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REVISTA ZUM 11 rig: Danga sélfica Joan Fontcuberta & Martin Parr Publicado em: 7 de dezembro de 2016 Para o artista catalfio JOAN FONTCUBERTA, as selfies sfio parte de uma mudanga radical no uso que se faz da fotografia. Fotografias de MARTIN PARR. DANCA SELFICA UMA PROPAGANDA DE TELEVISAO criada para anunciar um novo modelo de camera digital Samsung resumia em 60 segundos todo um tratado fenomenolégico da evolugao da fotografia: em uma praia deserta, uma moga caminha em diregao ao mar. De repente, ela encontra um cadaver embalado pelas ondas e comeca a gritar, apavorada. Mas saca a cdmera e faz varias fotos com disparos de flash. Depois de alguns cliques, pega umas algas ¢ as acomoda ao lado do corpo para que entrem no enquadramento. Sem deixar de tirar fotos, conversa com alguém no celular. Finalmente, ela vira de costas e tira uma selfie com 0 afogado ao fundo. A propaganda termina com o slogai estar sempre com nossa cAmera a postos para nao perder es : “Existem tantas cenas interes: momentos tinico: Essa breve hist6ria destaca trés estagios da expressio fotogréfica. O primeiro revela o impulso documental, a agiio que satisfaz.a curiosidade e a surpresa. Podemos associd-lo aos primeiros passos da fotografia: a necessidade de registrar e conservar a imagem de uma realidade “em estado bruto”. Em seguida, a jovem fotografa intervém na cena, tornando-a retdrica com a algas. Essa ago espontanea apontaria o desejo de interpretar, e testemunhar, obtendo assim uma imagem mais explicita e expressiva. A garota comete uma infragdo no que diz respeito 4 metodologia documental estrita, mas é uma infragdo perdodvel porque permite que aflore de forma incipiente o que poderiamos chamar de “fotografia encenada’, que revela um us primeiro estagio, destacamos um acontecimento; no segundo, uma inten inclusao da io apenas artistico, e no meramente instrumental, da cémera. No io. Em ambos os casos, ainda estamos no dominio da fotografia, mas no terceiro surge a pés-fotografi giro copernicano, a camera desgruda do olho, afasta-se do sujeito que a controlava e, distancia de um braco estendido, volta-se para fotografar justamente esse sujeito. Acabamos de inventar a selfie. :emum Na ergonomia da selfie, a exploragio da realidade nao é feita com 0 olho colado ao visor da cAmera. A distincia fisica e simbélica que se interpée — e que, com frequéncia, aumenta gracas a esse subsidio ridiculo que é o pau de selfie -, isto 6, a perda de contato fisico entre o olho e 0 visor, tira da camera sua condi (0 de prétese ocular, de aparato ortopédico integrado ao nosso corpo. Jé nao ha proximidade: a realidade aparece em uma projegio fora do corpo, distinta da da. percepcdo direta, em uma imagem que ocupa uma pequena tela digital e que foi proce: Mas é no Ambito epistemol6gico que a selfie introduz uma mudanca substancial, pois transforma a atavica concepgao da fotografia de um “isto aconteceu” para um “eu estava ali”. A selfie substitui a certificagdio de um acontecimento pela certificagao de nossa presenca nesse acontecimento, por nossa condigdo de testemunha, Assim, o documento se vé relegado em prol da inscrig&o autobiogréfica. Inscrig&o dupla: no espago e no tempo, ou seja, na paisagem ena histéria. Nao queremos mostrar o mundo tanto quanto indicar nosso estar no mundo. Esse afa autobiografico implica a insergao do eu no relato visual com tal arrebatamento de subjetividade que ativa, no Ambito psicolégico, o estrondo da erup¢ao narcisista, enquanto, no Ambito estético, desativa o cdnone documental inerente até entdo a foto vernacular. Cabe entdo perguntar se a selfie é a expresso de uma sociedade vaidosa ou egocéntrica. A resposta é que nao necessariamente: de fato, embora a internet funcione como um grande alto-falante do narcisismo — como de tantas outras coisas -, a afirmaco do eu e a vaidade percorreram toda a histéria da humanidade. As selfies apelam a precedentes na historia das imagens, mas, como conta Jennifer Ouellette, editora de ciéncia do site Gizmodo, na era digital elas funcionam como “reguladoras de sentimentos”, que continuam alimentando a necessidade psicoldgica de estender a explicagao de si mesmo. A grande diferenca é que essa explicagao se encontra, por um lado, ao aleance de todos e, por outro, se vé amplificada por meio da caixa de ressonancia das redes sociais e dos aplicativos de bate-papo. A internet cria uma forma particular de nos confrontarmos com a condi¢éio maleavel da identidade, No passado, a identidade estava sujeita A palavra, ao nome que caracterizava 0 individuo. O surgimento da fotografia deslocou o registro da identidade para a imagem, no rosto refletido ¢ inscrito, Com a pés-fotografia, chega a vez do baile de mascaras especulativo, no qual todos podemos nos inventar como queremos ser. Pela primeira vez na histéria, somos donos de nossa aparéncia e estamos em condigées de administré-la como melhor nos convém. Os retratos, e, sobretudo, os autorretratos se multiplicam e se disseminam na rede, expressando um duplo impulso narcisista e exibicionista, que também tende a dissolver a membrana entre o piiblico ¢ o privado. No “enxame digital” (termo cunhado pelo filésofo sul-coreano Byung-Chul Han para se referir a0 espaco social da internet), interagimos em uma rede infinita de conexées, e nela modelamos a identidade de acordo com esses vinculos. Nesse enxame digital, o fenémeno selfie é um sintoma significativo, que proclama a supremacia do narcisismo sobre o reconhecimento do outro: é 0 triunfo do ego sobre o eros. Mas sua irrupgo avassaladora entre as praticas pés- fotograficas deve ser lida com base na gestiio do impacto que desejamos produzir no proximo. Nao esquegamos que, pela primeira vez na histéria, essa gestdo nao depende de fabricantes de imagens que esto distantes de nés, sejam artistas ou fotdgrafos profissionais, mas esta em nos 's maos. Portanto, nela também esta o seu sentido moral ou politico, e a responsabilidade que essa habilidade traz consigo. E verdade que, nas selfies mais comuns, a vontade lidica e autoexploratoria prevalece sobre a meméria. Basicamente, o que pedimos hoje as fotos é que sejam compartilhaveis e que se adaptem as dinamicas da conversagio. Tirar fotos e mostré-las nas redes sociais é parte do jogo de sedugiio e dos rituais de comunicagio de subculturas p6s-fotogréficas das quais, apesar de capitaneadas por jovens e adolescentes, quase ninguém fica de fora. Essas fotos jé nfo so lembrangas para serem guardadas, e sim mensagens para enviar e trocar; as fotos se transformam em puro gesto de comunicagao, cuja dimensio pandémica obedece a um amplo espectro de motivagées: podem ser utilitérias, celebratérias, formalistas, introspectivas, erdticas, pornogréficas... e até de politicamente transgressoras. Para o etndgrafo digital Edgar Gomez Cruz, esse repertério se organiza em quatro eixos: jogos de identidade, narrativas do eu, autorretratos como terapia e experimentaciio fotografica. Seria necessdrio acrescentar que, hoje, muitas fotos nao sao tiradas para ser vistas, mas se tornaram uma ocupagao que vai além de seus usos originais (representacdo, testemunho, memoria ete.), para se tornar algo inalienavel da propria vida, na vanguarda entre o vicio e o prazer: o ato de fotografar pode prevalecer sobre o contetido da fotografia. Tecnicamente, na produgio massiva de selfies se diferenciam dois principais modos de operac&o, que podem ser designados com os neologismos “autofoto” e “reflexograma”. Para o primeiro, sé é necessdria uma lente grande-angular ¢ um braco suficientemente longo para nos encaixar no enquadramento por tentativa e erro, porque, embora alguns telefones tenham cAmeras de ambos os lados — uma concessio a mania das selfies -, o mais comum ¢ ter que disparar a foto As cegas. No reflexograma, por outro lado, tiramos o autorretrato em frente de um espelho, que, apesar de sempre trazer certa dose de aleatoriedade, permite maior controle. Sem dtivida, essa vantagem justifica que os reflexogramas tenham antecedido as autofotos, tanto na fotografia analdgica como no imaginario digital. Da perspectiva da cultura fotografica, a presenga simultanea da cémera e do espelho traz, nos reflexogramas, implicagdes substanciais de alcance ontolégico ¢ simbélico. A fotografia analdgica jé foi considerada uma disciplina propria dos elfos — seres belos e imortais da mitologia escandinava. Esses dois dons contribuiram para definir o horizonte fotogrdfico: a verdade e a estética, o tempo e a meméria, Se me permitem terminar com um jogo de parénimos, diria que, se a fotografia foi élfica, a pés-fotografia tem sido sélfica. E essa dimensdo nao é uma moda passageira, e sim a consolidagao de um género de imagens que chegou para ficar, como os retratos de passaporte, a fotografia de casamento ou a turistica. Embora o diagnéstico possa desagradar, as selfies constituem um material bruto que ajuda a nos entendermos e a nos corrigirmos. E ao qual ja nao saberemos renunciar. /// + A fitria das imagens (Galaxia Gutenberg, 2016) Traduzido do espanol por Ant6nio Xerxenesky Créditos das imagens: Veneza, 2015; Veneza, 2015; Veneza, 2015; Veneza, 2015; Area externa do Museu do Vaticano, Cidade do Vaticano, 2014; Rua Canton, Hong Kong, 2013; Museu Imperial da Guerra, Londres, 2015; Portal da india, Bombaim, 2016; Hotel Sacher, indo ao Baile da Opera de Viena, Austria, 2016 © MARTIN PARR/MAGNUM. PHOTOS Joan Fontcuberta (1955) é artista, professor, historiador e curador espanhol. Recebeu os prémios Hasselblad, Nacional de Fotografia e Nacional de Ensaio. Martin Parr (1952) € fotografo, presidente da agéncia Magnum, da qual é membro desde 1994. Tags: Artigos online, autorretrato, Joan Fontcuberta, Martin Parr, selfie

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