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R E V I S T A

T R I P L O V

O Virgem Negra
revisitado

BREVE PANORAMA DO
SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa

MADALENA LOBO ANTUNES


O Virgem Negra revisitado[1]

Mário Cesariny de Vasconcelos foi um dos


autores que entrou em diálogo com a obra
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de Fernando Pessoa, criando um mapa


intertextual metaliterário e redesenhando
não só o cânone literário das leituras de
Pessoa, como também o papel do poeta de
“Orpheu” no cânone da literatura
portuguesa. Este diálogo intertextual inicia-
se logo em 1953, com a publicação do
folheto Louvor e Simplificação de Álvaro de
Campos, embora este texto tenha
características diferentes de O Virgem
Negra. Em 1989, publica O Virgem Negra:
Fernando Pessoa explicado às criancinhas
naturais e estrangeiras por Mário Cesariny de
Vasconcelos, Who Knows Enough About it e
em cujo subtítulo acrescenta a seguinte
informação “seguido de Louvor e
Desratização de Álvaro de Campos pelo
Mesmo no mesmo Lugar Com Duas Cartas
de Raul Leal (Henoch) ao heterónimo; e a
Gravura da Universidade. Escrito e
Compilado de Junho de 1987 a Setembro
de 1988”.

O título sugere que se tratará de um texto


de intuito pedagógico de considerações
heterodoxas feitas por alguém “who knows
enough about”, portanto, uma autoridade.
O Virgem Negra é uma obra cujo título
sugere uma nova veste para a exegese
pessoana que é tratada com
condescendência e infantilizada. O
problema interpretativo que o texto

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apresenta, desde o início do título, implica


a sabotagem do protocolo crítico de
seriedade, proposto num livro de poesia
satírica com acrescentos epistolares, como
as cartas de Raul Leal, outro autor de
“Orpheu”. A essas cartas serão
acrescentadas, numa edição posterior, duas
cartas fictícias dirigidas a João Gaspar
Simões, em que Pessoa e Álvaro de
Campos discordariam do autor presencista
acerca de vários temas, nomeadamente da
qualidade literária de Aleister Crowley.

É este valor, o da forma como desenvolve


uma rede intertextual com a obra de
Pessoa, que Fernando Pinto do Amaral irá
sublinhar no seu texto sobre o livro de
Cesariny, aquando da publicação do
mesmo: «o resultado mais marcante desta
obra passa sobretudo pelo manejo dessa
complexa intertextualidade» (Amaral 1990,
208). Amaral defende que o mérito de O
Virgem Negra reside na sua abordagem à
leitura de Pessoa e na aplicação da mesma
à construção de um objeto textual novo e
complexo.

Mas antes de se aprofundar as relações


entre ambos os poetas e o que isso poderá
revelar sobre ambos, convém demorarmo-
nos sobre o que é o objeto final em
análise. Cesariny parte de uma posição

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intergenológica, ou seja, de um espaço


ambíguo que não se assume como
determinado por um só género literário.
Trata-se, sem dúvida, de um livro de
poesia, mas de um livro de poesia que
contem outros textos de outros géneros
(verdadeiros e inventados) e que, para além
disso, estabelece uma relação com textos
escritos no âmbito da produção crítica
sobre a obra de Pessoa.

A sua escrita cria as condições para a sua


leitura enquanto comenta e critica as
leituras feitas pelos exegetas canónicos das
gerações da “Presença” e de alguns autores
neorrealistas. Esta abordagem é assinalada
particularmente na segunda edição do livro,
que inclui as duas cartas que Pessoa teria
escrito do túmulo, a alimentar a discórdia
com João Gaspar Simões a partir de um
não-tempo, cartas essas que respondem a
questões da posteridade sobre a obra
pessoana. De facto, o texto de Cesariny
entra em diálogo com as leituras
presencistas da obra pessoana, obra contra
a qual a geração da “Presença” teve de se
afirmar através da diferença. Este é um
texto sobre Pessoa, sobre Cesariny leitor
de Pessoa, e sobre os outros leitores de
Pessoa, a comunidade de pessoanos, sobre
as autoridades e sobre a ideia de
autoridade.

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Reconhecendo a premissa de que é possível


traçar uma genealogia pessoana na
literatura portuguesa, O Virgem Negra
inaugura uma declaração de herança
assumida, mas desenhada nos moldes
propostos pelo autor, ou seja, por si
controlada e com o seu cunho autoral.
Dispersa por vários temas, comentando
acontecimentos reais e mitos, Cesariny
desenvolve um contexto particular para
essa relação, que se desenha num
território incerto e produtivo para novas
recontextualizações. Toma assim as rédeas
das possíveis explicações que os críticos e
autores do futuro poderão dar da sua obra
enquanto herdeira da de Pessoa,
organizando a leitura de um espaço
ambíguo e flutuante e, ao mesmo tempo,
subscrevendo os códigos surrealistas do
movimento português e a sua relação com
a nação, a literatura da nação e os poetas
nacionais:

Numa atitude profundamente anti-


conservadora e recorrendo ao
humor ou à invetiva satírica, a
escrita paródica surrealista detém-
se em factos ou personagens
grotescas, desconstruindo alguns
dos mais tradicionais lugares-
comuns ou ideias-feitas acerca da
nossa cultura nacional ou da

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maneira de ser português, traços


frequentemente encorajados e
hiperbolizados pelo Antigo Regime.
(Martins 1996, 95)

Apesar de escrito do final dos anos 80, O


Virgem Negra ainda corresponde a esta
atitude surrealista de reação ao regime e à
sua construção da nacionalidade, levando-a
mais longe, desconstruindo não só a forma
canónica de se falar sobre Pessoa, como
também aquilo que o cânone entende
como a linguagem adequada à poesia,
Cesariny identifica estes conflitos num
único objeto textual criando uma simetria
entre eles.

O mito do “Virgem Negra” parte de uma


história de que aquando da transladação do
corpo de Fernando Pessoa, em 1985, do
cemitério dos Prazeres para os Jerónimos,
o caixão de Pessoa teria sido aberto
revelando um corpo intacto e negro.[2] Na
primeira edição de O Virgem Negra,
Cesariny comenta, numa voz ficcional
atribuível a Álvaro de Campos, pelas glosas
dos versos do heterónimo, a malfadada sina
do corpo de Pessoa residir para a
eternidade nos Jerónimos:

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Não sou nada

Nunca serei nada

Não posso querer ser nada… Lembram-se?

Então estendam-se ao sol, abdigam e


entendam-se

Uns com os outros, uns bastantes outros

Mas sem filósofos homónimos sem músicos


heterónimos sem moinhos da Helada

E antes de mais tirem de mim os Jerónimos

Que é clausura de demais para um homem


E se tal não puderem (souberem, quiserem,


temerem)

Digam lá ao escultor venha tirar a mó

Da merda da coluna que me pôs em cima a


fingir que estou dentro […].

(Cesariny 2015, 37)

Reutiliza a ironia do poema Tabacaria para


comentar a ironia da aparente

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patrimonialização de Pessoa[3], do facto do


destino dos restos mortais de Pessoa
estarem para sempre num edifício com uma
historicidade própria, enquanto garante de
um cânone institucional e nacional,
apropriado para a ideia de nação e de
nacionalismo acrítica. Esta queixa de
Cesariny, que iconoclasticamente utiliza a
voz de Pessoa, compara a presença física
do corpo no Jerónimos com as
interpretações canónicas da sua obra,
como criadores de uma estética e de um
discurso sobre Pessoa dos quais o poeta
surrealista discorda. Esse momento é
também comentado pela voz ficcional de
Pessoa, numa carta falsa que o poeta teria
escrito a Gaspar Simões do além-túmulo,
incluída na segunda versão de O Virgem
Negra: «Fez-me mal à cabeça aquela ida dos
Prazeres para os Jerónimos. Com o abrir
da urna caiu-me, desfeito em pó, muito
cabelo, e o meu fato, até aí incólume,
entrou em corrupção acelerada.»

Cesariny reforça a importância deste


destino de Pessoa no monumento e
tornado monumento. Relaciona-se com
Pessoa em dois planos: enquanto
admirador, tenta resgatá-lo de uma sina
que não se lhe adequa; enquanto colega, ou
seja, enquanto poeta como ele, afirma-se
como tendo a legitimidade para parodiar a

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sua obra e a obra dos seus herdeiros,


autodeclarados guardadores da sua
memória, como João Gaspar Simões. Isto,
clara está, porque é alguém «who knows
enough about it».

Para Cesariny, a lenda do corpo negro,


aliada à ideia de que Pessoa teria morrido
virgem, gera esta imagem poderosa de uma
figura imponente classificada pelo adjetivo
negra, cujo género não é condicente ao
artigo e ao sujeito que o precedem. Negra,
também, porque a presença de Pessoa no
cânone da literatura portuguesa ensombra
muitas outras figuras, como Teixeira de
Pascoes, figura cara a Cesariny, por ocupar
diversos espaços com as personagens por
si geradas, nomeadamente as que compõem
o universo heteronímico:

O Virgem Negra, tal me descobriram

Cinquenta anos depois.

Em minha infusão estou. Tombam, deliram

Em vão quantos seguiram

Minha viagem ao nunca ser dois,

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No seu andar de luto e desgraça

O Virgem Negra passa

Maior que todos os sois.

(Cesariny 2015, 69)

De facto, Pessoa nunca foi dois. Pessoa foi


muitos, e esta referência repetida à
ambiguidade de género coloca o poeta para
além de todas essas limitações, tornando-o
«maior que todos os sois». A figura mais
brilhante no cânone da literatura
portuguesa que encobre todas as outras.

No segmento do poema de que a palavra


«Alheio…» parece ser indicadora de título.
Cesariny relata a história literária de
Pessoa, iniciada através de leituras e da sua
escrita em inglês.

Alheio ao céu e à luz

De Seth e de Rimbaud

No Antinoo depuz

O paneleiro que sou

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E no Epithalamium fiz

Que pudessem saber

Que feliz ou infeliz

O sou como mulher

(Cesariny 2015, 21)

Cesariny isola o Pessoa autor destes


poemas em inglês, que considera serem
mais reveladores de uma ideia de
sexualidade que Pessoa tende a esconder
nos seus poemas em português.

As costas do meu ser

Deixei em inglês

Porque isso em português

Não o podia escrever

(Cesariny 2015, 21)

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Sabemos que Antinous é um poema


particularmente ousado para Pessoa, que
admita numa carta de 18 de Novembro de
1930 a João Gaspar Simões a
particularidade de tanto Antinous como
Epithalamium: «Antinoos e Epithalamium
são os únicos poemas (ou até,
composições) que eu tenho escrito que são
nitidamente o que se pode chamar
obscenos. Há em cada um de nós, por
pouco que se especialize instintivamente na
obscenidade, um certo elemento desta
ordem, cuja quantidade, evidentemente,
varia de homem para homem.» (Pessoa
1999, 219-220) E, mais adiante, dá a
seguinte explicação a Gaspar Simões que
não parece satisfazer Mário Cesariny: «não
sei porque escrevi qualquer dos poemas em
inglês»   (Pessoa 1999, 220). Haverá
certamente uma razão para o isolamento
destas duas composições. Ambos os
poemas não são atribuídos a nenhum
heterónimo. Alguns versos de Álvaro de
Campos poderão parecer-nos mais
obscenos que estes poemas que Pessoa
sublinha como tendo essas características.
Mas a leitura de Cesariny acompanha a
ficção heteronímica de Pessoa e, para ele, é
como se os poemas ingleses estivessem
mais próximos de qualquer relato
autobiográfico. Algo que distinguiria Pessoa
não só como homossexual, no caso de

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Antinous, mas também como mulher e noiva


anónima em Epithalamium. O poema
continua assinalando a criação de aquilo
que Cesariny designa como «luso aqui
sistema»:

Não tendo Shakespeares

Nem Marlowes no coro

É tudo um ir e vir

Ali que não me demoro

O luso aqui sistema

Desde o primeiro cacho

É rebentar a fêmea

C’o ímpeto do macho.

(Pessoa 1999, 21)

A fêmea, referida anteriormente, («feliz ou


infeliz o sou como mulher») como escreve
Cesariny, rebenta com a produção do

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sistema, ou seja, com o parto dos


heterónimos que seriam os filhos da
virilidade poética da obra que cria em
português. De facto, o “luso aqui sistema”
inaugura não só a criação dos heterónimos
como também o poeta canónico, o poeta
património que gera esta revolta de Mário
Cesariny. O poeta surrealista precisa de
desconstruir o legado pessoano para
afirmar o próprio legado. Pessoa é assim,
andrógino na presença e recalcado na
sexualidade, e este livro ganha o seu
próprio espaço, como texto que comenta
as leituras dos outros enquanto gera
outras. A crítica de Cesariny vai, na
verdade, mais para aqueles que tomaram as
decisões sobre o seu corpo e sobre a sua
obra do que para Pessoa propriamente
dito. Por outro lado, torna-se assim
também numa espécie de crítico de Pessoa,
tocando em muitos dos aspetos que a
crítica pessoana retomará. O surrealista
torna-se crítico de Pessoa, mas nos seus
próprios termos; em termos poéticos, num
enquadramento literário onde os
protocolos de escrita são outros.

O quadro intertextual desenhado por


Cesariny une elementos biográficos e
parodísticos pela reutilização das formas
poéticas de Pessoa. Torna-se assim não só
no pedagogo iconoclasta que explica a obra

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de Pessoa, como também no que tenta


reproduzir o seu génio desconstruindo os
vários elementos do mito Pessoano
predominante nos anos 80.

Cesariny não concebe, no entanto, um


poeta anacrónico, mas recria as ironias de
Pessoa incorporadas nas ironias e
contradições que observa no seu contexto
histórico e social. Como que adivinhando
que Pessoa ocuparia um lugar cade vez
maior na patrimonialização da cultura
portuguesa, Cesariny tenta reconsiderar o
papel de Pessoa e iluminar as atitudes de
vanguarda de um outro autor de “Orpheu”,
Raul Leal. Para Cesariny, Pessoa representa
a duplicidade do poeta rebelde e
iconoclasta cuja imagem é branqueada pela
apropriação política, (relembro a questão
do túmulo nos Jerónimos).

Por ter gerado tantos poetas, Pessoa


ocupou vários lugares no cânone.
Relembro que, na primeira edição de O
Virgem Negra, Cesariny inclui duas cartas
de Raul Leal, acrescentando à explicação da
personagem Fernando Pessoa a presença de
uma outra personagem à qual é dada
importância e destaque no título. Como
explicação satírica que é, O Virgem Negra
transcende os seus próprios códigos que
vai reescrevendo, mesmo de uma edição

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para outra. Pessoa é o matriarca porque


gera os heterónimos, também eles poetas.
Kevin Jackson escreve, em 1999: «Largely
unnoticed by Britain and the rest of the
anglophone world, Portugal has quietly
gone about the task of producing at least
three of the century’s greatest greatest
poets […].»   (Jackson 1999, 39) Isto, no
entanto, não é de estranhar, de acordo
com as sugestões irónicas de Cesariny que
remetem para linguagem ocultista: «EU
SOU O NOIVADO DO TRIÂNGULO DA
ESFERA E DO QUADRADO»   (Cesariny
2015, 35).

Enquanto sublinha as aparentes


ambiguidades ou recalcamentos de Pessoa,
Cesariny destaca a ironia por detrás deste
papel múltiplo, que um homem tão
aparentemente passivo e inseguro,
consegue ocupar:

Porém o nome que em mim puseram


esqueci.

Pus em banho Maria, na pedra dos


expostos, aquela ortonomia

Que de meu nada tinha, na prática ou na


teoria,

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Se não a sensação de ser só a minha


espinha.

(Cesariny 2015, 35)

Para Cesariny, Pessoa cria um espaço de


ocultação entre as suas personagens
poéticas, onde pode expressar toda a sua
sexualidade e rebeldia contida, por, em
nome próprio, não se conseguir
transcender. Esse papel é conferido aos
heterónimos. Podemos argumentar que a
escrita deste texto, que parece em certos
momentos denegrir a imagem de Pessoa é,
em simultâneo, um ato de homenagem, de
crítica, e de ultrapassagem de angústia
perante uma figura tão imponente:

[…] a contaminação da palavra de


um “autor-mito” por um vocabulário
concreto e profundamente obsceno
[…] constitui uma atitude
provocativa que, parodiando e, em
larga medida, dessacralizando a
palavra de um autor – objecto de
um profundo e respeitado culto
nacional – evidencia, por processos
de provocação ostensiva o
testemunho de um desejo de
superação do estado de coisas

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vigente. (Azevedo 2000, 75)

De facto, Cesariny conheceu a fundo a


obra de Pessoa e o espólio. Sabemos que
acedeu ao espólio de Pessoa também
porque as cartas de Raul Leal que publica
na primeira edição estariam até então
inéditas[4]. Cesariny tenta aceder a todo o
Pessoa, crítico, ocultista e à sua relação
com figuras como Alesteir Crowley e Raul
Leal, autor que frequentaria o mesmo meio
literário que Cesariny e o célebre Café
Gelo no Rossio. Raul Leal é para Cesariny
uma figura importantíssima à qual não é
dada atenção suficiente. Como o «estado
das coisas vigente», 30 anos depois,
continua a olhar para este texto de
Cesariny como curiosidade literária, com
dificuldade em processar o valor da sua
linguagem obscena em contexto poético,
no mesmo ano de uma polémica sobre a
censura de alguns versos de Pessoa em
edições escolares[5], talvez fosse bom
considerarmos eventualmente apontar este
espelho para nós mesmos. Este texto de
Cesariny, por envolver vários registos e
comentários desses registos, por dizer,
através da paródia coisas sobra a
apropriação da obra de Pessoa que ainda
hoje reconhecemos, deve ser lido na sua

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multiplicidade de razões. Já conseguimos


aceitar que a poesia pode ser espaço de
sátira e ironia, mas ainda não chegámos a
esse ponto da (auto)crítica literária.

Hoje, muitos autores, de diversas tradições


literárias, interagem intertextualmente com
Fernando Pessoa, criando os seus próprios
enredos de influência e homenagem. O
circuito da crítica literária sobre o poeta
continua, no entanto, algo circunscrito aos
cânones da academia.

Assim sendo, é importante recuperar O


Virgem Negra, de tempos a tempos, pois
este texto pode funcionar como
instrumento de medição de uma profecia
que se tende a cumprir. Nela, somos nós as
criancinhas, agentes ingénuos da
patrimonialização de uma figura
determinante para a literatura portuguesa
que veio depois dela. Uma figura que, é
possível argumentar, terá metaforicamente
parido a Vanguarda Portuguesa de quem os
autores e artistas surrealistas também são
filhos.

Bibliografia

Ahmad, Yahaya. 2006. “The Scope and


Definitions of Heritage: From Tangible to

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Intangible.” International Journal of Heritage


Studies, 292-300.

Amaral, Fernando Pinto. 1990. “Mário


Cesariny, O Virgem Negra.” Colóquio Letras,
Janeiro: 208-209.

Azevedo, Fernando José Fraga de. 2000.


“Transgressão e marginalidade em Mário
Cesariny.” In Literatura e Pluralidade Cultural:
Actas do 3º Congresso Nacional da Associação
Portuguesa de Literatura Comparada, edição
de Isabel Allegro de Magalhães, João
Barrento, Silvina Rodrigues Lopes and
Fernando Cabral Martins, 73-78. Lisboa:
Colibri.

Cesariny, Mário de Vasconcelos. 2015. O


Virgem Negra: Fernando Pessoa explicado às
criancinhas naturais e entrangeiras por M.C.V.
terceira edição. Lisboa: Assírio e Alvim.

Jackson, Kevin. 1999. Invisible Forms: A guide


to literary curiosities. New York: Saint
Martin’s Press.

Martins, J. Cândido. 1996. “Surrealismo e


interdiscursividade parodística: A ideia de
Portugal.” In Literatura Comparada: Os Novos
Paradigmas, edited by Margarida L. Losa,
Isménia de Sousa and Gonçalo Vilas-Boas,
91-97. Porto: Associação Portuguesa de

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Literatura Comparada.

Pessoa, Fernando. 1999. Correspondência


1923-1935. edição de Manuela Parreira da
Silva. Lisboa: Assírio e Alvim.

Vecco, Marilena. 2010. “A definition of


cultural heritage: From the tangible to the
intangible.” Journal of Cultural Heritage,
321-324.

[1] Uma versão inicial deste texto foi


apresentada no colóquio “American
Portuguese Studies Association, 10th
International Conference”, em 2016, na
Universidade de Stanford, em Palo Alto,
com o título: “Fernando Pessoa como
Matriarca Andrógino da Literatura
Portuguesa em O Virgem Negra de Mário
Cesariny de Vasconcelos.

[3] O Virgem Negra é particularmente


interessante para refletirmos também
sobre a relação entre património material
e imaterial. Apesar de habitualmente não
se poder considerar um autor como
património imaterial, o papel de Fernando
Pessoa na cultura portuguesa, alimentado
ainda hoje por uma comunidade de
entendidos autodenominados “pessoanos”,
parece subscrever a relação entre objetos

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imateriais e tradições literárias vistas


coletivamente como património nacional.
Acrescem a isto todas as afirmações feitas
por Cesariny sobre o túmulo de Pessoa nos
Jerónimos, enquanto monumento de
importância histórica que parecem
alimentar esta relação, reforçada a
circunstância de ambos estes exemplos de
património coexistirem numa mesma obra
literária. Sobre a diferença entre
património material e imaterial e a história
política e legal do conceito ver (Vecco
2010) e (Ahmad 2006) entre outros.

[4] Agradeça a Manuela Parreira da Silva


alguns esclarecimentos a propósito desta
relação epistolar.

[5] cf. https://expresso.pt/sociedade


/2019-01-13-Poema-de-Fernando-Pessoa-
censurado-em-manual-escolar-do-12.-ano

REVISTA TRIPLOV

série gótica

Verão de 2019

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