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A transferência de Freud a Lacan

Introdução

A matéria prima utilizada no tratamento psicanalítico é a palavra,


assim, há aquele que fala e há o outro que escuta e pontua, provocando a
retroação daquilo que foi dito por aquele que falou. É necessário e
interessante que aquele que demanda possa ouvir o ressoar de sua
demanda. O analista não deve demandar nada, ou, quase nada, apenas
que o sujeito fale. Mas sobre o quê e por quê o sujeito fala? Porque tem
alguém para ouvir e tomar como verdade aquilo que o sujeito diz. Essa
consideração de verdade é uma marca fundamental da escuta do analista
e condição para o caminhar do trabalho psicanalítico.
“Numa psicanálise, com efeito, o sujeito propriamente dito
constitui-se por um discurso em que a simples presença do psicanalista
introduz, antes de qualquer intervenção, a dimensão do diálogo” 1. Ou
seja, a psicanálise é uma experiência dialética e essa noção é a que diz
sobre a natureza da transferência, de onde ela emerge e para onde ela
tenta se direcionar.
Para efeito de ilustração do dito acima, cabe fazer uma distinção
entre verdade do sujeito e realidade ordinária. A verdade do sujeito
guarda uma estreita relação com sua realidade psíquica e, a realidade
ordinária apenas lhe oferece objetos passíveis de serem utilizados para a
composição de sua realidade psíquica. Essa realidade está do lado do
desejo e cabe ao psicanalista mantê-lo ativo ao longo da análise e levar o

1
Intervenção sob transferência in Escritos, 1998. Jacques Lacan, p. 215.
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sujeito a reconhecê-lo, em alguma medida. Falaremos mais sobre esse


conceito adiante: o desejo em psicanálise.
Assim, uma pessoa, nos dias de hoje, pode chegar ao consultório
do psicanalista e dizer que sofre de síndrome do pânico, por exemplo,
utilizando uma categorização psiquiátrica atual para expressar um
incomodo, um sofrimento que se manifesta sob as vestes do discurso de
uma realidade ordinária: síndrome do pânico. Ainda que os sinais sejam,
como indica o DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders), em grande número de sinais comuns em diversas pessoas tais
como, sudorese, falta de ar, taquicardia, calafrios, entre outros, interessa
ao psicanalista não o que é comum a todos, mas aquilo que distingui um a
um. Diferentemente do campo médico, o psicanalista não está ocupado
com estatísticas e categorizações, mas com a verdade particularíssima
desse ser que vem lhe pedir ajuda: a “historização” de sua vida.
A verdade do sujeito, a sua única verdade, é o sofrimento que
busca vias de expressão e tem um sentido, esse sentido é expresso pelo
seu discurso e é este discurso que interessa ao psicanalista. Podemos
dizer, após um longo percurso da psicanálise até aqui que o ser humano se
angustia e sofre de desejo, da busca insaciável por esse desejo que não
cessa.
Promover o questionamento sobre seu desejo (o do sujeito) é o
operador mais precioso do trabalho psicanalítico. Ater-se a denominação
“síndrome do pânico” e condescender com tal constatação feita pelo
sujeito é jogá-lo a um gozo que congela no corpo fatos que estão aquém e
além deste, ou seja, a sua história que o precede e o sucede. Se faz
necessário situá-lo como sujeito de sua história e não mero espectador e
vitima de um contexto. A verdade do sujeito está no que ele diz
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acontecer com ele, não no acontecimento em si, esse é o de menos. Ele é


o artífice de sua história, ninguém mais.
Podemos recorrer a mitologia como exemplo para constatarmos as
inúmeras variações que podem ter a história de um mesmo personagem
mítico. Entretanto, o cerne do mito, sua estrutura, permanece intacta:

Assim, para o Mito Édipo existem muitas versões, não apenas aquela que
Sófocles imortalizou em sua tragédia Édipo Rei. Jocasta, por exemplo,
surgiu com Sófocles. Segundo as variantes que são os pulmões do mito, ela
não foi a primeira esposa de Laio. Antes ele casara com Euricléia, filha de
Ecfas, e dela nascera Édipo. Dessa forma, ele não casara com a mãe, e sim
com a madrasta. Em Homero não consta que Édipo furou os olhos, nem que
ele teve todos aqueles filhos com Jocasta, menos ainda que Antígona o
tivesse levado para o bosque das Eumênides, em Atenas. Vimos em Homero
que continuou a reinar após a morte da mãe/esposa 2.

Édipo jamais deixará de matar o pai e casar com a mãe (madastra,


ou ainda, mulher do pai), mas as versões do mito variam. Há um ditado
que traduz bem esse fato: “cada um que conta um conto aumenta um
ponto”. Como cada um irá cerzir sua história é o que fornece a
possibilidade do analista entrar em contato com a realidade psíquica que
fala na sessão, a partir do mito individual de seu paciente ou, até mesmo,
o esmorecimento dele.

O amor “pela” e “na” transferência

Gostaria de fazer uma primeira distinção da ideia de amor “pela”


transferência e de amor “na” transferência. Essa distinção, absolutamente
pessoal, parte de minha prática clínica e se apoia nas elaborações de
Freud e posteriormente de Jacques Lacan. Há uma vasta literatura sobre o
tema, em Freud, na obra Estudos sobre a Histeria (1893-1895), o caso
2
Visto em http://www.traco-freudiano.org/blog/tag/variantes-do-mito-edipo-rei/ ; Lourdes Rodrigues,
2013. Acessado em 16 de fevereiro de 2023.
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atendido por seu amigo Breuer, Anna O., do qual Freud veio a se ocupar,
serve para ilustrar os primórdios da conceituação do termo. Ele nota o
amor que se manifesta da paciente para com seu analista, no momento
em que este comunica uma viagem com a esposa e vai se afastar por um
tempo. Uma gravidez psicológica manifestou-se na paciente e Breuer
decidiu afastar-se do caso em definitivo. Tal fato forneceu material para
Freud ao perceber a intensidade de afetos presentes na relação médico e
paciente.
O interesse de Freud, pelos aspectos psicológicos dos sintomas
histéricos, teve início a partir de seu contato com as aulas de Charcot que
utilizava o método de hipnose sintomática, vejam o filme Augustine,
baseado em um fato real, traz os primórdios do estudo sobre a histeria.
De caráter voltado mais para as causas orgânicas, mas que deram pistas e
atiçaram a curiosidade de Freud, a escola de Charcot contribuiu para as
futuras formulações dele, menos em sua concepção e mais nos eventos
que Freud presenciou. A escola de Nancy possuía o método de hipnose
catártica, mais ao lado da concepção psicológica da histeria. Ambos
inspiraram as formulações de Freud. Interessa aqui destacar o nascimento
da escuta analítica, nesse momento do trabalho de Freud. Ele começou a
escutar os relatos e queixas das histéricas sobre suas paralisias e como
neurologista a ausência de nexo entre a queixa e manifestação do sintoma
e, a não correspondência anatômica e fisiológica com o quadro. Nesse
momento, Freud começa a construir a suposição de uma causa para além
do orgânico e não como mero capricho da paciente.
A princípio Freud utiliza o método hipnótico, porém, ao se deparar
com a dificuldade de hipnotizar alguns pacientes, bem como o retorno de
sintomas após um tempo, ele cria o método da associação livre, com a
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colocação de sua mão na testa do sujeito. Ele começou a perceber a


interrupção do fluxo de ideias em alguns pacientes e supôs, a ocorrência
de tal fato, estar ligado à figura do médico.
A ideia de transferência em Freud surge a partir da suposição de
algum afeto que emergia como revivência de um fato, porém ligado desta
vez a figura do médico. Tal afeto revivido, a partir do relato, estava ligado
ou relacionado a alguma questão da sexualidade.
Assim, a transferência como repetição é uma primeira definição
feita por Freud. A transferência emerge, a partir dessa concepção, como
obstáculo ao trabalho analítico e assume o caráter de transferência
erótica, posteriormente, chamada por Freud de resistência. Assim,
transferência e resistência são duas faces do mesmo processo de
repetição. Ele abandona a sugestão e busca fazer uso da interpretação
para vencer a resistência e utilizar aspectos bons da manifestação
transferencial.
Freud designava o trabalho psicanalítico como uma psicologia
profunda, ou, metapsicologia, porque considerava aspectos da
manifestação psíquica para além da psicologia. Esta última se caracteriza
como um método predominantemente descritivo dos fenômenos, da
conduta e da consciência manifesta. Já a metapsicologia de Freud é uma
teoria do psiquismo não visível, não descritível, ele é, em grande parte
especulativo. Entretanto, tal método é amparado por três eixos
fundamentais: a prática clínica, a analise pessoal e o estudo. Trata-se de
uma especulação calculada e amparada por esse tripé.
A contratransferência será um tema que surge entre 1910 e 1920.
Freud considerou, a principio, a contratransferência como a transferência
do analista em relação ao seu paciente, posteriormente, ele fez uma
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distinção: a transferência do analista propriamente dita e a


contratransferência do analista como uma resposta a alguma
peculiaridade do paciente.
Algumas distinções nas considerações sobre a transferência em
Freud: transferência amistosa e erótica. A erótica abarca a repetição do
mesmo, a amistosa sempre envolve a marca de uma diferença, ainda que
na repetição (a capacidade de repetir diferenças passadas, relativização de
situações antigas).
Para resumir, um tema vasto, são basicamente quatro
caracterizações efetuadas por Freud ao longo de suas elaborações
teóricas: transferência como repetição dos modelos ou representações
inconscientes ( material como motor de cura e passível de ser entendido e
modificado); transferência como repetição na função de resistência
(apego ao mesmo, inércia); transferência como sugestão (idealização do
analista e sentimento amoroso) e, finalmente, transferência como
neurose de transferência (reedição condensada da neurose).
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Em Lacan, no seminário 8, A transferência, encontramos uma das


diversas abordagens feitas por ele sobre o tema. Ele lança mão do texto
Banquete de Platão, para pinçar aspectos valiosos do amor de
transferência. Alcibíades tomado por um amor intenso por Sócrates, surge
embriagado no banquete filosófico reclamando o amor dele ainda que o
trate como figura pouco sedutora fisicamente, apontando para algo que
não se vê, uma beleza incomensurável no filósofo que o atrai. Alcibíades o
compara a um sileno, espécie de porta-joias, cujo seu interior teria o
agalma, as jóias propriamente ditas. Lacan referiu-se as diversas versões
que o termo agalma teria na antiguidade, como por exemplo, algo que
atrai a atenção divina. Seja como for, Sócrates tem, para Alcibíades, a
função de objeto do desejo, do qual Socrátes se furta em aceitar tal
designação. Ao contrário, ele diz:
Caro Alcibíades, é bem provável que realmente não sejas um vulgar, se
chega a ser verdade o que dizes a meu respeito, e se há em mim algum
poder pelo qual tu te poderias tornar melhor; sim, uma irresistível beleza
verias em mim, e totalmente diferente da formosura que há em ti. Se
então, ao contemplá-la, tentas compartilhá-la comigo e trocar beleza por
beleza, não é em pouco que pensas me levar vantagens, mas ao
contrário, em lugar da aparência é a realidade do que é belo que tentas
adquirir, e realmente é "ouro por cobre".

Assim, tal como Lacan formulou, o analista faz parte das formações
inconscientes presentes na transferência do paciente e atualizadas na
análise. A resistência formulada por Freud é compreendida por Lacan
como a insistência do desejar do paciente. A aproximação do paciente
frente ao desejo e suas pulsões produz desprazer e são,
irremediavelmente, inconfessáveis. A resistência é egóica, envolve juízo
de valor, portanto a posição do analista diante do discurso do paciente é
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fundamental: um lugar vazio onde possa se alojar de modo fortuito o


objeto do desejo do falante.
A escuta do analista tem que ser franca e serena, deixar-se ocupar
pelo discurso do outro (aquele que fala) e deslizar suavemente da suposta
posição que lhe incute o falante para não congelar ou incorporar o objeto
da fantasia. O analista funciona como uma espécie de suporte do Outro
(lugar da linguagem). Podemos considerar tal formulação como abertura
para historização do sujeito, na expectativa de que novas versões possam
ser formuladas, eis o sentido da cura possível.
São três registros pelos quais Lacan considerará a transferência: o
imaginário, o simbólico e o real. Trata-se de uma formulação auxiliar para
compreender os diversos aspectos presentes no fenômeno central de uma
análise: a transferência. De maneira breve, podemos considerar o aspecto
imaginário o amor-paixão do paciente por seu analista e a tentativa de se
fazer amado para ele. Isto funciona como uma força motriz para o
tratamento e o progresso da análise. O caráter simbólico envolve a
consideração de que o analista detém um saber sobre o sujeito e em
algum momento irá ser revelado a ele, também força positiva ao
andamento da análise. A dimensão real é aquela do indizível, da
insuficiência das palavras, a angústia por excelência.
Todas essas denominações acima citadas, são perspectivas a
serem trabalhadas pelo analista, a partir do discurso do paciente. De qual
modo?
Sob transferência, como formulou Lacan. O analista não refuta, tão pouco
adere aos lugares atribuídos a ele pelo paciente. É profícuo num trabalho
de análise que o psicanalista deslize por esse fluir de sentidos que o
paciente fornece, acompanhando as marés altas e baixas de seus afetos.
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Ao mesmo tempo, animar as produções inconscientes é função do


analista, pela via do destaque dos significantes trazidos pelo sujeito. Estes
podem ser considerados como marcas distintivas de seu discurso e que
devem ser destacadas pela pontuação do analista.
Um exemplo clínico: certa feita, um paciente no consultório que sofria de
“síndrome do pânico” tinha episódios recorrentes de descontrole
intestinal diante de situações angustiantes. Alguém acamado, uma batida
de carro sem maiores consequências, uma notícia ruim, ainda que
distante de seus familiares, desencadeava tais episódios. Em uma ocasião
ele reclamou de problemas intestinais, mas porque estava “comendo
mal”. Esse “comendo mal” chamou a atenção do analista que solicitou
esclarecimentos: “o que é comer mal?”. A partir dai o discurso tomou um
rumo novo, relacionando-se com questões corporais, a síndrome do
pânico cedeu lugar a questões mais genuínas do sujeito.
Outra paciente que sofria de um mal intangível na garganta, depois
de inúmeros exames, decidiu buscar um psicanalista. Ela, como médica,
não compreendia como podia ter tanta dificuldade em se alimentar e, por
consequência, ter uma perda de peso significativa, e não localizar isso
organicamente. Em análise, a partir de sua história, chegou em um
momento do relato que disse: “estou cansada de engolir sapos”. O
analista repetiu, fez ressoar, essa formulação. O rumo mudou a partir dai.
Por fim, Lacan trouxe a contribuição de tornar mais operativa a
clínica, a partir desses aspectos indicados por ele, bem como, de destituir
o analista da posição de figura “superegóica” na análise, passível de
identificação por parte do paciente. A tratativa d3 Lacan sobre “o desejo
do analista” tornou preciso o lugar daquele que se pretende ser analista: a
expectativa de tornar-se resto da operação de análise, uma espécie de
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dejeto feliz, pelo trabalho concluído. Levar o sujeito a reconhecer o que


lhe causa (seu desejo) e o desvencilhar de uma causa alheia, é outro modo
de colocar a possibilidade de cura. Trata-se da possibilidade da
constituição de uma identidade a partir de uma transferência
particularíssima, só possível no contexto ético da sessão analítica. Não há
dominação, imposição de postura ou modelo a ser seguido, o que se busca
é o genuíno e inspirador regato do desejo particularizado.

A transferência no contexto atual da clínica

Na última aula dada, ano passado, falei sobre o gozo da apatia que
presenciamos atualmente na clínica. Com frequência, nota-se um
empobrecimento simbólico na fala dos pacientes, ou, outro modo de
dizer, categorizações prêt-à-porter, para dizer de um sofrimento difícil de
situar. Espectro autista, TDHA, síndrome do pânico, depressão, dentre
outros, é o máximo que o sujeito, a princípio, consegue formular sobre si
mesmo. Caso seja inquirido a dar detalhes, são as manifestações corporais
descritas nos mínimos detalhes que entram em cena.
Duas opções entram em curso: ceder ao discurso contemporâneo,
ou, vislumbrar um sujeito escondido nas vestes de seu tempo e convocá-lo
a um gesto mais criativo diante de sua vida, qual seja, historicizar sua vida.
A posição do analista se dá na partida, antes mesmo de saber quem vem,
pois, se vem, deve supor que tem e quer dizer algo e, ele deve estar
pronto e disposto a ouvir. Apostar que em algum momento sua escuta
será dispensável é o melhor que o analista deve esperar de seu paciente.
Dali por diante o sujeito endereça seu discurso, seu ato, ao seu desejo, a
seja lá quem for, livre de ideais e ideias alheias. Corre o risco de suas
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escolhas, tal como o herói trágico Ulisses, onde o sucesso de sua jornada
não é garantida, mas ele vai mesmo assim, em nome da identidade que
ele forjou para si. Ele não é uma vítima de seu contexto, mas ator dela.

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