela uma comunidade difusa." Aqui esta a origem da elaboracdo de um discurso politico tendente a gerar tanto uma familiarizagéo com os fundamentos e conceitos republicanos quanto um sentimento de apego a um grupo social mais amplo, concebido no inicio como uma grande familia patria, 0 que pos- teriormente evoluiria mais claramente para a nogao da existén- cia de uma comunidade nacional. Ainda que seja certo que alguns destes catecismos politicos utilizaram um vocabulario “popular” para alcancar com suas mensagens setores sociais além da elite, como é 0 caso do Didlogo de los Porteros [Didlogo dos Porteiros] ou do Didlogo entre un Liberal y un Servil [Didlogo entre um Liberal e um Criado], a verdade é que nao esta claro que os catecismos tenham se transformado em um meio efetivo de socializagaéo de ideais para numerosos grupos médios ou baixos da sociedade. Com relagao ao conceito de nagao associado ao plana cul- tural-simbélico, é preciso destacar sua relevancia como comple- mento do discursivo, na medida em que o simbdlico permitiu ampliar 0 universo social de recepgao do imagindrio nacional em um contexto no qual predominava a populagao analfabeta." Pela mesma razdo foram extremamente importantes 0s recursos simbélicos utilizados durante a Pdtria Velha, como no caso das comemoragées de 4 de julho de 1812 em homenagem a Declaragao de Independéncia dos Estados Unidos, data na qual se hasteou pela primeira vez e publicamente a bandeira tricolor Anderson. Imagined communities. Reflections on the origin and spread of natio- nalism, Londres/Nova York: Verso, 1991 [1985], p. 6. * Barbara Silva, “Simbolos y discursos..”, op. cit., p. 48. Revolugdes de independéncias e nacionalismos nas Américas + 179 chilena permitindo que “a liberdade e a independéncia de am- bas as nagées fossem mutuamente recordadas em alegres brin- des”. Dois meses mais tarde foi celebrado em grande estilo 0 aniversario do estabelecimento da Junta de Governo em 18 de setembro de 1810. Em 30 de setembro de 1812, e com atraso “por nao encontrar-se ainda terminados os preparativos necessa- rios”, foi comemorado de maneira apotedtica 0 18 de setembro com o hasteamento da bandeira nacional em todos os locais publicos de Santiago, assim como a revista das tropas e bailes."” ‘A Casa da Moeda foi 0 local escolhido para a festa, em torno da qual foram levantados arcos de triunfo e instaladas lumindrias que proporcionaram um ambiente magnifico para uma festivi- dade, na qual uma banda de misicos “tocou alguns trechos novos patridticos e cinco ou seis cangdes escritas para a festa”, que foram também impressas." Os seiscentos convites feitos para a celebracgaéo informaram sobre a finalidade da mesma, ja que nesse momento deviam “os dignos moradores chilenos dis- ponibilizar seus transportes pela liberdade da Patria”.” Sem ser necessariamente uma pratica nova, 0 carater seleti- vo dos convites, socialmente falando, indica que durante a Patria Velha 0 “ator por exceléncia” foi a elite crioula, capaz de estabele- cer uma dominagaéo hegemonica na busca de um projeto de B, Johnston, Cartas de un tipdgrafo yanqui. Buenos Aires; Francisco de Aguirre, "7 Ibidem, p. 80. ** Ibidem, pp. 80-81. Manuel Antonio T “Descripcién del baile en la Casa de Moneda en septiembre de 1812”, In: Guillermo Feliti Cruz (comp.). Coleccién de Historiadores y Documentos relati a la Independencia de Chile, t. XIX, “Revoluciones de Chile”. Céndor, 1957, pp. 645-644. Ss 180. margens | volume 1 - Regiao do Prata e Chile nagdo que fosse uma realidade imaginada por todos.” E dificil negar a afirmagdo anterior, sobretudo se pensarmos que os proje- tos politico-discursivos e cultural-simb6licos tiveram suas mentes pensantes em membros da classe dirigente para quem urdiam um completo tecido de praticas, simbolos e discursos com a fina- lidade de comegar a esbogar um espirito de coesao nacional. Entretanto, as incipientes expresses nacionalistas criadas neste periodo alcangaram indiretamente a sociedade como um todo. A congregagao de milhares de pessoas em espagos ptiblicos urba- nos foi possivel gragas ao éxito de festejos ¢ praticas que tiveram uma conotagéo magnanima, aumentando as expectativas geradas entre o povo. E plausivel supor, por exemplo, que as mesmas comemoragées de setembro de 1812 discutidas anteriormente nao so tiveram um impacto entre as centenas de participantes do baile da Casa da Moeda, como também entre os milhares de curiosos que escutaram os canhées, viram a enorme bandeira ti- color hasteada, assim como os arcos de triunfo, as tropas desfilan- do e 0 frontispicio da Casa da Moeda junto aos edificios préximos. adornados com mais de oito mil lumindrias." O esplendor dos espetaculos puiblicos e o desejo de criar um impacto entre as massas pobres nao foi uma caracteristica propria apenas da principal cidade chilena, mas também de outros povoados como 0 de Talca, onde, por ocasiao das festas de setembro de 1817 para comemorar 0 “oitavo ano da Liberdade Chilena”, distribuiu-se ao “povo baixo” mate, chocolate e licores de maneira a torné-los participes das comemoragées.” Dessa © Barbara Silva, “Simbolos y discursos..”, op. cit, p. 20. e..!, op. cit, pp. 645-651. *! Manuel Talavera, “Descripcién del ba ® Gazeta de Santiago de Chile, de 15 de novembro de 1817, Revolugdes de independéncias e nacionalismos nas Américas + 1 8 1 maneira, a partir de cerimonias e simbolos foi sendo criada uma teatralidade do nacional que resultou ser uma ferramenta suma- mente poderosa para a difusao transversal, socialmente falando, de simbolos e sentimentos de ligagdo com a nagao.” Os conceitos de nagéio que comecaram a ser esbogados durante a Patria Velha receberam um impulso para sua difusio entre os jovens da elite a partir da educagao. As elites crioulas comprometidas com a causa da independéncia republicana cedo valorizaram o sistema educacional como uma ferramenta essencial que permitiria as geragdes jovens participarem da estruturagéo de um idedrio nacional. A utilizagaéo de escolas como parte de tal projeto respondia ao interesse de projecao da nacao em direcdo a um futuro ilimitado em que 0 projeto unita- rio fosse visto como viavel. Sendo assim, nado é de estranhar que, na primeira minuta constitucional apresentada posteriormente aos eventos de 1810 e redigida por Juan Egafia, tenha sido proposta a criagéo de um “Instituto Nacional” para ser o “centro e modelo da educagao nacional”, com uma estrutura que abrangeria a educagao pri- maria, 0 exercicio das artes e das ciéncias, contando com uma diregao geral a cargo do governo.” Tal como explica a historia- dora Sol Serrano, o Instituto Nacional que abriu as portas em 1815 foi concebido como “instituigéo modelo que serviria de referéncia para toda a educagao publica”. E importante ressal- ** Com relagio ao processo de domina: Marquez. Las liturgias del pode nial (1609-1709). Santiago: LOM. io simbélica no Chile colonial, ver Jaime Valenzuela Zelebraciones piiblicas y estrategias persuasivas en Chile colo- iciones/Centro de In \ciones Barros Arana, 2001, 2" Citado en Sol Serrano, Universidad y Nacién. Chile en el siglo \ Santiago, 1994, p. 45. Editorial Universitaria, * Ibidem, p. 7. ecco eT eee pea 182 margens | volume 1 - Regido do Prata e Chile ir 0 tar que tal estabelecimento educacional, além de adqui nome de “nacional” em uma etapa prévia a independéncia definitiva da Espanha, teve em sua concepgao um carater uni- ficador ao surgir da fusao de varios estabelecimentos educa- cionais préprios do mundo colonial como 0 Internato Ca- rolino, a Universidade de San Felipe, a Academia de San Luis, 0 Semindrio Eclesidstico e outros estabelecimentos como 0 Colégio de Naturais de Chillén e as escolas ptblicas existentes em Santiago.” A relevancia do projeto educacional republicano e nacio- nal inerente a fundagao do Instituto Nacional foi rapidamente detectada pelas autoridades espanholas, as que, uma vez con- sumada a restauragdo da monarquia em 1814, fecharam rapi- damente as portas da instituigao em dezembro daquele ano. Elas s6 seriam reabertas depois da independéncia. Além do Instituto Nacional, foi estabelecida durante a Pdtria Velha a Biblioteca Nacional, com a qual foram precocemente fundadas as bases do que se transformaria em um dos pilares fundamen- tais da formagao de um imaginario nacional. A educagao alcan- cou sua expresséo maxima com a abertura da Universidade do Chile em 1843,” estabelecimento que veio a consumar a forma- cao de um sistema de educacao propriamente nacional,” dentro ?*Thidem. nais no fomento da identifi 2 Com respeito ao papel das instituigdes edu & preciso destacar que jé em 1818, quando foi decidido comemorar o di como dia nacional, ordenou-se por decreto que participassem “todos os alunos das escolas ptiblicas presididos por seus professores a cantar, ao pé da bandeira, os hinos patr n preparados, alusives ao objeto do dia”, dando infcio a uma tradicdo de ineulcar dias, Boletin de y Decretos del que for valores patrios Gobierno. Imprenta Na nada: el control estatal de la educacién en Chile (1810- ‘ois-Xavier Guerra, coordenadores, op. cit, p. 564. 28 Sol Serrano, “La ciudadania exa 1870)”, In: Antonio Annino ¢ Fi Revolugdes de independéncias ¢ nacionalismos nas Américas + 1 85 de uma conjuntura na qual os intelectuais chilenos da denomi- nada Geragao de 1842 comegavam a formular explicitamente um projeto nacional, com base na intelectualidade.” Uma das caracteristicas essenciais da Pdtria Velha é que houve, tal como assinala Alfredo Jocelyn-Holt, uma mistura de prudéncia e improvisagao no momento de tomar conscién- cia do desafio de substituir o sistema mondrquico por um autOnomo.” Assim demonstrou anos mais tarde a Gazeta Mi- nisterial de Chile, ressaltando que o Chile tinha assumido 0 18 de setembro de 1810, de forma titubeante, como um processo de reconhecimento de suas origens que implicava a imagi- nagao de um novo ponto de partida: “este é€ 0 dia em que nos vimos semelhantes a essas criangas ternas que, nascidas na auséncia de um pai cujo paradeiro se ignorava, sao sur- preendidas de repente com a sua presenga: a mae as faz conhecer quem lhes deu a vida, elas olham 0 pai encolhidas e timidas”2' Além dos evidentes sinais de continuidade com relagéo a muitos processos préprios do passado colonial, a chegada do “pai ausente” implicou uma mudanga profunda na historia do Chile, em fungdo do rompimento da lealdade para com a Monarquia espanhola e da adogao de um modelo repu- blicano e nacional. O distintivo nacionalista do projeto repu- blicano do Chile independente trouxe consigo o desafio de elaborar novos projetos de difusao e socializagao do nacional que vieram complementar aqueles surgidos antes de 1818. 2 Ana Marfa Stuven, “La Generacién de 1842 y la conciencia nacional chilena”, Revista de Ciencia Politica, Vol. 9, n* 1, 1987, p. 61. %® Alfredo Jocelyn-Holt, op. cit, p.159 1G zeta Ministerial de Chile, de 21 de setembro de 1822, 184,- margens | volume 1 ~ Regido do Prata ¢ Chile A grande diferenga em relagao ao periodo anterior é que, a partir de 1818, gerou-se no Chile um contexto mais propicio, ainda que nAo isento de dificuldades, para a construgao de um estado republicano sobre o qual recaiu grande parte das res- ponsabilidades da criagdo de uma nagao, chegando a ser 0 estado chileno, tal como afirmou Mario Géngora, a matriz da nacionalidade.” O estado chileno em formagao encabegou desde o perio- do da independéncia um processo de construgao nacional mais abrangente e inclusivo, no qual também foi dada a devi- da importancia para instituigdes como a Igreja Catélica chile- na.** Nesse sentido, é importante destacar 0 compromisso de um consideravel setor do clero crioulo com a causa nacional, chegando a Igreja Catélica a ter uma participagao primordial nas miultiplas celebragées civicas oficiais que normalmente inclufam te deums e colocavam os religiosos em uma posi¢éo destacada e preponderante dentro dos protocolos oficiais. Mui- tos membros do clero também participaram da elaboragao de um discurso unificador como o que foi expresso a partir de intimeros sermées que apelaram para a criagéo de um imagi- nario de pertenga e identidade comuns. Frei Andrés Cabanela expressou em Talca, em 1817, por exemplo, que, sendo a liber- dade do interesse de todos, “seraéo todos a manté-la; uns nos sentimentos, outros no entusiasmo e outros ainda em ser * Mario Géngora. Ensayo histérico sobre la nocién de Estado en Chile en los siglos XIX y X Santiago: La Ciudad, 1981, p. 5. > Apesar da afirmativa anterior, houve setores da Igreja Catélica, como no caso dos francis- canos do sul do pafs, que manifestaram seu apego incondicional 4 monarquia durante a Pétria Vetha e 0 inicio da vida republicana. Ver Jaime Valenzuela Marquez. “Los francisca- nos de Chillén y la independencia: avatares de una comunidad monarquista’, In: Historia, n, 58, ¥. I, jan.-jun. 2005, pp. 115-158. Revolugdes de independéncias e nacionalismos nas Américas - 1 8 5 felizes: assim é, nobres cidadaos e meus compatriotas: sois e sereis felizes”.* O estado chileno também se esmerou em delimitar 0 Ambito do nacional no que diz respeito tanto a populagao como ao territ6- rio, 0 que motivou a realizagdo de censos de populagao, assim como a preocupagao em melhor conhecer e definir 0 territério chi- leno. Os primeiros censos desse estado, que contaram com a cola- boragao da Igreja Catélica, permitiram “definir com maior preci- sdo as dimens6es e os limites da realidade que se governava”.” Antes da criag4o da Oficina de Estatistica e da promulgagao da Lei de Censos em 1843, foi possivel compilar a informagao dos censos em 1813 e 1835, periodos nos quais a populagao apresentou pro- blemas, ja que os padrées identificados foram associados ao recru- tamento militar e a alta dos impostos, mas foram de muita utilida- de para 0 estado, especialmente para 0 estabelecimento de crité- rios de representacao politica.” Por outro lado, 0 interesse em definir o territério integrado a soberania nacional levou as auto- ridades ptblicas chilenas a resgatar a informagao proporcionada por missdes cientificas que tinham visitado 0 Chile no final do século XVIII e a promover novas expedigoes cientificas que per- mitissem conhecer com maior precisao 0 territério chileno.” Gazeta de Santiago de Chile, de 15 de novembro de 1817. * Andrés Estefane, “Un alto en el c cidn y la construccién de lealtades jun, 2004, p. 35. no para saber cudntos somos. nales. Chile, siglo XIX". I ? Los censos de pobla- Historia, n. 37, v. 1, jan * Ibidem, pp. 37-59. ” Estefal “La proyeccién nacional de una empresa imperial: la expedicion Malaspina (1789-1794) em Chile republicano”. In: Historia, n. 38, v. II, jul 1005, pp. 287- 326. Com relagdo ao tema, ver também Rafael Sagredo. Fuentes € historiografia de ta Expedicién Malaspina en Chile. Santiago: Universidade Andrés Bello, 2002; e Rafael Sagredo ¢ José Ignacio Gonzalez. A Expedicién Malaspina en la frontera austral del imperio espanol. Santiago: Centro de Investigaciones Barros Arana/Editorial Universitaria, 2004, 186 - margens | volume 1 - Regiao do Prata ¢ Chile Junto com as exploragées, foram desenvolvidos esforgos para estabelecer fronteiras com as republicas vizinhas dando com isso origem a disputas limitrofes que certamente colaboraram para criar uma identidade nacional em oposigao 4 dos habitantes de outros paises, e j4 nao apenas em contraste com a Espanha.* Como ja foi indicado, a grande diferenga com relagao ao periodo da Patria Velha é que a principal iniciativa no que diz respeito a elaboragao da estrutura nacional — pelo menos alé metade do século, quando a intelectualidade chilena também se somou ao projeto — ficou subordinada a agao do estado chileno, que tentou controlar e regular a construgaéo do imaginario nacional. O resultado da afirmagao anterior é que uma parte consideravel dos esforgos posteriores a 1818 foi dirigida a alcan- car primeiro uma estabilidade politico-institucional do estado sobre a qual fosse vidvel a construgao da nagao. Nesse sentido, os primeiros anos do Chile independente nao foram faceis. Apés a tomada de poder em 1818, Bernardo O’Higgins, militar de tra- jet6ria que tinha secundado José de San Martin nas vit6rias decisivas sobre as tropas espanholas, exerceu um poder com caracteristicas ditatoriais que criou dificuldades internas. Apés seu exilio no Peru, a partir de 1823, iniciou-se um perio- do de sete anos de certa instabilidade politica, considerado pela historiografia tradicional como um periodo andrquico, mas que pode ser entendido como um processo de aprendizado politico; similar, em varios aspectos, ao desenvolvido nos Estados Unidos, entre 1781 e 1789.” De acordo com Julio Heise, este se transformou , pp. 305-311, ”, op. cl ** Andrés E: ® \ grande diferenca centrou-se no fato de que entre a independencia de 1818 ¢ o estabelecimen- to do regime conservador em 1850, o Chile documentou por escrito quase todos os seus projetos € contou com quatro constituigdes politicas além de um fa ido projeto c litucional fede ne, “La proyeccié Revolugoes de independéncias ¢ nacionalismos nas Américas + 1 87 em um periodo em que “sem estridéncias, sem ditaduras nem revolugées cruéis, misturaram-se e aplicaram-se novos principios até encontrar a formula adequada de organizagao”.° Apds obter-se certo grau de estabilidade institucional depois do conflito civil ter- minado em 1830, 0 desafio importante para a nova classe dirigen- te chilena, que foi o de definir a cidadania politica, ficou circuns- crito a um pequeno grupo da sociedade." Isso contrastou com 0 que aconteceu no processo politico de 1822-1850, o qual, de acor- do com Gabriel Salazar io foi exclusivamente aristocratico, mas também “inclusivo, dialético e democratico”, com a populagao comum exercendo parte de seus direitos de cidadaos pela partici- pagao nas milicias e por multiplas formas de ingeréncia politica como as mobilizagoes.” Entretanto, foi aquele pequeno setor da classe dirigente chilena que em geral gozou de plenos direitos de cidadaos que primeiro tentou consolidar o estado e, a partir dele, da idéia de pertencer a nagao. Assim o fez apelando para o poder das leis e decretos que estabeleceram como, quando e onde a nagao deveria ser comemorada, celebrada e “ritualizada”. Quando a independéncia ja era iminente, em fevereiro de 1818, foi estabelecido mediante decreto como deveria ser celebra- daa viloria de Chacabuco de 12 de fevereiro do ano anterior sobre as tropas realistas, transformando-se aquele dia na sua primeira .. Atos de formacién y aprendizaje politicos 1810-1833. Santiago: Editorial , 1978, p. 101. Seria preciso relativizar a ausencia de estridéncias porque os década de 1820, ¢, particularmente, os do conflito de 1830, demonstram o certamente o periodo entre a debacle de O'Higgins ¢ 0 triunfo conservador de rquico, permitindo avancos significativos na construgio da repiiblica e da Collier. Chile: la construccién de una repiiblica. Politica ¢ ic niversidad Cat6lica, 2005, p. 68. eas 1830-1865. Santiago: diciones Gabriel Salaza Construccibn., op. cit, p. 458. 188 - margens | volume 1 - Regiao do Prata e Chile celebragao de cardter nacional. Em 7 de fevereiro de 1818, os fes- tejos que seriam realizados dentro de cinco dias foram pela p: meira vez regulamentados, conclamando a populagéo para que “este dia em que comegais a figurar nas Nagdes, em que abando- nais 0 cardter obscuro e humilhante de colonos, deva ser marca- do com demonstragées que facgam contraste lisonjeiro com aque- las que se exigiam de vés quando se sentava na cadeira de vosso oprébrio algum novo tirano”.” Ordenou-se, entao, proceder a uma rigorosa seqiiéncia de atividades que incluissem um te deum, a distribuigéo de medalhas ao povo, alunos das escolas publicas cantando ao pé da bandeira “os hinos patriéticos e alusivos ao objeto do dia”, além da iluminagao de Santiago por seis noites “com todo tipo de fogos de artificio” e a decoragao das ruas “com o melhor gosto”. Anos mais tarde, em 1821, 0 “Regulamento pai solenizar 0 aniversario da Declaragéo da Independéncia” estipu- lou trés dias feriados de comemoragées durante os quais os cida- daos deveriam usar “simbolos alusivos a liberdade e 4 indepen- déncia do pais, colocando os homens precisamente no chapéu a faixa tricolor nacional”.* Apelando para 0 principio da soberania territorial nacional, as obrigagGes se estenderam para as “capilais io de atin- de provincia, vilas e povoados do Estado”, com a inten gir a totalidade do territério chileno."* No inicio, as datas comemorativas do “nacional” foram multiplas, evidenciando em décadas posteriores um processo de * Boletin de Leyes y Decretos del Gobierno, Santiago: Imprenta Nacional, 1898, t. 1817-1818, p. 248, * Ihidem, pp. 245-248, Imprenta Nacional, 1901, t. 1821-1822, * Boletin de Leyes y Decretos del Gobierno, Santiago: pp. 12-15. “Ibidem. Revolugdes de independéncias ¢ nacionalismos nas Américas + 1 8 atomizagao delas. Em 12 de fevereiro de 1818, foi “declarada” a independéncia, fazendo coincidir a data com a Batalha de Cha- cabuco travada um ano antes.” Da mesma forma, em 18 de setembro de 1818, foi “proclamada” a independéncia como forma de lembrar 0 aniversario do estabelecimento da Junta de 1810. Além do dia 12 de fevereiro e do dia 18 de setembro, datas com miultiplos valores simbélicos, o dia 5 de abril passou a ser a terceira data de comemoragao nacional, produto da decisiva Batalha de Maipu, que selou o processo de independéncia chile- na em 1818." Nao sé foram normatizadas as comemoragoes, como tam- bém a utilizagao de conceitos, como fez em 1824 0 presidente Ramén Freire, que, consciente da “importancia de nacionalizar, quanto mais se possa, os sentimentos dos chilenos e percebendo que a palavra patria usada até aqui em todos os atos civis e mili- tares é demasiado vaga e abstrata, nao individualiza a nagéo nem produz um efeito téo popular como o nome do pais ao qual pertencemos”, determinou que em todos 0s atos civis e militares fosse usada a palavra Chile em vez da palavra Patria.” Tal decre- to foi lembrado por Vicente Pérez Rosales décadas mais tarde, quando indicou em seus Recuerdos del pasado [Lembrangas do “ Para o es Valparais Gobierno. yelecimento de datas patridticas, ver Boletin de Leyes y Decretos del Gobierno. Imprenta El Mercurio, 1845, t 1, p. 223; e Boletin de Leyes y Decretos del paraiso: Imprenta El Mercurio, 1846, t. II, livro VII, p. Em 1823, 0 estado chileno reconheceu explicitamente as trés datas mencionadas como solenidades cfvicas de carditer nacional, mas um ano mais tarde comecou 0 processo de redugao da quantidade de festas nacionais e em agosto do mesmo ano foi estipulado por decreto que nao haveria a partir de entio “mais dos que 0 12 de fevereiro pelo ani- versirio da declaracio da nossa independéncia o dia 18 de setembro pela regeneracaio politica do Chile”, eliminando-se o dia 5 de abril, Boletin de Leyes y Decretos del Gobierno. Valparaiso: Imprenta El Mercurio, 1845, tI, p. 225. 4 Roletin de Leyes y Decretos del Gobierno. Valparaiso: Imprenta El Meret LL, 1845, p. 211, 190- margens | volume 1 ~ Regiao do Prata e Chile passado] que se tinha ordenado “que desde entao se dissesse ‘Viva 0 Chile!’, ao invés de ‘Viva a Patria!” A afirmagéo anterior demonstra 0 profundo interesse das autoridades ptblicas chile- nas para inculcar sentimentos de apego a nagao, usando o poder das leis como complemento do simbdlico e do discursivo. Por meio de ritos oficiais, foi dado o papel de protagonista a uma elite satisfeita em participar de bailes, desfiles e cerimd- nias. A estruturagao das celebragées protocolares oficiais, sem embargo, deu apenas um papel secundario, de mero especta- dor, aos setores mais pobres da sociedade. Os rituais nacionais reproduziram, enfim, as hierarquias sociais proprias da nova ordem republicana. Em Coquimbo, em 1824, por exemplo, os membros da municipalidade pagaram a metade dos custos da comemoragao do dia 18 de setembro e se preocuparam em tici- “exorlar os artesdos e demais classes sociais para que pa Ppassem dos festejos”.' Desse modo, as comemoragoes organi- zadas em todo o pais transformaram-se em um mecanismo de / teatralidade publica quel buscava, ‘além do fortalecimento de ) um sentimento unitério, manter também as distingdes sociais pre pri ‘ias da reptiblica emergente,}dando é as elites a responsabi- lidade de inculcar 0 apego nacional ao resto da populacao. 0 interessante é que no que diz respeito aos festejos pttblicos ligados ao fortalecimento do imagindrio nacional, as distingdes —— uldades em cer- nao sem di sociais permitiram a legilimag t0s casos, de espacos diferenciados nos quais diferentes grupos sociais puderam confrontar e dar significado a carga ca do projeto nacional. Andrés Bello, 1980, p. 75. Vicente Pérez Rosales. Recuerdos del pasado (1814-1860). Santi *! £1 Correo de Arauco, de 9 de outubro de 1824. Revolugdes de independencias ¢ nacionalismos nas Américas - 1 Q 1 O hino nacional, cujo texto foi redigido pelo argentino Bernardo de Vera y Pintado, foi interpretado pela primeira vez nas festas de setembro de 1819 e o préprio diretor supremo, Bernardo O’Higgins, ordenou que “fossem enviados ao teatro quatro exemplares para que no inicio de toda representagao 0 hino nacional fosse cantado primeiro”.* A ordem nao é estra- nha, porque, tal como escreveu Miguel Luis Amunategui, em 1888, “os préceres da revolugdéo hispano-americana concebe- ram 0 teatro néo como um simples passatempo, mas como uma instituigéo social cujo principal objetivo era propagar maximas patridticas e formar costumes civicos”.” O préprio Camilo Henriquez, fundador do primeiro jornal chileno, con- siderava o teatro como uma escola publica e uma ferramenta politica util, dando preferéncia A tragédia como um género proprio dos povos livres e 0 “mais util nas atuais circunstan- cias”.* Ainda que seja certo afirmar que os pre¢os foram médi- cos® no inicio da Republica, o ambiente do teatro esteve res- trito quase completamente a elite chilena; mas houve outras formas e espagos de difusdo dos sentimentos patridticos que ® Miguel Luis Amundtegui. Las primeras representaciones dramdticas en Chile, Santiago: Imprenta Nacional, 1888, p. 56. Ver a ordem a respeito na Gazeta Ministerial de Chile, de 25 de setembro de 1819. 5 Ibidem, p. 101. Tal pratica foi implementada ¢ continuou vigente nos anos sucessivos; tal foi a carga simbélica e a imp Jadas ao hino nacional que em 1828 um empresirio teatral fez acu: puiblicas contra o cantor de épera italiano Santiago Migr negado a cantar o hino nacional chileno no teatro. Migoni fez. uma dec qual ressalt ni por ter-se cho publica na que 0 empresirio escondia a verdade © que “provoca riso ver 0 senhor cmpresirio empenhado em supor que eu ndo queria entoar o Hino Nacional. Meus labios se honrariam com ele”, Santiago Migoni. “Al Tribunal de la Opinién 244, fj 9 ago, 23 ago. 1828, p. 35. iblica”, Fondos Varios, v. %* Aurora de Chile, Periddico Ministerial y Politico, de 10 de setembro de 1812. 55 Miguel Luis Amunitegui. Las primeras, op. cit, p. 71. 1Q2- margens | volume 1 - Regido do Prata ¢ Chile se mostraram sumamente efetivos para atrair 0 denominado baixo povo.” As chinganas* ou ramadas*, espagos de sociabilidade popular onde se combinavam 0 Alcool, 0 baile, a mtisica e 0 jogo, nao foram concebidas no inicio pela classe dirigente como espagos apropriados para a difusdo de simbolos e “tradi- gées” nacionais, apesar de assim o terem sido na pratica.” O intelectual venezuelano radicado no Chile, Andrés Bello, escrevendo para El Araucano em 1832, estabeleceu um forte contraste entre os nobres prazeres prodigalizados pelo teatro e a imoralidade inerente as chinganas do baixo povo, considera- das por Bello como “bordéis autorizados” que “lutam contra 0 estado da nossa civilizagéo”.* Em tais espagos, de acordo com Bello, ocorriam “reunides noturnas onde as sombras e a confu- *6 0 jornal El Ferrocarril queixou-se em 1860 de que os organistas das ruas de Santiago toca- vam 0 hino muito freqiientemente, rogando que se pusesse fim a tal prética de forma que 0 gosto pelo hino nao se transformasse em desprezo. El Ferrocarril, de 16 de maio de 1860. Citado em Simon Collier. Chile... op. cit., p. 81. ** Tabernas (N. do T.).. ** Quioscos ou barracas com toldo nas ruas (N. do T.). 7 Em 1812 foram estabelecidas leis contra os jogos de azar e em 1818 Bernardo O'Higgins proibiu as chinganas por ocasido das festividades religiosas da Pascoa e dos santos patro- nos porque elas levavam a embriaguez.¢ ao jogo. Da mesma maneira, foram estabelecidas restrigdes As apostas em 1818, a festa carnavalesca da challa em 1821 ¢ a organizagio de touradas em 1825, invocando sempre que tais préticas transgrediam a moral e impediam © projeto geral de progresso do pats. Apenas a chegada do breve regime liberal, apés a queda de Bernardo O'Higgins em 1823, garantiu a legitimidade das chinganas no departa- mento de Santiago (ainda que altamente reguladas) dando um momento de respiro para a maioria do baixo povo santiaguino que, com 0 advento do regime conservador em 1856, viu como se proibia legalmente seu fu cesso na Sobre as chinganas ver Fernando Purcell. Diversiones y juegos populares. Formas de cionamento em nivel nacional, mesmo sem sw prat sociabilidad y critica social. Colchagua, 1850-1880. Santiago: LOM Ediciones/Centro de Investigaciones Diego Barros Arana, 2001. iro de 1852, % EI Araucano, de 7 de ji Revolugdes de independencias e nacionalismos nas Américas - 1 Q 3 sdo de todo tipo de pessoas, estimulando a libertinagem, vao pouco a pouco afrouxando os vinculos da moral, até que o habito de presencia-las abre a porta para a insensibilidade e, sucessivamente, para a corrup¢ao”.” Resulta interessante 0 con- traste feito por Bello entre o teatro e a chingana, porque reflete os sentimentos da maioria da classe dirigente chilena, preocu- pada, entao, néo sé em construir a nagéo, mas em moralizar 0 baixo povo que a partir de varias de suas condutas se afastava dos cdnones de comportamento aceitos pela classe dirigente. A historiadora Maria Angélica Illanes postula que a ordem social que a classe dirigente tentou impor no Chile do século XIX foi baseada, portanto, na censura atras da qual vivia a liberdade, ainda que “censurada”. Isso teria permitido a coexisténcia de uma implosao e uma explosao de liberdade, com 0 qual se configurou um cenario de tensdes permanentes entre uma tentativa de confi- gurar uma ordem social e uma série de formas de resisténcia por parte da populagao, diante da imposigao de tal ordem.” Dentro dessa linha, situa-se 0 diagnéstico do historiador Julio Pinto, que ‘expressou que 0 estado durante o regime conservador esteve mais} preocupado em “reprimir e disciplinar 0 mundo popular do que, em fortalecer seus lagos de adesio como participes do mesmo”! Resgatando a afirmagdo anterior, é necessdrio ressaltar que um dos perigos em que se pode incorrer quando se estuda a arti- ~, culagdéo dos imagindrios nacionais é 0 de conceder-Ihes uma *"Ibidem. ‘a Illanes. Chile des-centrado. Formacién socio-cultural republicana y transi- cién capitalista (1810-1910). Santiago: LOM Ediciones, 2003, pp. 91-92. “ Julio Pinto. “éPatria o Clase? La guerra del Pacifico y la reconfiguracién de las identidades. populares en el Chile contempordneo”, In: Contribuciones Cientificas y Tecnolégicas. Area is ¢ Humanidades, n. 116, nov. 1997, p. 55. 1Q4.- margens | volume 1 - Regio do Prata e Chile transcendéncia maior do que a que efetivamente tiveram e consi- derd-los como 0 objetivo supremo das elites latino-americanas Apesar da sua relevancia, houve uma série durante o século de projetos paralelos relativos aos mais diversos ambitos’ que resultaram ser sumamente importantes, como, por exemplo, 0 projeto de ordem social imposto pelos presidentes co conservador eS. Prieto, Bulnes e Montt, entre 1850 e 1860, que ocupou um lugar primordial na agenda politica e contou com 0 apoio de varios seto- res da classe dirigente chilena. : — O paradoxo est4 em que as mesmas formas de sociabilidade popular reprimidas no inicio da vida republicana chilena serviram paralelamente para canalizar os sentimentos de identidade nacio- | nal comum por parte do baixo povo, na medida em que tais formas | de sociabilidade adquiriram uma forte carga simbdlica e tiveram \ _um destaque inusitado por ocasiao das festividades. A observagao de obras pictéricas do século XIX, por exemplo, coloca em evidén- cia a presenca de bandeiras e emblemas nacionais em tais espagos com grande afluéncia de populares. A esse respeito podemos men- cionar alguns exemplos como as litografias Una Carrera en las Lomas de Santiago [Uma Corrida nas Colinas de Santiago] e Una Chingana [Uma Taberna], que constam do Atlas de la historia fisi- cay politica de Chile [Alas da histéria fisica e politica do Chile], de Claudio Gay, publicado em 1854, onde aparecem em primeiro plano as duas bandeiras chilenas por ocasiao da localizagao das chinganas e do desenvolvimento das corridas de cavalos.” O mesmo pode ser observado na gravura La Noche Buena en Cariada [A Noite de Natal no Caminho}, publicada em 1872 por Recaredo S. Alas de la historia fisica y politica de Chile, t. 1, laminas 9 e 20. Paris: Thunot, 1854. audio Ga Imprenta de E. Revolugdes de independéncias nacionalismos nas Américas « 1 Q 5 Tornero, na qual se representa uma fileira de chinganas ou rama- das populares cada qual com sua respectiva bandeira chilena.” O problema que o estado chileno teve que enfrentar espe- cialmente a partir de 1830 foi o de determinar 0 ponto de equi- librio entre a necessidade de fortalecer a iden RE ween ec entre as massas populares e a de manter a m_ Si editor do Bandera Tricolor [A Bandeira Tricolor], da cidade de La Serena, deixou clara a tensdo no momento de colocar em pratica esses dois projetos ao comentar que, por ocasido das comemoragées de 18 de setembro de 1851, tinha sido dificil manter a ordem do “povo”, produto de oito dias de festas que 0 norte do pais costumava ter. Para o editor, os festejos eram “um retrato perfeito das orgias da antiguidade”, que contrasta- vam com as celebragées da capital que se concentravam em um sé “dia de gléria”. Devido ao anterior, 0 jornal fez uma solicitagéo ao governo chileno para “empenhar-se em estimu- lar as nobres paixGes, e néo em fomentar 0 vicio”.* O costume de celebrar as festas civicas em longos periodos de algazarra leve apoio entre as classes populares e prolongou-se no tempo. O alemao Paul Treutler indicou em suas memérias que as celebragées de setembro de 1852, em Copiap6, tinham sido comemoradas “com festas populares que duravam uma sema- na”, nas quais r ava grande animagao e onde as vendas e edificios ptiblicos estavam “repletos de mineiros, que percor- riam as ruas em grupos cantando e a noite escutava-se mtsi- ca e cantos em quase todas as casas e bebia-se, bailava-se e Recaredo S. Tornero. Chile lustrado, Valparaiso: Librerias y Agencias del Mercurio, 1872, s/n, depois da pagina 448. “La Bandera Tricolor, de 17 de setembro de 1831. 1Q4.- margens | volume 1 - Regido do Prata e Chile transcendéncia maior do que a que efetivamente tiveram e consi- derdé-los como o ) objetivo supremo das elites latino- ameri ricanas durante o século XIX. Apesar da sua relevancia, houve uma série de projetos paralelos relativos aos mais diversos Ambitos que resultaram ser sumamente importantes, como, por “exemplo, 0 projeto de ordem social imposto pelos presidentes conservadores Prieto, Bulnes e Montt, entre 1830 e 1860, que ocupou um lugar primordial na agenda politica e contou com 0 apoio de varios seto- res da classe dirigente chilena. eta om 0 paradoxo esté em que as mesmas formas de sociabilidade popular reprimidas no inicio da vida republicana chilena serviram paralelamente para canalizar os sentimentos de identidade nacio- | nal comum por parte do baixo povo, na medida em que tais formas de sociabilidade adquiriram uma forte carga simbélica e tiveram _um destaque inusitado por ocasiao das festividades. A observagéo___| de obras pictéricas do século XIX, por exemplo, coloca em evidén- cia a presenga de bandeiras e emblemas nacionais em tais espagos com grande afluéncia de populares. A esse respeito podemos men- cionar alguns exemplos como as litografias Una Carrera en las Lomas de Santiago (Uma Corrida nas Colinas de Santiago] e Una Chingana (Uma Taberna], que constam do Atlas de la historia fisi- cay politica de Chile [Aas da histéria fisica e politica do Chile], de Cldudio Gay, publicado em 1854, onde aparecem em primeiro plano as duas bandeiras chilenas por ocasiao da localizagéo das chinganas e do desenvolvimento das corridas de cavalos.” O mesmo pode ser observado na gravura La Noche Buena en Canada [A Noite de Natal no Caminho], publicada em 1872 por Recaredo S. © Claudio Gay. Atlas de ta historia fisica y politica de Chile, \. 1, laminas 9 ¢ 20. Paris: Imprenta de E. Thunot, 1854. Revolugées de independéncias e nacionalismos nas Américas - 1 Q 5 Tornero, na qual se representa uma fileira de chinganas ou rama- das populares cada qual com sua respectiva bandeira chilena.” O problema que 0 estado chileno teve que enfrentar espe- cialmente a partir de 1830 foi o de determinar o ponto de equi- librio entre a necessidade de fortalecer a identidade r entre as massas populares e a de man editor do Bandera Tricolor [A Bandeira Tricolor], da cidade de La Serena, deixou clara a tenséo no momento de colocar em pralica esses dois projetos ao comentar que, por ocasiao das comemoragées de 18 de setembro de 1851, tinha sido dificil manter a ordem do “povo”, produto de oito dias de festas que 0 norte do pais costumava ter. Para 0 editor, os festejos eram “am retrato perfeito das orgias da antiguidade”, que contrasta- vam com as celebragées da capital que se concentravam em um s6 “dia de gléria”. Devido ao anterior, o jornal fez uma solicitagéo ao governo chileno para “empenhar-se em estimu- lar as nobres paixGes, e nado em fomentar o vicio”.* O costume de celebrar as festas civicas em longos periodos de algazarra teve apoio entre as classes populares e prolongou-se no tempo. O alemao Paul Treutler indicou em suas memorias que as celebragdes de setembro de 1852, em Copiapé, tinham sido comemoradas “com festas populares que duravam uma sema- na”, nas quais reinava grande animagao e onde as vendas e edificios puiblicos estavam “repletos de mineiros, que percor- riam as ruas em grupos cantando e a noite escutava-se muisi- ca e cantos em quase todas as casas e bebia-se, bailava-se e ® Recaredo S. Tornero. Chile llustrado, Valparaiso: Librerias y Agencias del Mercurio, 1872, s/n, depois da pagina 448, °* La Bandera Tricolor, de 17 de setembro de 1831. 1 96 + margens | volume 1 - Regido do Prata e Chile jogava-se até de madrugada”,” com os mineiros utilizando a semana para “todo tipo de festejos, em razao dos quais se can- tava e bailava muito, com abundantes sacrificios a Baco”."* T E aqui onde surge a grande pergunta com relagdo a nagao chilena, porque, sob os postulados amplamente aceitos de que as nacées sao construgées culturais e sao parte do tra- i balho coletivo de muitos (incluindo os sujeitos populares), é q necessdrio compreender as formas pelas quais os membros do baixo povo contribuiram para.a configuracdo do imagina- rio nacional, tomando como ponto de partida-o-fato_de a cida- dania politica Ihes_ter-sido-completamente_vedada. Nao sao muitos os trabalhos que nos informam sobre os meios a par- tir dos quais os populares do século XIX puderam imaginar- se fazendo parte de uma nagao, o que em parte é explicado porque nés, historiadores e académicos, privilegiamos as evi- déncias textuais sobre 0 processo de construgdo das nagdes na América Latina, 0 que implica a necessidade de trabalhar com fontes ritas para poder compreender os processos que levaram a formagdo das nagées no continente americano.” Felizmente, dentro do mundo do textual, ainda que de forma marginal, existem vestigios e indicios que nos permitem nos aproximarmos do mundo popular, também participe da cons- trugdo do imaginario. ‘ditorial del Pacifico, © Paul Treutler. Andanzas de un alemdn en Chile, 1851-1863. Santiago: 1958, p. 148. “° Ibidem, pp. 149-150. “” John Charles Chasteen. “Introduction: Beyond Imagined Communities”. In: Sara Castro- Klarén e John Charles Chasteen (eds.). Beyond Imagined Communities. Reading and Writing in America, Washington: Woodrow Wilson Center the Nation in Nineteenth-Century Press/John Hopkins University Press, 2003, p. X. Revolugdes de independéncias ¢ nacionalismos nas Américas - 1 Q 7 O baixo povo chileno, habituado desde tempos coloniais a varias festividades associadas ao ritmo do calendario religioso e ao trabalho do campo, transformou as festas patrias em uma boa desculpa para as algazarras puiblicas, sempre que tais ocasides lhes permitiram manifestar sua adesdo a um projeto aglutinador do qual foi se apropriando. Isso aconteceu apesar da precoce e contundente legislagao repressiva em torno das diversées publi- cas, que ameagou limitar as possibilidades de 0 baixo povo ex- pressar seus sentimentos de adesdo a nagao, fazendo uso de suas proprias formas de sociabilidade.* Entretanto, com 0 pas- sar do tempo, a classe dirigente nao teve outro remédio sendo permitir aquelas “desordens”, pelo menos por ocasiao das festas civicas, mantendo uma critica feroz apenas quando tais desor- dens aconteciam durante o resto do ano. Tal como destacou um editorial de El Araucano, em 1840, por ocasiao das festas de 1 de setembro, “as demonstragées de jtibilo que acontecem, sejat. educadas ou grosseiras, estdveis ou passageiras, se purificam se lembramos a fonte de onde nascem e os sentimentos que as ins- piram”.” O tom do editorial, que legitimava as desordens publi- cas quando derivavam do fervor nacional, condiz com o que fora expresso pelo viajante alemao Paul Treutler em Copiapé nas fes- tas de setembro de 1852: “tinha sido ordenado a policia intervir nesse dia s6 em caso de crime. A embriaguez estava permitida e se quisessem prender todos os bébados, nao haveria lugar para manté-los presos”.” No mesmo dia 18 a noite, Treutler destaca nando Purcell. “Una aproximacién a las diversiones populares en el Norte Chico. ganas en Copiaps, 1850-1860". Revista Chilena de Historia y Geografia, n. 164, 1998, pp. 127-156. " El Araucano, de 2 de outubro de 1840. ® Paul Treutler, Andanzas... op. cit, p. 49. 198. margens | volume 1 - Regiao do Prata ¢ Chile que “durante toda a noite, escutou-se mtisica e danga em cada casa e um imenso gentio movimentou-se pela Alameda, onde ti- nham sido erguidas inumerdveis ramadas com pistas de danga, chinganas, cantinas, botecos, frutarias e locais para a venda de flores”, formando uma paisagem de algazarra com uma forte carga simbdélica, podendo observar-se bandeiras em todo o povoado, “até nas chogas mais humildes”.” As festas civicas tornaram-se atraentes para 0 baixo povo chileno, 0 que permitiu uma participagao maciga em tais oca- sides, tal como descreveu 0 polonés Ignacio Domeyko ao presen- ciar as festas civicas de Coquimbo em 1838: “a celebracao desta festa atrai para a cidade toda a populacao das aldeias; cessam os trabalhos de mineragao, fecham-se as fundigdes, apagam-se os fogos nos fornos onde se funde o cobre e todo 0 povo trabalha- dor, mo¢os, mineiros, etc., acodem a vila, levando, para gastar, tudo 0 que haviam ganhado em varios meses”.” Entretanto, ap6s a algazarra publica, Domeyko observou em seu relato que a “classe baixa” ia para “as chamadas chinganas”, enquanto a “classe superior ia para as tertilias”,” deixando claro que dife- se uniam em torno de um projeto comum, rentes grupos sociai mas, muilas vezes, a partir de espacos sociais diferentes. Diante do peso das praticas populares em torno das festas de setembro, a classe dirigente foi se tornando mais permissiva por volta da metade do século, quando as chinganas ou ramadas de setembro comegaram a transformar-se em uma verdadeira 7 Ibidem, go: Edigbes da ® Ignacio Domeyko. Mis viajes. Memorias de un exiliado, . 1, Sant Universidade do Chile, 1978, p. 558. ® Ibidem, p. 562. Revolugées de independéncias e nacionalismos nas Américas 1 QQ “tradigaéo inventada” para 0 baixo povo, 0 que perdurou até os dias de hoje, e foram tornadas lugares privilegiados das classes média e baixa para festejar as datas nacionais”.* Carentes do direito a cidadania politica e impossibilitados de assumir um papel de destaque nas celebragées oficiais orga- nizadas pela classe dirigente, 0 baixo povo chileno teve que expressar seus sentimentos de apego ao nacional através de for- mas mais espontaneas, dando outro significado para algumas de suas préprias formas de sociabilidade como as chinganas, que chegaram a complementar-se com as atividades oficiais desen- volvidas em todas as localidades do pais, a pedido das elites. Isto nao implicou necessariamente a impossibilidade de avangar na constru¢do de um imagindrio nacional nico, mas a coexistén- cia de um projeto de ordem social (repressor para 0 baixo povo) junto com um nacional de cardater aglutinador, gerando certas tensdes que ficaram claras quando em 1837 foi decidido concen- trar-se a totalidade das comemoracées civicas em um tnico dia. De acordo com Maria Angélica Illanes, a finalidade da me- dida foi civilizadora e procurava abandonar tradigées de origem colonial onde se misturavam a festa corporal e 0 rito religioso.” A preocupagao obsessiva pela ordem social por parte do regime conservador no poder em 1837 foi certamente um fator decisivo, na medida em que sujeitos do baixo povo liberavam suas paixdes por ocasiéo dessas festividades. Entretanto, 0 texto do decreto também faz alusao a que na época ja nao eram necessarias tantas comemoragées para manter vivas as chamas do patriotismo, ja ™ Eric Hobsbawm e Terence Ranger (eds.). La invencién de la tradicién, Barcelona: Critica, 2002. ™ Maria Angélica Manes. Chile.... op. cit., p. 100. 200- margens | volume 1 ~ Regido do Prata e Chile que “os fins patridticos a que tende a celebragao das festas civicas sao obtidos com a reuniao de todas elas em um so dia, que remo- ve os inconvenientes produzidos pela multiplicidade”.* Nao deixa de ser importante mencionar que tal decreto surgiu em tempos de guerra, precisamente no meio do primeiro conflito bélico no qual o Chile como nagao soberana viu-se envolvido ao confrontar-se com a Confederagao Peruano-Boliviana entre 1836 e 1859. Havia, portanto, um interesse em manter a ordem e obter a participagao de soldados para lutar na guerra, ja que o tema do recrutamento foi algo delicado que levou a uma série de movi- mentos de resisténcia por parte dos camponeses na zona cen- tral, que se queixavam, entre outras coisas, dos baixos soldos.” Tal como reconheceu Augusto Orrego Luco anos mais tarde, “todos conhecem as dificuldades com que tropecou o recruta- mento dos seis mil homens que formaram a expedigao ao Peru do ano 39. Era necessdrio tomar medidas violentas para separar 0 inquilino [camponés arrendatario] de seu lar e de sua planta- ¢4o”.” Isso nao significa que as massas careciam completamen- te de vinculos com a nagao, mas que, simplesmente, mostravam- par da guerra porque os mesmos agen- se relutantes em parti les que as recrulavam representavam, perante seus olhos, um estado repressor que tratava de “corrigi-las” e disciplind-las nos campos, nas ruas, nas fazendas e nas minas chilenas. y Decretos del Gobierno, t. Il, livro VII. Valparaiso: Imprenta El Mercurio, ® Boletin de L 1846, p. 467. Academica 7 Sergio Vergara Quiroz. Historia Social del E ‘hile, Vice-reit« Estudantil, v, |. Santiago: Universidade do Chile, 1995, pp. 103-105. ™ Augusto Orrego Luco. “La cuestién social” (1897). In: Sergio Grez Toso (recopilador), La “cuestién social”, In: Chile, Ideas y debates precursores (1804-1902), v. VII. Santiago: Fuentes para cl estudio de la Reptiblica/Dibam, 1995, p. 525. Revolugdes de independéncias e nacionalismos nas Américas - 20 1 Mais interessante do que o que aconteceu durante a guerra foi o ambiente posterior ao conflito e a magnanimidade das celebra- des em todo 0 territério chileno, que ressaltaram 0 compromisso patrio e as virtudes civicas. Francisco Navarro, de San Felipe, des- creveu a recepgao do Batalhao n. 1 de Aconcagua, em San Felipe, em 1839, como “a fungéo mais solene e animada de quantas pre- senciei em minha vida”.” As casas da cidade foram adornadas com bandeiras, numerosos arcos de eucalipto foram colocados nas ruas e mais de mil e quatrocentos membros das Guardas Civicas fica- ram em formagéo em torno das ruas para receber os “Restau- radores do Peru”. As Guardas Civicas serviram ao propésito claro de inculcar valores civicos e nacionais. De fato, contavam com ban- das de musica que interpretavam hinos patridticos nas festividades nacionais e em diversas ocasiées, pelo qual é possivel entender que se tenha difundido entre elas certo grau de identificagao nacional, sendo que muitos dos seus componentes pertenciam a grupos médios e baixos da populagdo. E interessante notar que o proprio Domingo Faustino Sarmiento referiu-se ao que considerou um sen- timento nacional consolidado no Chile, no fim da década de 1840, tomando como exemplo as caracteristicas das Guardas Civicas que reuniam em suas fileiras artesdos, pequenos comerciantes e outros membros da sociedade, que se reuniam constantemente para rea- lizar exercicios dominicais nos quais se interpretavam hinos patrié- ticos e inculcavam modelos de patriotismo civico.*' Pode-se afirmar, definitivamente, que apds as trés primeiras décadas de vida independente 0 Chile deu passos importantes em ME Araucano, de 13 de setembro de 1859. * Tbidem. “Simon Collier. Chil 202 - margens | volume 1 ~ Regido do Prata e Chile direcéo a formagao de um imaginario nacional atraente e crivel, e 0 pais alcangou um grau de estabilidade politico-institucional pou- co comum no cenario latino-americano que lhe permitiu projetar um imaginario para diversos setores da populagao, tendo o estado como seu principal promotor. S6é a partir da metade do século a intelectualidade chilena comegaria a desempenhar um papel com- plementar ao do estado nesse sentido, mas ainda com base no importante caminho percorrido e dirigido pelo proprio estado. Adrian Hastings, ao referir-se a casos como 0 chileno, no qual o estado constréi a nagdo, destaca que nado podemos falar propriamente de nagao até que a propria nagao consiga perce- ber sua supremacia sobre e perante o estado.” Se seguirmos essa légica, poderiamos concluir que o Chile teve que esperar mais algumas décadas, apés 1850, para ver a nagao consolidada, mas reconhecendo os progressos feitos até a metade do século. Tais avancgos demonstram o éxito da classe dirigente chilena e do estado no fortalecimento de uma idéia de nagao, que nao foi alcangada sem dificuldades, na medida em que os diferentes grupos sociais manifestaram diferentes formas de concebé-la e celebra-la, com uma elite obcecada pela ordem, pelas normas e pelo protocolo e um baixo povo que oscilava entre 0 entusiasmo desbordado e a fungao de espectador, situando-se, muitas vezes, nos limiles através dos quais as elites quiseram conduzir 0 pro- cesso, mas contribuindo definitivamente para a construgao de um imagindario nacional que, ainda que com um espirito unila- rio, ajudou a reforgar as profundas diferengas sociais préprias ao projeto republicano chileno. "2 Adrian Hastings. La construccién de las nacionalidades. Madri: Cambridge University Press, 2000 [1997], p. 41. Revolugdes de independéncias ¢ nacionalismos nas Américas » 2.03 | DOCUMENTO N° 1 ~ Boletim das leis e das ordens e decretos do Governo. t. I, Valparaiso: Imprensa El Mercurio, 1845, p. 211. Substituigdo da palavra Chile no lugar da palavra Patria Santiago, 30 de julho de 1824 f Conhecendo o governo a importancia de nacionalizar quanto mais possivel os sentimentos dos chilenos e advertindo que a palavra Patria até aqui usada em todos os atos civis e mili- tares é demasiado vaga e abstrata, nao individualiza a nagao, nem pode produzir um efeito tao popular como o nome do pais ao qual pertencemos; desejando, além disso, estar em conformi- dade nesta matéria com 0 uso de todas as nagGes, acordei e decreto 0 seguinte: 1. Em todos 0s atos civis nos quais até aqui foi usada a pala- vra Patria, usar-se- de agora em diante a palavra Chile. 2. Em todos os atos militares e para as sentinelas se contes- tard e se usard a palavra Chile. 3. O ministro de governo € 0 encarregado da execucao deste decreto, que se fara circular a quem corresponda e publicar-se-4 no Boletim. Francisco Antonio Pinto. 204,- margens | volume 1 - Regido do Prata ¢ Chile DocuMENTo N* 2 ~ Boletim das leis e das ordens e decretos do Governo. t. Il, Livro VII. Valparaiso: Imprensa El Mercurio, 1846, p. 467. Doze de fevereiro Santiago, 8 de fevereiro de 1857 Ja que as disposigdes do Senado Consulto de 5 de fevereiro de 1821 com vistas a solenizar o aniversdrio da declaracéo da nossa independéncia politica origina prejuizos considerdveis para 0 servigo ptiblico e para as ocupagoes dos particulares, e ja que os fins patridticos a que tende a celebragao das festas civicas foram obtidos com a reuniao de todas elas em um sé dia, que anula os inconvenientes produzidos por sua multiplicidade; com os poderes que me conferem 0 artigo 161 da Constituicao e a lei de 31 de janeiro do ano em curso, venho acordar e decretar. A celebragao do dia 12 de fevereiro fica reduzida, a partir de agora, a uma salva de vinte e um tiros de canhao nas pragas e povoados onde houver artilharia e 0 repicar dos sinos ao meio- dia. Nas casas publicas e de particulares, bandeiras serao has- teadas e assim permanecerao o dia inteiro e havera iluminagao durante a noite. Comunique-se, imprima-se e circule-se. Rubrica de S.E. Portales. Revolugdes de independéncias ¢ nacionalismos nas Américas + 2 0 5, DOCUMENTO N° 5, ~ A Bandeira Tricolor, La Serena, 17 de setembro de 1851. Dezoito de setembro A instituigao das festas civicas é uma das invengdes mais grandiosas que imaginaram os homens para perpetuar a lem- branga dos acontecimentos mais importantes. A reprodugado anual destas festas, livre das vicissitudes fisicas, exerce um dominio mais ativo; produz sensagdes mais sublimes que o aspecto inanimado de uma estatua, de uma coluna ou de qual- quer outro monumento perecedouro das ciéncias e das artes. Se a inscrigao de todas as épocas principais de uma nag¢ao no livro dourado daqueles arquivos volumosos chamados de fastos tor- nou-se uma necessidade de primeira grandeza para escrever a historia e transmitir documentos e materiais positivos para as geragées futuras, a celebragao das festas civicas é a moral em agao, a histéria ocular de um vasto teatro no qual todo cidadao paga o tributo do entusiasmo e da exaltagao patriética que deve a terra que 0 gerou e 4 memoria dos homens ilustres que con- quistaram sua liberdade. Os mandatarios do Chile destinados a alimentar este fogo sagrado, mais sagrado que 0 fogo das Vestais ou das Sacerdotisas do Sol, néo devem se esquecer de que na Reptiblica existe mais de uma provincia; que cada uma delas contribuiu para o engrandecimento do pais e que, por conse- guinte, devem ter uma parte igual na solenizagao de seus triun- fos. O dia 18 de setembro 6 um dia de gléria na capital; na pro- vincia do norte este aniversdrio dura oito dias, o que é um retra- 206. margens | volume 1 - Regiao do Pra to perfeito das orgias da antiguidade. A escassez de fundos obri- ga a autoridade local e 0 cabildo a impor direitos aos prazeres do povo (como disse a noticia), e quando o publico tem que pagar seus prazeres é uma prova de que esses prazeres sao desordena- dos; porque se fossem relativos ao brilhante assunto que os ins- tituiu, ninguém iria querer contribuir. O Governo deve empe- nhar-se em estimular as paixdes nobres e nado em fomentar 0 vicio. O dia 18 de setembro do ano 31 sera célebre nas épocas do Chile pela elevagéo do general Prieto ao mando supremo. Esperamos que sob a augusta influéncia de um general que combateu pela liberdade dos povos, o 18 de setembro do ano 32 possa ser um dia eminentemente nacional; como aniversario da independéncia chilena e como o dia de uma regeneragdo na qual as leis constitucionais comegaram a tornar-se realidade. s de independéncias e nacionalismos nas Américas - 2.0.7 DOCUMENTO N® 4 o~ El Progreso, Santiago, 22 de setembro de 1845. Ontem concluiram todas as festas ordenadas pela munici- palidade para celebrar nosso grande dia. Celebraremos a volta da ordem? A conclusao destes dias de bacanais em que ninguém trabalha? Lamentaremos que nao dure eternamente este tempo realmente sublime, porque nele se vé um grandioso espetaculo, 0 regozijo de um povo inteiro agitado pela doce lembranga de seus tempos gloriosos? Nés nos decidimos para que a sociedade volte a seguir sua compassada marcha, para que todos os animos deixem este mundo de ilusdes em que viveram estes dias e des- gam ao mundo real, ao mundo positivo, no qual se vive traba- lIhando e pensando hoje como sera o dia de amanha. Que con- cluam as festas, sao suficientes cinco dias para dar ao coragao esse Animo que necessita para passar 0 ano que comegou em 18 de setembro, sem esquecer 0 que se deve a patria e ter sempre presente o que por ela fizeram nossos pais. O dia 18 de setembro €a fonte onde a nossa sociedade recebe anualmente um banho de idealismo cujos efeitos sao sentidos até 0 ano préximo; 0s poe- tas incham seus corag6es de grandes idéias que pouco a pouco vao deixando sair durante 0 ano; todo 0 povo, na presenga dos fatos que seus pais executaram, sofre uma forte vibragao que sé 0 positivismo dos dias que seguem pode meio que extinguir. Uma coisa chamou a atengao de todos nas festas civicas deste ano, e é a ordem e a moralidade com que 0 povo se com- portou, ja que antes se entregava licenciosamente aos grosseiros prazeres que apetece, em geral, a sua falta de cultura; nao houve 208 - margens | volume 1 - Regido do Prata e Chile neste, como em outros anos, que lamentar as mil desgragas que a ebriedade e as quedas de cavalo ocasionavam; s6 temos noti- cia da morte de uma menina na qual ninguém teve a menor culpa e que foi causada pela maior casualidade... As providén- cias tomadas pela policia e 0 bom desempenho dos milicianos de Renca contribuiram principalmente para este aspecto de ordem com que se passaram estes dias e que tanto devemos celebrar, porque se o 18 de setembro custasse como antes algu- mas vidas, talvez houvesse muitos que pediriam a supresséo de umas festas tao necessdrias para dar ao coragaéo a expansdo que lhe faz apetecer s6 pensar durante todo 0 ano em coisas mate- riais e positivas. Entre as providéncias tomadas pela policia, a de indicar as ruas para que venha e vd ao campo as gentes a pé, a cavalo e as que vém em carretas surtiu bons resultados e reco- mendamos que se tome esta medida todos os anos. O novo campo de Marte foi muito aplaudido, sobretudo pelos milicianos que, quando se dispunham a ir ao campo anti- go, era para uma verdadeira campanha, mas estavam certos de voltarem rendidos de cansago e verem-se privados do regozijo geral pelo menos por trés dias. As evolugées da guarda nacional foram nele executadas com o maior desembarago pela extensio e planura do campo, e, além disso, também puderam ser perfei- tamente vistas por todos os que foram ao campo sem incomodar os movimentos. Muitas carruagens novas apareceram nestes dias e muitas delas fizeram-se notar por sua elegancia. Os coches que antes, para merecer este nome, era preciso que fossem uma caixa fechada por todos os lados, com uma boléia tao alta que bem poderia servir de escada para chegar ao céu, apresentaram-se este ano com formas muito variadas e todas muito mais ele- Revoluges de independencias ¢ nacionalismos nas Américas - 2.0 Q gantes que as antigas, e ao mesmo tempo nao téo adornadas nem tao custosas. Nao assistimos ao teatro de variedades e nao poderemos, por conseguinte, dar noticia das fungdes que nele aconteceram, mas diremos algo sobre 0 teatro da universidade que nao esteve nestes dias tao concorrido como acontece todos os anos, 0 que atribuimos ao novo estabelecimento. As pegas nele representa- das foram todas malissimas, a maioria delas repetidas; isto ja é uma regra: no dia 18 e nos dias préximos € certo ir ao teatro e ver pecas repetidas ou ruins. Nesses dias os empresdrios nao se dao ao trabalho de atrair o publico porque sabem que o publico Os procuraré sem necessidade de chama-los e escolhem as pio- res pecas de sua colegao e fazem com que os espectadores sejam. obrigados a vé-las. 210+ margens | volume 1 - Regido do Prata e Chile DOCUMENTO N* 5 o~ Gazeta Ministerial do Chile, Santiago, 21 de setembro de 1822. Noticia Dezoito de setembro Salve Patria! Este é 0 dia préprio do teu nascimento. Este é o dia em que nos vimos semelhantes a essas criangas ternas que, nascidas na auséncia de um pai cujo paradeiro se ignorava, sao surpreendidas de repente com a sua presenga; a mae apresenta quem lhes deu a vida, elas olham o pai encolhidas e timidas, fixam os olhos em suas feigdes, cada uma aguarda que a outra seja a primeira a aproximar-se dele até que, arrebatadas todas por um movimento simultadneo da natureza, jogam-se no colo paterno, congratulam-se em seu sorriso inocente por terem saido da orfandade e entre doces caricias disputam a preferéncia de mostrar suas descobertas e suas gragas. Nao se lembram, entao, de suas pueris rivalidades; aquele é 0 instante da reconciliagao; um sé sentimento se derrama no coragao dos filhos; um s6 amor se identifica no peito dos pais. Esta era a nobre unidade do 18 de setembro de 1810. A Patria, entéo, levantou sua augusta frente em meio a noite de trés séculos. Nés a vimos a luz penetrante de direitos inocultdveis. Fugiu para sempre a idéia de uma tutela cruel; um passo de animosidade tirou-nos da pupilagem; obser- vamo-nos como donos de nés mesmos; juramos defender 0 que éramos; e passamos de uma adolescéncia repleta de riscos e san- Revolugdes de independéncias e nacionalismos nas Américas + 21 1 gue para a maioridade da independéncia, na qual a lei e a liber- dade sao o patrimonio da coragem e da vitéria. Oh, Patria! Este é o dia em que, percebendo os éditos 0 vazio da soberania usurpada, nao houve mais opositores que 0 despo- tismo envergonhado dos antigos tiranos e 0 direito sacrossanto dos povos convocados a derrubar 0 colosso. Ele caiu aos pés dos livres. Retumbaram os Andes com 0 estrondo de sua queda; e as vozes imponentes deste grande triunfo renovam-se a cada ani- versario para nos fazer lembrar o caminho que percorremos — 0 ponto em que nos achamos ~ e a distancia que nos falta para completar esta marcha de esplendor e gloria. Ah! A geragao atual nao € 0 juiz que pronunciaré 0 mérito dos libertadores. Esta reso- lugao fica reservada para a posteridade. Cabe a nés procurarmos uma sentenga honrosa para uma conduta Vitoriosa. Ela é a mais digna homenagem que podemos prestar a Patria ao saudar seus dias, tornar felizes os de nossos contemporaneos e de nossos netos. N&o nos esquegamos dos erros da revolugao, para nao vol- tar a cometé-los. Que sejamos abengoados. Empenhemos nossos ultimos esforgos em assegurar um porvir feliz e imperturbavel — fruto da lei e independente da bondade pessoal dos seus execu- tores, que, se hoje se revestem de probidade e amor publico, amanha podem ser diferentes; somos homens. Percorreram caminhos tao dificeis como gloriosos. Mais de uma vez chegou-se a linha de combate pelo rastro de san- gue que deixava a nossa vanguarda. Mais de uma vez a fortu- na separou-se da justiga e foram vitimas seus defensores; ligdes terriveis nos ensinaram a vencer para sempre. A causa da humanidade foi precedida de estragos ferozes. Foi invadida por tiranos e contrastada pelas paixdes. Era necessdrio defen- dé-la com as armas e com a ordem. A uniao e o desengano fize- 212 margens | volume 1 - Regido do Prata e Chile ram com que 0 inimigo deixasse de ser o terceiro das discér- dias internas. A autoridade foi assegurada sobre a base sdlida da uniformidade adquirida a forga de tantas desgragas. Desa- pareceram as desgragas da agressdo exterior e as da anarquia ainda mais funesta; e, passando da vitéria ao heroismo, 0 Chile pode levar a independéncia aos descendentes de Hudscar, enquanto sua administragéo doméstica colocava os cimentos preparatorios da Constituigao, que ha de garantir a prosperida- de dos filhos de Lautaro. Este é 0 panorama do ano 13avo, tudo esta em movimento, tudo conspira para alcangar o fim da escada. O poder supremo tem a grandeza de ter ele mesmo estabelecido seus préprios limites, que nao seriam feitos por quem nao possuisse um cora- cdo téo valente quanto republicano. A honordvel Convengao ocupa-se das melhorias que a Patria necessita em cada um de seus ramos. Nesta primavera florescem preciosos enxertos na arvore da liberdade civil. Os cidadaos ilustrados agitam-se em comissées interessantes para executar agdes importantes de uti- lidade de seu objeto. Educagao cientifica, fomento do comércio, a mineragao, a agricultura, as artes e a industria, regulamenta- gdo dos tribunais de justiga, sistemas de economia, rendas e fun- dos ptblicos, arquitetura legislativa da representagao nacional, harmonia das relagées religiosas com a moral, os costumes puros e a civilizagaéo, enfim, melhorias em todos os campos encomendadas a homens cheios de amor a Patria prometem um yenturoso porvir, que tornara este dia mais alegre e louvado no decorrer dos tempos. O selo destes cédigos eternos é 0 resto da empresa que coroara as nossas tarefas. Alté aqui nos cansamos de jogar as sementes sobre uma terra marcada pelas pegadas assoladoras Revolugdes de independencias e nacior dos tiranos; ainda é possivel sentir 0 amargo da conquista e da opressao colonial. Ja os préprios aspirantes se convencem de sua incapacidade. Sucedem 4 teimosia génios mais brandos, conciliadores e déceis por vontade ou por sua propria impo- téncia. A América vé apenas uma pequena nuvem no seu hori- zonte. Ela sera dissipada antes do préximo dia 18. Geragoes! Vocés colher&o os frutos do trabalho dos libertadores. Oh! Reguem suas tumbas com lagrimas de gratidao; circundem- nas com flores, conservem os lauréis que as rodeiam e no ani- versario do Chile livre, contem aos seus filhos a sua historia — amenizem-na com hinos sentimentais — e que 0 reconheci- mento seja 0 prémio dos que deixaram para a sua Patria a feli- cidade, e morreram. lismos nas Américas « 215

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