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ARTIGO

Acidentes por cobras corais


◗ Artigo destaca como identificar a espécie, prevenindo futuros acidentes,
além de ressaltar o que deve ou não ser feito após uma picada
CLAUDIO MACHADO

No mês de janeiro, no Rio de Janeiro, escavado ou então após chuvas fortes, queno, urus = cauda). Vulgarmente, são
um trilheiro, ao caminhar pelas trilhas das quando a terra fica úmida e fofa, faci- conhecidas no Brasil por diversos outros
encostas do Pão de Açúcar, se deparou litando o deslocamento destes animais. nomes como: ibiboca, ibiboboca, boico-
com uma pequena serpente. O animal, Apresentam cabeça de formato ova- rá, boipinima, boicoral, chumbéguaça e
com anéis vermelhos, pretos e brancos lado e recoberta na parte superior por boichumbéguaçu.
parece tranquilo e inofensivo. Com o grandes escamas simétricas, caracterís- Seu colorido varia conforme a espécie,
objetivo de tirar uma foto, o trilheiro pe- tica esta muito mais frequente em ser- mas de uma forma geral, apresenta uma
ga a serpente nas mãos e a posiciona em pentes não peçonhentas do que nas pe- sequência de anéis vermelhos, pretos e
um local melhor para o enquadramento. çonhentas que, geralmente, se caracteri- brancos ou amarelos ao longo de todo o
Horas depois, ele está no CTI (Centro de zam por apresentarem cabeça triangular corpo. Estes anéis se completam, dando
Terapia Intensiva) de um grande hospital, e minúsculas escamas no alto da cabeça. a volta desde a parte de cima no dorso
apresentando um quadro de diploplia e Ou seja, as cobras corais são mais um (região dorsal) até a parte inferior (região
início de paralisia respiratória. exemplo de que o formato triangular da ventral). Os anéis pretos podem se dispor
Este grave acidente foi causado por cabeça não caracteriza uma serpente pe- de forma isolada ou em grupos. Quando
uma cobra coral. As cobras corais ver- çonhenta, visto que elas, apesar de forte- ocorre este padrão de grupo com sequên-
dadeiras (gênero Micrurus) são serpentes mente peçonhentas, não apresentam esta cia de três anéis pretos, normalmente se-
peçonhentas de hábitos fossoriais, que característica. parados por anéis brancos, chamamos de
vivem enterradas ou sob a camada su- Além disto, estas espécies possuem “tríades”. Poucas corais verdadeiras não
perficial de folhas e, normalmente, apa- o corpo bem adaptado à escavação. Os apresentam anéis vermelhos, tendo ape-
recendo quando o solo é revolvido ou ossos de sua cabeça são rígidos e fortes, nas anéis brancos e pretos e outras nem
formando um crânio bem compacto, que apresentam anéis, tendo o colorido uni-
funciona como uma picareta, cavando formemente preto na parte de cima, com
aberturas no solo. O corpo é delgado e pequenas manchas amarelas no ventre.
Claudio Machado – Biólogo,
cilíndrico e totalmente recoberto por es- O hábito fossorial e as alterações no
Herpetólogo, PhD em Medicina Tro- camas lisas. Sua cauda é curta e esta carac- formato do crânio para facilitar a esca-
pical; Divisão de Herpetologia,
Instituto Vital Brazil, no Rio
terística é que origina o nome científico vação fez com que a abertura da boca
de Janeiro/RJ do seu gênero (Micrurus), que em grego das corais fosse reduzida. Enquanto na
herpetologia2@gmail.com significa “cauda pequena” (micro = pe- grande maioria das serpentes a abertura
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chega a 180°, nas corais esta abertura se Paulo os que registraram maior número envolvidos diretamente com o meio-am-
limita a 30°. Esta diminuição no ângulo de acidentes. Embora estes dados cor- biente como guias, montanhistas, bom-
de abertura da boca das corais fez com respondam a menos de 1% dos aciden- beiros e policiais ambientais devem ser
que a alimentação ficasse restrita a pe- tes por serpentes no Brasil, o acidente treinados regularmente para o reconhe-
quenas serpentes, anfisbenídeos, lagartos elapídico é o mais grave deles. cimento, manejo e primeiros socorros
e anfíbios sem patas. O veneno das Micrurus é fortemente com serpentes. Infelizmente, no Brasil,
Vale ressaltar que, algumas serpentes neurotóxico e as manifestações clíni- os cursos de Medicina e Enfermagem
não peçonhentas imitam o colorido e, às cas locais costumam ser discretas, como também não dão o devido destaque ao
vezes, até o comportamento das corais dor de intensidade variável e parestesia. tema, fazendo com que grande parte dos
verdadeiras, sendo muito difícil para um O edema, quando presente, costuma ser profissionais de saúde não tenha conheci-
leigo a distinção entre a coral verdadeira leve, e normalmente devido ao uso de mentos básicos sobre o que fazer em ca-
e a coral falsa. Na Biologia, chamamos de garrotes, procedimento que nunca deve so de acidente com animais peçonhentos.
mimetismo quando um determinado or- ser utilizado nos acidentes por animais É importante, em caso de acidente, ten-
ganismo possui características semelhan- peçonhentos. O preocupante é a ação tar manter a calma e fazer procedimentos
tes que o confunde com outro organismo sistêmica do veneno, caracterizado pelas simples como, por exemplo, lavar o local
de outra espécie para levá-lo a qualquer atividades pré e pós-sinápticas na jun- da picada com água e manter o membro
vantagem adaptativa. Estas características ção neuromuscular, desencadeando ou o atingido elevado e procurar atendimen-
semelhantes podem ser encontradas no bloqueio da liberação de acetilcolina ou to médico o mais rápido possível. Porém,
padrão de coloração, textura do tegumen- a competição das neurotoxinas com os talvez mais importante do que deve ser
to, forma do corpo, comportamento ou receptores colinérgicos da placa termi- feito é saber o que não se deve fazer em
até em complexas características quími- nal da junção neuromuscular, desenvol- hipótese alguma. Não se deve cortar ou
cas. Desta forma, identificar claramente vendo uma síndrome miastênica aguda, perfurar o local da picada, nem apertar
qual é a coral peçonhenta e qual é a falsa conforme O. V. Brazil. O início das mani- tentando fazer com que o veneno saia,
que a imita, é uma tarefa bem difícil pa- festações paralíticas pode surgir desde os pois o veneno é absorvido imediatamente
ra um leigo. primeiros minutos até as primeiras horas pelas correntes sanguíneas e linfáticas e
após a picada. Porém, uma vez iniciadas, este procedimento, além de não ajudar,
PERIGO as reações tendem a progredir e se agra- acaba criando mais complicações. Tam-
Como vimos, as corais não possuem a var caso não haja tratamento adequado. bém não se deve amarrar o local da pi-
capacidade de abrir muito a boca, o que Segundo F. Bucaretchi et. al., as manifes- cada, o chamado “fazer garrotes”, uma
não as permite desferir “botes”, como a tações iniciam-se com ptose palpebral vez que este procedimento concentra o
grande maioria das serpentes peçonhen- bilateral, turvação da visão e diplopia, veneno, e em serpentes cujo veneno se-
tas. Entretanto, se elas não possuem um dificuldade de mastigação e deglutição, ja necrosante, isto vai acelerar a morte
grande poder de ataque, por outro lado, diminuição da força muscular e paralisia do tecido, podendo levar a uma sequela
possuem um excelente poder de defesa. do diafragma. como a amputação do membro. E lem-
Ao se sentirem ameaçadas normalmen- bre-se também de não oferecer nenhum
te escondem a cabeça e levantam a cau- CUIDADOS tipo de bebida alcoólica ao acidentado,
da, de forma enrolada, fazendo com que O tratamento para os acidentes por esta prática infelizmente muito comum rea-
esta se assemelhe à região da cabeça. É serpente são o uso da soroterapia especí- lizada por total desconhecimento sobre
muito comum que, ao se observar corais fica, o soro antielapídico. O soro deve ser os acidentes.
com este método de defesa, as pessoas administrado sempre em ambiente hospi- Diversas instituições como o Institu-
a peguem pela cauda, possibilitando que talar, nos centros de atendimento especia- to Vital Brazil, no Rio de Janeiro/RJ, o
a serpente morda na região dos dedos, lizados, por equipe médica altamente trei- Instituto Butantan, em São Paulo/SP, e a
causando o envenenamento. Uma outra nada. Cada estado brasileiro possui diver- Fundação Ezequiel Dias, em Belo Hori-
forma de defesa que a coral utiliza é se sos centros que possuem soro e a relação zonte/MG, oferecem, regularmente, ca-
fingir de morta ao ser surpreendida, vi- destes hospitais pode ser encontrada no pacitações por meio de cursos e palestras,
rando-se com o ventre para cima e fican- site do Instituto Vital Brazil (http://www. sobre animais peçonhentos.
do imóvel. O ato de pegar o animal nas vitalbrazil.rj.gov.br/polos.html). O respeito e o cuidado com o meio am-
mãos, pensando tratar-se de uma serpen- O trilheiro citado no início deste arti- biente somados ao conhecimento sobre a
te morta, permite que a coral morda nos go, graças à soroterapia e aos cuidados da prevenção dos acidentes ofídicos por parte
dedos, causando o acidente. equipe médica, evoluiu bem, sem seque- destes profissionais é o único caminho pa-
Por possuírem um veneno extrema- las, obtendo alta pouco mais de 24 horas ra que o número de acidentes diminua em
mente potente e por sua alta letalidade, após o acidente. todo o país e que as atividades de trabalho
os acidentes com corais verdadeiras desde Acidentes por corais são comuns não e lazer no contato direto com a natureza
há muito vêm ocupando as atenções dos só nas áreas rurais, mas também nos sejam realizadas com segurança.
pesquisadores. No Brasil, de 2007 a 2015, grandes centros urbanos. A prevenção
foram notificados pelo SINAN (Sistema destes acidentes passa pelo conhecimen-
de Informação de Agravos de Notifica- to dos hábitos da espécie e, portanto, é
ção), 1836 acidentes por Micrurus, sendo fundamental não manipular diretamente Leia bibliografia completa no site
os estados da Bahia, Pernambuco e São o animal com as mãos nuas. Profissionais www.revistaemergencia.com.br

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