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Fantasmas e assombrações do México pós-revolucionário: a novela El Jefe Máximo


de Ignacio Solares
Caio Pedrosa da Silva*

Resumo
A literatura mexicana foi ao longo do século XX um marcante espaço de
elaboração de representações históricas a respeito da Revolução Mexicana. Lançada em
2011, a novela El Jefe Máximo de Ignacio Solares, dá continuidade a essa vertente
literária de representações do período pós-revolucionário. Focada na figura de Plutarco
Elías Calles (O “Chefe Máximo” da Revolução), no romance histórico aparecem temas
recorrentes nas avaliações históricas do período, especialmente o autoritarismo, a
violência e o nascimento do México moderno. A novela, passada em um momento que
Calles embarcava em sessões espíritas, se desenvolve em torno do enfrentamento do ex-
Chefe Máximo com espíritos de homens cujas mortes teriam sido sua responsabilidade.
Entre os personagens que aparecem na novela se destacam Francisco Madero, Álvaro
Obregón e Miguel Agustín Pro (o Padre Pro). Possivelmente o menos conhecido entre
os três personagens é Miguel Agustín Pro, mártir católico fuzilado pelo exército
mexicano na capital em 1927. Diferentemente de Madero e Obregón, o Padre Pro não
faz parte da fileira de heróis ou grandes figuras revolucionárias, sendo símbolo
justamente da luta católica – vista como contra-revolucionária – diante dos governos
pós-revolucionários. Contudo, nessa novela Padre Pro surge ao lado de Madero como
opositor de Calles. Assim, cabe a questão: quem é Padre Pro? Como Pro aparece na
produção histórica sobre o período? Tais questões podem nos ajudar a entender o papel
que esse personagem católico começa a assumir na história da Revolução Mexicana.
Nessa apresentação buscarei refletir sobre a construção da história do período, tendo em
vista a relação entre narrativas literárias e historiográficas.

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Doutorando em História pela Unicamp. Bolsista do CNPq.
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Esta é uma versão bastante preliminar do texto. A Versão completa e final do texto será
enviada até 20 de junho.

Introdução
O homem que em outros tempos foi chamado de Chefe Máximo da Revolução
Mexicana é agora um velho que não aparenta e não tem o poder de outros tempos.
Plutarco Elías Calles está sozinho. Não, pior que isso: Calles está acompanhado por
fantasmas. Homens mortos visitam seu gabinete e querem satisfações.
Entre os fantasmas que visitam Calles estão os ex-presidentes mexicanos
Francisco Madero e Álvaro Obregón. Madero diz a Calles que, se vivo, teria feito uma
rebelião para derrubá-lo.
E saído das fileiras católicas que balançaram o governo callista, está padre Pro.
Miguel Agustín Pro, o mártir católico, também quer tirar satisfações com Calles.
Fuzilado no centro da capital mexicana em 1927 diante de câmeras fotográficas que
deixaram para a posteridade símbolos da resistência católica contra o regime, agora Pro
está cara-a-cara com o Nero mexicano, como gostam de dizer os católicos.
Aparentemente Calles está acuado, espantado com a visão de espíritos. Mas é
esse velho e solitário homem, símbolo de um Estado autoritário, a verdadeira
assombração do livro. Calles é o fantasma. A sombra de violência e autoritarismo de
seu governo insiste em escurecer o México e os sonhos de liberdade representados por
Francisco Madero e outros herois pátrios mexicanos.

Ignacio Solares e a “novela” histórica


A literatura mexicana foi ao longo do século XX um espaço importante onde
eventos do passado revolucionário foram debatidos. As novelas foram um espaço
privilegiado onde autores discutiram o passado (em alguns casos o presente)
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revolucionário, relacionando-o com questões importantes do seu presente, buscando


refletir sobre o país que se formou naqueles tempos.
A mais conhecida novela da Revolução é sem dúvida Los de Abajo de Mariano
Azuela. Publicada precocemente em 1915, na década seguinte vista como um
importante contraponto ao caráter “feminino” das novelas mexicanas, foi alçada ao
sucesso. Enfocada em um pequeno bando revolucionário, essa novela já apresenta
algumas características que serão marcantes nas descrições e análises futuras da
Revolução mexicana. Características que podemos chamar de positivas como a ênfase
no caráter popular da luta (o encontro do México com sigo mesmo, nas palavras de
Octavio Paz), ao lado de características negativas como a extrema violência, a falta de
objetivos na luta e, aspecto que aqui quero chamar atenção, a falta de ideologia por trás
da luta: de alguma maneira, nessa novela os revolucionários lutam sem ter objetivos
claros, ou ideais que baseiam sua luta. A metáfora da pedra rolando na ladeira, que não
pode impedir seu rumo, é repetida na novela.
Se Los de abajo se concentrou em um grupo revolucionário pequeno e
específico, outros clássicos literários, especialmente aqueles que descreveram o período
a partir da década de 1920, buscaram muitas vezes se deter sobre as grandes lideranças
revolucionárias. A respeito do período da década de 1920, especialmente a época de
Calles, destacam-se as novelas La Sombra del Caudillo de Martín Luiz Guzmán e
Relámpagos de Agosto de Ibarguengoitia.
Não parece exagero afirmar que El Jefe Máximo, publicada em 2011, de Ignacio
Solares se junta a essa corrente literária, retomando temas comuns não só na literatura
como também na historiografia escrita sobre o período. A princípio a novela de Solares,
onde perambulam fantasmas e espíritos, pode parecer ao leitor, pouco realista. Porém
trata-se de uma novela histórica bastante respeitosa com a certo cânone historiográfico,
ao mesmo tempo que dialoga com a tradição literária a respeito do período.

El Jefe Máximo discorre de forma novelada sobre a época em que Calles foi a
figura forte no governo mexicano, que vai além do período em que ocupou a cadeira
presidencial (entre 1924 e 1928), adentrando no maximato – período no qual Calles era
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a figura forte por trás dos presidentes que ocupavam. Solares baseou sua obra em textos
historiográficos e documentos como cartas de Calles, dando ao livro o caráter de
“novela-reportagem” como o próprio autor definiu.
20 anos antes da versão novelada, Solares escreveu e obteve muito sucesso com
uma versão para o teatro de uma história sobre Calles baseada nos mesmo eventos. A
obra teatral recebeu mais de cento e cinquenta representações e incentivou o autor a
seguir estudando o mesmo período histórico, o que resultou na obra que ora analisamos.
Por que o autor voltou ao tema depois de tantos anos? Solares declarou em uma
entrevista da época da publicação de El Jefe Máximo "Este país en que hoy vivimos
tiene que ver directamente con aquél. Somos polvo de aquellos logros." Logo, para o
autor, compreender a história do período em que Calles foi a liderança mais
proeminente do México é fundamental para compreender o presente.
Um dos pontos fundamentais é a ideia de que Calles foi o principal articulador
do Partido Nacional Revolucionário – que posteriormente mudaria de nome para Partido
da Revolução Mexicana (PRM) e depois para Partido Revolucionário Institucionl (PRI)
–, que controlaria o governo do país até o final do século XX. Solares busca apresentar
um personagem enigmático e ambivalente. Segundo o autor, Calles é bom porque
fundou o México moderno, dando início a 60 anos de paz. Mas, contraditoriamente, foi
um personagem brutal e cruel. Assim, de algum modo o autor reconhece no PRI o
mérito de estabilizar o país depois das lutas revolucionárias, ainda que condene o
autoritarismo e o centralismo do partido.
Se um dos objetivos da novela é pensar a respeito do país, é importante ressaltar
que o autor o faz a partir de uma aproximação com a parte mais pessoal da vida Calles.
Daí a importância de tratar de um aspecto que recebe pouca atenção da historiografia, a
proximidade de Calles com o espiritismo – religião que teria também fascinado
Francisco Madero. Na novela, a aproximação de Calles com o espiritismo ocorre no
momento em que o general se encontra fraco e isolado. Aparentemente as seções
espíritas que deveriam afastá-lo dos fantasmas do passado, acabam colaborando para
que esse enfrentamento seja ainda mais direto.
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Enfocar Calles a partir da questão religiosa é parte fundamental do esforço de


Solares na caracterização desse personagem. Foi durante a presidência de Calles e nos
anos em que o general permaneceu liderando o governo mexicano que o México
conheceu um forte momento de conflito religioso com o início da violenta Rebelião
Cristera, uma guerra civil que deixou 90 mil mortos. Um dos motivos da explosão dessa
revolta foi a política anticlerical de lideranças revolucionárias, entre as quais Calles. Os
anticlericais atacavam a religião católicas acusando-a de superstição. O fantasma de Pro
não deixa de provocar Calles justamente nesse sentido:

"(...) cuantas veces usó la palabra supersticiones en sus discursos, general?, las
supersticiones que tanto han detenido la evolución de la humanidad y, muy
concretamente, el desarrollo de México. Y mire nomás. Ahora, como producto de esas
zarandajas y esas supersticiones, aquí me tiene frente a usted, corporificado, a pesar de
que usted mismo me quitó la vida. Usted quitó la vida y usted me la da." [73]

Mais adiante no livro, outra contradição de Calles vem à tona. O general que
liderou uma campanha antialcoólica durante seu governo, era um alcóolatra enrustido.
De ambas as passagens brotam não somente uma crítica à hipocrisia do general como
uma característica pessoal, mas também à falta de ideologia do presidente que se
pretendia como líder da Revolução. As atitudes de Calles não se baseavam em
concepções políticas determinadas, em ideias, mas na tentativa do líder de manter sua
autoridade.
Alguns esforços da historiografia do período se dirigiram para uma compreensão
da questão religiosa nas décadas de 1920 e 1930 em uma chave complexa. De um lado,
em estudos da história social como os de Matthew Butler, estabeleceram a religião e
cultura são fatores determinantes para certos desfechos históricos. Ao mesmo tempo em
que rechaça uma leitura da religião mexicana como algo homogêneo entre os
camponeses – a maioria entre aqueles que lutaram na Rebelião Cristera –, Butler evita
olhar para o catolicismo popular como um espaço livre de qualquer contato com a
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hierarquia católica ou com qualquer tipo de elaboração da religião.1 Nesse trabalho a


religião é sim fundamental na definição das identidades na luta, e formam conceitos e
ideias claros também para camponeses que se opunham ao catolicismo. De alguma
forma, para Butler há uma disputa entre visões de mundo entre os camponeses de certas
localidades cuja relação entre si se estabelece tendo o catolicismo como aspecto central,
e outros camponeses que se relacionam tendo em vista interesses agrários que naquele
momento estavam relacionados com os religiosos. As divisões no campesinato
envolvem, portanto uma malha de interesses que se baseiam em visões de mundo e, é
possível chamar, ideologias.
Alan Knight em seus artigos críticos ao revisionismo segue por veredas
semelhantes.

“Para Knight, o poder do Estado, entre 1910 e 1940 era muito menor do que se crê. A
sociedade enfrentou com relativo êxito a políticas do Estado, como foi a Cristiada e a
educação socialista. Sem que Knight diga nesse texto, tal ideia se aproxima muito à
teoria da nova história cultural, que ressalta a resistência como forma de negociação.”
(Placencia de la Parra 2007: 417)

História dos grandes homens

O romance de Solares busca por meio de um caminho criativo discutir questões


fundamentais para o México moderno, como a tradição autoritária do país, a violência
política e a centralização do país. Além disso, o autor levanta uma questão que somente
recentemente recebeu mais atenção de historiadores: o papel da religião no México do
século XX.
Segundo o historiador Adrian Bantjes a historiografia sobre a Revolução
Mexicana passou por um processo de reencantamento nas últimas décadas2. O

1
Butler. Popular Piety.
2
Bantjes, “Religion and the Mexican Revolution”. p. 244.
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historiador se referia ao fato de cada vez mais trabalhos buscarem abordar as relações
entre os diferentes grupos revolucionários e elementos religiosos, e em especial ao papel
do catolicismo na elaboração de identidades e projetos políticos nos diferentes
momentos da Revolução Mexicana.
A novela de Solares parece se adequar perfeitamente a esse novo quadro, já que
o outro dá profundo destaque não só à Rebelião Cristera, como também à maneira como
Calles lidava com a religião na sua vida pessoal.
Contudo, esse aspecto de renovação se depara com outro de profunda
continuidade: o enfoque da história sobre as grandes personalidades políticas.
Adentrando na segunda década do século XXI, a década dos bicentenários, a história
contada a partir dos feitos de grandes personagens parece manter certa força. Talvez
essa força não esteja tão marcante nas pesquisas historiográficas mais aprofundadas. Ou
mesmo, é possível que essa nem seja a maneira mais comum de narrar a história.
De qualquer maneira, a novela de Solares se soma a outras produções desse
período recente insistiram em um recorte acerca dos “grandes homens”, ignorando
solenemente produções históricas que buscaram de um lado enfatizar a importância de
grupos sociais menos favorecidas e de outro tornar mais complexa e dinâmica a própria
história política.
Como exemplos de uma escrita da história voltada para os feitos dos “grandes
homens”, estão as obras comemorativas do bicentenário mexicano História de México,
organizada por Wobeser e Viaje por la historia de México, obra de Luiz González y
González. Ambas obras foram editadas (no caso da obra de González y González se
trata de uma reedição, a original é de 1994) pelo governo federal especialmente para as
comemorações. Viaje por la historia de México foi distribuída gratuitamente pelo
governo, atingindo a fabulosa tiragem de 27 milhões de exemplares. Em ambos
volumes, destacam-se as narrativas das histórias de personalidades da política – ainda
que encontremos algumas exceções.
El Jefe Máximo segue uma linha semelhante ao buscar na figura de Calles os
sentidos da história daquele período. O México moderno que o autor afirma ter se
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iniciado naquele período emana de Calles – de sua personalidade autoritária e ânsia pelo
poder, mais que de suas ideias e vinculações políticas e sociais.
O enfrentamento de Calles com as críticas de seus opositores, que ressaltam a
ambiguidade e a crueldade do general, não diminuem essa característica do texto, mas a
reforçam. Os opositores fantasmas, com a exceção de Pro, também são homens
conhecidos da grande política.
A aparição do Padre Pro na novela chama a atenção para o problema religioso,
mas como o autor aborda a questão?
Para compreendermos essa questão podemos pensar em outras apropriações
desse mesmo personagem. Miguel Agustín Pro foi beatificado pela Igreja católica em
1988, trata-se portanto de uma figura de veneração para os católicos. Muitos o tratam
como santo, ainda que a Igreja ainda não tenha dado o veredito sobre a questão. Em
todo caso, a história de vida de Padre Pro foi contada diversas vezes em textos católicos
que buscaram defender ou reafirmar a santidade do personagem. Esses textos são uma
espécie de hagiografias modernas, que lançam mão de documentos históricos, relatos e
textos para comprovar a santidade de Pro. Nesses textos a história de Pro é contada de
forma bastante semelhante àquela de Solares: o padre jesuíta foi assassinado sem
julgamento devido a ordens enfáticas do “tirano” Plutarco Elías Calles. A leitura da
história do período é em seu aspecto geral simples e maniqueísta: os católicos são
vítimas de um governo tirano. Essa característica reforça o caráter hagiográfico da
narrativa, visto que as hagiografias buscam ser repetições e tem como inspiração
primordial os evangélicos e a paixão de Cristo.
A morte de um sacerdote católico pelas armas de soldados federais não é fato
único. Muitos sacerdotes além de Pro tiveram destino semelhante, ainda que muito
menos publicidade, já que suas mortes ocorreram muitas vezes em pueblos das regiões
mais atingidas pela Rebelião Cristera. Alguns desses sacerdotes chegaram a ser
canonizados no ano 2000, desencadeando uma onda de escritos hagiográficos e
reproduções de imagens para culto.
Na forma hagiográfica de narrar a história, obviamente, são homens exemplares
que estão no centro das tramas.
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Se as primeiras hagiografias cristãs tiveram como uma de suas bases os textos de


Plutarco sobre imperadores e outras lideranças, posteriormente as histórias de heróis
pátrios tiveram profundas relações com as hagiografias.

Bibliografia
BUTLER, Matthew.
Popular Piety and political Identity in Mexyco's Cristero Rebellion, Michoacán, 1927-
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Clio, 2009

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