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ao? Rhy a VY YV VV VV VV Y Dh UN PONT, a a Ri. ps a Leap WAS li ~~ Sa ‘ on CK \ ZA CNY a CAAA AY AY PO a ~ MEMORIA E PATRIMONIO ENSAIOS CONTEMPORANEOS Prec REGINA ABREU * MARIO CHAGAS i Peay A arena do patriménio cultural no Brasil esta Dien RU Menu: cet feet ei tec Saeed ee Oe re tere nc moe OMSL TT CSCO Td Perea eres ote ge rs eae 200 e cal - igrejas, fortes, pontes, chafarizes, pré- Creetiecnfuleettenremi ieceaet tet Fea eeeetne Mice Cg eeemen steerer Utero Re Terto Leyes OST MeL ee onto 2000, que instituiu 0 inventario e o registro Creare emer ee Murr Reem rau Seon cei Mic Mt ee ceo cou a alteragdo radical da antiga corelacao evra Lette Coe lane tare eM Url) ite-To ieee Waet siete eect Peat semicon sociedade civil (detentores de saberes tradi- cionaise locais) associados a profissionais no reuse eusnensreCORG entice desaberes especificos) poem em marcha um Morente ore ites irene tribuindo social e politicamente para a cons- truco de um acervo amplo e diversificado de expressées culturais em diferentes dreas: linguas, festas, rituais, danas, lendas, mitos, De eee Coe aay ace ecm Pe rea ere eee ee eae Pome uexeU Me Mae ce ate nham um novo cenario. Essa redefinicao pas. sa inclusive pelo campo do biopatriménio Pater Unease tcom ine en Counts olhares para a relagao entre natureza e cul- ura, € facilitando a compreensiio da nogao Pee Cane ty etn r Tine Renter Cen eea rae Uru COMiaeaeNCMe ny 0) tae Tes Nate eee ooo Liat Ue atle Cees Lao Sn aaeie Tee uso cao Fou Eo Coaeectte eee seal eC tanto, nunca se arquivou tanto, nunca tantos Pree Mie rio ECU CUM Mu Petuiulon tenures Dre an eee eo ou ce eee Tura CCN Nok ite Pt GomecU eGR iceiecucnant oa Eres erence oe etary CeCe Memeo ees mem Core PREC een COR Car Moers Pee tere) REGINA ABREU & professora do Programa de Pés- Rete te OR ue rer koe ct to de Filosofia Ciéncias Sociais da Universidade Fee Sn a eum Mon doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pés-Graduacio em Antropolagia Social (PPC Centos ole ene Cir ir RoR de Janeiro (UFRJ). RCS Ne eRe ne ma en ae fete eet a uc Sora Sr Ene eo a oe A lees EC ico CO ee Ree Re ee (UniRio), doutor pelo Programa de Pés-Graduacao em Ciéncias Sociais da Universidade do Estado do ome ue en Ores ee ccm en Dore eee NM estene aeons one Ppa coirek eu ciee Ms cater Tc MEMORIA E PATRIMONIO ENSAIOS CONTEMPORANEOS Meméria e patriménio: ensaios contemportieos Regina Abreu; Mario Chagas (orgs.) 1, ed. (2003). Rio de Janeiro: DP&A © Lamparina editora Revisaio Michelle Strzoda (1. ed.) Angelo Lessa (2. ed.) Projeto grdj Priscila Cardoso co, diagramucito ¢ capa Imagem da capa Pintura corporal ¢ arte gréfica wajapi. Seni Wajapi/20c0. texto deste livro foi adaptado ao Acordo Ortogrdfico da Lingua Portuguesa, assinado em 1990, que comecou a vigorar em + de janeiro de 209. Proibida a reprodugao, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprogra- fico, fotografico, grafico, microfilmagem etc. Estas proibicgdes aplicam-se também as caracteristicas grdficas e/ou editoriais. A violacao dos direitos autorais é punivel co- mo crime (Cédigo Penal, art. 84 ¢ §§; Lei 6.805/80), com busea, apreensfo e inde- nizagées diversas (Lei 9.610/98 ~ Lei dos Direitos Autorais ~ arts. 122, 123, 124 € 126) Catalogagao-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros M487 aed Memoria e patrimnio: ensaios contemporaneos / Regina Abreu, Mario Chagas (orgs.) ed. ~ Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. Tnelui bibliografia ISBN 978-85-98271-59-0 . Patriménio cultural — Protecao — Brasil. 2. Meméria — Aspectos sociais — Brasil. 1 Abreu, Regina. II. Chagas, Mario 98-1519. CDD: 363.692981 CDU: 351.853(81 Lamparina editora Rua Joaquim Silva, 98, 2° andar, sala 201, Lapa Cep 20241-110 Rio de Janeiro RJ Brasil Tel./fax: (21) 2232-1768 lamparina@lamparina.com.br lamparina MEMORIA E PATRIMONIO ENSALOS CONTEMPORANEOS ORGANIZADORES REGINA ABREU * MARIO CHAGAS CLAUDIA CRISTINA DE MESQUITA GARCIA DIAS. JAMES CLIFFORD JOSE REGINALDO SANTOS GONGALVES JOSE RIBAMAR BESSA FREIRE LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE MARCIA SANT'ANNA MARIA CECILIA LONDRES FONSECA MYRIAN SEPULVEDA DOS SANTOS. RUBEN GEORGE OLIVENs VERA BEATRIZ SIQUEIRA 2%edicao OS AUTORES CLAUDIA CRISTINA DE MESQUITA GARCIA DIAS Ghefe da divisao de pesquisa da Fundagao do Museu da Imagem e do Som e doutora pelo Programa de P6s-Graduagao em Histéria Social do Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais (IFCS) da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). JAMES CLIFFORD Professor do Programa de Histéria da Consciéncia da Universida- de da California (Santa Cruz, Estados Unidos). JOSE REGINALDO SANTOS GONGALVES Professor de Antropologia Cultural do Programa de Pés-Graduagao em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor pelo Departamento de Antropologia da Universidade da Virginia (Estados Unidos). Jost RIBAMAR BESSA FREIRE Professor do Programa de Pés-Graduagao em Meméria Social e do Departamento de Filosofia e Ciéncias Sociais da Universidade Fe- deral do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e coordenador do Pro- grama de Estudos dos Povos Indigenas (Pré-{ndio) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE Professor do Programa de Pés-Graduagao em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — e doutor em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional (UFRJ). MARCIA SANT/ANNA Diretora do Departamento de Patriménio Imaterial do Instituto do Patriménio Histérico ¢ Artistico Nacional (Iphan) e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). MARIA CECILIA LONDRES FONSECA Consultora da Secretaria do Patrimonio, Museus e Artes Plasticas do Ministério da Cultura e doutora em Sociologia da Cultura pela Universidade de Brasilia (UnB). MARIO CHAGAS Professor do Programa de Pés-Graduagdo em Memoria Social e do Departamento de Estudos e Processos Museolégicos da Universi- dade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), doutor pelo Programa de Pés-Graduacgao em Ciéncias Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador técnico do Depar- tamento de Museus do Instituto do Patriménio Histérico e Artistico Nacional (Iphan). MYRIAN SEPULVEDA DOS SANTOS Professora do Departamento de Ciéncias Sociais e do Programa de Pés-Graduagao em Ciéncias Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e Ph.D. em Sociologia pela New School for Social Research (Nova York). REGINA ABREU Professora do Programa de Pés-Graduacéio em Meméria Social e do Departamento de Filosofia e Ciéncias Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) ¢ doutora em Antro- pologia Social pelo Programa de Pds-Graduagao em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). RUBEN GEORGE OLIVEN Professor titular do Departamento de Antropologia e do Programa de Pés-Graduagao em Antropologia Secial da Universidade Fede- ral do Rio Grande do Sul (UFRGS). VERA BEATRIZ SIQUEIRA Professora de Histéria da Arte do Instituto de Artes da Universi- dade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutora pelo Programa de. Pés-Graduagao em Histéria Social do Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UER]). APRESENTACAO A SEGUNDA EDIGAO Anatureza interdisciplinar, caracterfstica do Programa de Pés-Gra- duagao em Meméria Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS/UniRio), foi um dos vetores que move- ram os professores ¢ pesquisadores Regina Abreu e Mario Chagas a organizar 0 livro Meméria e patriménio: ensaios contempordneos. Muito nos alegra que esta obra, que jé se tornou um classico na campo de estudos da Meméria Social, chegue agora 4 sua segunda edigao. O |eitor encontraré aqui trabalhos de autores consagrados na temdatica especifica de Memoria e Patriménio, uma das linhas de pesquisa de nosso Programa de Pés-Graduagao. A interdisciplinaridade é hoje um espaco privilegiado de criagdo de conhecimentos que nos convoca a articular, transpor e gerar novos conceitos, teorias e métodos. Ultrapassando os limites das tradi¢écs disciplinarcs, sem contudo negar as contribuicdes espe- efficas de cada campo, temos procurado estabelecer pontes entre diferentes formas de producao do conhecimento. E um caminho de construgdo epistemoldgica pleno de tensées e conflitos, mas também repleto de intersegdes e convergéncias. Seis anos se pas- saram desde a primeira edigdo deste livro, mas as reflexdes ncle contidas mantém-se profundamente atuais. Convido, pois, o leitor a nos acompanhar neste percurso. Diana de Souza Pinto Coordenadoru clo Programa de Pés-Graduagdo em Meméria Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS/UniRio) SUMARIO Introducdo. REGINA ABREU E MARIO CHAGAS Kusiwa, atte grafica wajdpi: patriménio cultural do Brasil Certificado 1, PATRIMONIO, NATUREZA E CULTURA QO patriménio como categoria de pensamento JOSE REGINALDO SANTOS GONGALVES Aemergéncia do patrimGnio genético e a nova configuragéo do campo do patrimonio REGINA ABREU A face imaterial do patriménio cultural: 98 novos instrumentos de reconhecimento e valarizagao MARCIA SANTANNA, Para além da pedrae cat: por uma concepcao ampla de patrim6nio cultural MARIA CECILIA LONDRES FONSECA Patrimdnio intangivel: consideragGes iniciais RUBEN GEORGE OLIVEN “Tesouros humanos vivos” ou quando as pessoas transformam-se em patrimdnio cultural - notas sobre a experiéncia francesa de distingdo do “Mestres da Arte” REGINA ABREU O pai de Macunaima e 0 patriménio espiritual MARIO CHAGAS 13 19 35 34 49 39 80 97 1, MEMORIA E NARRATIVAS NACIONAIS, Museu Imperial: a construgao do Império pela Republica MYRIAN SEPULVEDA DOS SANTOS Meméria politica e politica de memoria MARIO CHAGAS Ill. MEMORIA E NARRATIVAS URBANAS Os museus e a cidade JOSE REGINALDO SANTOS GONCALVES, Espelhos urbanos: ordenacao temporal na colecdo Castro Maya VERA BEATRIZ SIQUEIRA Atrajetoria de um “museu de fronteira”: acriagdo do Museu da Imagem e do Som e aspectos da identidade carioca (1960-1965) CLAUDIA CRISTINA DE MESQUITA GARCIA DIAS IV, MEMORIA E ETNICIDADE A descoberta do museu pelos indios JOSE RIBAMAR BESSA FREIRE Museologia e contra-historia: viagens pela Costa Noroeste dos Estados Unidos JAMES CLIFFORD V. MEMORIA E REFLEXIVIDADE Memiéria e reflexividade na cultura ocidental LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE 173 199 27 254 305 INTRODUGAO REGINA ABREU E MARIO CHAGAS A arena do patriménio cultural no Brasil estd vivendo um momento especialmente fértil. Com a aprovacao do Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o inventério e o registro do denomi- nado “patriménio cultural imaterial ou intangfvel’, descortinou-se um panorama que alterou radicalmente a correlacao de forgas até entao vigente. Se durante décadas predominou um tipo de atua- $40 preservacionista, voltada prioritariamente para 0 tombamento dos chamados bens de pedra e cal — igrejas, fortes, pontes, chafari- zes, prédios e conjuntos urbanos representativos de estilos arqui- teténicos especificos ~, o referido decreto pds em cena uma antiga preocupagao de alguns intelectuais brasileiros, entre os quais se destacou Mario de Andrade, qual seja, a de valorizar 0 tema do intangivel, contribuindo social e politicamente para a construgao de um acervo amplo e diversificado de expressées culturais, em diferentes areas: Iinguas, festas, rituais, dangas, lendas, mitos, mii- sicas, saberes, técnicas e fazeres diversificados. Essa antiga preocupagao havia ecoado nos grupos de discuss4o0 da Area cultural durante a Constituinte de 1988, tanto assim que os artigos 215 e 216 da Constituicado Federal referem-se, de modo explicito, as responsabilidades do “poder publico, com a colabo- racdo da comunidade”, na promogao e na protecdo do patriménio cultural brasileiro, compreendido como os “bens de natureza mate- rial e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referéncia a identidade, agdo, 4 memoria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. No entanto, entre a lei no pa- pel e sua ago, parecia haver se estabelecido o proverbial fosso de sempre. Por isso mesmo, é com atencHo e vivo interesse que 14 MEMORIA E PATRIMONIO. observamos e acompanhamos a retomada dessas discussées, agora com ancoras no terreno das praticas e com indicagées nitidas de que diferentes grupos sociais esto se mobilizando e se organizan- do, em torno dessa nova agenda patrimonia] Assim, parece-nos justo afirmar que se processa uma revolugao silenciosa, quando segmentos da sociedade civil, detentores de sa- beres tradicionais e locais, associados a profissionais no interior do aparelho de Estado, e possuidores de saberes especificos, colocam em marcha um novo conceito de patriménio cultural. Seminérios regionais, nacionais e internacionais tém sido rea- lizados; antropélogos, educadores, socidlogos, musedlogos e uma gama diversificada de profissionais da area das Ciéncias Sociais € Humanas vém sendo requisitados pelo poder pablico para formu- lar novas metodologias de pesquisa e novas estratégias de aco, capazes de dar conta da recente concepgdo patrimonial; segmen- tos sociais diversos reivindicam lugar de destaque para manifesta- Ses culturais distintas. Os exemplos multiplicam-se nos ambitos federal, estadual e municipal, passando pelos poderes Executivo, Legislativo e Judicidrio. Efeito da disseminagao do conceito antro- poldgico de cultura, no qual a ideia de diversidade consolida-se como forga motriz, em oposicao ao conceito iluminista de cultu- ra como civilizagao e erudigao, lugar a que poucos tém acesso? Talvez. O fato € que, sem desprezar a importancia de dar continuidade a uma atuacdo norteada por politicas piiblicas nas 4reas do tomba- mento e da preservagao dos chamados bens materiais ou tangiveis, as novas forcas desencadeadas pelo debate sobre patriménio cultu- ral intangfvel desenham um cenirio distinto. Essa redefinicao pas- sa, inclusive, pelos campos do “biopatriménio” e do “patriménio genético”, propondo novos olhares para a relagdo entre natureza e cultura e facilitando a compreensdo da nogao de patriménio natu- ral como uma construgdio que se faz a partir do intangivel. No setor dos museus, por sua vez, constata-se a revitalizagao de novas préticas discursivas e de colecionamento, bem como o desenvolvimento de estudos em sintonia com a realidade con- wTRODUGKO temporanea. Nunca se colecionou tanto, nunca se arquivou tanto, nunca tantos grupos se inquietaram tanto com os temas referentes a meméria, patriménio e museus. Paradoxalmente, os gestos de guardar, colecionar, organizar, lembrar ou invocar antigas tradigdes vém convivendo com a era do descartavel, da informagao sempre nova, do culto ao ideal de juventude. Os intelectuais passaram a se preocupar com um tema que an- tes era marginal nas Ciéncias Humanas: os chamados “lugares de meméria’”, na feliz expressfio de Pierre Nora. Uma sindrome de mu- seus € de prdticas de colecionamento estaria expressando o sinto- ma de um mundo sem meméria, rompido com o passado, em que as fronteiras séo cada vez mais fluidas e moveis. O desmapeamento do individuo, que se tornou valor e medida para todas as coisas, vem impulsionando regressdes e buscas por anterioridades. E no espaco constituido a partir da relago entre memoria e pa- triménio que vicejam as praticas de colecionamento e as narrativas museais nacionais, regionais e locais. Observa-se, no entanto, que, gradualmente, as grandes narrativas nacionais e épicas deixam de exercer a primazia de outrora, quando alicercaram as praticas dis- cursivas dos grandes museus, para entrarem em cena novos vetores, expressdes de uma sociedade cada vez mais polifénica. Sao as narra- tivas urbanas, regionais ¢ locais, nas quais esté em jogo a construgdo de uma identidade especifica, capaz de articular outras tantas nar- rativas, em fungao de um cixo arbitrariamente construfdo. Esse eixo ordenador quer também exercer um papel de mediagao em relagao ao local, nacional e global. Ao focalizarmos as chamadas narrativas regionais e urbanas, privilegiamos os estudos que se debrucam sobre praticas colecio- nistas cariocas e, ao tratarmos das narrativas locais, sublinhames o papel das experiéncias museais com acentuado carater étnico, desenvolvidas no Brasil e no Canad por grupos sociais que, tra- dicionalmente situados em lugar de alteridade nas grandes narra- tivas nacionais, assumem o lugar de sujeitos em novas prdticas de colecionamento, desenvolvendo novas experiéncias museograficas e museolégicas, caracterizadas pelo exercfcio do direito 4 voz, a meméria € a constituigao do patriménio cultural. 1% 16 MEMORIA E PATRIMONIO. Mem6ria e patriménio: ensaios contemporaneos redne um con- junto expressivo de capitulos, divididos em cinco blocos temé- ticos: {. Patriménio, natureza e cultura; Il. Memoria e narrati- vas nacionais; Il]. Meméria e narrativas urbanas; TV. Memoria e etnicidade; V. Meméria e reflexividade. O leitor interessado encon- trard neste livro reflexdes instigantes e atualizadas, desenvolvidas por um grupo variado de autores que, jé hé alzum tempo, vém conversando sobre o assunto em semindrios, congressos, bancas e encontros informais. Alzumas dessas ideias foram produzidas em seminérios realizados pelo Programa de Pés-Graduagao em Mem6- ria Social e pelo Centro de Ciéncias Humanas da Universidade Fe- deral do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), cujos corpos docentes os idealizadores e organizadores deste livro, Regina Abreu ¢ Mario Chagas, integram. Outras séo verses de comunicagdes apresen- tadas na 26* Reunido da Associagao Nacional de Pés-Graduagiio em Ciéncias Sociais, especialmente durante a mesa-redonda “Pa- triménios emergentes e novos desafios: do genético ao intangivel”, ocorrida a 23 de outubro de 2002 € coordenada pela professora Re- gina Abreu. O capitulo “Memoria e reflexividade na cultura ociden- tal’, do professor Luiz Fernando Dias Duarte, apresenta, na {ntegra, a aula inaugural do Programa de Pés-Graduacaio em Meméria So- cial do ano de 2000. Com a presente publicagao, reconhecemos a posigado de cen- tralidade ocupada pelo tema “meméria e patriménio” no debate contemporaneo, de modo especifico, no que se refere As Ciéncias Sociais e Humanas. De nossa parte, com esses ensaios, esperamos contribuir para esse debate, que apenas alvorece. Cabe destacar a oportunidade em divulgar algumas belas ima- gens da arte kusiwa — pintura corporal e arte grafica dos indios wajépi do Amapé. A arte kusiwa constitui o primeiro registro no Livro dos saberes do Instituto do Patriménio Histérico e Artistico Nacional (Iphan), tendo recebido o titulo de “Patriménio cultural do Brasil” nessa mesma obra. E para nés de extrema relevancia contribuir para a valorizagao da linguagem grafica dos indios waja- pi, sistema de representagao que sintetiza seu modo particular de conhecer, conceber e agir sobre 0 universo. KUSIWA, ARTE GRAFICA WAJAPI: PATRIMONIO CULTURAL DO BRASIL Em maio de 2002, a direcdo do Museu do Indio submeteu ao Mi- nistério da Cultura o registro da arte kusiwa — pintura corporal e arte gréfica wajapi como bem cultural de natureza imaterial, nos termos do Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000. A documentagao reunida sobre o kusiwa resultou de mais de quinze anos de pes- quisa desenvolvida junto aos wajapi do Amapa por Dominique T. Gallois, doutora em Antropologia do Niicleo de Histéria Indigena e do Indigenismo da Universidade de Sao Paulo (USP). Em dezembro de 2002, foi conferido o titulo de “Patriménio cul- tural do Brasil” & arte kusiwa, o primeiro bem cultural indigena registrado no Livro dos saberes do patriménio imaterial. A criagdo do novo instrumento de preservagdo de bens de natureza proces- sual e dinamica significou um avango concreto nas relagdes com as sociedades indigenas, ao definit um procedimento que permite reconhecer e valorizar conhecimentos e formas de expressao pré- prios a seus universos culturais. Significou também um avango ao mudar 0 eixo dessas relagdes, resgatando do passado as culturas indfgenas existentes no Brasil e inscrevendo-as no presente, em sua diversidade e especificidade, como participes igualitarios do patriménio cultural nacional. Ao encaminhar a inscrigao dessa forma de expressao wajapi no registro de bens ‘culturais de natureza imaterial, o Museu do [n- dio buscou dar continuidade a um programa voltado diretamente para a preservag3o e difusdo do patriménio cultural indfgena no pais. O programa tem contado com a colaboragao de especialistas e entidades que trabalham diretamente com comunidades indige- nas € com 0 apoio financeiro de instituigdes privadas e ptblicas, 18 MEMORIA E PATRIMONIO entre elas o Ministério da Cultura. O registro kusiwa constituiu 0 resultado de tal colaboragdo, que envolveu principalmente a parti- cipacao direta dos wajépi, por meio de sua associagdo e seu Con- selho de Aldeias — Apina, no preparo de colegdes de artefatos e de desenhos apresentados em exposic¢do a eles dedicada no Museu do {ndio. A publicagao de um catélogo de padrées e composicdes que ilustram a arte gréfica kusiwa ampliou a possibilidade de di- vulgacaa desse acervo cultural. Com essas iniciativas, o Museu do Indio deu os primeiros pas- sos na adogao de uma politica que se pretende de amplo alcance na identificagdo, promo¢ao, preservag&o e protegao dos bens cul- turais de propriedade das sociedades indfgenas. José Carlos Levinho Diretor do Museu do fndio da Fundagéio Nacional do indio Padres graficos. Paku ka’ gwer [espinha de pacul. Miwa Wajapi/igks, vii) LAA \) sil CERTIFICADO cERTIFICO que do Livro de Registro das Formas de Expressdo, volume pri- meiro, do Instituto do Patriménio Eistérico e Artistico Nacional — Iphan, instituido pelo Decreto ntimero trés mil quinhentos e cinquenta e um, de quatro de agosto de dois mil, consta 4 folhas hum, o seguinte: “Registro niimero hum; Bem cultural: Arte Kusiwa — pintura corporal e arte grafica Wajapi; Descrigao: Trata-se de um sistema de representagao, uma lin- guagem grafica dos indios Wajapi do Amapé, que sintetiza seu modo pat- ticular de conhecer, conceber ¢ agir sobre o universo. O sistema grafico kusiwa opera como um catalisador para a expressao de conhecimentos e de praticas que envolvem desde relagoes sociais, crencas religiosas e tec- nologias até valores estéticos e morais. O excepeional valor desta forma de expressdo esté na capacidade de condensar, transmitir e renovar — através da criatividade dos desenhistas e narradores — todos os elementos par- ticulares e unicos de um modo de pensar e de estar no mundo, préprio dos Wajapi do Amapé4. A linguagem kusiwa é uma forma de expressao complementar aos saberes transmitidos oralmente, a cada nova geracao, e compartilhados por todos os membros do grupo. £ um conhecimento que se encontra principalmente nos relatos orais que este grupo indigena, hoje com guinhentos e oitenta individuos, continua a transmitir aos seus filhos e que explicam como surgiram as cores, 0s padrées dos desenhos eas diferencas entre as pessoas. A arte grafica e a arte verbal dos wajapi lhes permite agir sobre miiltiplas dimensées do mundo: sobre o visivel 0 invisivel, sobre 0 concreto e sobre 0 mundo ideal. Nao se trata de um saber abstrato e sim de uma pratica, que é permanentemente interativa, viva e dinamica. A arte Kusiwa se expressa em desenhos e pinturas de cor- pos e objetos, a partir de um repertério definido de padrées grificos e suas variantes, que representam, de forma sintética e abstrata, partes do corpo 19 20 MEMGRIAE PATRIMONIO. ou da ornamentagao de animais, como sucuris, jiboias, ongas, jabotis, peixes, borboletas; e objetos, como limas de ferro e bordunas. Gom deno- minagées proprias, os padrées graficos podem ser combinados de muitas maneiras diferentes, que nao se repctem, mas sao sempre reconhecidos pelos Wajapi como kusiwa. Trata-se de um acervo cultural que se trans- forma de forma dinamica, com a inclusao de novos elementos, enquanto outros podem entrar em desuso ou se modificar através de suas variantes. O livro “Kusiwa: pintura corporal e arte grafica wajapi”, anexo do processo administrativo n° 01450.000678/2002-27, de registro deste bem cultural, apresenta exemplares dos vinte e um padrées utilizados hoje pelos Wajapi do Amapé, com suas variantes mais recorrentes. As pinturas aplicadas no cospo nao sao tatuagens nem decalques, nem s4o marcas €tnicas ou sim- bolos rituais. B tradigao dos Wajéipi decorar corpos e objetos por prazer estético e desafio criativo, Trés tipos de tintas sao utilizadas: o vermelho claro € obtido com sementes de urucum amassadas € misturadas com gordura de macaco ou éleo de andiroba; o preto azulado é obtido com a oxidagdo do suco de jenipapo verde misturado com carvao e o vermelho escuro € uma laca preparada com diversas resinas de cheiro e urucum. Muitas vezes, essas tintas sao aplicadas em justaposigdo, ou ainda sobre- postas, como, por exemplo, quando os padrées graficos sao pintados com jenipapo sobre uma camada uniforme de urucum aplicada no rosto e em todo 0 corpo. Como pincel, utiliza-se finas lascas de bambu — ou de talos de folha de palmeira — sobre as quais saio enrolados fios de algodao. Partes do corpo podem ser decorados diretamente com 0 dedo, ou com chuma- gos de algodao embebidos de tinta. A pintura corporal é uma atividade do cotidiano, realizada no Ambito familiar. Mulheres pintam seus esposos e vice-versa; namorados pintam-se entre si; as mulheres pintam seus fi- Thos pequenos, ap6s cada banho, de manhd e & tarde, sempre renovando as composigées de motivos. Por ocasido das festas, todos exibem uma decoragaio mais farta, quando a pintura é realgada por colares, bandolei- ras e adornos de plumatria. A aplicagao de padrées graficos no corpo néo estd relacionada & posicao social, nem existem desenhos reservados para determinadas ocasiées especificas. No entanto, o uso das tintas varia de acordo com 0 estado de espirito da pessoa: se esta de luto, doente ou sadia —ecom os efeitos pretendidos pelo tipo de tinta e padrées graficos utili- CERTIFICADO zados — para atrair, afastar, seduzir ou evitar, para se esconder ou se mos- trar, e assim por diante. A Arte Kusiwa, antes reservada apenas ao corpo, esté sendo aplicada pelos Wajapi a um conjunto variado de suportes. Fa- zem desenhos nas pecas de ceramica destinada 4 venda, decoram suas cuias com motives incisos, utilizados também na tecelagem de bolsas e tipoias e no trangado de seus cestos. O uso do papel e de canetas colori- das constitui-se num campo novo é muito apreciado para esta expressdo cultural. Esta descrigdo corresponde A sintese do contedde do processo administrativo n° 01450.000678/2002-27 ¢ Anexos, no qual se encontra reunido 0 mais completo conhecimento sobre este bem cultural, contido em documentos textuais, bibliogrsficos e audiovisuais. O presente Re- gistro esté de acordo com a decisao proferida na trigésima oitava reuniao do Gonselho Consultivo do Patriménio Cultural, realizada em onze de dezembro de dois mil ¢ dois. Data do Registro: vinte de dezembro de dois mil e dois”. E por ser verdade, eu, Fatima Liicia Nascimento Cisneiros, Diretora do Departamento de Identificagao e Documentagao do Instituto do Patriménio Histérico ¢ Artistico Nacional — Iphan, lavrei a presente nada em seis vias. Brasflia, Distrito Federal, vinte de dezembro de dois mil e dois. certidao que vai por mim datada e ass Titulagdéo O Instituto do Patriménio Histérico e Artistico Nacional - Iphan, em decorréncia do registro ne Livro dos Saberes, e, de acordo com 0 artigo quinto do Decreto ntimero trés mil quinhentos e cinquenta e um, de quatro de agosto de dois mil, confere o titulo de Patrimdnio Cultural do Brasil 4 Arte Kusiwa — pintura corporal e arte grafica Wajapi, dos indios Wajapi do Estado do Amapé. Brasflia, Distrito Federal, vinte de dezem- bro de dois mil e dois. Carlos H. Heck Presidente do Iphan 2 I, PNT ILO NO} NATUREZA E CULTURA Mitos. Moju rima ~ Xerimbabos da anaconda. Kasiripina Wajapi/202: O PATRIMONIO COMO CATEGORIA DE PENSAMENTO* JOSE REGINALDO SANTOS GONGALVES Gostaria de elaborar algumas reflexdes sobre as limitagdes ¢ as pos- sibilidades que a nogao de patriménio oferece para o entendimento da vida social e cultural. O estudo das categorias de pensamento é uma contribuigio ori- ginal da tradigdo antropolégica. A histéria da disciplina é marcada pela descoberta e pela anélise de categorias exdticas e aparentemen- te estranhas ao pensamento ocidental: tabu, mana, sacriffcio, ma- gia, feiticaria, bruxaria, mito, ritual, totemismo, reciprocidade etc. No caso, estamos focalizando uma categoria nao exética, mas bastante familiar ao moderno pensamento ocidental. Nossa tare- fa consiste em verificar em que medida ela est4 também presente em sistemas de pensamento nao modernos ou tradicionais e quais os contornos semanticos que cla pode assumir em contextos hist6- ticos e culturais distintos. Como aprendemos a usar a palavra “patriménio”? “Patriménio” esté entre as palavras que usamos com mais fre- quéncia no cotidiano. Falamos dos patriménios econdmicos e fi- nanceiros, dos patriménios imobilidrios; referimo-nos ao patrimé- nio econémico e financeiro de uma empresa, de um pais, de uma familia, de um individuo; usamos também a nogéio de patriménios culturais, arquiteténicos, histéricos, artisticos, etnograficos, ecolé- gicos, genéticos; sem falar nos chamados patriménios intang{veis, de recente ¢ oportuna formulacao no Brasil. Parece nao haver Jimi- te para o processo de qualificagdo dessa palavra. * Comunicagin apresentada na mesa-redonda “Patriménios emergentes © novos desafios do genético ao intangivel”, durante a 26* Reunido Anual da Associag#o Nacional de Pés- Graduacio em Giéncias Sociais, realizada em Caxambu, em 23 de outubro de 2002. 25 26 MEMORIA E PATRIMONIO Muitos so os estudos que afirmam constituir-se essa categoria em fins do século XVIII, juntamente com os processos de formagao dos Estados nacionais, o que é correto. Omite-se, no entanto, seu cardter milenar. Ela nao € simplesmente uma invengio modema. Esté pre- sente no mundo cléssico e na Idade Média. A modernidade ocidental apenas impée os contornos seméanticos especificos assumidos por ela. Podemos dizer que a categoria “patriménio” também se faz presente nas sociedades tribais. O que estou argumentando € que estamos diante de uma cate- goria de pensamento extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana. Sua importancia nao se restringe as modernas sociedades ocidentais. A categoria “colecionamento” traduz, de certo modo, 0 processo de formacao de patrimdnios. Sabemos que esses, em seu sentido moderno, podem ser interpretados como colegées de objetos méveis e iméveis, apropriados e expostos por determinados grupos sociais. Todo e qualquer grupo humano exerce algum tipo de atividade de colecionamento de objetos materiais, cujo efeito é demarcar domi- nio subjetivo em oposigio ao “outro”. O resultado dessa atividade é precisamente a constituic¢ao de um patriménio (Clifford, 1985; Pomian, 1997). No entanto, nem todas as sociedades humanas constituem pa- triménios com o propésito de acumular e reter os bens reunidos. Muitas sao as sociedades cujo processo de acumulagao de bens tem como propésito sua redistribuigdo, ou mesmo sua simples destrui- cao, como é 0 caso do kula trobriandés e do potlatch, no Noroeste americano (Malinowski, 1976; Mauss, 1974). O que se precisa focar nessa discussio, penso, é a possibilidade de transitar analiticamente com essa categoria entre diversos mun- dos sociais e culturais. Em outras palavras: como € possfvel usar essa nogdo comparativamente? Em que medida ela pode nos ser Gtil para entender experiéncias estranhas 4 modernidade? Do ponto de vista dos modernos, a categoria “patriménio” tende a aparecer com delimitagées muito precisas. E uma categoria indivi- dualizada, seja como patriménio econémico e financciro, seja como patriménio cultural, seja como patrimGnio genético etc. © PATRIMONIO COMO CATEGORIA DE PENSAMENTO Nesse sentido, suas qualificagdes acompanham as divisées es- tabelecidas pelas modernas categorias de pensamento: economia, cultura, natureza etc. Sabemos, entretanto, que essas divisdes sao construg6es histéricas. Pensamos que elas sao naturais, que fa- zem parte do mundo. Na verdade, resultam de processos de trans- formagao e continuam em mudanga. A categoria “patriménio”, tal como é usada na atualidade, nem sempre conheceu fronteiras tao bem delimitadas. E possivel transitar de uma a outra cultura com a categoria “pa- triménio”, desde que possamos perceber as diversas dimensées se- ménticas que ela assume e nao naturalizemos nossas representa- ges a seu respeito. Em contextos sociais e culturais nao modernos, ela coincide com categorias magicas, tais como mana e outras, e define-se de modo amplo, com fronteiras imprecisas e com o poder especial de estender-se e propagar-se continuadamente. A nogao de patrim6nio confunde-se com a de propriedade. A li- teratura etnogrdfica esta repleta de exemplos de culturas, nas quais os bens materiais nao sao classificados como objetos separados dos seus proprietérios. Esses bens, por sua vez, nem sempre tém atri- butos estritamente utilitarios. Em muitos casos, servem a propési- tos praticos, mas carregam, ao mesmo tempo, significados magico- religiosos e sociais. Configuram aquilo que Marce] Mauss (1974) denominou “fatos sociais totais”. Tais bens sdo, simultaneamente, de natureza econémica, moral, religiosa, magica, politica, juridica, estética, psicoldgica e fisioldgica. Constituem, de certo modo, exten- sdes morais de seus proprietarios, e estes, por sua vez, sao partes insepardveis de totalidades sociais e césmicas que transcendem sua condigao de individuos. O mesmo autor assinalou: [...] se a nogio de-espirito nos pareceu ligada & de propriedade, in- versamente esta se liga aquela. Propriedade e forga sao dois termos inseparaveis; propriedade e espirito se confundem (id., ib., p. 133)- Nos contextos sociais e culturais modernos, esse aspecto mégi- co nao est ausente das representagées da categoria “patriménio’, embora esta tenda a ser delineada de modo nitido, separadamente 27 28 MEMORIA E PATRIMONIO. de outras totalidades. A exemplo do mana melanésio, discute-se a presenca ou auséncia do patriménio, a necessidade ou nao de preserva-lo, porém nfo se discute sua existéncia. Essa categoria é um dado de nossa consciéncia e de nossa linguagem; um pressu- posto que dirige nossos julgamentos e raciocinios. Ainda que possamos usar a categoria patriménio em contextos muito diversos, € necessério adotar certas precaugdes. E preciso contrastar cuidadosamente as concepgdes do observador e as con- cepgées nativas. Recentemente, construiu-se uma nova qualificagao: o “patrimé- nio imaterial” ou “intangivel”. Opondo-se ao chamado “patriménio de pedrae cal”, aquela concepgio visa a aspectos da vida social e cul- tural dificilmente abrangidos pelas concepgdes mais tradicionais. Nessa nova categoria cstdo lugares, festas, religioes, formas de medicina popular, musica, danga, culinaria, técnicas etc. Como su- gere o préprio termo, a énfase recai menos nos aspectos materiais e mais nos aspectos ideais ¢ valorativos dessas formas de vida. Di- ferentemente das concepgées tradicionais, nao se propée o tom- bamento dos bens listados nesse patrimdnio. A proposta existe no sentido de registrar essas praticas e representagdes e acompanhé- las para verificar sua permanéncia ¢ suas transformacGes. A iniciativa é bastante louvavel, porque representa uma inovag4o e flexibilizagdo nos usos da categoria “patriménio”, particularmente no Brasil. Ela oferece, também, a oportunidade de aprofundar nossa reflexiio sobre os significados que pode assumir essa categoria. Para isso, gostaria de trazer uma experiéncia recente como pesquisador. Nos tiltimos anos, venho realizando pesquisas sobre as Festas do Divino Espirito Santo entre imigrantes agorianos, nos Estados Uni- dos ¢ no Brasil. Podemos dizer que essas festas constituem um “fato de civilizagao”, no sentido atribuido por Marcel Mauss a esse termo (1981, p. 475-493). Ndo se restringem a uma determinada rea social e cultural, transcendendo fronteiras nacionais e geogrdficas. E, vas- ta sua drea de ocorréncia: Agores, Canada, Estados Unidos (Nova Inglaterra e Califérnia, principalmente) e Brasil (especialmente nas regidcs Sul e Sudeste). ‘© PATRIMONIO COMO CATEGORIA DE PENSAMENTO Em termos histéricos, a manifestag4o apresenta grande profun- didade. Os mitos de origem da festa referem-se A sua criagdo no século XIII, em Portugal. Mas ha referéncias sobre sua existéncia na Alemanha e na Franga, ainda no século XII. Estamos, pois, diante de uma estrutura de longa duracao. Trata-se, também, de um “fato social total’, na medida em que envolve arquitetura, culindria, muisica, religiao, rituais, técnicas, esté- tica, regras juridicas, moralidade etc., 0 que suscita algumas questdes relativamente voltadas as concepgdes de patriménio. Em especial pelo fato de essas diversas dimensdes nao aparecerem, do ponto de vista nativo, como categorias independentes. Evidenciam-se de modo simbélico, totalizadas pelo Divino Espirito Santo. Este, por sua vez, € representado nao exatamente como a terceira pessoa da Santissima Trindade, mas como uma entidade individualizada e poderosa. Essas festividades séio exemplo do que poderiamos chamar de “patriménio transnacional”. Todavia, classificar essa festa como pa- triménio exige cautela. E preciso reconhecer algumas nuangas nas representagées do que se pode entender por patriménio. E bem verdade que sao as préprias liderangas agorianas que fa- Jam de um “patrim6nio acoriano” ou da agorianidade. Mas esse uso est4 distante das concepgGes assumidas pelos devotos do Espirito Sante em sua vida cotidiana. A diferenga fundamental encontra- se precisamente no uso das categorias “espirito” e “matéria’, que sao diversamente concebidas por intelectuais e liderangas acoria- nas, pelos padres da Igreja Catélica e pelos devotos. Do ponto de vista dos devotos, a coroa, a bandeira, as comidas, os objetos (todo esse conjunto de bens materiais que integram a festa sao propriedade das irmandades) sdo, de certo modo, mani- festagdes do proprio Espirito Santo. Do ponto de vista dos padres, so apenas “simbolos” (no sentido de que séo matéria e nao se con- fundem com 0 espirito). Na visdo dos intelectuais, sao apenas re- presentacGes materiais de uma “identidade” ¢ de uma “memédria” étnicas. Sob essa 6tica, as estruturas materiais que poderiamos clas- sificar como patriménio sao, primeiramente, boas para identificar. 23 30 MEMORIA E PATRIMONIO As classificagdes dos devotos sao estranhas a tal concepedo de patrimdnio. Do ponto de vista deles, trata-se fundamentalmente de uma relagao de troca com uma divindade. E, de acordo com essa concepgao total, culindria, objetos, rituais, mitos, espirito, matéria, tudo se mistura. Sabemos do carater fundador dessas relagdes de tro- ca com os deuses, Segundo Marcel Mauss (1974, p. 63), foi com eles que os seres humanos primeiro estabeleceram relagGes de troca, uma vez que aqueles eram “os verdadeiros proprietarios das coisas e dos bens do mundo’. : Como podemos usar adequadamente, em contextos como es- ses, a categoria “patrim6nio”? E possivel ali, certamente, identificar estruturas espaciais, objetos, alimentos, rezas, mitos, rituais nessa categoria. Mas é preciso nao naturaliz4-la e impor Aquele conjunto um significado peculiar e estranho ao ponto de vista nativo. Ha uma diferenga basica que reside no modo como € representada a oposicéo entre matéria e espirito. Sabemos que a concepgio de uma matéria depurada de qualquer espfrito € uma construgao mo- derna (id., ib., p. 163). O mesmo acontece com um espfrito, indepen- dentemente de toda e qualquer materialidade. Nao é a partir dessa dicotomia que pensam os devotos. E necessario levar em conta esse fato, se quisermos entender a concepgo nativa de patriménio. £ possivel preservar uma “graca” recebida? E possivel tombar os “sete dons do Espirito Santo”? Certamente nao. Mas é posstvel, sim, preservar, por meio de registros e acompanhamento, lugares, objetos, festas, conhecimentos culindrios etc. E nessa direcdo que caminha a nogdo recente de “patriménio intangivel”, nos recentes discursos brasileiros acerca de patriménio. E curioso, no entanto, o uso dessa nogao para classificar bens téo tangfveis quanto lugares, festas, espetdculos e alimentos. De certo modo, essa nog4o expressa a moderna concepgdo antropo- légica de cultura. Segundo ela, a énfase esté nas relagdes sociais ou mesmo nas relagées simbdlicas, mas nado nos objctos e nas téc- nicas. A categoria “intangibilidade” talvez esteja relacionada a esse carater desmaterializado que assumiu a referida moderna nogao antropoldgica de cultura. Ou, mais precisamente, ao afastamento © PATRIMONIO COMO CATEGORIA DE PENSAMENTO 31 dessa disciplina, ao longo do século XX, do estudo de objetos ma- teriais e técnicas (Schlanger, 1998). Nao por acaso, so antropdlo- gos muitos dos que esto a frente daquele projeto de renovagao ou ampliagao da categoria patriménio. Do ponto de vista dos devotos, 0 patriménio é pensado nao exa- tamente como um simbolo de realidades espirituais, nem, necessa- riamente, como representagées de uma identidade étnica agoriana. Na verdade, ele € pensado como formas especificas de manifesta- ¢40 do Divino Espirito Santo. Afinal, os seres humanos usam seus simbolos sobretudo para agir, € nao somente para se comunicar. O patriménio é usado nao apenas para simbolizar, representar ou comunicar: é bom para agir. Essa categoria faz a mediagdo sensivel entre seres humanos e di- vindades, entre mortos e vivos, entre passado e presente, entre o céu ea terra e entre outras oposigdes. Nao existe apenas para re- presentar ideias e valores abstratos e ser contemplado. O patri- ménio, de certo modo, constréi, forma as pessoas. Vale sublinhar que esses diversos significados nao se excluem. As mesmas pessoas podem operar ora com um, ora com outro sig- nificado, como no caso da “coroa do divino”, um elemento ex- tremamente importante desse patrim6nio. Exposta num museu, estabelece a mediagdo entre os visitantes e a “cultura acoriana”, torna visivel essa dimensao do “invisfvel” (Pomian, 1997). Numa ir- mandade religiosa, circula entre os irmios, est4 presente em festas € ceriménias, nos almogos rituais, manifestando concretamente a presenca do Espirito Santo, fazendo uma mediago sensivel entre a divindade e seus devotos. No ultimo contexto, nao se trata de uma simples coroa de prata. No contexto de uma exposicaio museolégi- ca, € um objeto cultural, parte do chamado “patriménio agoriano”, aqui entendido em seu sentido estritamente moderno. A originalidade da contribuigado dos antropélogos a construgao € ao entendimento da categoria “patriménio” reside, talvez, na ambi- guidade da nocao antropolégica de cultura, permanentemente ex- posta as mais diversas concepgdes nativas. Explorando essa dire- go de pensamento, é a prépria categoria patriménio que ver a ser 32 MEMORIA E PATRIMONIO pensada etnograficamente, tomando-se como referéncia 0 ponto de vista do outro. Pergunta-se: em que medida essa categoria é titil para entender outras culturas? Em que medida permite entender o universo mental e social de outras populagdes? Marcel Mauss (1974, p. 205) dirigia aos antropdlogos a famosa recomendagao: [...] antes de tudo, [¢ necessario] formar 0 maior catdlogo possivel de categorias; é preciso partir de todas aquelas das quais é possivel saber que os homens se serviram. Ver-se-4 entdo que ainda existem muitas luas mortas, ou pdlidas, ou obscuras no firmamento da razio. Estamos certamente diante de uma dessas categorias. E neces- s4rio comparar os diversos contornos semnticos que ela péde e poderé ainda assumir no tempo e no espago. Contudo, no cumpri- mento dessa tarefa, é importante assinalar que nos situamos num plano distinto das discussées de ordem normativa e programatica sobre o patriménio. Nao poderemos responder qual a melhor op- ¢ao em termos de politicas de patriménio. Mas, apontando para a dimensao universal dessa nocdo, talvez possamos iluminar as ra- z6es pelas quais os individuos e os grupos, em diferentes culturas, continuem a usé-la. Mais do que um sinal diacritico a diferenciar nagées, grupos étnicos e outras coletividades, a categoria “patrimé- nio”, em suas variadas representac6es, parece confundir-se com as diversas formas de autocensciéncia cultural. Ao que parece, esta- mos diante de um problema bem mais complexo do que sugerem os debates politicos e ideolégicos sobre 0 tema do patriménio. Refer&ncias CuirrorD, J. Objects and selves: an afterword. In: Srockine, G. (org,) Objects and others: essays on museums and material culture. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985. © PATRIMONSO COMO CATEGORIA DE PENSAMENTO Ma inowski, B. Argonauias do Pacffico ocidental. Sao Paulo: Abril, 1976. Col. Os Pensadores. Mauss, M. Ensaio sobre a dadiva: forma e razao da troca em sociedades areaicas. In: Sociologia e axtropologia. Sa0 Paulo: Edusp, 1974. Civilizagées: elementos ¢ formas. In: Ensaios de sociologia. Sao Paulo: Perspectiva, 1981. Pomian, K. Colegao. In: Rucctero, R. Enciclopédia Einaudi: Memdria- historia. Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987. v. 1, p. 51-87- Scuvancer, N. The study of techniques as an ideological challenge: tech- nology, nation, and humanity in the work of Marcel Mauss. In: James, W.; Aven, N.J. (orgs.) Marcel Mauss: a centenary tribute. Nova York/ Oxford: Berghan Books, 1998. 33, 34 ‘A EMERGENCIA DO PATRIMONIO GENETICO E A NOVA CONFIGURAGAO DO CAMPO DO PATRIMONIO* REGINA ABREU A presente comunicagdo pretende refletir sobre a emergéncia do chamado patriménio genético, relacionando-a a nova configuragao do campo do patriménio. Parto da suposigao de que h4 uma tensao constitutiva da trajetéria do campo do, patriménio entre o particular € 0 universal, entre 0 privado e 0 puiblico, e de que, no caso da ca- tegoria “patriménio genético”, essa tensdio manifesta-se sob novas roupagens. Gostaria de apresentar alguns elementos dessa confi- guracdo, que permitiram o surgimento dos chamados “patriménios emergentes” — 0 genético e o intangivel —, atentando para o lugar a ser ocupado pelas ciéncias sociais nesse debate. Pretendo, ainda, sinalizar que esse é um lugar de tensdes e dispu- tas de interesses diversificados, especialmente entre o Estado, a sociedade civil € as instituigdes de pesquisa. De antemao, gostaria de salientar a necessidade de qualificagao desse debate, em parti- cular de categorias usualmente veiculadas como “cultura”, “tradi- ¢40” e a propria categoria “patriménio”. A nogio de patriménio traz em seu bojo a ideia de propriedade. Etimologicamente, traduz a concepgao de heranga paterna. No sentido jurfdico, refere-se a um complexo de bens, materiais ou * Comunicago apresentada na mesa-redonda “Patriménios emergentes € novos desa- fins: do genético uo intangivel”, durante a 26* Reunido Anual da Associagao Nacional de Pés-Graduagio em Ciéncias Sociais, em Caxambu, em 23 de outubro de 2002. A EMERGENCIA DO PATRIMOMIO GENETICO... 35) nao, direitos, agdes, posse e tudo o mais que pertenga a uma pessoa ou empresa e seja suscetivel de apreciagdo econdmics Foi apenas a partir do idedrio desencadeado pela Revolucao Francesa que 0 significado de patriménio estendeu-se do privado, dos bens de uma pessoa ou de um grupo de pessoas — a nobreza -, para 0 conjunto dos cidadaos. Desenvolve-se a concepgao de bem comum e, ainda, de que alguns bens formam a riqueza material e moral do conjunto da nagao. £ no perfodo pés-revoluciondrio que obras de arte, castelos, prédios e também paisagens vio constituir todo um arsenal de bens a serem preservados para um conjunto maior de pessoas. A emergéncia da nogao de patriménio, como bem coletivo associado ao sentimento nacional, da-se inicialmente num viés hist6rico e a partir de um sentimento de perda. Era preciso salvar os vestigios do passado, ameagados de destruigdo. Em 1832, Victor Hugo escreveu um artigo sobre a necessidade de proteger o patrimdnio histérico, que enunciava uma espécie de lei moral que comecou a ser formulada sobre o patriménio a ser salvaguardado para todos os membros da comunidade nacional. Associado a dire- c&o histérica naquele momento, o conceito de patriménio tendeu a ser absorvido como uma heranga artistica e monumental, na qual a populagdo poderia se reconhecer sob © novo formato do Estado- nacio. Opondo-se a sentimentos revoluciondrios que ameagavam destruir todas as aquisigées de épocas anteriores, alguns intelec- tuais insurgiram-se contra o “vandalismo”, fomentando o fervor patriotico. Assim, as herangas dos nobres eram apropriadas como herangas do povo de cada Estado-nacao, sendo relidas com novos sinais diacriticos. Uma nova histéria heroica das nagdes passou a ser construfda, em que nao mais os individuos — reis, lideres, he- réis ~ eram os sujeitos. A partir de entao, o novo sujeito da historia era 0 povo. Esse ponto de partida da trajetéria de uma moderna acepgao de patrim@nio nacional teve uma série de desdobramentos no chama- do concerto das nagées. Instituicdes foram criadas, politicas publi- cas implementadas. Mesmo em nacdes do Oriente, como no Japao ou na Coreia, onde uma série de medidas operacionais foi posta 36 MEMORIA E PATRIMONIO em pratica, tendo em vista o rdpido desaparecimento de formas tradicionais de viver (moradia, habitos, costumes ctc.), desenvol- veram-se formas de protec%o ao patriménio nacional, ainda que com concep¢ées de patriménio nacional diversas das t{picas do Ocidente. A vertente universalista do pensamento moderno no Ocidente en- fatiza outro conceito que funcionard em tensdo com a ideia de bem coletivo nacional: o de humanidade. O patriménio nacional, além de constituir uma referéncia para a construgao de uma identida- de comum a um povo que compartilha o mesmo territério nacional, estaria também referido ao que de melhor a humanidade produziu. A nogio de preservagao de obras de arte e bens de valor histérico e simbdlico nos uniria a ideia de preservagao de um acervo teoricamen- te disponivel para toda a humanidade. Era preciso, portanto, preser- var um grande acerve de realizagdes, comum a todo o género huma- no. Esbogava-se, assim, a nogao de patriménio da humanidade. A tensao entre uma vertente particularista — nacionalista — ¢ uma vertente universalista do patriménio esteve presente durante todo o século XIX, atravessando o século XX. Pode-se dizer que, em certos momentos, houve predominio de uma delas e, em ou- tros, o de vertente distinta. De qualquer modo, até os primeiros anos do século XX, 0 que sobressaiu, em termos de construcao do patriménio nacional (leia-se “bem coletivo”), foi a nogdo de que cle era histérico e artistico. No final da Segunda Guerra Mundial, anotamos outro ponto de inflexao. A criagdo da Unesco, na década de 19409, refletiu a tenta- tiva de quebrar os antagonismos entre as nagdes. Nesse contexto, destacou-se a vertente universalista da nogado de patriménio da hu- manidade. A Unesco representava a proposta de cria¢’io de meca- nismos capazes de colocar, em relagao, varias culturas nacionais. Uma nova questdo que tomou vulto naquele momento foi sobre 0 conceito antropolégico de cultura. Contrapondo-se as tendén- cias racistas que haviam desencadeado a guerra que acabara de acontecer, 0 conceito antropolégico de cultura foi apropriado como antidoto aos conflitos entre os povos. Cientistas sociais, especial- A EMERGENCIA 00 PATRIMONIO GENETICO.... 37 mente antropélogos, foram chamados para tracar planos de agio e de investigagao, na drea do patriménio, que contemplassem as chamadas diversidades culturais. O antropélogo Claude Lévi-Strauss, bastante atuante no periodo, chamou a ateng&o para o fato de que o relacionamento entre as cul- turas seria a forma mais positiva de atualizar o idedrio da igualdade dos homens, em suas realizagées particulares. Ielineava-se a ideia de que havia um patriménio cultural a ser preservado e que incluia nfo apenas a histéria e a arte de cada pafs, mas 0 conjunto de reali- zag6es humanas em suas mais diversas expressdes. A nocao de cultu- ra inclufa habitos, costumes, tradicdes, crencas; enfim, um acervo de realizagdes materiais, ¢ imateriais, da vida em sociedade. Duas concep¢ées afirmaram-se: em primeiro lugar, a de que mesmo no interior do contexto nacional existiam culturas diversas e plurais, ou seja, a de que cada nagdo comportaria uma infinidade de culturas e subculturas; em segundo, a nog4o de que a cultura congregava bens materiais € imateriais ou intangiveis. E nessa €poca que se fomen- tou o trabalho de folcloristas ¢ antropdlogos, capazes de inventariar as tradigdes, as narrativas orais, as diversas formas de musicalidade e da inventiva poética popular. Se até entao na trajetéria do patriménio predominara a ago en- volvendo bens relativos & cultura material, em que a énfase girou em torno de bens com atribui¢do de valor artfstico e histérico, a apropriacao do conceito antropolégico de cultura no campo do patriménio revelou uma passagem importante. A ideia de um povo indiscriminado como sujeito da nagao da lugar @ concepgiio de um povo segmentado, formado por uma mul- tiplicidade de culturas. As consequéncias da difusdo da nogao de diversidade cultural se fazem sentir ainda hoje. De infcio, cientis- tas sociais, em particular os antropélogos, e profissionais especia- lizados em patriménio trabalham no sentido de inventariar os sinais e tragos da multiplicidade cultural em cada contexto nacio- nal. A ideia do Museu do Homem nasceu nesse percurso, subli- nhando a unidade da espécie humana em suas realizages particu- lares. Foram recriadas ambientacdes de varias culturas, de pontos 38 MEMORIA E PATRIMONIO. os mais diversos do plancta, a fim de tecer um amplo painel do género humano. A equagao antropoldgica da construgao da alteri- dade, a partir da pesquisa etnogrdfica empreendida por um sujeito do conhecimento especialmente treinado, 0 antropdlogo, foi leva- da a limites extremos. Da construgao de uma alteridade distante, com as culturas exéticas ¢ estranhas ao observador, passou-se pelo estudo do contato entre diversas alteridades, chegando-se a estu- dar a alteridade proxima — culturas urbanas que faziam parte do contexto do mesmo antropélogo. No final do século XX, assistiu-se ao desabrochar dos estudos sobre alteridades minimas, quando o antropélogo passou a es- tudar o préprio grupo de antropélogos como uma cultura pecu- liar. O estudo das culturas e, consequentemente, a luta pela pre- servagio das mesmas estendeu-se ao infinito. Indigenas, negros, mulheres, indonésios, imigrantes, proletdrios, burgueses e diversas categorias criadas, como expressdes de construcées de culturas e/ ou identidades singulares, passaram a reivindicar a preservagao de patriménios préprios. Numa sociedade em que as culturas seriam cada vez mais objetificadas, para usar a expressao de Richard Han- dier, todos passaram a estar conyencidos de “ter scus préprios pa- triménios” e da necessidade de preserva-los, O dado novo, que surgiu nos anos 1970 e se intensificou j4 no século XI, consistiu na organizago dos grupos sociais, seja em par- tidos, seja em ONGs, seja em instituigdes ou em movimentos. Com © processo de descolonizacao dos tiltimos redutos na Africa e no Oriente, essa tendéncia propende a expandir-se por todo o planeta. Na arca do patriménio, a aca&o cada vez mais importante das grandes organizacées internacionais sinaliza neva configuragao de forgas que, a partir de certo perfodo, extrapolou as fronteiras na- cionais. A Unesco, com sede em Paris, e a Organizagao Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), com sede em Genebra, lideram aces e sugerem politicas com amplas repercussdes em Ambito pla- netario. Além disso, significativos encontros, como a Conferéncia das Nagées Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco 92), realizada no Rio de Janeiro, emergiram como féruns de A EMERGENCIA DO PATRIMONIO GENETICO... 39 longo alcance, estimulando cada nag&o a incorporar e redirecionar suas politicas internas. Nesse processo, grupos sociais organizados passaram, e ainda o fazem, a interferir, demonstrando grande vita- lidade da sociedade civil na formagao de redes globais. O chamado terceiro setor dispde cada vez mais de ramificagées internacionais, que nao raro se traduzem na distribuigao de patrocinios e alocagao de recursos de forma globalizada. ll E nesse contexto que emergem as nocées de patriménio genético e de patriménio intangivel. Ambas estdo intimamente relacionadas e dizem respeito a um momento de redirecionamento das preocu- pacées da ordem mundial. Durante a Eco 92, foi assinado pelos paises participantes a Con- vencao de Diversidade Biolégica, um conjunto de princfpios, visan- do a nortear os interesses e direitos que recaem sobre os recursos genéticos. Esse documento estabelecia normas que deveriam reger o.uso e a protecao da diversidade biolégica em cada pais signatario. Em linhas gerais, a convencdo propunha regras para assegurar a conservacio da biodiversidade, seu uso sustentavel e a justa repar- tic¢&io dos beneficios provenientes do uso econdmico dos recursos genéticos, respeitada a soberania de cada nagdo sobre o patriménio existente em seu territério. O tema dos recursos naturais do pla- neta transformava-se, pois, em objeto de amplo debate de ambito nacional e internacional. Estava em jogo novamente a tensao en- tre duas ideias-forga: o universal e o particular, que se traduziam ora pela defesa de ideais voltados para toda a humanidade, ora pela defesa de particularismos ¢ singularidades locais, regionais e mesmo nacionais. Uma das grandes novidades da Convengao de Diversidade Bio- l6gica consistia em sinalizar para a formulagdo de politicas volta- das para a garantia de direitos especiais aos povos indfgenas e as populagées ditas tradicionais sobre recursos genéticos, reconhe- 40 MEMORIA E PATRIMONIO cendo a estreita relagao entre a conservacdo destes recursos € os conhecimentos, 0 modo de vida, os costumes e as tradigdes de tais populagdes. Segundo os termos desse documento, esses grupos ét- nicos interagiriam com 0 ambiente natural, conhecendo-o profunda- mente e conservando-o, uma vez que desenvolveriam atividades de pouco ou quase nenhum impacto. A nogao de patriménio genético aponta para novos interesses € expressa outra categoria jurfdica. Nao se trata mais de expressar um cardter jurfdico definidor de propriedade estatal ou privada de cujo valor reside fundamentalmente na possibilidade e na necessidade de seu uso coletivo, garantindo o mais amplo possivel acesso da populagdo a eles, posto que constituem recursos essenciais para a garantia de vida digna da populag&o humana, inclusive as futuras geragdes. Nesse sentido € que o patriménio genético enquadra-se em categorias de bens de interesse difuso ou piiblico, categorias um recurso material, mas sim de bens materiais e imateriai: juridicas ainda em construgio, tanto pela doutrina quanto pela Je- gislagao. A partir da promulgacdo da Convengao de Diversidade Biolé- gica, o governo brasileiro vem procurando estabelecer regras para 0 acesso ao patrimGnio genético nacional. A Constituigao Fede- ral, promulgada em 1988, determina, no artigo 225 do capitulo VI (que trata do meio ambiente), a incumbéncia do poder publico de preservar a diversidade e a integridade do patrim6nio genético do pats, além de fiscalizar as entidades dedicadas & pesquisa e mani- pulagdo do material genético. Desde entéio, um conjunto de medidas provisdrias foi editado, visando a estabelecer 0 conceito de patriménio genético e regular, a “bioprospecgao”, como atividade exploratoria de uso potencial- mente comercial. Uma dessas medidas provisdrias criou 0 Con- selho de Gestdo do Patriménio Genético, composto por represen- tantes de érgaos e entidades da Administragao Publica Federal. A participacao exclusiva de representantes do aparelho de Estado nesse conselho, durante 0 governo de Fernando Henrique Cardo- so, gerou uma onda de protestos de ONGs e representantes de di- ferentes comunidades. A entao senadora Marina Silva, do PT do A EMERGENCIA DO PATRIMONIO GENETICO... Acre, chegou a designar o conselho de “chapa-branca”. Além disso, 0 governo sofreu acusagées desses setores por nao ter ainda pre- visto penas para os crimes contra o patrimGnio genético. A Area de abrangéncia do patriménio genético é ampla ao ex- tremo, relacionando-se intimamente com o desenvolvimento da Medicina e da Biologia, com os processos de clonagem e os pro- jetos do genoma. Ambientalistas, economistas e empresarios vém chamando a atengao para a riqueza do patriménio natural brasileiro, equivalente a 2 trilhdes de délares, capaz de transformar o pafs na maior po- téncia mundial da bioeconomia. O otimismo nesse setor é de tal ordem que o Brasil jf chegou a ser considerado a “Arabia Saudita da Opep Biolégica”, por analogia a riqueza petrolifera de tal na- cao. A vantagem competitiva do Brasil € vista como inigualavel, em fungao da riqueza de sua biodiversidade. A variedade de espé- cies de plantas e animais existentes nos ccossistemas brasilciros contém um verdadeiro tesouro biolégico de genes, moléculas c micro-organismos. Os genes sdo, cada vez mais, a matéria-prima das biotecnologias que se espalham pela industria farmacéutica, de agrobusiness, de quimica industrial, de cosmética, de medicina botanica e de horticultura. O crescente mercado mundial de pro- dutos biotecnolégicos movimentou, durante o ano de 2001, segun- do informagées da revista Exame (2001), entre 470 ¢ 780 bilhdes de délares. Acredita-se que, dos dezessete paises mais ricos em biodiversidade do mundo (entre os quais figuram Estados Uni- dos, China, India, Africa do Sul, Indonésia, Malisia ¢ Colém- bia), o Brasil est em primeiro lugar disparado, sendo detentor de 23% do total das espécies do planeta. ‘Irocando em mitidos, enquanto a Sufca tem apenas uma planta endémica (que sé exis- te 14), a Alemanha dezenove e 0 México 3 mil, no Brasil, apenas na Amaz6nia, existem 20 mil plantas endémicas. Além disso, ha as espécies de vegetais, mam/feros, aves, répteis, insetos ¢ peixes da Mata Atlantica, do cerrado, do Pantanal, da caatinga, dos man- guezais, dos campos sulinos e das zonas costeiras. Apenas 5% da flora mundial foram cstudados até hoje e s6 1% € utilizado como matéria-prima. A biodiversidade brasileira, portanto, € 0 cofre 4 a2 MEMORIA E PATRIMONIO de um patriménio quimico inexplorado de remédios, alimentos, fertilizantes, pesticidas, cosméticos, solventes, fermentos, téxteis, plisticos, celulose, dleos e energia, em ntimero quase infinito. A expansao das biotecnologias e a crescente apropriacao dos re- cursos naturais abriram uma nova fronteira de negécios. Intimeras empresas ingressam no novo setor e investem pesado em novos empreendimentos no setor de biotecnologia, como a Votorantim Ventures, o Ventana Global, o Bank Boston Capital, a Natura, 0 Fundo FIR Capital Partners, em Minas, e a Embrapa. No Rio de Janeiro, destaca-se a Extracta, que atualizou o banco de espécies da Mata Atlantica da Glaxo, realizando testes sobre a reagao de oito agentes de doencas as 30 mil substancias do banco. Até recentemente, a coleta de material biolégico para exploragao de recursos genéticos — a chamada “bioprospecgao” — era pratica- mente livre; consequentemente, a biopirataria realizava-se em larga escala. Os genes eram importantes apenas para os cientistas, e seu valor prético, pouco conhecido. A novidade mais perturbadora foi a veloz transformag3o do gene em commodity. O grande mérito da Convengao sobre a Diversidade Biolégica, consagrada na Eco 92, foi o de estabelecer 0 principio da soberania dos paises sobre seus proprios recursos genéticos. Hoje, efetivamente, hd genes que valem mais do que ouro. Em todo 0 mundo, a questao da titularidade da propriedade genética gera vastos problemas éticos, politicos e religio- sos, que se refletem nas leis sobre patentes. Poucos paises, dos 170 que jé ratificaram a convengo, promulgaram legislagao regulamen- tando a matéria. Para os que tém poucos recursos naturais, a questao pode ser menor; nao é 0 caso do Brasil. As leis de patentes permitem que um principio ativo, revelado pelo conhecimento tradicional da Medicina Botanica numa comu- nidade, possa ser registrado como propriedade em outro pais. Ga- sos alarmantes tém sido denunciados por algumas ONGs, como 0 do registro de patentes de beberagens produzidas em sociedades indigenas ou entre comunidades na Amazé6nia, com alto valor te- rapéutico e calmante. Desse modo, os royalties pelas vendas dos produtos jamais retornam a essas comunidades. A EMERGENCIA DO PATRIMONIO GENETICO... 43 A convengao da biodiversidade desencadeou uma série de de- bates posteriores sobre a Propriedade Intelectual dos Recursos Ge- néticos, Conhecimentos ‘[radicionais ¢ Folclore. A Ompi chegou a criar, no inicio de 2003, um comité intergovernamental para discutir a matéria. No Brasil, o Instituto Nacional da Propriedade Indus- trial, responsdvel pelos registros de marcas e patentes, ven acom- panhando o debate da Ompi e promete trabalhar no sentido de es- timular a criagao de uma legislacao capaz de proteger os chamados conhecimentos tradicionais, definidos como inovagées € criagdes de base tradicional, resultantes da atividade intelectual nos campos industrial, cientéfico, literdrio ou artistico. Em outras palavras, no contexto da biodiversidade, importa iden- tificar e proteger o conhecimento tradicional em torno do uso para fins medicinais e biolégicas das propriedades da fauna e da flo- ra. Para legislar sobre a matéria, e tomando como base o conceito de “conhecimento tradicional’, a intengdo é identificar e proteger comunidades produtoras de saberes singulares, especificos e tini- cos, seja na etnobotanica, seja na produgao de arte ¢ de artesanato. Mais uma vez prevalecc a ideia de protegao do “saber-fazer”. O gran- de desafio consiste em criar uma legislagado que comprcenda inte- resses coletivos, uma vez que o conjunto de leis sobre propricdade intelectual protege apenas a criacao individual. No Brasil, as comunidades mais diretamente afetadas pelas no- vas forgas que se desenham no horizonte, a partir das questdes ligadas a biodiversidade e & biotecnologia, sio as comunidades indigenas. O ouro verde brasileiro encontra-se, em grande parte, preservado nos territérios ind{genas. Essas populagées, juntamen- te com raizeiros, erveiros e agrupamentos de agricultores tradicio- nais, séo detentores do conhecimento tradicional sobre a fauna € a flora, imprescindiveis para os novos procedimentos da ciéncia. Liderancas indigenas tém participado ativamente desse debate. Em dezembro de 2001, cerca de vinte pajés de diversas nagées in- digenas reuniram-se em Sao Lufs, no Maranhao, no Encontro de Pajés: a Sabedoria e a Ciéncia do Indio e a Propriedade Industrial — Reflexdes e Debates. Nesse evento, elaborou-se uma carta, com as ptincipais posigdes dos indios a respeito da questdo, que foi levada 44 MEMORIA E PATRIMONIO a II Reuniao do Comité Intergovernamental relative a propriedade intelectual, aos recursos genéticos, aos conhecimentos tradicionais e ao folclore, que ocorreu ainda em dezembro de 2001. Em linhas gerais, 0 contetido da Carta dos Pajés afirma o direito & autodeterminagdo dessas comunidades, no que tange ao patri- ménio pelo qua! zelam e preservam. Agées assim assinalam o es- forgo da sociedade civil em se organizar ¢ lutar por seus interesses. Entretanto, a arregimentacao dessa sociedade civil e, em especial, a disposicao das chamadas comunidades tradicionais em lutar por interesses préprios trouxeram novos elementos para 0 debate na- cional e internacional. Predominantemente concebida no século XIX como um grupo de individuos “livres e auténomos’, a nagdo passou a configurar, no século XXI, um coletivo de individuos or- ganizados e, até certo ponto, seccionados em ONGs e movimen- tos, o que € bem diferente. Por outro lado, no caso do patriménio genético, nogdes polémicas como conhecimento tradicional sao invocadas para dar suporte a direitos coletivos. Como regular e legislar em torno de um patriménio que, em Ultima instancia, esta relacionado & sobrevivéncia do planeta? Alguns ativistas levantam a questao do fim das patentes no caso do patriménio genético, Jangando um tratado para que seja con- siderado um bem comum do planeta. Segundo os militantes, nao se deve permitir que instituigdes ou individuos reclamem a infor- ma¢ao genética como comercialmente negocidvel ou propriedade intelectual dos governos. O patriménio genético comum € um le- gado a ser compartilhado sendo, portanto, de responsabilidade coletiva. A iniciativa referida pretende proibir todas as patentes na vida das plantas, dos micro-organismos, dos animais ¢ dos seres humanos. Durante o II] Forum Social Mundial de Porto Alegre, em janeiro de 2003, uma ampla campanha pela transformagéio de toda e qualquer semente em patriménio da humanidade foi langa- da pelo Movimento dos Sem Terra e pela Via Campesina, inaugu- rando importante forma de luta contra empresas transnacionais, como a Monsanto, que realizam experimentos de modificacao ge- nética em produtos agricolas e sementes, os chamados transgéni- cos. Segundo representantes desses movimentos, a transformagao A EMERGENCIA DO PATRIMONIO GENETICO.., 45 dos genes em fontes de grandes negécios — os agrobusinesses — pode levar ao que eles denominam “extermfnio do futuro”, uma vez que, levadas as tiltimas consequéncias, modificagées genéticas em sc- mentes associadas a patentes que garantam a seus proprietarios a exclusividade na negociagdo das mesmas podem vir a gerar uma dependéncia extrema das comunidades, em especial das popula- g6es rurais, para com essas empresas. Abolir qualquer modalidade de patente ou de explorago comercial nesse delicado setor de alimentos vem se configurando como importante bandeira de Tuta por parte de amplos setores da sociedade. tl No infcio do novo milénio, nota-se claramente que o campo do patrim6nio apresenta-se como um espaco de conflitos ¢ intercs- ses contraditérios. Hoje, tais conflitos ¢ interesses ndo sao mais os mesmos que nortearam essa tematica em séculos anteriores. Houve, pelo menos, duas mudangas significativas nesse quadro: a organizacao da sociedade civil e a afirmagao do conceito antro- polégico de cultura, com a consequente naturalizagdo da nogio de diversidade cultural. Paralelamente, novas forgas vém se im- pondo, provocadas pela biodiversidade ¢ pela biotecnologia, o que complexifica ainda mais o debate. Se outrora o campo do patriménio firmou-se com base num Es- tado nacional, comprometido com a ideia de que a nagao tinha um passado e que era preciso salvé-lo do esquecimento, hoje, a drea do patriménio estrutura-se de maneira prospectiva em direcao ao futuro. A palavra de ordem é “diversidade”: cultural, mas também natural ou biolégica. Todavia, mais do que salva-la ou guardar seus fragmentos, trata-se de criar condigdes para que ela se promova no porvir. S6 que essa promocao das diversidades culturais ou natu- rais e biolégicas nao pode correr o risco de ficar aprisionada em ret6ricas particularistas. O reconhecimento dos chamados conhe- cimentos tradicionais nao pode ser um ensejo a guerra entre cul- turas ou ao obscurantismo. 46 MEMORIA E PATRIMONIO Qual o lugar da ciéncia e, em particular, das Ciéncias Sociais, nesse debate? Gostaria de citar dois exemplos que ensejam reflexdo. O primeiro deles refere-se a um caso apontado por uma comissao do Congresso Nacional, criada em 1997, para apurar dentincias de explorag&o e comercializagao ilegal de plantas e material genético na Amaz6nia. Esse caso singular envolveu o quimico Conrad Gorinsky, presidente da Fundagao para Etnobiologia, sediada em Londres. Ele nasceu em Roraima, onde conviveu com os indios wapixana e mo- rou até os 17 anos. Com os wapixana, Gorinsky conheceu uma drvo- re, Cuja sernente 6 usada como anticoncepcional, e uma planta que contém uma substancia venenosa, utilizada pelos wapixana na pesca. O quimico obteve, com o Escritério Europeu de Patentes, 0 direito de propriedade intelectual sobre os compostos farmacoldgicos das plantas amaz6nicas e associou-se & empresa canadense Greenlight Communications para produzir e comercializar tais medicamentos. O Brasil, e em especial os wapixana, nao recebem nenbum benefi- cio por essas patentes. O outro caso ocorreu também na Amazé6nia, na cidade de Bar- celos, a seiscentos quilémetros de Manaus. LA, 0 primatélogo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazdnia (Inpa), Mare von Roosmalen, foi autuado pelo Tbama por captura ilegal de animais. O primatélogo, um holandés naturalizado brasileiro, estava de pos- se de quatro macacos capturados nas matas da Serra de Saraca. Ele disse que teria “salvo os animais da panela”, trocando-os por frangos congelados com caboclos da regiao. Um desses macacos pertencia a uma espécie rara, ameacada de extincao. O incidente gerou um conflito entre duas agéncias governamentais: o Inpa eo Ibama. O Inpa acuson o Ibama de impedir o exercicio da ciéncia. O Ibama, por sua vez, retrucou, afirmando que exige dos pesquisadores licenga ambiental para trabalhar com espécies nativas. O Inpa alegou que as dezenas de emas que habitam o Palacio da Alvorada também nio esto regularizadas no Ibama. O primatdlogo foi indiciado pelo Ibama. Uma ONG internacio- nal de combate ao trafico de animais s Ivestres enviou uma carta de apoio a esse drgio. O debate prolongou-se e, nesse interim, A EMERGENCIA DO PATRIMONIO GENETICO... 47 um dos macacos, justamente o da espécie ameacada de extingao, morreu. Os dois casos mostram o quanto 0 novo campo do patriménio genético ter4 de lidar com acirradas polémicas, envolvendo grupos ¢ interesses diversificados. Um dos grandes riscos certamente sera o de dificultar a produgao e a difusdo cientificas. Além das agdes de 6rgios governamentais, ONGs e representantes das comunida- des tradicionais levantam questées relativas 4 autorizaco para a pesquisa em seus territérios, 0 que pe em xeque a razo de ser da ciéncia como produtora de conhecimento universal. E os cientistas sociais? Qual o papel que lhes cabe neste inicio de milénio? De certo angulo do problema, diria que cabe-lhes o papel de mediadores e articuladores. Se, num primeiro momento da historia da Antropologia, os antropdlogos eram tradutores de mundos culturalmente diferenciados, hoje, esses profissionais s40 convocados, juntamente com os demais cientistas sociais, a fazer a mediacao e a articulacao entre diferentes esferas de uma socie- dade e de um mundo plural. De tradutores passaram a parceiros. As chamadas sociedades tradicionais, bem como os diferentes grupos sociais que enriquecem o panorarna da sociedade brasilei- ra jé no constituem apenas 0 “outro” de um discurso académico. Hoje, cada vez mais, esses povos falam em seu proprio nome e reivindicam seus interesses. Por outro lado, e talvez esse seja 0 maior desafio deste milénio, as cientistas sociais nado podem, em hipotese alguma, abrir mao de suas utopias. Seria desanimador sup6-los exercendo apenas a fun- ¢&o de meros Arbitros no centro de disputas e conflitos entre cultu- ras. Ou, usando a expresséo de Adam Kuper (2002), seria mesmo desesperador imagind-los como cientistas jurdssicos, perdidos no fogo cruzado da guerra das culturas. Talvez os cientistas sociais sejam os tmicos capazes de afirmar um ponto de vista para além das disputas de interesses especfficos. O conceito antropolégico de cultura, tal como foi legado pelos pais fundadores da Antropologia, nao é desprovido de humanismo. Ao formular a ideia de diversidade cultural, € preciso levar em conta 48 MEMORIA £ PATRIMONIO. o substrato que a ancora: as culturas sao diversas como expressdes da igualdade entre os homens. E preciso, pois, ficar atento a essa dimensao primeira, embora nem sempre explicitada, no campo do patrimdnio, a dimensao de humanidade. E preciso, ainda, subli- nhar a dimensao que constitui a raziio de ser da nocdo de patrimé- njo, como heranga e legado que se transmite a novas geragdes: a dimensao da vida. Também neste inicio de milénio, os cientistas sociais t’m um importante papel, no sentido de construir uma terceira via com relagao ao debate dos patriménios emergentes, em especial do pa- triménio genético. Uma via capaz de ohar cada aquisigao nesse campo como parte de um tesouro maior de toda a humanidade, cada conhecimento tradicional como parte de um acervo das aqui- sigdes universais do pensamento, cada gene come o elo de uma cadeia maior que reproduz a vida. Referéncias Arey, R, Sindrome de museus? In: Encontros e estudos 2. Rio de Janeiro: MinC/Funarte, 1996 Cuastec, A. La notion de patrimoine. In: Nora, P. Les liewx de imémoire. Paris: Gallimard, 1986. Hanpter, R. 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A FACE IMATERIAL DO PATRIMONIO CULTURAL: OS NOVOS INSTRUMENTOS DE RECONHECIMENTO E VALORIZAGAO MARCIA SANT/ANNA Preservar a memoria de fatos, pessoas ou ideias, por meio de cons- trutos que as Comemoram, narram ou representam, 6 uma pratica que diz respeito a todas as sociedades humanas. E, pode-se dizer, um universo cultural e é essa fun¢ao memorial que est4 por tras da nogao de monumento em seu sentido original. Conceito, alids, que se encontra vinculado ainda a uma produgao simbélica, A instituigao de um objeto como monumento por um grupo € & ca- pacidade deste de atuar sobre a meméria coletiva (Serra, 1991, p- 6-80). O monumento trabalha ¢ mobiliza a memGria coletiva por meio da emogao e da afetividade, fazendo vibrar wm passado sele- cionado, com vistas a “preservar a identidade de uma comunidade étnica, religiosa, nacional, tribal ou familiar” (Choay, 1996, p. 4-15). Esse papel memorial e agregador do monumento foi perdendo im- portancia & medida que as memorias artificiais desenvolveram-se © que a histéria firmou-se como disciplina cientifiea. O sentido original de monumento foi se apagando progressivamente, 4 pro- porgdo que o termo foi adquirindo outras conotagées (id., ib.). A principal delas, e a que se relaciona ao que chamamos hoje de patriménio cultural, € a nocao de monumento histérico. Enquanto 0 monumento, como visto, € universal e comum a todas as sociedades, 0 monumento hist6rico € datado e ocidental. Embora ambos tenham um substrato politico comum, 0 monu- mento histérico é sempre vinculado a um objeto cuja instituigdo como tal é posterior & sua criagdo. Resulta da colocacaio do bem em perspectiva historica ou artistica, sob um olhar que o seleciona da massa de objetos existente. O monumento histérico, em suma, vincula-se a um saber e a uma sensibilidade que se enraizam no 49 50 MEMORIA E PATRIMONIO presente e olham para o passado. Tal como surgiu no Renascimen- to, a ideia reportava-se aos edificios da Antiguidade Classica, vistos como exemplos e paradigmas de uma arte que se queria, naquele momento, néo propriamente preservar, mas documentar para co- nhecer, admirar e suplantar. Assim, a nogao de monumento hist6- rico estd também visceralmente ligada 4 arte e A arquitetura. Até o século XVIII, a selegdo de monumentos histéticos produ- zia-se, como mostra Francoise Choay, no mundo restrito dos anti- quérios e estetas, e referia-se ainda, basicamente, a antiguidades gregas e romanas, com vistas & confirmacdo de hipsteses histéri- cas e ao estudo de sistemas construtivos e estilos arquiteténicos. No periodo da Revolugao Francesa, entretanto, a concepcao se estendia aos edificios de um passado medieval mais recente, que também eram considerados obras de arte, testemunhos do saber humano ou, mesmo, de uma histéria. Foi nesse momento que a expresso comegou a ser vinculada mais estreitamente ao campo da representaco e a ser utilizada com fins politicos, objetivando unir grupos socialmente, e até culturalmente, heterogéneos a uma identidade ou a um projeto de nagdo. Os monumentos histéricos, os saberes e as prdéticas que os rodeiam institucionalizaram-se e, com a criacdo dos primeiros instrumentos de preservagao — mu- seus € inventdrios —, surgiu e consolidou-se a ideia de patriménio nacional. Sob a Revolucao Francesa, 0 conceito de patriménio nacional ir- rompeu para responder & urgéncia de salvar da rapinagem e da des- truigdo os imdveis e as obras de arte, antes pertencentes ao clero ea nobreza, que foram transformados em propriedades do Estado. Apoiada no saber dos eruditos e na vontade daqueles que, mesmo nao sendo aristocratas, nado queriam ver tais riquezas e obras de arte destruidas, a nocao de patrimGnio nacional nasceu de um em- bate de forcas, apelando a um sentimento nacional e atendendo a uma conveniéncia econémica (Sant’Anna, 1995). Ao longo do sécu- lo XIX, os pafses europeus organizaram estruturas governamentais € privadas voltadas para a selecdo, a salvaguarda e a conservagao de seus patrimé6nios nacionais, até entao compostos, essencialmente,

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