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CB EEESST- CS CAPITULO 2 CORTES MUTILANTES E CORTES ESTRUTURANTES JSeoud fez entao com que um sono Profindo caisse sobre 0 homem, que adormeceu. Tirou-the uma costela e fechou de novo a carne em seu lugar. Depois, da costela que tirou do homem, Jeovd moldou uma mulher ea trouxe ao homem, Este entéo exclamou: Desta vez, sim, é 0 oss0 de meus ossos ¢.a carne da minha carne. Esta serd chamada “mulher”, porque do homem foi tirada', O suyerro sz FUNDA NUMA EXPERIENCIA DE CORTE Como vimos, Halil coloca uma questo comparével Aquela do neto de Freud com seu carretel. Lacan a menciona? a respeito da compulsio & Tepeticao. Essa repeti¢do aparece primeiro, diz ele, “sob uma forma que nao € clara, que nao é evidente, como uma pretentficagio em ato” Quan- do eu falar de ato, seré no sentido em que Lacan emprega esse termo nesse semindrio: como relagio estabelecida entre a repeticao e o real. Prag lecan, © ato, em sua insisténcia repetitiva, nao cessa de trabalhar Para que o sim- 'Génese II, 21-23, Biblia de Jerusalém, Homem se diz em hebreu Lich, e mulher Ischa. °F). Lacan, Les Quatre Concept: fondamentaree de la pychanalyse op. cit, pp. 50, 60 ¢ 61. > Ibid. p. 50. EE ’:S re 52 RUMO A FALA bélico venha se articular a um real que, com toda evidéncia, ainda nao faz parte dele. Logo, é um papel inteiramente simboligeno que Lacan dé 4 com- pulsao & repeticao, um papel de agente da prépria humanizacio; pois, a0 fazer do filhote de homem um sujeito para a morte, ela ao mesmo tempo permite que ele advenha & linguagem. © que supde que a crianga tenha passado por um momento, traumético ou nao, que a funda como sujeito. Na anilise que ele faz dessa famosa cena do menino com o carretel, Lacan nos dé precisamente sua leitura desse tempo. Segundo ele, 0 carretel é um pequeno algo que se desprende do sujeito, embora este ainda permaneca preso a cla pelo fio. fi a experiéncia de perda de uma parte de seu proprio corpo, uma experiéncia de automutilagao. Entretanto, a repeti¢ao do desa- parecimento de sua mae é causa da divisio, da refenda na crianga — refenda sendo tetmo com mais frequéncia empregado por Lacan para traduzir Spaltung, O jogo do carretel é na crianga acompanhado da emissio do O — A, fort-da, uma das primeiras oposicées de linguagem que ela produz. Para Lacan, o significante é a marca primeira do sujeito e ele daf conclui que o objeto ao qual essa oposicao significante se aplica em ato, 0 carretel, € 0 que se deve designar como sujeito! E Lacan acrescenta: “A esse objeto daremos ulteriormente seu nome na dlgebra lacaniana — 0 pequeno a’”. Essa proposicao paradoxal de Lacan pode, sozinha, explicar a questao da cons- tituigao do sujeito a partir do objeto caido, tal como me apareceu na cura de Halil e também de um outro pequeno autista, Mourad’. Continuagao Do caso Hau. Antes de abordar a parte do tratamento de Halil que vai de seus dois anos a seus dois anos ¢ meio, devo evocar um episédio traumdtico que acon- | teceut antes do inicio de sua cura e que me foi contado por uma educadora, a qual havia suportado mal a violéncia da cena. O menino e sua familia ti- nham sido atendidos em ambulatério, por alguns meses, por um servigo de ‘ Tbid., p. 60 *Ver mais adiante. CORTES MUTILANTES E CORTES ESTRUTURANTES 53 bebés com o qual as vezes trabalho. Quando comecei a atender regularmen- fea mae ¢ 0 menino, a educadora que trabalhava nessa equipe desejou con- ersar comigo sobre uma sesso de jogo que fora para ela verdadeiramente umatica. Participavam dessa sesso a mae, o menino € 0 pai. Eis as notas da residente, a Dra. Seneschal, que j4 trabalhava entio como observadora. “O Senhor e a Senhora X estimula (sic!), um apés 0 outro, o filho. O menino poe um brinquedo na boca e comeca a chupar. O Senhor X, da adeira, tenta impedir 0 menino de chupar esse brinquedo. A educadora opée, entéo, uma mamadeira com Agua dentro, O menino vai bebé-la into da mae; o menino olha seus dedos e se afasta, Depois, vai buscar uma orda de pular e chupa 0 cabo. Diz ‘haba’, depois ‘anne’. Nesse momento, omo anda pela sala segurando a corda, a educadora resolve pegar a outra onta’. Esta me diré mais tarde, de mancira muito honesta: “Eu estava ansada de nao existir, eu dizia a ele quero brincar contigo” — imaginamos m que resultado! Bis agora como a educadora descreve a sequéncia: “Como 0 menino hum outro sentido, a corda resiste e ele puxa sem me olhat, puxa de 0 € cai num desamparo espantoso. Ele néo pode mais ignorar que essa nao é uma simples continuagao de seu eu [moi]”. Durante todo esse mpo, ela lhe fala, em vao. Acaba de impor af um corte intoleravel. Fala do insustentavel sentimento de ter-lhe arrancado uma parte de corpo. O desespero ¢ o desamparo do menino so imensos; embora ela lhe devolva extremidade da corda, isso nfo muda nada, A mae o pega no colo, mas o pero continua. Vai ser extremamente dificil acalmé-lo nesse dia. 4 Retomemos o texto dessa observacao: “O Senhor e a Senhora X esti- mula, um apés outro, o filho”. Um erro de méquina entrou nesse lugar: a ecretéria datilografou a palavra no singular. Para mim, esse erro parece ter o caréter de um lapso indicando uma verdade — que o Senhor e a Senhora sdo apenas um, tal o genitor combinado da pré-historia infantil, segundo ‘Melanie Klein. De fato, 0 pai, que com frequéncia parece ser apenas um dublé da mae, nao instaurava nenhum corte entre cla ¢ 0 filho. Nos outros elementos da observagéo: “O menino vai beber a mama- deira colado na mac; ele olha os dedos ¢ se afasta. Depois, o menino diz baba c anne”, nada indica uma interagao entre a mie ¢ o filho quando este 54 RUMO A FALA se aproxima dela; e, sobretudo, nada assinala que quem quer que seja tenha percebido baba ou anne como sendo palavras pronunciadas pelo menino. Alids, na época, os pais ¢ o meio médico 0 apresentam como desprovido de linguagem. Ora, essas duas palavras significam em turco papai e mamde! Quanto & cena da corda, ela de fato constitui uma ferida; ¢ a educadora sente bem, ao falar de um corte intolerdvel, como se ela lhe arrancasse uma parte do corpo. Essa educadora por muito tempo permanecerd sob 0 golpe dessa experiéncia dolorosa que ela vive como uma mutilagao a qual as pa- Javras nado trazem nenhum apaziguamento. Por que esse corte nao péde fazer advir nenhum sujeito ao simbélico € 86 deixou um puro sujeito do sofrimento? Os pais reunidos pareciam for- mar um todo sem falha. A educadora se achava em posicao de pedir um re- conhecimento: ela teria desejado que o menino reconhecesse que ela existe! Logo, era ele quem se encontrava, por esse pedido, em lugar de Outro — do qual viria o reconhecimento de existéncia. Tal subversao dos papéis costu- ma ser frequente quando se cuida de uma crianga autista. Pelo simples fato de que esse menino nao fala, aquele que dele cuida artisca acabar em lugar de demandante, confrontado com uma crianga todo-poderosa em razao de sua suposta recusa de dar 0 que é pedido, a fala. Se, no episddio dilacerante da corda, nenhuma ordem simbédlica foi introduzida, é que o corte nao remetia a nenhum outro e, sobretudo, a ne- nhum corte no grande Outro. Emprego aqui 0 conceito de Outro em sua fungao de lugar psiquico. Esse lugar se constrdi a partir das relagdes que o menino tece com as pessoas 4 sua volta que ocupam um lugar de Outro real para ele, mais especialmente os pais. A auséncia de corte no Outro para uma crianga pode provir da dificuldade experimentada por seus pais, num tal momento da vida deles, de assumir ou entao de significar a esse menino da incompletude deles. Certas formas larvares, uma depressao, por exemp! poderiam tornar um genitor incapaz de assumir sua falha diante do filh SEGUNDA CENA COM A CORDA, UM ANO MAIS TARDE Essa hipétese vé-se confirmada por outro episédio aparent semelhante, mas cujo efeito foi bem diferente. Aconteceu exatament CORTES MUTILANTES E CORTES ESTRUTURANTES 55 nais tarde, no quadro da cura. Havia mais ou menos nove meses que raya atendendo Halil com sua mae, trés vezes por semana; mas, havia nés, ele vinha sozinho durante a primeira meia hora de uma de suas ses semanais. Nessa época, ele ja dizia varias palavras. Estavamos na sma sala onde acontecera a cena com a corda. Ocorte, entio, 0 seguinte dio: Halil vai buscar essa mesma corda e passeia arrastando-a atrds como ja havia feito outras vezes. Num dado momento, ele me traz-a poe um dos cabos nas minhas maos e me diz: “Al! al!” — em turco, 0 ativo do verbo pegar. Pego, entio, como ele me pede. Em seguida, as sas se precipitam: cle sai andando, enquanto continuo a segurar 0 cabos sorda resiste, ¢ ele grita para mim de novo: “Al! ail”, enquanto continua a corda, Entio, é aparentemente 0 mesmo desamparo, 0 mesmo ento, o mesmo sentimento de dilaceramento que se repetem. Durante todo esse tempo, tenho em mente a cena que a educadora descreveu Entretanto, nao solto — néo que toda a minha vontade nao = leve a faré-lo, A mae esté pélida, eu também, com certeza. Eu gostaria to de evitar-lhe esse sofrimento, esses gritos de alguém que mutilam, as seguro firme. Se nao solto, é gracas a dois pontos de apoio. Antes de is nada, sua fala. Ele nao me disse varias vezes pega? S6 posso lhe repetir néo sou Halil, que nao sou ele; que, se ele me dissesse dd — palavra que jé empregou em francés e em turco -, eu Ihe daria de bom grados mas se nao tenho o poder de fazer com que um pega seja um dd, Estou, assim. mo seus pais, submetida a linguagem, e nao posso fazer nada. Por outro sei que a refenda do sujeito sempre ocorre numa experiéneia vivida aginariamente como um dano, como uma mutilagéo*. Nao estd em meu der poupar Halil de vive-la. Durante toda a duracio dessa cena, penso que, decididamente, em oss0 oficio, somos obrigados a ocupar lugares insuportaveis. Vejo a mac am efeito, Lacan diz explicitamente, varias vezes, que a operagéo de frustragio na lla crianca se imagina perdendo um objeto real, um pedago de corpo ~ o scio, por emplo — é vivida por ela como uma experiéncia de mutilagéo, j& que se trata de um eto investido como se fizesse parte de seu corpo proprio; no entanto é essa experiéncia perda que vai introdurir a ordem simbélica das trocas. Ainda ¢ preciso que essa perda a tolerdvel para a crianga. Vemos aqui como a teoria pode as vezes servir de quadto para analista, petmitindo que ele suporte uma situacéo extremamente dificil. 56 RUMO A FALA num softimento intoleravel; ela faria qualquer coisa para que isso cessas- se. Enquanto lembro nossa submisséo a linguagem, Halil parece capitular. Um pequeno momento depressivo se segue. Depois, ele se levanta transfor- mado. Esta feliz, designa objetos que nomei em seguida corre até a mae, muito contente, ¢ Ihe morde 0 brago declarando: “Ben isirdim!” A mie ri, explica-me que o filho acaba de dizer: mordo. Ora, 0 tetmo ixirdim sozinho traduz-se por mordi, e 0 emprego do pronome insiste sobre o sujeito. Logo, a tradugao é: ew mordi— pois na verdade se trata de um passado, Halil assume um ato enquanto sujeito. As sess6es seguintes mostrarao que, para ele, ali se trata de saber se esse grande Outro materno, origindrio, pode ser encetado. A COSTELA DE ADAO A constituigéo de um nao-cu — na medida em que tem de ser arran- cado de um grande Todo (de um eu [moi] indiferenciado mae-filho) — for- ma a experiéncia dilacerante, mutilante, 0 dano por exceléncia imagindrio de toda crianga. Esse sofrimento no entanto nao é gritado pelas outras como pelo autista. Para cada um de nés, ele caiu no sono do esquecimento, ou foi ocultado por uma forte dor de dentes que obriga nossas maes a nos acalentar de noite. Um dos elementos do mito de Addo, amputado de sua costela, ilus- tra bem que ha refenda; caso contrario, Jeovd nao teria fechado de novo a carne em seu lugar. Ora, essa refenda vivida por Adao ¢ que permite 0 surgi- mento do sujeito Eva a partir de um objeto pequeno a, sua costela, acontece no sono, Como se explica que o softimento da mutilagao tenha sido assim poupado a Adao? Esse sono seria a metéfora de um esquecimento, de um recalque originario? Lacan evoca o mito da costela de Addo em scu semindrio de 1968” para ilustrar a questéo do papel do objeto a no desejo de um homem por uma mulher, Por que Adao justamente desejou essa Eva, constituida a par- tir de uma falta nele mesmo? E Lacan retoma a questo da separacao do objeto a ea génese concomitante do sujeito. ’J, Lacan, “D’un Autre 4 Pautre”, semindrio inédito, aula de 21 de fevereiro de 1968. CORTES MUTILANTES E CORTES ESTRUTURANTES 57 Podemos aproximar o desejo entre um homem e uma mulher do entre uma mée e seu filho? Tendo em vista a maneira como Lacan loca a questao a respeito de Adio e Eva, a resposta pode ser afirmativa. (os que, para que um filho seja desejavel para sua mae, convém que e seja portador, a seus olhos, daquilo que a ela falta. Lembremos 0 momento descrito no capitulo precedente em que, a onto de transcrever uma sesso, adormego e sonho que alguém carrega um bjeto frdgil, formado de duas partes, sendo que a de baixo se desprende, cai quebra no chao. E possivel imaginar que, no plano transferencial, uma ri- idade aconteceu entre a mae ¢ eu, analista, que poderia enunciar-se como _questéo de saber a quem pertence a crianga, Mas nao é 0 mais importante. -oilhogiaghaatantiandl enmmasastt pemacmecractinteyar es im falar como sujeito e ter acesso ao espelho. Se, no préprio momento em e surgiu o sujeito de uma fala, vivi essa experiéncia de fading, talvez seja orque alguém tinha de ocupar o lugar de um Outro primordial suportando eee eee nine rte mr ciseeninnteceadomnc fento incoercivel. No sonho, eu me achava, feito Adao, como aquele que um pedago, aquele do qual uma parte se desprende. Nao é que, a partir faltante — pelo menos na transferéncia— para mim, sua analista? Meses mais tarde, redigindo um artigo® sobre a sequéncia em que il enuncia pego, qual nao foi minha surpresa ao constatar que eu ainda tia a mesma vontade irreprimivel de dormir que eu adormecia mais a ver! Esse novo fading me indicava bem que eu continuava a ocupat, transferéncia, esse lugar de Outro que podia se “barra”. OMADA DO MATERIAL CL{NICO Para melhor entender a continuagao, voltemos um pouco atrés, & a sesso anterior aquela da corda, Nessa época, eu jé havia instaurado, D presente capitulo reroma em parte, modificando-o ¢ aumentando-o, 0 artigo que bliquei sob o titulo: “A infancia dos esteredtipos na sintomatologia autistica’, in niques méditerrandennes, n° 13-14, C.l.R.P.C., univ, de Provence, Aix-en-Provence, 1987. 58 RUMO A FALA em uma das trés sessdes semanais, um tempo de trabalho com o menino sem a mde. Aqui vai um desses momentos, Halil entra enunciando algo como “teuta ia ia ia” (titia ‘hd, ha, ha), E comega a jogar uma série de objetos no chao. Depois, vem bem perto de meus joelhos e separa dois pedagos da cobra de plistico. Encontra uma boneca ¢ comeca a atrancar-lhe os cabelos, joga longe uma marionete cro- codilo, dizendo anne, em seguida solta uma massa de fonemas nos quais se teconhece uma série de “tiatiatia, teunteun, tountoun”, Como eu jé havia feito, recorto nessa massa sonora 0 via. Devolvo-lhe, interpretando-o nao s6 como um significante da lingua francesa [em francés, tata), mas deci- dindo que ele designa sua analista’, Fle entao comeca a inspecionar minha boca, Pergunto-lhe: “Dente se diz “dis” ”. Ele nao responde nada. Joga longe a lixeira, dizendo: “Gitzi” (foi embora), Para ir em seguida juntar-se a ela, deitar no chdo e dizer anne. Tenta em seguida abrir a porta que dé na sala de espera onde se encontra a mae. Nao consegue e abandona, enquanto lhe Pergunto se tem medo que anne tenha ido embora como a lixeira que ele jogou longe. Depois de arrancar mais alguns cabelos da boneca, dizendo “tiatiatia-tiatiatia”, ele vem até mim e designa a porta atrds da qual esta a mae, depois a poltrona vazia onde esta costuma se sentar. Enfim, instala-se Um rapido sobrevoo dessa sesso mostra que as repetidas auséncias da mae, ainda que curtas, tém varios efeitos”. O mening homeia a mae e sua auséncia (anne gitti— maméc foi embora) ¢ designa a poltrona deixada varia, assim como a porta, lugar onde ele a deixou, Também eferus um °Tempos depois, ele vai regularmente me chamar de tia, ¢ isso ainda Ihe acontece as Vezes, em momentos de enternecimento. Est bem evidente que € sua analista quem ali produz um corte na massa sonora, com um forcamento interpretativo que nao deixa de lembrar certas passagens do livro de P. Aulagnier, La Violence de Vinterprétation, Patis, Pur, 1975, Com muita frequéncia, pais de criangas autistas tomadas muito pequenas em andlise Sozinhas, enquanto que eles préprios aguardam atrés de uma porta fechada, falaram-me nao 36 do sofrimento que sentem, mas do sentimento que tem le incapacidade radical de

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