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ea "ANTES DEPOIS DE 2G eet oe ios Boardmsanosda ce dei e Oswald = Vinicus Daatas “18 Osvald de Andeader 2 “Cusmaios Pon's de Mine sie: Ceri. ii du'qoral nezeciada Jena Xevibe let eforaa ignéria an O Rei do Gai Je Stmane de Beauvoir Spite Chaperan. Anempalogiai canadien: REVISTA : Edusde Soares Se Bieapsras.Alvaro Gi “CRermands BoBacst: ais! SROs oe Neer pos sere ae Saas Perce eaccamans Cason cosmoromon eevee eSaioe ates eee Soren geet ee ad Rint eeee ocr pou raanaeae te ropugke Gpireca Roms? Inessio oe sine te Soe EERE nae ssp sara inset ete ose So Pa By cemrar 0 com Baez Aung ¢Ptanie (GS etn exc pata em oe reaeeinceneine ease ‘Conse DELBERATIVO Sem conn Bus tego, Porno Uno {te irs Sn ahr Gat SIRIRo uBio ree rons Oar corp ommeg ct ARORA comeenenereat Stee Eeccter aceon Saleen Soeascce aw we ‘np dot ete 200 xp, Noves Esiudes NPST JULHO DE2000 Capa: Carlos Fajardo Reflexes sobre a crise brasileira Celso Furtado Capttulos abscurissimos da critica de Mério e Oswald Vinicius Dantas “José Wasth” Oswald de Andrade “curemas Peri” Mario de Andrade ‘Uma poética da indecisto: Brejo das almas Vagner Camilo Dialética futursta ¢ outras demios José Artur Giannottt Melodrama, ou a sedugio da moral negociada Ismait Xavier Politica e intimidade: a reforma agriria em 0 Rei do Gado Esther Hamburger A segunda Simone de Beauvoit Sylvie Chaperon Galvio na terra dos canibais Joli de Pina Cabral Seguranga publics ¢ direitos humanos Entrevista de Lutz Eduardo Soares a Sérgio Adorno Desequilfbrio e dependéncia Entrevista de Rubens Ricupero a Alvaro Comin, Glauco Arbix e Maria Herminia T. de Almeida LITERATURA Fernando Bonassi: "Laio & Edipo" critica Mostra “O bumanismo lirico de Guignara”, por Rafael V. M. Rost » 33 37 39 81 1 103 124 im 155 15 m7 Giladas da diferenca, de'Antonio F. Pierucci, por Maria F. Gregori: [Nés, os Tikopias, de Raymond Firth, por Marco A. Goncalves; Ensaioe sobre Lutz de Aguiar Casta Pinto, org. de Marcos Ch. Maio e Glaucia V. Boas, por Marcelo Lacombe; Hichmarin em Jerusalém, de Hannah ‘Arendt, por Annie Dymetman; Fé de Ricardo Dias, e Santo forte, de Eduardo Coutinho, por Ronaldo de Almeida ¢ Silvana Nascimento oop. ct. | | | Sylvie Chaperon Tradugiio do francés: Carmem Cacciacarro meso Darigospeesenta um comentiro tic sobce Osegudo sexo (1949), deSimone de Beauvoir, tassnde inserevé-Jo no contextohisGrco em que [ol produzide e debatido.O principal foco deabordagem da obra 0 excerecimento das contradigbes suscitadas pelo conto ahi presente tnae a visto natralita acerca das mulheres, que mesmo reftada sempre retorna, € 2 pers pectvasocolopico-cultural, mua vezes postlada insficientemente Dalenas hace, Simone de Beauvoir, © segundo sexo; fersnismo. sonar ‘his aricle offers critical commentary on Simone de Beauvoir's Second sex (1949), placing ibe book wiehia the hisorical context within which It was produced and discussed, The ltuhors main focus seeks to elucidate the contzdictions created by the conflict between ‘tural view of women, hich eventhough efured always emerges, and the sociological- caltaral perspective, often postulated in an insuficient manner, aweords Simone de Beauvot The second sex; feminism. Querer trazer algo de novo sobre © segundo sexo € um desafio temeritio, Tudo, parece {A ter sido escrito e uma vida inteira no seria suficiente para a leitura de todos os comentérios feitos seu respeito” Modestamente, pretendo sobretudo inscrever 0 pensamento de Simone de Beauvoir em seu contexto histérico, Trata-se de submeter a obra a uma gade de anilise préxima 2quela utlizada por Thomas Laqueur, que descreve 4 histéria do pensamento dos géneros ou, se preferirmos, das ideologias de género’. Sem cair num esquema linear, ele aponta a relativa preponderincia de um pensamento diferencialista a partir do século XVIII que, reforgado pelos discursos médicos do século XIX, pressupunha os ganeros como profunda e naturalmente diferentes. Essa ideologia, que se tomou dominante, foi contestada pelas feministas do século XX. As teses de 0 segundo sexo, bem como o debate que suscitaram, representam um dos momentos altos dessa longa hist6ria de idéias, pois os anos 1950 ¢ 1960, ainda que permanecam mal conhecidos, encerram uma grande riqueza ¢ variedade de reflexdes acerca dos gerieros. A’ esse titulo, JULHODE 2000 103 2 Pubes orale (Sy la Temps eds Sy, Sata de 1987, oye roma es pti set Banoir oreplated ‘arab Nove dros Guan eh Novas, [ee Sees epee ISS GaN ci as panic Deer becimis wea Seite de Benes Sdin Fege conta gue ote as goose for stron (Ge Boag € bon mor 0 ‘ued Pans, © tagoesr, Thomas taf Geen or ececene Poke Sadar B28 Be mesmse Sonia cn eta ee ‘ASEGUNDA SIMONE DE BEAUVOIR i i t i preparam a segunda onda feminista do Movimento de Libertacio Femini- a ALP). Simone de Beauvoir foi considerada mentora de um feminismo radical, firme partidiria de uma perspectiva sociol6gica e cultural. Admiti- lo sem mais, porém, é fazer pouco caso do processo intelectual empreen- dido por ela, cujos meandros e esforgos permanecem presentes em O segundo sexo sob a forma de esclarecedoras contradig6es, A maioria dos Y comentadores, movida por uma legitima preocupacte politica, detém de 0 segundo sexo apenas os argumentos ou passagens que se coloquem sob © estandarte da famosa frase que se tomou slegan — “Ninguém nasce , mulher: torna-se mulher” —, deixando cuidadosamente de lado as passa- ' gens mais ambiguas, Outros, menos favoréveis & autora, ressaltam por sua i vez os trechos em que Simone de Beauvoir manifesta uma incontestavel | : misoginia, com 0 intuito de invalidar a obra, que, assim, no seria mais que o triste fruto de uma neurdtica incapaz de desoprimir sua feminilida- de, De minha parte, proponho-me ao estudo das préprias contradigées, tomando-as'como outros tantos tragos deixados por um pensamento num certo estigio de sua elaboracao € num determinado momento histérico. Nao pretendo, portanto, fazer uma leitura sintética desta obra muikipl, ‘mas simplesmente seguir, pagina apés pagina, uma de suas caracteristicas singulares, o que no anula nem desvaloriza neahum de seus outros numerosos aspectos mais bem conhecidos, Trata-se de ver © conflto, presente na obra, entre o naturalismo, que mesmo refutado sempre retorna de subito, ¢ uma vonfade cultural obstinada, mas muitas vezes impotente, (© comentirio ctitico que proponho deve muito aos avangos tebricos ropiciados pelo MLF; €, em suma, uma releitura pés-MLF de um texto PIEMLF, As diferengas, os hiatos, os desvios produzides por esse encon- tro de dois tempos feministas mostram 0 quanto os movimentos socizis s20 portadores de rupturas (inclusive epistemolégicas). As fathas do sistema beauvoiriano somente sao desvelackas porque numerosas discfpu- Jas superaram a mestra, o que € a maior homenagem que lhe poderia ser prestada, Antes de examinar em maiores detalhes esse fragmento da histOria intelectual, porém, € preciso indicar brevemente os conceitos que permi- tem abordé-l. © conflito entre duas concepgoes De maneira um tanto simplificada, mas completamente heuristica, a historia contemporinea do pensamento de género pode ser resumica no confit entre duas grandes tendéncias, que recobrem maltiplos avatares © concorrem para explicar as diferencas observaveis entre os generos. Uma delas pode ser chamada “naturalista’, j4 que seu principio causal 104 NOVOSESTUDOSNN°s7 | i reside, em Gltima andlise, na natureza (conceito, por sua vez, polimorfo); a outra, oposta, pode ser dita “cultural”, na medida em que procura ‘ecanismos explicativos unicamente na sociedade (quaisquer que sejam 2s teorias sociol6gicas subjacentes). Essa clivagem € apenas um avatar do debate entre natureza e cultura, ou entre 0 inato ¢ © adquirido, que obseda a época. . ‘A primeira Idgica postula diferencas consubstanciais aos sexos, préprias de sua natureza, inatas, frequentemente enraizadas no substrato corporal, fisico © biol6gico dos individuos, mesmo quando suas localiza- shes precisas variam segundo as modalidades médicas (cérebro, horm6- nio, cromossomo, gene etc). A partir dessa base natural e material, difunde-se uma série de efeitos em cadeia. Assim € que se diz, por exemplo, que as psicologias masculina e feminina se estruturam a partir de instintos diferentes: no primeiro caso, 2 agressividade, e no segundo, o instinto maternal. As atividades divergentes dos sexos s6 fazem refletic sa divisio em atitudes complementares (trabalho fora de casa ¢ trabalho doméstico, atividades produtivas ¢ reprodutivas), Esse pensamento natu- talista, muito coerente, insere causa primeira ntuma ordem natural, quer fa seja materialist, darwinista, quer seja metafisica, deista. Ele se impos de maneira verdadeiramente dominante somente no século XVIII, em sincronia com as idéias acerca dos direitos naturais’. A partir de entio, esse conjunto discursivo se apresenta como uma evidéncia, no explica- ‘Gh, nfo questionada e partilhada por qualquer um. Chega, muitas vezes, 1 preconizar a resignacio ao legitimar o presente por meio de uma ordem iutével sobre a qual ninguém tem poder. Encontramos porém uma forte comente feminista que reivindica esse naturalismo, revalorizando 0 femi- nino, Por oposigio a essa primeira tendéncia se construiu um pensamento socicl6gico ou cultural. A causa primeira, eficiente, provém desta vez da sociedade, das relacbes sociais, qualquer que seja a conceprlo — existen- cialista, funcionalista, estruturalista, martista, de estudos de género ou outras. As relages entre homens e mulheres produzem posicdes sociais diferentes © hierarquizadas, cujo aprendizado e experiéncia imprimem marcas sobre 0s comportamentos e as estruturas psfquicas de uns € ots, Enfim, mais tardiamente, a reflexto mostra a incorporaga0 dos imperativos socials, seus efeitos sobre 0 préprio corpo dos individuos bem como sobre a percepe20 fntima que tém dele. Assim, demonstra-se de um lado uma sexualizagio natural dos efeitos sociais: dos sexos provém os géneros; € de outro uma sexualizacéo social que penetra 0 {timo dos individuos: os géneros informam os cospos ¢ fabricam os sexos’, ‘Areflexio cultural elaborada pelos movimentos de contestaco surge 4 partir do naturalismo, e em luta contra ele, por meio de um processo conflituoso em tudo parecido com a constituigao de um novo saber, Essa tendéncia contém também, com freqiéncia, importantes resfduos biologi- rantes ¢ até mesmo miséginos. £ preciso portanto evitar uma visio por JULHODE 2000105 (0 sobre ete aspect, se Shes SieaarGoec Sa Gale captor, Ja ire 8 foare ae foe 1735. {Tos teare: Rens 1985), ee Gaerne Foe ae de ie is dds too Gare FUR 1950. © NSe, gue ces etm rs. seis dra, pele cus Sasemes race Beg Ae Fee tue, RESET om A SEGUNDA SIMONE DE BEAUVOR demais simplista e otimista do advento desse novo conhecimento (e das perspectivas polticas que ele abre), jf que ainda se mantém ligado 20 ‘antigo e maculado por ele. A anilise de Gaston Bachelard sobre o pensa- ‘mento clentifico aplica-se perfeitamente ao esforco laborioso que as femi- nistas emprecnderam para se desvincular do pensamento comumé, Esses dois eixos interpretativos das diferencas de sexo ndo existem ‘em estado puro, A mudanca somente se produz na ambigiidade ¢ na ambivaléncia. Aliés, 0 vocabuldrio € 0 mesmo nos dois casos: as palavras homens’, ‘mulheres’, ‘sexos" podem ser utilizadas com os mais diferentes sentidos segundo 0 ponto de vista adotado. Isso favorece as confiusdes € 08 deslizes entre um pensamento ¢ outro, dai o uso de novas expressées, ‘como “género” ou “relagtes sociais entre os sexos", que procuram romper com 0 naturalismo de que se impregnam 0s outros termos. Além disso, feminismo © misoginia podem se alojer numa ou noutra tendéncia. Certamente © antifeminismo se legitima pelos argumentos biol6gicos ¢, inversamente, a posigao sociolégica é sustentada por aquelas que reivin- dicam para si o feminismo. Mas também sempre existiu um auténtico feminismo essencialista € os mais radicals dos antiessencialistas podem cair numa certa misoginia. Escolhi, pois, privilegiar as contradigtes, os parado- xx0s, a5 ambivaléncias, que me parecem ser a fonte do dinamismo da subversio’, Com muita freqiiéncia, um 36 € mesmo autor incorpora esses diferentes aspectos, ¢ cada qual “ajeita” sua teoria a partir de pedagos tomados ci el. Portanto, nfo ha nem verdade nem ciéncia nesse campo, somente erencas @ vontade de crer. E, como diz Thomas Laqueur, © ‘discurso da diferenga sexual ignora o entrave dos fatos e permanece 180 livre como um jogo de adivinhaglo"®. # preciso lembrar ainda que esse jogo implica riscos politicos importantes, porquanto diz respeito a nada menos do que a definicao dos homens, das mulheres € de suas relacbes, Por todos esses riscos, O segundo sexo desempenhow um papel pioneiro € instigador. Natureza e sociedade em O segundo sexo 0 Segundo sexo? repousa sobre principios rigorosos e muito clara- mente culturais que pqdem ser lembrados brevemente, Muitos postulados beauvoirianos implicam uma ruptura profunda com o pensamento natura- lista, Em prinieiro lugar, 2 concepcio do humano como ser definido construido por ele mesmo impossibilita a visto de um determinismo natural, O mesmo se di com a liberdade, colocada no topo dos valores ‘morais. Em segundo lugar, a importncia constitutiva das relacbes imterpes- soais na formagio do individuo contradiz a perspectiva essencialista. Enfim, ‘0 estudo do humano, nfo de forma abstrata, mas sempre em situacio", anula igualmente qualquer pretensio a uma esséncia corporal, 106 NOVOSESTUDOSN57 ( Bosque demos ese ‘lesbo: Chaperone Ffenme, cet aon eal anajsepienotasiue dul inlowe? La Tompssiadns, hist levereza de 87 apsiseeied Soares See Sheri cee aecsee oa ioe Felgen EEpeees paar Sreeeress Be ee ase ett oes Saee ames Prove, sgaia geod pobre Peroni cates oe Sescr (@ Lagoa, ep. p.m ©) ss crabs do toe foam Seles O spend seo ‘oly 0d. oct: ‘Now Pret, 960/are ivy ne nas oun «nia sige 1 ay Smone dotersetept Soadamcate engl se Ercrseenmas,cterasote Sgusisermntess' G2 (1 0 concato de stung sole tos = ‘powamm com © agin ‘owe ducaca si ue deenvoveg ease wis Chaperone eee See ad eee ae acess son Seats eee roca nec aes aes cae niger ouetttie arpa pf ok, ous aes 3 Eee Ss 09. P22 i Uma clara perspectiva cultural ‘Mais que a originalidade ou a pertinéncia dessas hipéteses, € a siste- aticidade com que elas sto introduzidas que toma O segundo sexo 0 temido pela ideologia naturalista. Todo constnufdo com base na recusa 2s suas premissas, 0 livro funciona como uma obstinada miquina de guerra, ninando pagina apés pagina o fundamento das opinibes mais correntes, excurralando nos menores recantos as tentagbes essencialistas, no hesi- ‘tando em martelar sua verdade a fim de fazé-la entrar na cabeca do leitor ou letora: “AS condutas que se denunciam nfo slo ditadas & mulher pelos seus horménios nem prefiguradas nos compartimentos de seu cérebro; s80 marcadas pela sua situaco” (If, 363); “Diga-se mais uma vez: para explicar suas limitagbes (da mulher), € poramto sua situagao que cabe invocas, e nao ‘uma esséncia misteriosa” (Il, 482); “Cumpre repeti mais vima vez que nada é natural na coletividade humana e que, entre outras coisas, a mulher € um produto elaborado pela civilizacio” (I, 494). ‘Assim, a propésito da biologia, da qual se conhece a farta protixidade paca justficar as diferencas de género, Simone de Beauvoir é incisiva: “o ‘que recusamos € a idéia de que (0s preceitos biolégicos] constituem um, destino imutavel para a mulher” (I, 52). Ela aplica obstinadamente essa firmeza ao longo de toda a obra. O biologico 36 € valido pela maneira como € apreendido pelos individuos: “Vé-se que, se a situacdo biolégica da mulher constitui um handicap, é por causa da perspectiva em que ela se apreende” (Il, 70); por exemplo, “é em grande parte a angistia de ser mulher que corr6i 0 corpo feminino* (I, 70), ¢ ndo a sua constiuicio. E reefinma: "A mulher no € vitima de nenhuma fatalidade misteriosa; as singularidades que a especificam tiram sua importéncia da significagao de ‘que se revestem" (I, 496). Ela consegue portanto realizar uma inversio de perspectiva, substituindo a explicacio fisica pela das relagbes sociais — relagées de um individuo com os outros, com o mundo e com seu préprio corpo: “A mulher no se define nem por seus horménfos nem por risteriosos instintos ¢ sim pela maneira por que reassume, através de consciéncias estranhas, 0 seu corpo € sua relacéo com o mundo” (Tl, 494). Toda essa inversio se expressa de forma igualmente clara com relago 20 corporal, no pertinente em si, mas cujo sentido € construtdo socialmente: “a situago nao depende do corpo, ele sim depende dela” (Il, 460). De forma muito légica, ela derruba todos 0s preconceitos de seu tempo ¢ assim abre.os caminhos que serio percorridos pelas novas feml- ristas dos anos 1960 e 1970: “nao hé nenhum instinto maternal inato € risterioso” (I, 307), ¢ a boa male nao passa de um mito: “A atitude da mae é.definida pelo conjunto de sua situacao e pela maneira por que a assume" (1, 278). Para ela, © homossexvalismo nao € o fruto de um desregramento, mas “uma atitude escolbida em sitwagaa" (Il, 164). Quanto 20s problemas da menopausa, “é principalmente a situacao psicolégica que fos] comanda” i, 349), Além disso, ela mostra a armadilha daquelas palavras que sempre JULHODE200 107 A SEGUNDA SIMONE DE BEAUVOR carregam preconcepetes: “Quando emprego as palavras ‘mulher’ ou ‘femi- " nino’ nao me refiro evidentemente 2 nenhum arquétipo, a nenhuma esséncia imutvel; ap6s a maior parte de minhas afirmages cabe subenten- der: ‘no estado atual da educacdo ¢ dos costumes” (II, 7). Infindéveis seriamn as provas de sua diligéncia. LA onde o pensamento ‘comum enxergava apenas destinos naturais ela revela a imensa complexi- dade das experiéncias humanas, ¢ sua pena afiada esboga os wagos contraditérios, infinitamente variéveis, das vidas femininas encerradas em suas estreitas simacbes, Sobretudo, sua andlise culturaista penetra mais fundo onde em geral ‘seus contemporineos no se aventuraram: nas psiquismos, ‘nas relagSes amorosas € mesmo sexuais. Temas considerados tabus, como aborto violéncias sexuais, so tatados sem condescendéncia. Ela € uma das primeiras a mostrar 0 sexismo dos estudos freudianos e a recusar a inveja do pénis, que “resulta de uma valorizagio. prévia da virlidade. Freud a encara como existente quando seria preciso explicé-a” (, 63). Ela mesma consagra algumas paginas acerca de sua origem (J, 391 ss.) e empenha-se outro tanto em demonstrar as causas sociais do masoquismo feminino: “O Complexo de Electra nao €, como ele (Freud) pretende, um desejo sexual; uma abdicago profunda do individuo que consente em ser objeto na submissio e na adoracao” Cl, 29). Além disso, “a mulher sente-se diminuida porque, em verdade, as determinagdes da feminilidade 2 diminuem" (I, M8). Na relagio amorosa, assim como em outras, as divergéncias no sio {natas, pois “ndo é de uma lei da natureza que se trata, Ea diferenca de suas situagBes que se reflete na concepeo que o homem e a mulher tém do amor” (I, 42). Mesmo os comportamentos sexuais, tio comumente apreen- didos como naturais (até mesmo animais), no slo poupados por sua andlise obstinada: “A diferenca nada tem de natural (.., ela vem do conjunto da sinuagio erética do homem ¢ da mulher, al qual a tadigo € a sociedade a definem” (Hl, 321), visto que a sexualidade “nunca se nos apresentou como definindo um destino [..J, mas sim como exprimindo a totalidade de uma situacao que contribui para defini” (1, 496). Assim, por exemplo, “a mulher s6 se sente io profundamente passiva no ato amoroso Porque ji entio se pensa como tal” (I 496). E todo O segundo sexo demonstra infatigavelmente como a educacio, os preconceitos, as tradi- 9025, 08 papéis esperados de cada um conduzem pouco a pouco & Construgio desse segundo sexo reprimido de todas as formas. Ele descreve © que em termes modemos denominariamos 2 incorporagio das normas socials ou a constituiclo dos “babitus’, ‘Compreende-se assim que Simone de Beauvoir tenha se tomado lider do feminismo antiessencialista, Seu volumoso tratado parece de uma sara coeréncia, intelramente imbuido de uma vontade implacavel de acabar de vez com o etemo femninino, tanto que ela jamais deixard de defender essa posigio ¢ mesmo reforcé-la com o decorrer dos anos. Essa homogeneidade, contudo, € apenas ilus6ria. Paradoxalmente, 0 ccariter implacével da determinagao cultural de Simone de Beauvoir eviden- 108 NOVOSESTUDOSN?57 SYLVIE CHAPERON aos residuos naturalistas que seu pensamento carrega. E como se ela fosse incapaz de aplicar, em toda a sua extensio, o principio que ela mesma se fixouy como se as zonas sombrias permanecessem inacesstveis & sua propria clareza, representando angulos mortos na acuidade do seu pensamento. i | | i 0s titimos refiigios do natural 0 objetivo de O segundo sexo € muito simples: uma vez recusadas todas as explicacdes dos géneros dadas pela natureza, € preciso empreen- der uma interpretacio sociolégica e existencialista, o que € feito em dois volumes, correspondentes, grosso modo, a dois tempos: o da filogénese € 0 da ontogénese. Simone de Beauvoir retoma, apés muitos outros autores, um esquema que se pode dizer tipico do historicismo do pensamento modemo, que consiste em ver @ hist6ria da humanidade na escala de uma vida humana, caminhando em dirego do progresso ¢ da maturidade segundo um processo linear e cumulative”, As grandes caracteristicas do presente encontram suas origens na infincia da humanidade, a saber, nas sociedades 2 época chamadas “primitivas". Assim, Simone de Beauvoir produz sua prépria “cena original” na qual a derrota feminina foi representada. Essas “robinsonadas” (segundo a expressao de Mars, que jé as havia desengana- 0) dio a entender mais sobre a época a qual recorrem do que sobre uma prGhistéria para sempre desconhecida. Isso mostra como Simone de Beauvoir partilba, tal qual muitos outros de seu tempo, de uma visio psicologizante da hist6ria. ‘onde vio dar, entio, aqueles primeiros passos da humanidade? Apés

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