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Emmanuel Alloa (org PENSAR A IMAGEM idi-Huberman ed eine eae Dried auténtica COMTI 05 etentones dos iene te tu 4. f Ne omg A EsEte 6 Introducao Entre a transparéncia e a opacidade - 0 que a imagem da a pensar Emmanuel Alloa Nao se olha a imagem como se olha um objeto. Olha-se segundo a imagem. Maurice Merleau-Ponty © que é uma imagem? A miiltipla proliferagao de imagens no mundo contemporaneo parece ~ ¢ esse é seu paradoxo — inversamente proporcional 4 nossa faculdade de dizer com exatidio ao que clas correspondem. Parece ocorrer com as imagens quase 0 mesmo que acontece com 0 tempo em Santo Agostinho: somos perpetuamente superexpostos is imagens, interagimos com elas, mas se alguém nos pedisse para explicar o que é uma imagem, terfamos dificuldades de fornecer uma resposta. Poder-se-ia retrucar que existem duas razdes para essa dificuldade ¢ que a questo esta mal colocada. Por um lado, interrogar-se sobre 0 que é uma imagem seria ainda ignorar que a imagem tende a se disseminar, declinar-se dela mesma em formas phurais, se desmultiplicar em um devir-fluxo que se sustentaria instan- taneamente no Um, Por outro lado, perguntar o que é uma imagem retorna inevitavelmente a uma ontologia, a uma interroga¢ao sobre seu ser, Ora, nada parece menos seguro do que o ser da imagem. O triptico fotografico de Rematos Ficticios, de Keith Cottingham (1992), nos d4 a ver sucessivamente um, dois, depois trés adolescentes, instalados sobre um fundo negro diante da cimera fotografica (Fig. 1). Expostos 4 meio-corpo a uma luz fria, os bustos iméveis remetem & plis- tica idealizante, uma vez que os olhares expressam uma aristocracia im- passivel. Esses rostos de cabelos lisos ¢ tragos regulares, qui se andr6ginos, sobre os corpos cujo crescimento ainda nao esté compl repousan o.um crescimento que foi interrompido. Na sua perf melhor, com Jada, 0 triptico evoc pasar Assim como 0 nimero de imagens da gens da série, conge a0 retrato de um Dorian Gray sobre Boao inh © qual « tempo nio ira mais unidade do sujeito repres si por uma perturbadora gemeidade, os adole , os adolescente: entado se difrata em um polimorfismo ir aqui tante; ligados entre © idénticos se gem nunca alcangar suas individu RRetratos Ficticios de Cottingham provocam sdentifiador e confundir 0 automatismo da atribuicio, suas image a elas se dedique tempo. , quas distinguem, entretanto, insensivelmente, embor alidades distintas. Inegavelmente Ao desligar o mecanisn exigem que Figura 1 ~Keith Cottingham, Sem titulo (vp Fotografia mod ? raia modificada, Série Retntos Fits 8 FILOEsTeT A imagem pensativa Atraente ao olhar, as fotos de Cottingham s6 podem, no seu des- locamento infimo, deixar sonhar aquele ou aquela que as contemplam Superficies impenetraveis, elas aspiram, entretanto, o movimento do olho, forgando-o a procurara origem da sua intranquilidade. Através da superexposicao do grio, a materialidade da imagem introduz areia nas engrenagens do visual e cria um tempo, o do olhar. Segundo Roland Barthes (2003, p. 1134), esse é 0 instante preciso em que a fotografia se faz subversiva, “n’io quando se assusta, repele, ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa”. Na sua anilise nas linhas finais da Sarrasine balzaquiana (“E a marquesa permanece pensativa”), Barthes (2003, p. 700-701) entrevé © esbogo de uma indecisio suspensiva que, por sua vez, Jacques Ran- ciére (2009, p. 115-140) encontra na atitude pensativa dos adolescentes sonhadores fotografados por Rineke Dijkstra. Esta “pensatividade” ainda permaneceri relativa, por muito tempo s6 nomear4 o estado de alma de um sujeito representado, em resumo, a pensatividade da imagem ser, portanto, confundida coma pensatividade do sujeito da imagem. Ora, a “pensatividade” s6 desenvolve realmente sua forga de subyersio quando nio realea mais 0 sujeito representado, mas quando se difunde e afeta tudo que a cerca. No espaco entre a imagem ¢ 0 olhar que ela provoca, uma atmosfera pensativa se forma, um meio pensativo. Tal meio ¢ tal espaco potencial, indeterminado ainda nas suas atualizacées singulares, um meio de pensatividade precedendo todo pensamento ¢ que, assim, “encerra 0 pensamento nao pensado” (Ranciére, 2009, p. 115 [2012, p. 103)).! Com forca, as fotos de Cottingham lembram que, longe de ter permanecido exterior ao pensamento ocidental, a imagem sempre esteve no cora¢io do pensamento, suscitando nela uma exterioriza- go, uma saida de si. Operacionalizado em um projeto de apreensio compreensiva como representagio, de esquema ou de cliché, a ima~ gem inevitavelmente arruina todo recentramento, no que ela expde © pensamento como seu fora, no que cla carrega, para fora de si, a ' Entre colchetes, referéncia 4 tradugio brasileira, que reproduzo. RANCIERE, Jac- ques. O espectador emancipade, Tradugao Ivone Castilho Benedetti. Sio Paulo: Martins Fontes, 2012. (N.T.) [EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARENCIA E A OPACIDADE 9 forca de se expor 20 que ela nao pode ainda pensar e a0 que hi taly de mais dificil a pensar, quer dizer, que o pensamento emerge No original, imagéité, neologismo usado por Jacques Ranciére em Le destin des images, aqui publicado como O destino das imagens (Contraponto, 2012, p. 20). A tradutora Ménica Costa Netto optou por manter o termo no original. (NT) EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARENCIA E A OPACIDADE 13 Tal subordinagao da imagem ao discurso nio se mantey, incontestada, De Pélibien 4 minimal art, sublinhou-se a dimenss, fisica irredutivel das obras, essa profundidade da cor, todas es. manchas, esses toques ¢ tragos propria “insignificantes” © que formam, no entanto, a condi¢ao sine qua non de toda obra (Junop, 1976). As “opacidades da pintura”, para falar como Louis Marin, (2005, p. 202), resistem a toda verbalizagio sem resto. Acidentes dy matéria, vestigios do gesto que o abrir, essas concretudes mente sicas reconduzem o olhar inelutavelmente em diregao ao tecido de que ada imanéncia esté resumida sao feitas as imagens, Uma tal estéti tella: “what you see is what na formula programitica de Frank you see” —inttil procurar um sentido escondido, de fato, se a obra coincide com a sua identidade material. Pode-se, todavia, perguntar se uma tal estética esta realmente alforriada da posigdo que ela pretende combater e se ela nao vem con- firmar, de forma ainda mais dissimulada, a dicotomia entre matéria € forma, Pode-se realmente alcangar 0 nivel de uma matéria nua ¢ indecifravel? Existe um punctun puro, afastado de todo studium? Nessa contra-hist6ria do discurso da imagem na época classica, Louis Marin nio parou de insistir sobre 0 fato de que opacidade ¢ transparéncia sio, em sua oposi¢ao, religadas por uma combinagio irredutivel Janela aberta, a pintura da representagao permite a visibilidade, corpo opaco, ela garante a lisibilidade, O retrato do rei constituira, entio, essa figura na qual o envio convencionado e a presenga real se reen contram em um ato eucaristico, em que a matéria autentica o signo, € 0 signo inversamente garante milagre, “opacidade e transparéncia reconciliadas ~ ao menos idealmente — em uma teologia do ato real” (Marin, 2005, p. 202). A alianca subterrinea entre uma ontologia do objeto e uma semiologia da referencia permite operacionalizar a imagem e neutralizar o escandalo inicial. Esse fendmeno que nio se deixa pensar nem como um com aquilo que dé a ver nem como fundamentalmente outro pode ser assim reabsorvido no duplo registro unificante da ontologia e diferenciador da semiologia. A imagem sera pensada sucessivamente na transitividade transparente ¢ na sua intransitividade opaca, sucessivamente como janela e como superficie impenetravel, como simples alegoria (“llos agoretiein”, diz 0 Outro) € como pura fautologia (“tauté légein”, diz o Mesmo) a FuuBesrerica O pensamento exposto A polarizacao da imagem que se opera através do duplo para- digma da transparéncia e da opacidade permite um exorcismo quase perfeito da inquietude suscitada pelas imagens. Assim, dissociada em dois terrenos separados, a imagem nio coloca tanto um proble- ma te6rico, mas formara um objeto a mais para um pensamento jé constituido. Com Georges Didi-Huberman (1990, p. 9-17), pode-se constatar que um “tom de certeza” reina, recentemente como hoje, a propésito das imagens, nao apenas entre scus usuarios profanos, mas ainda de maneira mais forte entre os que se dizem especialistas Tratando a imagem como uma individualidade que se poder ins- crever em uma genealogia geral e reduzindo todo conhecimento a um reconhecimento, a superveniéncia singular de uma imagem que se vé recoberta em sua forca irruptiva que se encontra anestesiada. Ao reconduzir assim as imagens visiveis as imagens lisiveis e, portanto, inteligiveis, s6 se pode “encerrar muito rapido sua capacidade de provocar, de abrir um pensamento” (Dip1-Huserman, 1998, p. 10). Ora, esse saber das imagens apenas mascara imperfeitamente sua experiéncia, na experiéncia de uma imagem que nos interpela, estamos antes de tudo desamparados e despossuidos de nossa seguranga (a0 complementar Cézanne, Merleau-Ponty (1964, p. 156] expressava alguma coisa dessa ordem quando sugeria que, com a pintura, nao podemos jamais nos sentir em casa como podemos com a linguagem). © adolescente colocado 4 esquerda na fotografia de Cottingham e cujo olhar aponta, flecha em diregio ao espectador e nao larga mais (0s olhos se inscreve na tradigao dessas figurae cunclae videntin evocadas a partir de Nicolau de Cusa (1986 [1453]), esse olhar proveniente do quadro ¢ no qual o espectador nfo pode se subtrair, mesmo se des- Jocando. Quando Pau! Valéry, Walter Benjamin ou Lacan retomam essa evocacio sobre nosso ser-olhado pelas imagens, eles ressaltam, em sintonia, que antes de toda demanda de interpretagio, esse olhar marca um pedido de atengao, uma demanda que é a do direito de um olhar de volta (Dini-Hunerman, 1992; Exxins, 1997). E porque ela se dé na simultaneidade de um golpe de vista, a imagem nio saberia se reduzir—apesar do que diz Lessing ~ a uma visio sindptica. A imagem exige, a0 contririo, sempre um lapso de tempo ¢ um lapso no tempo, EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARENCIA E A OPACIOADE 15 um sobressalto, um por em movimento do olhar: uma cineste precisa ser tomada ao pé da letra. Operadora de eclosio ou 41, abertura, a imagem introduz um excedente nao reintegrave| y, do saber e provoca, a partir de dentro, uma exposicio ao aoe career reyern ves do lato de que cha nio pode tnesma, se retirar em dirego a nenhum regime de interioridade, exposigio de sua nudez, ela dé a ver que s6 existe dentro ¢ por «. espago onde ela se precede perpetuamente e onde igualmente a precede todo olhar antecipador. Isso que a imagem dé a pensar se situa talvez Ii, nesta iminénci que nio pertence a ninguém, alguma coisa que se tem diante (em todog ‘0s sentidos da palavra): nem aqui nem em outro lugar, nem presente nem ausente, mas ininente. Quando se diz que as imagens sio suspensas, & preciso entender essa constatagio liceralmente: o que elas dio aver esta suspenso, sem que essa suspensio possa ser objeto de uma subs tui¢do sintética, o que aparece em imagem resiste a generalizacao, mas excede sempre, no seu aparecer a um espectador, sua simples reduc ao artefato individual, Seria preciso, sem davida, falar das imagens em termos de “suspense” (D£oTrE, 1993): paradoxo de um objeto que se di aver em wma tinica e répida olhada, nos limites fisicos do objeto U ainda q. ela pendurado na pared, sem, no entanto, jamais er exaustivo no instante, ‘Ao demandar serem percorridas, elas geram uma espera ~ um suspense — cujo desenrolar €, no entanto, infinitamente referido, adiado, suspenso, © fim da imagem nao podendo ser reduzido a suas bordas materiais Entrelagamentos temporais, quiasmas de olhares, as imagens propriamente ser localizadas nem aqui nem li, mas isamente esse entre que mantém a relaga0. Como tais, m uma outra forma de pensar que suspenderia suas expor is dimensdes de nao saber que implica nao saberiam constituem precis as imagens requere! certezas € accitaria se toda experiéncia imaginal. * Esta coletanea é resultado de um seminério realizado no Col- age Internacional de Philosophie em 2007 ¢ 2008, enriquecido em seguida por alguns textos que testemunham ao mesmo tempo aincidéncia da questio da imagem nos saberes contemporineos ¢ * variedade de abordagens. A heterogeneidade dos objetos € dos olhares 16 IuBesTeTiCA s6 confirmaram o fato de que a imagem é também indisciplinada, indisciplinar, e que constitui precisamente o que resta ainda a pensar. O livro se articula em miiltiplas subdivisoes. A primeira (“O lugar das imagens”) circunscreve as imagens como lugares de uma interrogacio origindria. Na sua intervencio, Gottfried Boehm explica por que as imagens colocam o problema mais amplo da mostragio e indica 0 caminho de uma antropologia da imagem, em que 0 homem sera pensando como “iconéforo”,* no entanto, com si mesmo e tendo diante de si suas proprias repre- sentagdes. A partir de maos negativas da arte paleolitica, Marie-José Mondzain propde uma meditagio sobre 0 gesto do retrato como origem da imagem e a autoridade do espectador como sua destinagio. Partindo de uma coimplicagio originaria entre mimesis e méth Jean-Luc Nancy caracteriza, em seu ensaio, o lugar da imagem como esse furndo que permanece quando a aparéncia escapa A segunda parte (“Perspectivas historicas”) dedicada a outras conceitualidades da imagem — em geral espantosas, por vezes enga- nadoras ~ que puderam ser desenvolvidas no pensamento ocidental, notadamente com uma troca com outras tradigdes. Emanuele Coccia faz reviver os debates medievais em torno das “espécies intencionais”, cuja aceitagao implicaria que o sensivel fosse nao uma vasta assom- bragio espectral. Emmanuel Alloa retraca o destino fantasmatico de uma ciéneia que jamais se constituiu como disciplina — a “idolologia” = retomada por Heidegger em sua luta, perdida por antecipagio, contra as filosofias da cultura. Hans Belting propde lancar um olhar sobre a concep¢io da imagem como janela transparente com a qual se constituiria a forma simbolica do mundo arabe: 0 muxarabi como 6 que extrai o olhar, deixando transparecer a luz. A terceira parte (“A vida das imagens”) promove uma refle- xio sobre a presenga das imagens no mundo contemporineo. O crescimento exponencial do imageamento cientifico analisada por Horst Bredekamp se refere, de um lado, a um imperativo ilustrati- vo, produzindo “icones” cientificos, mas convoca, antes mesmo de seus resultados, de Galileu a Darwin, as descobertas cientificas que + Tcondforo é a traducio literal do neologismo fconophore, que tem como significado “portador do icone”. (N-T) EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARENCIA € & OPACIOADE 7 procederam principalmente de esbo¢os, croquis © outt0s esquuey, rascunhados 4 margem dos textos. Em seu ensaio programy sobre as vidas e os desejos das imagens, W. J. T. Mitchell sustents. provocadora ideia de que a imagem, longe de ser apenas um ins, mento de representagio, usa seus espectadores segundo seus proprins fins, Se ele reconhece que tal posicio visa denunciar a neutralizagse teérica cujo preco foi pago pelas imagens durante muito tempo Jacques Ranciére traz de volta, em sua discussio critica das tese, de Mitchell, as ambiguidades de uma biologiza¢io, para defender, contra a corrente, uma fungio critica da imagem, resultado preci samente de sua “ociosidade”. Por fim, na iiltima parte (“Restituigdes”), Georges Didi-Hu- berman promove um dilogo coma obra de Harun Farocki em que exp6e por que, mais do que nunca, a imagem é hoje uma questio de restituigao. Em sua “entrega”, que s6 pode ser feita sobre o fundo de uma montagem heterogénea, a imagem pode tornar-se uma su- perficie de reparacao onde, longe de todo lugar-comum, se desenha alguma coisa como um “lugar-comum”. Agradeco aqui a todos os que, préximos ou distantes, acom- panharam este projeto desde seu inicio, a editora Presses du Réel pela acolhida calorosa e — last but not least — os tradutores (Fabrice Fliickiger, Naima Ghermani, Stéphane Roth et Maxime Boidy), sem 05 quais a circulagio do pensamento para além das fronteiras nio teria sido possivel. Basileia, maio de 2010. FILBESTETICA Referéncias ALBERTI, L. B. De la peinture. ‘Trad. J.-L. Schefer. Paris: Macula, 1992. [Da pintura. Campinas: Ed, da Unicamp, 1989] BARTHES, R. La chambre claire. Notes sur la photographie. In: EEuvres com- piletes en trois volumes, t. IL, 1974-1980, Paris: Le Sewil, 2003. [A cimara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Jalio C Guimaraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.] BARTHES, R. S/Z. In: GEuvres completes en trois volumes, t. 11, 1966-1973. Paris: Le Seuil, 2003. (S/Z: uma andlise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1992.) DANTO, A. 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Pensar a imagem , portanto, refletir sobre o entrelacamento entre as imagens € aquilo elas mostram. A légica das imagens — aqui esta a nossa tese — é uma ca da mostra¢ao: as imagens nos dao a ver alguma coisa, nos colocam de uma mostracio. Partindo de tal asser¢io, ja fizemos, todavia, apelo a pressupos- ~ tos complexos que se tratari em breve de situar. Trata-se de recolocar questao da imagem em seu lugar. Mas existe verdadeiramente esse gar? Porque a realidade da imagem se revela ser tio plurivoca, ¢ biqua. Ao nao levar em conta que as transformagées que a arte o século XX operou sobre a grandeza do quadro, outrora solido, de-se j4 a amplitude desta transgressao: ela se faz bruscamente ¢ m dizer uma palavra. O que toma lugar, entao, é — para nomear ‘© essencial —a fotografia ¢ o filme, a colagem, 0 objeto hibrido , 0 objeto-imagem (Schwitters), 0 ready-made (Duchamp), (Pollock), 0 objeto especifico (Judd), a performance, a e e a videoinstalagao, assim como diversos outros “neo- *, proprios 4 expresso imaginal. Ao lado dessa avaliagio 23 colocou-se & prova critica a imagem e seu alargamento, vin. partir dos anos 1980 0 acontecimento da tee nologia digital ue ram da imag uma ferramenta a. nas ciéncias, por exemplo, fi conhecimento e, por consequéncia, alguma colsa que nunca tinh, ria: o meio de comunicagHo cotidiano, flexivyel, havido na sua hi aj aqui e acolé, a suplantar a linguagen, Cony as imag fluido, que come tudo isso, ainda nao falamos das imagens em Hes: ns mentais, dessa misteriosa faculdadg as representagGes ou as image! Jo ou fantasia. © que a linguagem produ, interior chamada imagina¢. 2 so imagens, metaforas ou figuras poctic Como se viu; a polissemia ¢ as disparidades disso que a imagem realca revelam ser tanto extremas qu: 1 identidade declinavel, alguma coisa de co anto perturbadoras. As imagen tém verdadeiramente uma mum que as liga? £ aqui que a filesofia entra em jogo? Certament se pode chamar de filos6fica a questio da imagem ¢ das imagen Mas como se arranjam, entio, esses conh disciplinas puderam constituir sobre o sujeito da imagem: da arte, a arqueologia, a paleontologia, a antropologia, a teoloyia a psicanalise, a literatura, a historia das ciénc hA poucas disciplinas que tém de lidar com as it tirar uma constatacio cética desse resumo muito curto, isso tomaria ecimentos que as diferente as? Porque parece que gens. Se formo sem diivida a seguinte forma: a questio da imagem nao fem wn lugar univoco € nao pode, consequentemente, ser enfrentado como um problema coerente. Seria, portanto, mais honesto interromper aqui enio ir muito longe com essas elucubragdes. Mas 0 que, entio, nos permite evitar nosso ceticismo e continuar nosso questionamento? A filosofia nao fornece, apesar de tudo, um remédio eficaz contra a divida radical? £ porque, no fundo, um bom namero de teorias da imagem esta atualmente disponivel e todas manifestam, mais ou menos uma certa coeréncia. Por enquanto, nos ocuparemos de resistir a0 canto da sereia de uma ou outra teoria. Nao apenas por causa do carater necessariamente parcial de toda teoria em geral, mas ainda porque bem sabemos que a entrada em jogo determina, sempre « inevitavelmente, a conclusio e o método do resultado — visto que optamos por um procedimento certamente mais elementar, mas talvez também mais circunspecto. Comegamos por uma teorla 2 rude Eee oe da teoria, tentando efetuar um certo namero de distingdes dos fendmenos em si. Tentaremos decifrar a imagem em si, como ela funciona, que momentos sio nela operadores e 0 que poderia — tal- vez ~ nos permitir fundar uma epistéme icnica. Essa circunspeccio ressalta ainda uma outra razdo. As culturas mediterraneas ¢ euro- peias tém certamente produzido uma historia pictorica abundante, 0 museus transbordam; e milhares de imagens circulam em torno do globo. Mas por que razio o saber (no sentido do saber teérico) nunca pode andar no mesmo passo? Por que o projeto de uma epis- téme icnica s6 apareceu dois mil anos depois da fundagio de uma filosofia da linguagem? Evitaremos aqui a palavra “logocentrismo” para nos arriscar em outra hipétese. Seria concebivel que sejam as imagens, elas mesmas — e mais precisamente, um certo tipo de imagens -, que impedem que a imagem seja enfrentada como tal? De fato, a maior parte das imagens, as imagens de uso, cotidianas ¢ tipicas, visam ser lidas como uma simples indicacio em direcao ao que, sempre, se tem jd para além da imagem, Pouco importa, alias, se se trata de fotografias banais ou de pinturas ditas exigentes: a imagem representa um caso de figura cujo espaco de significacio precede, a titulo de pré-tex- to, toda representa¢ao. Essa identificagao interna de significagdes externas carrega um nome: iconografia. Queiramos ou nio, todos ja nascemos iconograficos. Em tal atitude iconografica, apelamos a “uma concepgao implicita da imagem, a da transparéncia ideal. A ima- gem aparece entao como um vidro transparente sobre um universo textual que se tem por tras ou ainda como uma lua que nio dispde de nenhuma luz propria e cuja claridade apenas provém da luz do sol que ali se reflete. Da mesma forma, no sentido da imagem, a luz da significagio realcara pouco de sua propria forca. Antes, ela procedera de uma outra realidade que, sob a forma de um texto ou de uma narrativa, preceder4 o por em imagem. Certamente, nio ha davidas de que a identifica¢io de contetidos des aqui Panofsky tem razio — constitui um aspecto indispensavel para aanilise, porque, muito frequentemente, nio compreendemos bem aquilo que vemos. Nesse sentido, as obras da pintura religiosa onhecidos — e mitolégica apelam, com certeza, a uma histéria extrinseca que vem. apoiar as imagens ¢ Ihes justifica a existéncia. Mas, se a imagem GOTTFRIED BOEHM AGUILO GUE SE MOSTRA 25 Figura 1 — Andy Warhol, Rorschach, 1984 Tal retorno a uma histéria pessoal nio se dé sem relacio a um retorno 4 histéria da humanidade. Numerosos vestigios paleoliticos indicam que a hominizagio acontece ao mesmo tempo que o desen- volvimento de praticas visuais, assim como a diferenga antropolégica residiria talvez nisto: 0 homem é 0 tinico animal a se interessar pelas imagens, cle é, portanto, um homo pictor (Boru, 2001, p. 3-13). Ora, realizar uma imagem € menos criar uma coisa ¢ mais proceder um ato de diferenciagdo. Uma diferenciagio que precede, alias, as diferengas conceituais ou as diferengas de valor, mas observa uma diferenciacao liberada do material sensivel. Para avangar, pode-se dizer que tal ato de diferenciagao implica trés condigées: 1) as imagens esto localizadas em um substrato material onde elas se encarnam. Se elas agem sobre 0s corpos que as contemplam, as imagens tém uma insisténcia, até uma persisténcia que frequentemente sobrevive 4 vida biolégica do cérebro que as concebeu. O corpo material das imagens faz fundo a emergéncia, no sentido mesmo de um campo visual que se diferencia, de alguma coisa que emergira como isso ou aquilo. 3) Se insistir sobre a imanéncia dos processos no material imaginal, esse acontecimento de emergéncia seria, todavia, suspender 0 objeto: todo processo de diferenciago implica uma motricidade clementar do espectador que GOTTFRIED BOEHM AQUILO QUE SE MOSTRA 7 Ke desloca — com suias mios, seus pés € seus olhos — em ditecio, em tornoeno centro da imagem. Pode-se, entao, 4maneira da diferenc, ontologica de Heidegger, falar de uma “diferenca icOnica” que oper, em miltiplos niveis a0 mesmo tempo. Qualquer que seja seu modo de distingdo ~ recordem-se das ¢i- ferenciagdes invocadas inicialmente ~, ¢sa8 5° estabelecem sempre nz € por um contraste visual. Uma imag Mesmo uma imagem perfeitamente mo de uma diferenga, nesse caso da diferens rela¢io a um muro. Como a diferenca o mais restrita 4 imanént ro contraste é fazer aimagem ilustra isso bem. A camufla- em sem contraste € inconcebjvel mocromatica tira sua iconicidade a de um campo colorido em ntologica, a diferenca icdnica nao seria, portanto, cia de um ente, mas ela acon- tece onde haja uma diferenciacio. Nivela desaparecer: o fenémeno da camuflagem. gem que determina inicialmente (e sempre) uma estratégia militar de dissimulagao visa fazer desaparecer algo visivel, 20 integra-lo de novo superficie visual do mundo. Warhol, als, refletiu sobre esse aspecto wnae suas Pinturas Camufladas, 0 que se poderia igualmente interpretar como uma referéncia irnica 4 estética do all-over de Pollock. Além do mais, 0 exemplo da camuflagem ilustra que, paca vem se opor & transparéncia. A imagem s6 pode se mostrar soba condigio de mostrar, 4 minima, alguma coisa. Ora, na camuflagem, é, por assim dizer, a opacidade que ganha por acabar impedindo o cami- tho do olhar atravessador, A imagem se faz objeto entre outros, ela se pperde como imagem. Ora, a equivocidade das imagens provém dessa fensio fandamental entre isso que se poderia chamar de literalidade material ¢ 0 que se separa como apresentagiio visual, sem que esses dois a presenca, uma forca aspectos nunca possam ser separados. Essa diferenciacio por contraste abre uma teoria da diferenca que nfo se deixa resumir pelo conceito de diferenga por oposicio e sintese desenvolvida pela tradi¢o ocidental. A génese do sentido a partir de uma diferenga visual fundamental se refere a um pensamento do entrelaca- mento, idéntico e diferenciador ao mesmo tempo, que fascina a filosofia desde a antiguidade até Hegel, Heidegger ou Whitehead. Em O sofista, Platéo — 0 grande inimigo filoséfico das imagens — se empenha em ‘uma disputa critica com Parménides, encontra no desvio de uma frase uma caracteriza¢io tio memoravel quanto intrincada do que constitut a esséncia das imagens. Portanto, 0 “nao ser é aquilo que realmente 28 FILDESTETICA chamamos de imagem” (PLaTio, 240b). Essa dupla negagao expressa justamente o estatuto estranhamente flutuante da imagem, que marca seu lugar na ordem do real. Ora, na tradigdo que se inscreve na esteira desses grandes textos, as imagens sio excluidas do légos precisamente por causa de sua equivocidade, o légos terminando por ser reduzido a uma légica proposicional do tipo linguageiro. A predicagio torna-se, assim, 0 modelo de todo sentido auténtico, permitindo estabelecer sem equivocos © que é e 0 que nio é. As imagens s6 serio razoaveis como participantes da linguagem: um légos icdnico permanece inconcebivel. A figura da diferenga icénica abre, todavia, outra perspectiva, permitindo dobrar esse dogma: as imagens produzem sentido, sem obrigagio de fazer uso das regras da predicacio, da atribuig¢do de um predicado a um sujeito (n0 sentido de “S é p”); ao contrario, as imagens dio acesso a0 que se poderia chamar de um “pensamento com 0s olhos”. Toda pes- soa que leve as imagens a sério (mas se poderia invocar também outras formas expressivas, como a misica, a danga ou a mimica) sabe bem que © acesso ao real se faz ainda por outros desvios que nao a linguagem direta. Hé um sentido que se pode passar com as palavras que nio seria passado, inteiramente, na linguagem Um pensamento da diferenciacio faz, portanto, apelo nao mais a0 mecanismo dialético da negagao reciproca, mas antes a distingio que a psicologia da Gestalt descreveu como uma distingio entre figura ¢ fundo. Também nio € por acaso que numerosos exemplos da teoria da imagem se referem a ela, como Wittgenstein (1953), por exemplo, quando evoca a visada-vaso ou ainda o coelho-pato, Ora ainda fie- quentemente, essa referéncia a Gestalt torna a depreciar 0 essencial do gue essa distingao permitiria obter. Em resumo, se pode dizer que 0 exemplo das imagens duplas ainda concede muito a légica opositiva, exclusiva. Ao insistir sobre 0 fato de que no se pode munca ver mais de uma figura por vez, pouco se explicou ainda do que se passa quando 0 olhar se modifica da percepgao do coelho para a percepeio do pato Sobre esse assunto, a fenomenologia de Husserl nos dé algumas indicagdes preciosas, vindo complexificar 0 quadro. Husserl desenvolve sua filosofia, como se sabe, sobre 08 atos intuitivos nos quais 0 polo do sujeito (@ noese) vem ao encontro do objeto (noema) em um vinculo chamado de “intencional”. A intencionalidade vem aqui dizer que, ainda gue vejamos sempre apenas um aspecto limitado das coisas (0 termo GOTTFRIED BOEHM AQLILO QUE SE MOSTRA 29 técnico empregado por Husser! ¢ Abschattung aspecto ou esboge), ver, entretanto, toda a coisa, Mesmo estando de costas, no teremos nyy, nada além de visadas, Husserl eonclui que toda coisa €simultancanyy. empo o horizonte sobre 0 fundo no qual gun ealidades radicalmente distin. alguma coisa © ao mesmo coisa se mostra. Disso decorrem duas r A coisa pertence ao reino do sucessivo: ela € limitada, singularizady Jjustaposta ¢ atrai a atengao; o horiz : simultaneidade: é fluido, continuo, 1 do, ele difrata o olhar. Se aplicarmos poderiamos dizer que as imagens si do continuo e dos elementos diferenciaveis que ele. Binéria 4 primeira vista, essa organizagao se revela se contrariamente ao que afirma a psicologia da forma ~, feméria, porque a figura¢io e 0 continuum se referem um ao outro, se invertem, Tem-se uma questio ao mesmo tempo coma tra tarefa, nao resolvida ainda, consistiri, entdo, nao tanto em distingui-ls, “e” que se insinua entre eles. Essa ligagao preenche a fungio do que ‘0. Mas como pensar, entio, 0 jonte, a0 contrario, abre 0 reing «, ndivisivel, potencial ¢ indeterming as anilises de Husser] as imageng 1 constituidas de uma associagig se mostram diante ou todavia ~¢ nsparéncia ¢ com a opacidade, A, nna linguagem € operado pela predicaci acontecimento da mediacio visual, sem fazer uso das regras de sintaxe quer dizer, das regras da linguagem? Em outros termos: a mostracio implicada em uma légica prépra, em sua forma propria de racionalidad? ‘Como essa racionalidade se relaciona com a racionalidade do dizer? A logica da mostracao Em Vers une écologie de Vesprit, o epistemologista ¢ antropélogo americano Gregory Bateson (1977 [1951]) relata, nio sem humor, um dilogo ficticio com sua propria filha sobre a gesticulagao dos fran- ceses, Quando o pai responde que a gesticulacio nao é um apanigio exclusivo dos franceses, os dois se perguntam sobre a razio pela qual ‘os humanos gesticulam. Bateson termina por concluir: “A ideia de que a linguagem se faz exclusivamente de palavras é perfeitamente falsa’”. E continua: “S6 ha palavras acompanhadas ou bem de gestos ‘ou bem de uma certa entona¢io ou alguma coisa desse tipo. No “co- entanto, ha constantemente gestos sem palavras”. Seria preciso ec mais uma vez do comego e considerar que a linguagem ¢ em primeiro lugar e antes de tudo um sistema de gestos... As palavras foram inventadas depois”. best £08 Essa passagem resume rapidamente em que movimento consis- te a virada linguistica, a qual estao associados nomes como Herder, Nietzsche, Wittgenstein, Biihler, Cassirer, Merleau-Ponty ou ainda Heidegger. Atualmente, as neurociéncias podem mostrar que 0 dis~ curso verbal e o discurso gestual sio comandados pelas mesmas regides do cérebro. A inteligéncia humana é manifestadamente motora, 0 que quer dizer ser organizada de forma somatica, que ela dispde portanto da mio e da boca ~ para retomar a expressio do linguista Ludwig Jager (2001, p. 22) — “dois drgdos falantes ligados estreitamente entre eles”. Tudo isso nos obriga a retomar a questo de uma teoria geral do sentido sobre outras bases. Tudo se passa como se, a0 comecar pela linguagem articulada, se tenha interrompido aquilo que constitui as suas condi¢es de possibilidade, Ora, antes mesmo de desenvolver uma linguagem estruturada, o homo sapiens se serviu de comunica + ges visuais ¢ gestuais. A prioridade do discursive como principio €struturante parece remontar, segundo o atual estagio das pesquisas, ha cerca de 50 mil anos, ao passo que as representagdes pictoricas sao conhecidas hi mais de 200 mil anos, sendo que os artefatos mais antigos (uma arma de pedra)! existem ha pelo menos um milhio de anos. Mas que ndo se tome essas consideragdes por aquilo que elas nao sio, Nao quero de forma alguma contribuir para os debates so- bre a origem do homem que agitam a linguistica e a antropologia ha muitos séculos, mas faco alusio a isso para vir fundar de outra forma o problema da imagem, para evitar, portanto, nao tratar a iconicidade como um simples registro de signos entre outros. O gesto ea imagem se reencontram em seu potencial déitico. Desde sua obra fundamental, Sprachtheorie, de 1934, o linguista austriaco Karl Biihler (2001 [1934]) estabeleceu o papel essencial dos déiticos para a linguagem. No espaco motor do gesto, com seu vai ¢ vem, se estabelece ji a diferenga entre “aqui” e “li”, o comprimento do eixo intencional ja evocado. Ele se encontra ainda no que Biihler chamou de “particulas mostrativas” (Zeigepartikel), quer dizer, aqui/ * No original, coup-de-poing, hoje usado como sindnimo de soco-inglés, tipo de arma {que se prende nos dedos para aumentar a poténcia dos golpes. Considero que termo nfo setia opgio de tradu¢io na medida em que o autor esti tratando de uma pega de 200 mil anos. Naquele momento, tratava-se de uma pedra esculpida com uma ponta afiada para corte. (N.T.) 7 GOTTFRIED BOEHM AQUILO GUE SE osTRA 31 Ii, eu/vocs, isto/aquilo, Essas particulas fundam ¢ estruturam y), “campo mostrativo” (Zeigefeld) da linguagem. As analogias com : imagem, imediatamente e sempre em um camPo da mostragio, «i, evidentes, Quando contemplamos as imagens, nos orientamos con, a ajuda de diferencas déiticas tais com? alto/baixo, direita/esquerd, aqui/la, proximo/distante sempre em funcio do far doespectador de aplicar uma categoria linguistica — as a0 contrario. Toda detxis ‘Mas ainda aqui nao se trata déitico — a outras formas de expresso, M seja ela codificada e arbitréria, supde uma localizag4o de um locutor precede a locugio € nao © inverso; por Jocativas sao possiveis. Insistindo emos, portanto, sublinhar encarnado. A encarna¢ao outro lado, outras expressdes nio na dimensio mostrativa das imagens, quer os seguintes aspectos: 1) A logica das imagens nfo pode se resumir a uma gramitica ‘couica: ela implica nos corpas aos quais elas se mostram ¢ pelos quis elas podem se mostrar. 2) A “imagicidade”? ndo depende em nada do objeto repre- sentado, As imagens nao so simples representagoes demonstrativas de uma significagao j4 constituida em outro lugar, sio, ao contrario, mostracoes origindrias. 3) As imagens exibem, no seu funcionamento, fundo déitic de toda expressio (que diz respcito, portanto, igualmente a linguagem discursiva), visto que, em sva singularidade, as imagens nos ensinam alguma coisa sobre o fendmeno expressive em geral Se elas se abrem 4 decidibilidade, as imagens nio tém, contudo, légos predicativo como horizonte ou télos. Na sua dimensio circuns- tancial, as imagens so, portanto, ao mesmo tempo mais e menos do que a linguagem discursiva. Menos, porque elas nao podem preten- der a generalizagio descontextualizada da linguagem. Mais, porae clas tornam evidente uma l6gica que nao é mais restrita 4 dimensio opositiva dos signos. Operando por ligagdo ¢ conjungao, a imagem nos carrega em dire¢io ao sentido primeiro da palavra légos: “legein’ ligadura, ligagio, lago. Pensar a imagem significa, na minha opiniio, pensar a unidade sempre em tensio entre o olho, a mio € a boca 3 No original, imagieté, neologismo usado por Jacques Rancigre em Le destin des images aqui publicado como O destino das imagens (Contraponto, 2012, p. 20). A eactors Ménica Costa Netto optou por manter o termo no original. (N.T) e FILSESTETICA Isso que aquilo mostra © que significa dizer que a imagem mantém uma ligagio pri- vilegiada com a mostracio? E antes de mais nada: 0 que é um gesto de mostracio? Parece que os gestos nos mostram alguma coisa onde no se trata tanto de um gesto de indicacao explicita ou consciente. Todos esses gestos que, inconscientemente, acompanham nossa fala nao sio nada além de simples acidentes motores ou ornaments ex- trinsecos: eles desempenham um papel essencial no acontecimento expressivo. Existem, sem diivida, os gestos involuntarios, os lapsos corporais que dio a ver o que o discurso reprimiu. Mas, para além desses gestos altamente “falantes”, trata-se de dar conta dessa presen- ga tio discreta quanto permanente da gestualidade nas nossas ades, um tipo de companhia fiel ¢ silenciosa que constitui 0 fundo de nossos atos significantes, Para caracterizar essa dimensio, se poderia invocar 0 termo alemio Hintergriindigkeit, que remete de uma s6 vez 4 profundidade ¢ ao enigma. Quaisquer que sejam as diferengas da gesticulacao entre as pessoas — as diferencas de cultura, sexo, classe, idade sio de fato consideraveis —, um aspecto sempre se apresenta. Os gestos se afastam do corpo ¢ voltam em dire¢io a cle. Um vai e vem incessante estabelece, com seu ritmo, um espao visual. Com seu ténos vital especifico, 0 corpo participa de maneira essencial. Sua calma tende a servir, por assim dizer, de cendrio ao que os bragos eas representam diante dele. A atitude do corpo e 0 discurso dos gestos A partir do ponto de vista do es se religam — para poder se distingui pectador, ¢ na medida em que sio sempre fundadas em um corpo, as maos com seus signos performativos tém o corpo como fundamento Uma diferenga gestual se manifesta, ainda que passe despercebida se se presta aten¢4o nas maos por muito tempo. Diante do continuo ‘opaco e impenetravel do fundo corporal, os gestos singulares se separam como tantos signos discretos que se reconfiguram perpe tuamente, Uma assimetria complexa esté aqui em obra. O corpo é 0 fundo continuado para os gestos que vio e vém. Uma tal diferenga nao implica somente a opacidade do corpo ¢, com ele, a transparén cia dos gestos, mas ainda o gesto motor de sua ligagio, a conjungio > Para um tratamento mais detalhado da questio, permito-me referir a Boehm (2007). (NA) GOTTFRIED BOEHM AQUILO QUE SE MOsTRA 33 estabelecendo sua relagio, Simultaneamente, 08 gestos mostrando ¢ corpo s¢ mostrando instalam uma relagio entre falante € significant. De repente, a gesticulagio das mios, que nio era até entio nada alén de um movimento local, comega agora a produzir significacio. Una vez postas essas questdes, podemos tentar ver que estrutu fazemos emergit das obras que nos permitirio precisar 0 que ext jogo. A tese segundo a qual as imagens mantém um lugar privilegiad com a mostracio nao é nada além de uma simples especulagio ~ é surpreendente observar o numero de artistas que insistiram sobre dimensio gestual em suas obras, Para concluir, iremos, portanto, evoca ar uma progressio da sucessivamente trés obras nas quais se pode obser questo da mostracio como tema ou motivo em direcio 4 mostragio como principio operador. Entre as numerosas obras que nos colocam diante do papel das mios como tema, se pode evocar o quadro de Al brecht Diirer, Jesus entre os doutores da lei (Fig. 2). Nessa obra, de 1506, e que ele intitulou Opus quingue dierum, Diirer inventa uma ilustragio Figura 2~ Albrecht Diirer, Jesus entre os doutores da lei, 1506 Lugano, Colegio Thyssen-Bornemisza 34 FILOESTETICA excepcional para esse duelo de palavra centro do quadro, o artista da corpo a esse agén intelectual onde tudo se di e se entrelaga mutuamente em um corpo a corpo inextricivel. Na rosacea gestual situada no Diirer nao nos daa , portanto, um gesto de indicagdo que aponta em diregio ao que nao esta presente — 0 gesto mostra sua propria condigio de intricado, seu proprio retorno sobre si mesmo, sua reflexividade Uma outra constelagdo é posta em cena por Tic de Jacopo Strada, dos anos ano no seu Retrato 566-1568 (Fig. 3). Nessa representagao do Figura 3 — Ticiano, Reta de Jacopo Strada, c. 156° Viena, Museu Kunsthistorisches GOTTFRIED BOEHM AGLILO GUE SE MOSTRA 35 célebre colecionador de Mantoue, aquele que indica seus objetos que fizeram sua gloria como antiquario. Mas 0 artista teve a inteligéncia de relativizar esse gesto de indicagio para nos mostrar antes de tudo © corpo se mostrando. Ao se desviar da estatua para dar lugar a ela, Seeada!fexiona seuicorpo em direga0 20 espectador Nessa indivisi- bilidade do que se mostra e do que € mostrado, Ticiano nO lega uma alegoria sobre o retrato como essa tarefa impossivel, que consiste a tornar o que, por defini¢ao, é inefavel porque totalmente singular: a in-dividualidade. Mas, se a mostragao teve uM papel importante na pintura figurativa, nio esti a esta limitada. Trata-se, 20 contrario, de compreender como a imagem nos mostra sua forma de mostrar — que nos mostra, portanto, como ela mostra ~, € isso sem passar pela analogia Peale pe teoresentado agarrado em um gesto de indicagio. No se pode observar uma redugio expressionismo abstrato americano, que, entretanto, nunca se das relagdes icdnicas ao strict minimum, sem deixe a imagem. Ao contririo, parece que essa redugao éessencial para exemplificar ainda melhor as estruturas intrinsecas da iconicidade. Concluiremos, entio, evocando, para terminar, 0 quadro inti- tulado Nr. 7, de Mark Rothko (Fig. 4). Obra datada de 1960, realga um mundo no sentido silencioso. De uma 6 vez, 0 titulo indica uma reserva ao olhar de toda decidibilidade ¢ se aproxima do titulo preferido do pintor ~ Sem tio -, apresentando ao espectador alguma coisa de fancionamento inominado. Uma composigao frontal criada por relagdes claras: quatro campos de cores diferentes sobre um fun- do escuro. A figuracio que Rothko pode trabalhar na sua primeira fase nio tanto rejeitada, mas incorporada. © continuum de castanho escuro faz intervir uma opacidade impenetravel, um campo de relagdes dinamicas entre as superficies coloridas que parecem ocupar distancias diferentes. Elas se destacam do fundo e nele recaem ao mesmo tempo. Aquilo que, do ponto de vista da técnica pictérica, é realizado através de vernizes, dito de outra forma, de camadas semitransparentes dei- xando transparecer o fundo na superficie. As cores criam diferentes aspectos visuais. E seria preciso se deter longamente para nomear as Beicipais caracteristicas da temperatura da cor, a luminosidade ou ainda as relagées de efetividade entre a forma da superficie colorida € 0 efeito cromitico. A forca da defxis se nutre da assimetria entre a figura ¢ o fundo. FuBesrericn Figura 4 = Mark Rothko, Nr. 7, 1960 Sezon (Japio), Museu de Arte Moderna [sso implica trés intuigdes fandamentais no que diz respeito a uma teoria da imagem, Primeiro, compreendemos a partir de que a mostracio Zo. E um verdadeiro clindmen visual’ que se estabelece ganha em persua 7 Na historia da filosofia, dindmen é um termo usado pelos epicuristas para se referir a0 mo: rento de desvio espontinco da trajet6ria dos atomos que cria colisdes ¢ aglomeragdes ias as formas do universo. (N:T) de matéria, a partir do qual se constitu GOTTFRIED BOEHM AQUILO QUE SE MOSTRA 37 entre a opacidade do continuum e a figuracao transparente que ela Tecapty Ta, carrega e contém, Essa pintura é — visualmente falando —inesgotiye} A cada olhar posto sobre o quadro, ela faz um tipo de imagem, ess Coisa estatica que é percebida como movente e significante. A segund intui¢io esta diretamente ligada 4 primeira: a logica da mostragio sé pode ser processual, trata a imagem como uma equa¢io energética. Enfim, a opacidade impenetrivel do fundo provoca um retorno ao olhar do espectador. Na medida em que mergulhamos na imagem, o que ali esti Tepresentado se sobressai como aspecto visual, como aquilo se mostra. O mutismo de Rothko caminha ao lado do pathos e do afeto. Seus quadros, aparentemente vazios, geram de fato uma semantica, dao a impressio de respirar, € esse arranjo vertical de superficies faz alusio a um corpo que (Gem ser humano) parece vivente, Em uma palavra: 0 que mostra ~ a imagem, em sua ocorréncia — nos mostra como alguma coisa se mostra. E ao nos dar a perceber, a imagem gera um sentido, Do sentido. Referéncias BATESON, G. Vers une écologie de Vesprit. Trad. F. Drosso; L. Lot; E. Simion t. 1, Paris: Le Seuil, 1977. BOEHM, G. (Ed.) Homo Pictor, Munique: Saur, 2001 BOEHM, G. Deixis— Vom Denken mit dem Zeigefinger. Gottingen: Wallstein, 2007. BOEHM, G. Wie Bilder Sinn erzeugen. Die Macht des Zeingens. Berlin: Berlin University Press, 2007, BUHLER, K. Théorie du langage. Marseille: Agone, 2009 JAGER, L. Audio-Visualitat vor und nach Gutenberg. Vienne: Kunsthistorisches Museum, 2001 PLATAO. Sophist, Paris: Flammarion, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012.) WITTGENSTEIN, L. Recherches philosophiques, Paris: Gallimard, 2 vestigagbes Filosédficas, Petrépolis: Vozes, 2005.) 2006. [0 sofista. Trad. Juvino Maia Jr. 014. [In- FILDESTETICR A imagem entre proveniéncia e destinacao Marie-José Mondzain Interrogar a proveniéncia da imagem é interrogar a origem, quer dizer, a causa. Qual seré a causa da imagem? Alguma coisa como a questo: de onde ela vem? Se seguirmos um bom preceito aristotélico que jamais envelhece, toda ciéncia é ciéncia da causa, € o conhecimento da causa contribui para a definigio; a causa tem por tarefa definir seu objeto. Portanto, a questio ti esti, o que € a ima- gem, a ciéncia da imagem responderia determinando sua causa e por consequéncia enunciaria sua natureza, designando seu género e sua espécie, quer dizer, sobre qual fundo se inscreve sua proveniéncia ¢ qual é sua especificidade. Se mantivermos essa postura, se pressupde, entio, que a imagem é totalmente paradoxal: produgao do sujeito, a imagem faz devir o sujeito mesmo que a produz. A imagem 6, por- as coisas em uma: a0 mesmo tempo eto produzido por essa relacio. epariveis dos gestos que produ- tanto, se posso dizer assim, du; uma operadora em uma relagio € obj ‘As operagées imaginantes sio ins zem o5 signos que, por essa raz, permitem os processos de identificacio ea separagdo sem as quais no haveria sujeito. A definigio da imagem 0, inseparavel da definigao do sujeito. Entdo, 3 questio se ha la imagem, a resposta é a mesma daquela que pergunta se é, portant uma ciéncia d. hd uma ciéncia do sujeito. Sua fundagio recfproca nos convida a des- confiar que a imagem nao é um objeto e, portanto, que, se ela pode, sob certas referéncias, ser considerada como um objeto, isso nao se da jamais sem consequéncia para 0 sujeito. Tanto e tio bem que cada vez que se reduz a imagem a nio ser mais do que Jo a destinacao do sujeito. Por outro lado, uma expr ‘essio como um objeto, se coloca 39 eg a marca da historiciday, “entre proveniéncia ¢ destinagiio” ca quer dizer, uma inscri¢io temporal sobre o qual se aplica a pesguiy, Nio é somente o lugar da imagem na reflexio subje a imagem em uma trajetoria que visa uma génese da visada sobre seu desdobramento, uma visada que @ inscreve no fy, ou segundo um fim, Mas, se a historia da imag historia do sujeito, essa trajetoria histérica concerne, portanto, iy do sujeito ele mesmo, seu desenvolvimento ¢ as modalidades sobre 4, quais a imagem indica um regime de subjetividade, na medida en, que nao se reduz a ser uma simples existéncia natural submetida js ej, gerais daquilo que vive e daquilo que morre. A imagem diz respeigg 4 vida do sujeito sobre 0 aspecto da sua existeéncia nao natural. Quer m é articulada a yy, nes indicar com isso que as operagdes imaginantes sio sem divida o modg produtivo da resisténcia do sujeito 4 natureza. De que natureza se trata Desta aquela, ele deve, no entanto, viver, mas se distancia resolutamen. te no projeto de inscrever o sentido pela via dos BEnOs Pizer que as imagens tém uma histéria ou participam de uma hist6ria nao é voltar a dizer que as imagens podem fazer 0 objeto de uma narrativa, na qual ‘0 modelo de exceléncia seria a historia da arte, aquilo que seria muito trivial ou apenas levaria em conta uma ciéncia da imagem como uma histéria das figuras de producao das formas visiveis, sem interrogar a natureza do objeto do qual se fala. Fazer de conta que se sabe o que € uma imagem e assim, dispensados de dar 4 imagem uma definicio, nos langaria em um conjunto composto de proposigdes cronoldgicas onde as imagens acompanhariam a hist6ria das formas, dos estilos, dos objetos, quer dizer, das representagSes, se, com temeridade, se forca 0 uso de tal léxico. Ora, interrogar a proveniéncia e a destinagio tem outro objetivo, Trata-se de reparar aquilo que a titulo da imagem se inscreve na historia da humanidade, e mais ainda: de interrogar as ope- Tages imaginantes na sua relacdo com o que constitui o sujeito falante esociavel. Na genealogia do humano, a imagem € parte integrante Escolhi, portanto, outra forma de responder 4 questo enten- dendo de outra forma a sua abertura. Proponho a hipétese de que, Entre nossa proveniéncia e nossa destinagao, é a imagem que vem se colocar como operador histrico da mediagao e da produgio da Tesposta. Quero dizer que, interrogando a imagem, posso recolher uma resposta para a questo da nossa Proveniéncia e correr 0 risco ee FILDESTETICA de uma defini¢ao de humanidade, A questio do comeso, em ma téria de maligero) pode ser posta de duas formas, Ax dua tem seu estatuto proprio ¢ nio sio excludentes entre si, A primeira consiste em considerar a origem das operagées imaginantes na sua manifes tagio inaugural. Sobre isso, adota-se uma postura antropolégica, A segunda consiste — para nds, no Ocidente =, em colocar a questio historicamente para constatar ; teoldgicas na legitimagdo das imagens proprias 4 nossa cultura, Se essas duas abordagens sio insepardveis, é porque a suspeita que peva sobre as imagens pelas razdes teoldgicas antes do eristianismo tem relacao direta com a liberdade em jogo no estatuto antropologico das operagées imaginantes. Aquilo que constitui o sujeito na sua liberdade de iniciativa constitui um perigo para aqueles cujo poder € assentado sobre a nega porque a capacidade do sujeito de produzir imagens faz parte de uma economia constituinte do desejo que as instituigdes que constituiram seu poder tomaram o cuidado tanto de interditar as imagens quanto incidéncia determinante das posighes do dessa liberdade. Dito de outra forma, é de controlar a produgio de seus efeitos. Em uma palavra, se poderia dizer que a proveniéncia das operacdes imaginantes est na origem do problema politico que coloca sua destinacio. A imagem, o retrato Imaginemos. Imaginemos um homem que corre o risco de um retorno ao passado, de um retorno as entranhas, de um mergulho no coragio da noite de onde ele provém. Um homem mergulha nas trevas, por um instante dando as costas ao mundo dos viventes. Ao chegar nessa caverna matricial, reino das sombras, ele acende um fogo, ele se ilumina, ele ilumina a rocha. Ali é seu ponto de partida De pé, diante da rocha, ele esta 14, na opacidade brutal de um face a face, confrontado com seu ponto de apoio que é também seu ponto de partida. Ai esta ele, brago estendido, ele se apoia Sua mio repousa, essa mio se afasta, se separa e toma da rocha a distancia de um braco. Tal é de fato a primeira tomada de distancia de si, disso com que ele se manter4, no entanto, em contato. A mio € aquilo que aproxima, toca e ao mesmo tempo rejeita, afasta. Esse gesto de afastar e de ligar é aquele que constitui a primeira operagio, constitui¢ao dos lugares entre os quais se joga o sentido de um gesto MARIE-JOSE MONDZAIN 4 IMAGEN ENTRE PROVENIENCIA & OESTINAGAO o sentido em que o homem se itude eque a convers, do que s¢ que vira. Inaugura-se uma conversa, m mantém diante da parede, que tem sua propria vai advir entre essas duas polaridades. A imagem € 0 tee mantém entre eles, entre o homem € a parede- esta distancia em que ollo © mig ‘O homem liquefez.nasua boca Segunda operagio: 0 sopro. N se arranjam, outro gesto se torna possivel. : 08 pigmentos da cor. Ele agora vai projetar com um So SOPro sobre a parede, A boca deixa de ser uma boca que pegs MasBa INBE (U cuspe para se tornar um buraco pleno que sopra, que se esvazia e se separa. © homem sopra, sopra sobre a mao que ele pousou. Terceira operagao: retrato. O gesto de retratar a mao sobre a qual ele acaba de soprar aparece agora diante dos olhos do soprador, Tele pode vé-la, porque sua mio nio da-la a ver aos olhos como gole a imagem, sua imagem, tal qual estd mais ld. Retirar-se para produzir sua imagen ¢ 4 um trago vivente mas separado de si. Salvo por amputagao, nao se pode se separar de sua propria mao para vé-la longe, como aquela de outro, tas se pode se retirar de sua imagem e di-la a ver a um outro, aos olhos, ¢ dé-la a ver também aos olhos que eles nfo se verdo jamais, ‘A parede é um espelho, espelho nio reflexivo. A mio negativa € 0 primeiro autorretrato, autorretrato nio especular, sem espelho, do homem que é um sujeito que so conhece de sie do mundo 0 trago deixado ali por suas mos. A imagem de si é uma prova da separacio, 4 instauragio de um regime de separa¢io ¢ de uma subjetividade desatada, Quando esse sujeito se engaja no caminho imaginante que co subtrai da necessidade natural, ele inaugura um regime de liberda- de que nio ser aceito, sem controle, tanto pela vontade instituinte quanto pelos poderes instituidos. Joga-se assim na imagem alguma coisa como a cena primitiva do sujeito sobre o caminho da remincia a seu fantasma. As imagens rupestres nos oferecem a prova que teste- munha um procedimento altamente instituinte, dado que vemos os homens se designarem a si mesmos como sujeitos fazendo nascer na escuridio em que habitam apenas gestos que figuram como o dispo- sitivo imaginante de um ponto de partida, de um lugar de separacio da natureza (Fig. 1). A meditagio sobre a “arte” paleolitica permite pensar a proveniéncia em termos de ponto de partida mais do que origem ou menos em termos de arcaismo. Ir ao antro noturno matricial e nao respiravel para instalar 0 cenrio inaugural da separagio. Nio se trata do que a ideologia do originario reivindica como fundacio i. FILDESTETICA substancialista ou essencialista. Nao é mais uma questo de, em nome do arcaico, desdobrar 0 léxico do primitivismo, do balbuciamento ou de uma infancia da imagem que corresponderia 4 uma infancia da humanidade. Muito pelo contrario, essa proveniéncia indica, na sua integralidade completa, a destinagio do homem como sujeito imaginante, quer dizer, contranatureza. Aquilo que esta no comego permite sempre ser derivado em dire¢io a uma sobreinterpreta¢io do que vem primeiro em relagio ao que se segue, na complacéncia de uma consideragio lirica da infincia de nossos pais. © interesse antropol6gico disso que se chama arte rupestre ou do que é designado por esses termos consiste, ao contrério, em reconhecer nesses gestos € nesses tragos que reunimos uma maturidade completa da questio da separacio, considerada como ponto de partida da humanidade no lugar mesmo disso que esses tracos indicam como sendo 0 cenario fandador de toda operagao imaginal e icénica. Figura 1 — Maos negativas. Gruta Chauvet (Ardéche, Fran¢a), 30,000 a.C. (Cutavver; Descaamns; Hitcaine, 1996) MARIE-JOSE MONDZAIN & IMAGEN ENTRE PROVENIENCIA € DESTINAGAO 3 a funda a historia na medida em que é pre~ nossos gestos em uma trajetoria, um para reconhecer que O ponto de partid: ciso deixi-lo para inscrever percurso de humanidade e, em segundo lugar essa partida é infinitamente posta em questio ha milénios. Tudo isso ise capneava orator cavers meena eotsormais do das pelo lucrative mercado da ao infantilismo. As mos de o campo pré-hist6rico, em ra com 0 originario que jgem da arte € a ruptura originiria, mas um que nunca ameacadas de serem toma iio separacio, da regressio, do retorno Chauvet nos lembram que no estamos n uma cena originaria. Ao contrario, € a ruptt! ye na origem da arte. Aor origens. Nao ha imagem weniéncia do homem que s6 de repente se inscre’ com todas as artes de gesto, um lugar de pro obtém seu sentido indicando sua destinagao. Historicamente, a se} ficara, todavia, em uma Vel aquilo que indica ainda uma agem se intensi- paragdo induzida pela im udiar tudo rdadeira disjungio, vindo rep grande proximidade. Intervém, que se legitima doravante por um entio, um monoteismo da distancia Ja re- missio simbolica 4 origem. A preocupacao monoteista com 0 sujeito das imagens eismo nasce a principio de um iconoclasmo. As re- © monot ligides da imagem sio cultos da imanéncia, da poténcia maternal e matricial, da imanéncia do poder dos signos em si. A imagem é egipcia, é a terra que se precisa deixar. Se € preciso cassar os idolos, é para mostrar que nfo ha nada mais estranho ao velado que a magia imanente das coisas mada é privi-la de toda relacao, portanto, de todo sentido. Todos 0s procedimentos de separa¢ao nao s20 nada além da sistematizagao de todos os gestos ¢ de todos os signos que formam a construgio simb6lica dos sujeitos falantes submetidos 4 lei do pai. E, portanto, nome dessa exigéncia de separagio que se atravessa toda a ar- ra do templo como um lugar de encontro com o proibido proprias do animismo. Tornar a imagem inani- Jo da imagem. clastia hebraica apresenta analogias estruturais com a da metafisica classica: a pureza do efdos sé se mantém a cegueira que encontrara seu consolo na retérica do FILDESTETICA ofuscamento. E para defender a forga e a pureza da imagem que se declara sua invisibilidade, reservando todas a5 outras palavras que designam as produgées sensiveis a fim de dizer que elas traem a verdadeira imagem. Est4 tudo ai: a imagem, sendo fiel a0 verdadeiro, nio pode mostrar sua face nem se oferecer ao olhar. Escapa-se, portanto, da imagem tanto por razoes positivas quanto negativas, porque ela ¢ excesso de trevas e excesso de luz. O medo das imagens é indisso- ciavel do medo das forgas libidinais. A iconofobia como a negacao do iconismo especulativo sio, de fato, confrontados com a defini- ¢40 do desejo da imagem como sendo um desejo do objeto. Ora, é com © cristianismo que acontece um deslocamento fundamental: © que qualifica uma imagem é doravante nio mais a natureza da sua matéria, mas a esséncia do olhar que se coloca sobre ela. Toda a doutrina da encarnagio volta a estabelecer doutrinalmente que a encarnagio nio é nada além do “devir-imagem” da divindade. A distingio entre a carne ¢ 0 corpo vem agora sobrepor ¢ mesmo re- cobrir a distingio da imagem como carne ¢ do objeto como corpo. A redengio da carne é a transfigura¢io do olhar sobre 0 mundo pela via da imagem, a redengio do corpo é a identificagdo do corpo de Cristo com o corpo da Igreja. E, portanto, a instituicao que da su visibilidade redimida ¢ salvadora as instituigdes historicas do poder temporal. Se 0 icone nio reina mais ele mesmo, como no caso do idolo, ele vird doravante a fundar um reino. Ora, as crises sucessivas que abalaram a patristica na questio da imagem — todas as crises bizantinas que estudei em Image, icéne, économie (1996) ~ indicam, no entanto, que a disjungao definitiva que © cristianismo propde entre fdolo como simples imanéncia € 0 icone como pura distancia nunca pode ser tio clara. ‘Ao longo da histéria humana, o desejo de ver ¢ 0 de mostrar serio habitados pela ambivaléncia do desejo de estar em busca da “satisfacdo, e de constatar que a satisfacio estimula o fim do desejo, seu relangamento nao pode fazer viver 0 sujeito constituido senio designar aquilo que ele deseja como se designa um renunciando a a imagem, se situando sobre a trajet6ria do descjo, objeto; é assim que oscila entre os dois estat tutos que Ihe conferem o regime do sujeito ¢ do objeto. Dito de outro modo, as imagens tém um poder, ¢ esse MARIE-JOSE MONDZAIN 4 IMAGEM ENTRE PROVENIENCIA € DESTINAGAO 45 poder tem, por definigao, uma estrutura critica, quero dizer, uma estrutura de crise: elas sio provenientes de uma energia desejante ge colncsiem jon, .eada ver, apalaomegtsivedeum retomo is trevas fusionais ou a pulsio vivente de correr 0 risco das vi isibilidades (@ue-se quer compartilhar com omestante dos homens (Fig: 2). Entre a disjungio sem apelo e a regressio fusional, ele nos incumbe de to- mar a responsabilidade pelo destino da imagem no seu movimento de desligamento. Entendo por desligamento 0 movimento pelo qual a imagem resiste a toda determina¢ao ¢ determinsme inreversive ‘Aiindeterminaggo da proveniéncia, por sua'vez, orienta as operacdes imaginantes em diregio 2 uma destina¢a0 indeterminada, Este ¢ 0 preco da liberdade, inscrito nas produgées visuals quando elas cor tituem o sujeito em um lugar inaugural. O sujeito que comeca, com quem tudo pode comegar, o homem do comego, como designa Han- nah Arendt, Este € 0 ponto em que esté em jogo a dimensio politica Entendo aqui por politico as apostas do compartilhamento da vida em élis grega instituiu coma comum, quer dizer, no sentido em que a ps implica um regime comum na circulacio dos do espaco, mas do tempo. Ora, a liberdade ppoliteia, no qual a cidade i signos e na partilha nao necesséria a essa partilha supée que seja mantida a energia de desi gamento propria a toda criacio. Para que haja o politico, € preciso que as leis da psique, quer dizer, a lei do objeto tal qual cle se impe como mercadoria, nio reinem sobre os sujeitos desejantes. E preciso ficcionalizar a liberdade; é preciso imaginar € somente imaginar, a0 compora imagem para tornar a crenea viva, s6 energia politica. E por isso que a liberdade nao é nem um objeto nem um sujeito, ndo é nem um estado originario que se teria perdido nem um reino por vir. A liberdade é uma ficgao no sentido pleno da palavra, quer dizer, uma imagem, necessaria, que se tem entre os sujeitos e permite a troca de lugares. Visto que se fizeram essas ressalvas, a resposta 4 questio da destina¢4o vem se inscrever naturalmente na inflexao desse destino pulsional. Indica¢do de que a via politica da partilha é a possibilidade problematica de constituir, pelo desejo, um objeto politico situado no percurso de uma demanda insaciavel. Porque designei anterior- mente a saciedade como um campo de consumagio imediata que nio pode, em nenhum caso, ser identificado no percurso constituinte no qual, a0 contrario, a vitalidade é determinada pela auséncia ¢ pela . FILBESTETICA separa¢do. Que se nos dé de comer quando temos fome é uma coisa, © esse desejo € uma necessidade que precisa da presenga de objetos que nutram, € nao apenas suas imagens ou signos que ali tenham lugar. Ao contrario, o desejo que anima a circulagio de signos 36 se sustenta com a separacao entre os sujeitos que trocam esses signos na auséncia das coisas em si. Saltério Chludov. MARIE-J0SE MONDZAIN A iWAGEM ENTRE PROVENIENGIA E DESTINAGAD a7 No livro Le souci traverse le flewve (1990), Hans Blumenbey evoca um artigo de jornal de 1985 mencionando que, em Poe Nova Guiné, quatro pescadores! naufragaram © haviam sobrevivid, porque todos os dias liam a Biblia e comiam as paginas do livro, um, ap6s a outra. Blumenberg conclui que 4 consciéncia de si € © dryie que permite nio engolir 0 mundo sem, contudo, renunciar a0 sey g070 e 4 sua possessio. Nio engolir é também a condi¢4o para nig ser engolido. O que esti em jogo, portanto, na producao das opera. de produzir signos que nunca virig preencher uma necessidade, mas que, 40 contrario, se encarregarig de tecer as distancias ¢ as ligagdes entre aqueles que 0s trocam, quer dizer, os signos, marcados pelo selo do desligamento, doco gue 0 que esta agora ligado, 0 esté sio, por exceléncia, os signos que, sol encarregam de produzir o desligamento com a presenga das coisas ea presenga dos corpos, € da ligacao entre os sujeitos que se enderecam a de fazer um tecido fragile temporalmente ges imaginantes é a capacidade pela primeira vez. As imagens bre o lugar mesmo do desejo, se esses signos com a intencao significance. Assim, as imagens vem se colocar entre os sueitos que no sc definem como tal se nao pela graca desses signos que vem, poderia teu dizer, dangar entre eles. Para melhor compreender, retomo mais uma vez a historia das operacées imaginantes na cultura ocidental, em que a questao de seu poder foi posta 4 prova da legitimidade teo- Iéqica e metafisica. Sendo reconhecidas como produces libidinais, as imagens nao tém sido de fato imediatamente 0 objeto de uma medi- tacio sobre o tratamento politico do desejo nem sobre o destino das pulses no coragio da cidade. Muito pelo contrério, o monoteismo ¢ a metafisica partilharam, ainda que com argumentos diferentes, uma mesma suspeita desqualificante sobre o olhar nas produgGes visuais. O interessante nesse conflito da imagem. diante do poder da transcendéncia, do poder da verdade e do ser € primeiro consta- tar que a fragilidade das operacdes imaginantes é detectada como a por instancias que tendem a unificar seu monopélio e ) opressor de um despotismo que quer vencer toda esa hi uma sinonimia entre pescadores e pe- 1, por isso optei por pescadores, mas considerei -as duas palavras. (N.T) FILGESTETICA turbuléncia desejante. © poder se quer mestre do tempo sobre o duplo registro de sua aceleragao sem limite e da negagio de sua mobilidade. A rela¢ao com 0 tempo é inversamente proporcional 4 poténcia da propriedade assim como ao desejo de apropriagio, Ora, a imagem & questao de tempo e nao de espaco, e por isso seu regime é aquele da espoliacao ¢ da depreciago. Pode-se falar de um verdadeiro recalca- mento do desejo de uma poténcia ditatorial que tende a concentrar toda energia desejante e toda temporalidade para coloca-los a servi¢o do poder ¢ de uma concep¢io substancialista da propriedade. E esse contrato soberano insustentivel que a Igreja cristi virou de cabega para baixo, redistribuindo a relagao de poder das poténcias do visi- vel. Foi a Igreja que retomon de Aristoteles a ideia de que existiria um destino politico do pulsional e uma chance de simbolizagio das paixdes, do pathos. Repensar a perlaboragao catartica que Aristételes confiava inteiramente 4 palavra ou quase, e remeter 4 imagem e a organizacao especular para regular a energia desejante segundo uma visada de ligacao, tal é o sentido da palavra religito, quer dizer, ligacio. A opera¢ao sem precedentes realizada pelos tedricos da imagem durante os oito primeiros séculos do cristianismo consistiu em fazer das opera¢Oes imaginantes uma dupla questo: uma aposta de humanidade € uma aposta de poder, uma aposta emancipadora para o sujeito do desejo e uma operacio de submissio 4 ordem da comunhio. A Igreja pde em crise, por ocasiio de uma crise (iconoclasma), a disjungdo entre uma verdade antropoldgica e uma realidade politica. Dito de outra forma, a destinacao das imagens a partir dessa época no ocidente foi dupla e, portanto, em situacdo ininterrupta de crise. Se as imagens que fazemos e damos a ver sio fiéis 4 proveniéncia indeterminada que as fez nascer, a saber, elas sio encarregadas de trabalhar com a auséncia das coisas na tessitura aleatoria de um enderegamento, por- tanto, a indeterminacio de sua destinacio é a medida da liberdade que elas nos legam, na determinacio inapreensivel do sentido. O homem é 0 sujeito de uma deprecia¢io constituinte. De que maneira 0s pensadores cristdos colocaram o problema para Ihe dar essa forma eminentemente moderna e politica? Fizeram-no constatando que a imagem nao da nada a conhecer, mas somente a sentir, sua mola pro- pulsora era seu regime de cren¢a. Constatando no mesmo movimento que a legitimidade de um poder sempre visivel se revela pela forga ou MARIE-J0SE MONDZAIN A INAGEM ENTRE PROVENIENCIA E DESTINAGHO 49 sua autoridade invisivel em nome da «, O sujeito do autorre, ss fundar pelo saber, e se exigira que aquele que eré se submet em forma de mio que descrevemos com Chauvet encontra ‘ cruzamento mais vivo daquilo que o cristianismo tentou concebe, 7 inventar “imagens nao feitas pela mao do homem", porque elas era, impreusdes puras (Fig. 3). Em seu desejo de se apropriar da yenese 4, homem, tanto de sua origem quanto de sua destinagio, a dourrin, cristi ndo encontrou nada mais pertinente do que propor ao olp, jo feita pela mao do homer, coletivo uma imagem do homem 14 fla 4 mio de Deus. Entre a eficdcia de um poder « fim de atrib legitimidade de um imagem se mantém sobre um solo tao instavel quanto fragil. autoridade, a Memling, Verdnica, ¢, 1483 Figura 3 ~ Ha Washington, Galeria Nacional FILOESTETICA 50. Entre o autor e o espectador Aqui se abre de fato a problemitica que & consequéncia des- ta primeira meditaao, a saber, aquela que faz da dupla aposta da ee uma questo de poder e de autoridade. Isso volta a por em questao a proveniéncia de uma forma renovada ao perguntar: 0 que € um autor? Quem é 0 autor da imagem? Sente-se bem a que ponto a questao € perigosa atualmente, j4 que nio pode haver ai um autor , consequentemente, autoridade, se 0 gesto produtivo é reconhecido como gesto criativo e, portanto, inaugural. A producio é condicio- nada, € 0 conjunto de protocolos de produgao e de difusio pode ser visto apenas do ponto de vista das condigdes. O inventario dos meios necessarios para a realizagio e a difusio de uma obra tanto quanto de um objeto nio dao nenhuma indicagdo nem nenhum critério, per- mitindo dizer que se trata propriamente de falar de uma obra. Sobre essa versio da realizacdo, tudo pode ser analisado em termos de poder e de finalidade. Nesse dominio, a indeterminagao é desqualificada, assim como foi desqualificado o estatuto de indeterminacio desde a crise dos intermitentes.’ O que qualifica uma obra, quer dizer, 0 que permite reconhecé-la como tal e, consequentemente, reconhecer naquele ou naquela que a produziu a qualidade de autor, responde a outros critérios que reunirei sob o nome de autoridade. Qual €, entio, a proveniéncia da autoridade? Contrariamente ao poder ¢ aos meios que tornam uma realizacio possivel, quer dizer, aos constrangimentos @ as determinacdes que condicionam a producio, contrariamente 4 potestas que repousa sobre a possessio (0 monopdlic) da forga, a auto- tidade — auctoritas — repousa sobre 0 reconhecimento. Como compreender a natureza do reconhecimento que funda aautoridade? Do lado daquele que produz a obra, é um duplo movi- mentor aquele que consiste em reconhecer 0 que ele fez, seguramente, mas também aquele que consiste em reconhecer, naquele a quem ele te, que vive sob um regime 2 Existe na Franca a categoria do artista intermit ‘assalariado instituido em 1936 e vem sendo sistematicamente mas duas décadas. Trata-se de uma forma de complementagio de renda mensal destinada aos que desempenham um tempo minimo de horas mensais de trabalho € descontam imposto sobre essas horas, contribuindo para um re} de securidade. (N-T.) reduzido nas ulti- me espectfico JOSE MONDZAIN A IMAGEM ENTRE PROVEMENCIAEDESTINAGKO st ancia de dignidade na liberdade. O recon}. se enderega, uma inst ao mesmo ten cimento indica, desde entio, mpo a ee co enderegamento, quer dizer, a destinaga0 tanto ae le eee Tesponde quanto do que ele faz em resposta diante de um ay + Portanto, uma relagio de alteridade que o reconheciment9 P te conn, isso que se chama a autoridade € até mesmo ® gutoridade do auto, Disso resulta que a indeterminaga0 da obra que c tem entte 0 criador eo espectador nfo é nada além que sua aberrurs® a a atengio ng qual ela se mantém de receber seu Dene la ee daquele a quem ela se endereca. Reconhecer ‘a obra como : pe € reconhecer a poténcia que ela tem de colocar em obra ia Bee) constituinte “entre dojs lugares da depreciagio, Essa relacdo nao © nunc garantida antes, nunca é dada definitivamente, é fragil pore nao tem sua validade na consisténcia do objeto, mas na existencia de sujeitos que a fazem circular ¢ operar entre eles. Mas uti mais os lugares da depreciagio cov 9 termo intersubjetividade pode tornar-se uma partilha dos olhares essa relacao circulante nio constit smo das entidades substan- mn ciais, Nesse sentido, : verdadeira armadilha, uma ilusio. A economia da do tempo, quer dizer, de uma irredutibilidade do sujeito a ura? A relagio de um autor com um espectador nao € nem a ossui nem a de quem é possuido. Eles s6 se constituem na doxal de sua despossessio em comum. Tal me parece ser te. E assim que é preciso entender o pensamento de lo ele instaura ou convoca a autoridade do espectador. é aquela toda capt de quem p. partilha para a poténcia da art Duchamp, quand £, portanto, no coragio de uma opera¢io paradoxal que se constr6i a questio da proveniéncia e da destinacio. A imagem como gesto separador € constitutiva do sujeito de- sejante e falante, ao mesmo tempo que é constitutiva da estrutura “intersubjetiva” na qual se joga o reconhecimento de si no reco- nhecimento do outro, sob condi¢io de que nele nao se jogue nem conhecimento nem identifica¢ao. Suspendo ainda “intersubjetiva entre aspas porque é uma forma insatisfatoria, quer dizer, falaciosa, de designar a dinamica que opera entre os lugares que nao tém eles mesmos nenhuma determinagio substancial nem existéncia natural e consistente. Nessa perspectiva, a indeterminagio da imagem conduz a qualificd-la como nao objeto, como um lugar frigil onde 0 cruzamento de olhares que partilham a visibilidade do mundo instala 0 campo 52 FILOESTETICA politico desta partilha temporal. Mas a imagem é também um objeto determinado por aquilo que 0 condiciona ¢ propde ao desejo de um sujeito que se torna, por sua vez, 0 objeto da imagem. "Ea qualificasio determinada ou indeterminada da imagem que a situa nessa zona indecidivel na qual ela atende 4 decisao politica que lhe conferira seu sentido. Concluiria lembrando a brincadeira de Groucho Marx. A uma mulher que lhe perguntou “How do you do?”, Groucho responde: “How do I do what?”. Em francés — traduzindo a brincadeira segundo meus propésitos — “Vocé vai bem?” se trans- forma em “Vou aonde?”. Acredito que se diz aqui, com humor, que aquele que se inquieta com o nosso estado, quer dizer, com 0 nosso ser, 86 podemos responder interrogando, ao nosso modo, sobre nosso destino comum ou, mais precisamente ainda, sobre nossa destinagio como tinica questao do comum, Referéncia CHAUVET, Lean-Marie; DESCHAMPS; Elictte Brunel; HILLAIRE, Christian. La grotte Chauvet a Vallon-Pont-d’Arc Relié. Paris: Seuil: 1996. {-JOSE MONDZAIN A IMAGEM ENTRE PROVENIENCIA E DESTINAGAO

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