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Transformac6es- societarias e Servico Social Notas para uma andlise prospectiva da profissio no Brasil José Paulo Netto* A Sérgio Brasit, irmao d'aauém ¢ d'além-mar. efletir sobre as possibilidades de desenvolvimento do Servigo Social. no Brasil e nos pr6xi- mos anos, parece-me um exer- cicio intelectual ¢ profissional legitimo e necessirio. Porque, por um lado, nin- guémt pode ter dtividas de que 0 perfodo histérico em que estamos situados mar- ca-se por transformagdes societarias que afetam diretamente 0 conjunto da vida social e incidem fortemente sobre as profissées, suas dreas de intervengiio, seus suportes de conhecimento e de im- plementagio, suas funcionalidades etc. B porque, por outro lado, tal reflexiio é imprescindivel para estabelecer, em face dessas transformacdes, estratégias socio- itular da Escola de Servigo Social a programas encaminhamento de uma reflexdo prospectiva s 0, alias, sobre qualquer atividade profissional) ha, porém, — niio excludentes entre si — que devem ser evitados. De breve, quero sinalizar dois desses equfvocos. O primeiro é 0 que eu chamaria de “fuga para o futuro”, ou s preocupagao em examinar possibilidades de desenvolvimento- ee como | justificativa da auséncia de atengio para com as realidades atuais. Assim, os dilemas contemporaneos sao deslocados, na pesquisa, pela centralidade conferida ao que se supde seja (ou serd) o “novo”. Saltar para diante €, freqiientemente, uma boa saida para escapar as dificuldades presentes. O segundo reside em converter a prospecedo, entendida como andlise projetiva (com todos seus riscos), em operagao especulativa, ou seja: a partir da consideragio abstrata de alguns dados emergentes da vida social, tende-se a inferir um quadro geral hipostasiado que configuraria o cendrio futuro. A especulacaio, comumente associada a um urso prescritivo, tem em geral se mostrado como o rosto falacioso da prospecgio. No artigo que agora se publica, pretendo oferecer algum contributo para uma prospeccio referida ao Servigo Social no Brasil com a pretensio de evitar esses e outros equivocos, quase sempre presentes em exerefcios projetivos. O que nao pude evitar, por necessidades imanentes & minha argumentagio sobre os provdveis desdobramentos futuros do desenvolvimento profissional no pafs, foi uma longa remissao aos processos societérios contemporaneos € uma sintese do desenvolvimento profissional recente — mas espero que ambos sejam titeis ao meu eventual leitor. Introdugao: transformagdes societdrias alteragdes profissionais Parece assente que conjunturas (e a palavra nao se refere apenas a temporais de curta duragio) de rapidas e intensas transformagdes soci constituem o solo privilegiado para 0 processamento de alteragGes profiss — seja o redimensionamento de profissGes j4 consolidadas, seja o su e povas atividades e ramos profissionais. tamente a divisio sociotécnica do trabalho, envolvendo modificag6es dalidades de formaga&o ‘os seus niveis (parametros de conhecimento, mo Aticas, sistemas institucional-organizacionais etc.). -O problema tedrico-analitico de fundo posto pelo fendmeno reside em ficar e compreender como, na particularidade pratico- social de cada profisséo, traduz o impacto das transformagdes societdrias. Mais exatamente: 0 lema consiste em determinar as mediagoes que conectam as profissGes ticulares Aquelas transformagoes Nesse sentido, as profissdes nao podem ser tomadas apenas como uultados dos processos sociais macrosc6picos — devem também ser tratadas F catia qual como corpus tedricos & praticos que, condensando projetos sociais ‘(donde as suas inelimindveis dimenso ideo-politicas), articulam respostas (teleoldgicas) aos mesmos process’ As alteracdes profis sim, derivam da intrincada interagdo que se processa entre as transformagGes socieldrias, com seu rebatimento na divis sociotéenica do trabalho, e 0 complexo (tedrico, pratico, politico e, em sentido Jargo, cultural) que & constitutivo de cada profissio. Complexo que, circuns- creyendo um campo profissional particular, envolve — e isso deve ser afirmado enfaticamente, A base de verificagdo factual — tendéncias ¢ orientagGes profissionais diferenciadas: no mundo contemporaneo, € ingenuidade supor profissGes como blocos homogéneos e/ou identitérios — praticamente todas esto vincadas por enorme diversidade, tensdes & confrontos internos. Se essas determinagGes so pertinentes, a explicagao e compreensao das alteragdes profissionais, como um s6 processo analitico, exige tanto o des- yendamento das transformag6es societérias quanto 0 exame do complexo da issio que se quer 0 objeto da reflexdo. E evidente que a consecugio rigorosa desse duplo escopo foge aos limites deste artigo, mas ¢ impossivel avangar nesta exposigdo sem enfrentar esses dois pdlos tematicos. 1. Transformagées societérias no capitalismo tardio : F no curso da década de setenta que emergem, visivelmente, as trans- formagées societdtias que — embora ja sinalizadas no decénio anterior!’ — muito diferenciados perceberam, entio, varios desses sinais, estudando plo, na organizagiio do trabalho € na classe operiria (Gorz, 1964; Mailet, social (MeLtihan, 1967), no fenémeno urbano (Lefebvre, . 1969). oie See e . 1, Analistas dangas, por ¢4 yao marcar os anos oitenta e noventa, revelando inflexdes significativas no evolver da sociedade capitalista’, inflexdes de tal relevincia que levaram muitos autores a equivocos na tentativa de caracterizar mais seu estagio presente’. adequadamente O marco dos anos setenta ndo € um acidente cronolégico; ao contrario: a visibilidade de novos processos se torna progressiva 4 medida que o capital monopolista se vé compelido a encontrar alternativas para a crise em que é engolfado naquela quadra. Com efeito, em 1974-1975 explode a “primeira Tecessdo generalizada da economia capitalista internacional desde a Segunda Guerra Mundial” (Mandel, 1990: 9). Essa recesséo monumental e 0 que se Ihe seguiu pds de manifesto um giro profundo na dinamica comandada pelo capital: chegava ao fim o padrio de crescimento que, desde o segundo pGs-guerra e por quase trinta anos (as “trés décadas gloriosas” do capitalismo monopolista), sustentara, com as suas “ondas longas expansivas”, o “pacto de classes” expresso no Welfare State (Przeworski, 1991). Emergia um novo padrao de crescimento que, operando por meio de “ondas longas recessivas” (Mandel, 1976), nao s6 erodia as bases de toda a articulagdo sociopolitica até entdo vigente como, ainda, tornava exponenciais as contradigGes imanentes a légica do capital, especialmente aquelas postas pela tendéncia 4 queda da taxa média de lucro e pela superacumulagio (Mandel, 1969, 1, V e 3, XIV). F para responder a este novo quadro que o capital monopolista se empenha, estrategicamente, numa complicada série de reajustes e reconversdes que. deflagrando novas tensdes e colisdes, constréi a contextualidade em que surgem (e/ou se desenvolvem) auténticas transformagGes societarias. Fecunda matriz analftica para tratar essa processualidade complexa € @ que Harvey (1993: 117 e ss) explora, retomando os “tedricos da regulagao” (Aglietta, Lipietz e Boyer). De acordo com 0 geégrafo norte-americano, a crise dos anos setenta assinalou a exaustdo do padrdo capitalista monopolista fundado num regime de acumulagio (e seu conexo modo de regula¢io sociopolitica) “rigido”, que ele designa como “fordista-keynesiano™; para preservar-se e reproduzir-se, 0 capitalismo monopolista contemporfineo — que Mandel (1976) caracterizou como capitalismo tardio — quer enfrentar a nova 2. Neste artigo, nfo considerarei a experiéncia do “socialismo real” (sobre a qual me detive em Netto, 1993), nem a sua interagio com a processualidade da sociedade capitalista. 3. Recordem-se as frigeis teorias da “sociedade pés-industrial” (Touraine, 1969; Bell, 1976), a incepta tese da “sociedade de consumo” (Baudrillard, 1974) ¢, mais recentemente, 2 debilidade da concepg%io do “capitalismo desorganizado” (Offe, 1985). : 4. Para alguns estudiosos, ¢ polémico o cardter “rigido” atribuido ao fordismo; ef. Clarke (1991) para a discussfio acerca deste ponto. 90 Zo das suas contradigdes imanentes recorrendo a um outro regime de lagaio, “flexivel”, que implica, necessariamente, um correspondente modo gulacao. A matriz é fecunda porque, apanhando as transformagdes ‘irias que a transi¢fo da “rigidez” a “flexibilidade” dinamiza e engendra, perde de vista a sua concreta inscrigfo histérica: elas so compreendidas interior do campo de inflexdes do movimento do capital, portadoras do ymplexo das suas contradigdes, possibilidades ¢ limites Numa angulacio macroscépica, a “flexibiliza vem sendo perseguida lo grande capital, hipertrofiando as atividades de natureza financeira (resultado seja da, superacumulagio, scja da especulagio desenfreada), cada vez mais autonomizadas de controles estatais-nacionais e dotadas, gragas as tecnologias da comunicagdo, de extraordindria mobilidade espago-temporal. Simultanea- mente, a produgdo segmentada, horizontalizada ¢ descentralizada — a “fabrica difusa” —, que € estimulada em varios ramos, propicia uma “mobilidade” (ou “desterritorializagio”) dos pélos produtivos, encadeados agora em labeis redes supranacionais, passiveis de rdpida reconversao. A tao celebrada globalizagdo econémica vincula-se, nao por acaso, a essa “financeirizagio” do capitalismo (Harvey, 1993; Mattoso, 1995) e a articulacfo supranacional das unidades produtivas (que vem implicando uma ampla “desregulamentagio” da economia mundial), mesmo que nao se reduza a ambas (Ianni, 1992; Santos er alii, orgs., 1994; Featherstone, org., 1994; Sklair, 1995). A globalizacao, ainda, vem agudizando o padrfo de competi- tividade intermonopolista e redesenhando o mapa politico-econdmico do mundo: para assegurar mercados e garantir a realizagfo de superlucros, as grandes corporagdes tém conduzido processos supranacionais de integragio — os megablocos (Uniao Européia, Nafta, APEC) — que, até agora, nao se apresentam como espagos livres de problemas para a concertagio dos interesses do grande capital (como o esto provando as fricgdes na Europa dita comunitédria)>. A “flexibilizagéo” pretendida pelo grande capital vem sendo favorecida pelo direcionamento a que ele submete a verdadeira revolugdo tecnoldégica que, desde os anos cinqiienta, afeta as forgas produtivas. Sem entrar na polémica acerca dessa revolugao (“terceira revolugdo industrial”, “revolugio _ 1995; Matioso, 1995), é fato que, no processo produtivo, opera-se a substituigdo eletromeciinica ts eletrénica e uma crescente informatizagdo do processo nda, altera profundamente o processo produtivo. Conseqiientemente, o processo trabalho e os seus mecanismos de controle e organizagao experimentam icagdes que no podem ser minimizadas®, a Nao € preciso muito félego analftico — para quem conhece a projecio ‘Marxiana acerca da relagdo ciéncia/produgio, cada vez mais confirmada pela dinamica capitalista — para concluir que a revolugdo tecnolégica tem implicado ma extraordinaria economia de trabalho vivo, elevando brutalmente a com- posi¢do orgdnica do capital. Resultado direto (exatamente conforme a projegio de Marx): cresce exponencialmente a forca de trabalho excedentdria em face dos interesses do capital’. O capitalismo tardio, transitando para um regime de acumulagio “flexivel”, reestrutura radicalmente 0 mercado de trabalho, seja alterando a relago entre exclufdos/inclufdos, seja introduzindo novas modali- dades de contratagio (mais “flexiveis”, do tipo “emprego precério”), seja criando novas estratificagdes e novas discriminagdes entre os que traball (cortes de sexo, idade, cor, etnia)’. A exigéncia crescente, em amplos niveis, de trabalho vivo superqualificado e/ou polivalente (coexistindo com a desqua- lificagdo analisada por Braverman, 1987), bem como as capacidades de decisio requeridas pelas teenologias emergentes (que colidem com o privilégio do comando do capital), coroa aquela radical reestruturagdo — reestruturacao que, das “trés décadas gloriosas” do capitalismo monopolista, conserva os padrdes de exploragao, mas que agora se revelam ainda mais acentuados, incidindo muito fortemente seja sobre o elemento feminino que se tornou um co *ponente essencial da forga de trabalho!®, seja sobre os estratos mais jovens 6. Conforme o atesta a larga bibliogratia sobre a temitica © de que € interessante 0 balango realizado por Ramalho (1991); cf, ainda, entre outros, Coriat (1982, 1990, 1991), Sabel ¢ Piore (1984), Burawoy (1985), Kern e Schumann (1989), Lojkine (1990, 1995), Leite (1994), Mattoso (1995) e Antunes (1995). 7. Essa economia erescente de trabalho vivo, que Ievou & mitologia da “fibrica sem trabalhadores” (competentemente criticada por Lojkine, 1995), tem conduzido a ineptas ilagbes acerca do fim da “sociedade do trabalho”, algumas inspiradas na vulgarizagfio de conhecido ensaio de Offe sobre o trabalho como categoria sociolégica fundamental (in Offe, 1989). 8. A estrutum do mercado de trabalho, nas condigées do trainsito a um regime “flexfvel”, € objeto de lapidares notagbes de Harvey (1993; 140-146). 9, Essa colistio tem constituido um grave problema para os funciondrios que. a servigo do capital, encarregam-se da “gestio dos recursos humanos” — ©, comumente, aparece bibliografia como “problemética da subjetividade do trabalhador”. Dentre as intimeras fontes. cf. Lojkine (1990, 1995) © Leite (1994). 10. Apenas para ilustrar a magnitude da presenga da mulher no mercado de waballho contemporineo, basta ter em conta o seguinte exemplo: “Em 1940, as mulheres casadas que viviam com os maridos ¢ trabalhavam por sakirio somavam menos de 14% do total da populagio feminina dos EUA. Em 1980, eam mais da metade: a porcentagem quase duplicou entre 1950 © 1970" (Hobsbawm, 1995: 304). 92 -Constituem!', sem esquecer os emigrantes que, nos paises desenvoividos, m © “trabalho sujo’ As incidéncias inclusivas des = is modificagSes constituem mais que o © tecido em que se desenvolvem transformagGes societdrias — tais mo- agdes, em si mesmas, compédem o elenco das transformagdes societdrias no curso, tipificando a sociedade tardo-burguesa. E essas, na sua globalidade, uinda que s6 plenamente decifraveis quando relacionadas inflexdes da | dindmica do capital, extrapolam-nas amplamente ¢ apresentam particularidades _ irredutiveis. -No nivel social, 0 que se verifica, antes de mais nada, é que a estrutura de classes da sociedade burguesa vem experimentando verdadeira eversio, até mesmo com © desaparecimento de antigas classes sociais, como € 0 caso do campesinato!?. Ocorrem alteragdes profundas, quer no plano econémico-objetivo da produgio/reprodugao das classes e suas relagdes, quer no plano fdeo-subjetivo do reconhecimento da pertenga de classe (e sabe-se da unidade de ambos os planos na pratica social). Todas as indicagdes disponiveis nas pesquisas mais fidedignas'? continuam atestando que as determinagdes de classe prosseguem operantes — e fundamentalmente operantes: 4 impossfvel apreender a dinémica social contempordnea da ordem burguesa sem referencid-las, Entretanto, essa referéncia deve considerar plurivocamente tais determinagGes numa estrutura de classes altamente complexificada e, ainda, deve ponderar sua gravitagio na relagio com determinagdes de ou! naturezas — e hi que se render evidéncia de que esse trato, em face da contemporaneidade, esté longe de ser satisfat6rio. Malgrado essa deficiéncia, é possivel avangar alguns elementos constitutivos das metamorfoses em curso. Esta claro que as modificagdes derivadas do exaurimento do regime de acumulagio “rigido”, mais as implicagGes da revolugiio tecnoldgica, estao 11. A exploragiio de mulheres ¢ jovens vale tanto para os paises capitalistas céntei quanto para os periféricos de industrializagio recente (os NICs), com os seus “mercadus informais” dle trabalho — em todos os casos, a “flexibilizag’io” vem conjugando as modalidades conhecidas | de extragio de mai relativa com formas barbaras de exploragio da forga de trabalho, algumas das quais préprias dos primérdios do capitalism. 12. Em sua obra mais recente, 0 maior historiador marxista vivo constata que “a mudanga ‘ial mais importante... da segunda metade deste século, ¢ que nos isola para sempre do ado, 6 a morte do campesinato” (Hobsbawm, 1995: 284). 13, Para um balango dessas pesquisas até finais dos anos sctenta, cf, o ensaio de Therborn m, org.. 1989); outra 6 2 discussiio posterior, na stica dos “marxistas analiticos” ‘org 1989; af estiio indicagdes sobre as investi de B Setenta € oitenta, & andlise comparativa da nee sloped ae Subyertendo © “mundo do trabalho”. No conjunto dos que vivem da venda da sua forga de trabalho, a classe operdria “tradicional”, que fixou a sua identidade classista (sindical e politica) enfrentando 0 capitalismo monopolista, transforma-se rapidamente, afetada por diferenciagdes, divisdes, cortes e re- composigGes — ademais, dada a dinamica da propria “revolugdo informacional”, ela tende, enquanto proletariado industrial, a perder yrandeza estatistical4, Muito especialmente, cabe observar que 0 processo que Lojkine (1995) designa como “interpenetra de atividades industriais e atividades informacionais” (ou, noutro plano, “interpenetragiio de fungdes produtivas e fungdes ditas nio ‘produtivas’’) tem, sobretudo, alterado as clivagens da divisio social do trabalho que se constituiu até a madurez do capitalismo monopolista. Com isso, mais a acentuada tendéncia ao assalariamento © mais a cmergente vaga de “trabalho auténomo” (via “terceirizacdo” a microempresas ou via servigos pagos por tarefa), também se modificam as hierarquias e as articulagdes de camadas médias, “tradicionais” (como a pequena burguesia urbana) ou nao Na verdade, infirmando as falsas teses acerca do fim da “sociedade do trabalho”, © que se registra séo mutagGes (ou, como prefere Antunes, meta- morfoses) no “mundo do trabalho”. E se o proletariado tradicional vé afetada a sua ponderagio social, é inequivoca a centralidade da “classe-que-vive-do- trabalho” (Antunes, 1995). Essa centralidade objetiva, porém, n&o pode ocultar a sua enorme diferenciagdo interna nem a atual auséncia de um universo comum de valores e praticas — ou seja: nao pode ocultar o fato de que essa “classe-que-vive-do-trabalho”, agora mais que nunca, é um conjunto bastante heteréclito. Curiosamente, atengio muito menor tem sido conferida 4s modificagée: ocorrentes no interior da(s) “classe(s)-que-vive(m)-da-exploragao-do-trabalho”. As camadas que representam o capital (e, mormente, o grande capital) parecem impermedveis a and na bibliografia das chamadas ciéncias sociais, 0 interesse pelas “mutagdes” da classe operdria € diretamente proporcional 4 invisibilidade do patronato e dos capitalistas'’ — contam-se pelos dedos das mos os intentos de estudar os grupos ditos superiores da sociedade; parece que a elite do poder (Mills, 1956) nao entra no jogo das transformagdes. Nesse terreno, mais que em qualquer outro, o pauperismo das investigagGes 14. & afirmativa corrente © deeréscimo quantitativo do proletariado industrial; contudo, hd fortes indicios de que “sé nas décadas de 1980 © 1990 podemos detectar sinais de uma grande contragtio da classe operiria” (Hobsbawm, 1995: 297). 15. O fendmeno é mundial ¢ rebate claramente no Brasil — comparem-se, entre nds, as investigagées, especialmente a partir de finais dos anos setenta, sobre a “classe trabalhadora” € ‘© que se dedicou ao conhecimento do grande patronato. 94 eo , aqui, é preciso muita cautela para nao incorrer em erros : Bee itn afirmar é que, independentemente de modificagbes : f s (com novos conflitos e novas vias de ingresso nos eeas cireulos = de que o “caso Bill Gates” é emblematico), os* representantes do grande capital esto estruturando uma oligarquia financeira global'’, com padrées de articulagdo que, sendo novos, Ihes asseguram, pelo momento, um _grau de intervengio politico-econdmica que, planetario, no enfrenta uma competigao (externa a seus circulos) que seja significativa. Mais ainda: esses -padroes de articulacao global Ihes estao garantindo, no momento, uma hegemonia a que-nao é estranha a cultura propria do atual estdégio de desenvolvimento do capitalismo. As transformagées no nivel social nfo se reduzem, obviamente, as alteragdes na estrutura de classes — ainda que a elas se conectem e nelas repercutam. Vinculadas as profundas modificagGes no perfil demogrdfico das populagdes (em fun¢ao seja das taxas de crescimento, seja do aumento da ‘média de vida), & expansao urbana (em meados da década de oitenta, 42% da populacao estava nas cil lades'7), ao crescimento das atividades de servigos (0 “tercidrio” de C. Clark), & difusao da educagdo formal (inclusive a superior: nos anos setenta, 0 ntimero de universidades no mundo praticamente dobrou) e aos novos circuitos de comunicacgao social (conduzindo ao pice a indiistria cultural que a “escola de Frankfurt” analisou e criticou) — vinculadas a esses € a outros vetores, as transformagoes no nivel social da ordem tardo-burguesa revelam-se notaveis. Rebatendo na estrutura da familia (sobre 0 que Hobsbawm, 1995: 314-315, fornece dados importantes) € muito ligadas as transformagdes e se aludird a frente, elas convulsionam os padrées indispensdvel destacar trés, cujos impactos de natureza cultural, a qu de socialidade. E, dentre todas, é sfo contemporaneamente decisivos. e vineulada 20s mecanismos de concentragio de capital: 1960, as vendas das 200 maiores empresas capitalistas fepresentavam 17% do PNB do mundo capitalista, em 1984 esse percentual ja ascendia a 26% (cf. Hobsbawm, 1995: 274), Em meados dos anos oitenta, a concentragéo era enorme nas Indéstriay de semicondutores, telecomunicagbes € computadores (Goncalves, 1994; 28). Nao hd indicadores de reversio dessa tendencia —~ ao contrério: trabalhando com dados mais recentes, ‘em 1999, as 10 maiores empresas do sector Santos (1995: 290) mostra, por exemplo, que, quimico responderam por 21% das vendas mundiais de produtos quimicos, assim como 30% | do comércio mundial de férmacos esteve nas mos das 15 maiores empresas do ramo. | 17, "$6. txés megides do globo permaneceram essencialmente, dominadas. pe aldeias © ‘campos: a Africa subsaariana, 0 sul ¢ © ‘sudeste da Asia continental e a China” (Hobsbawm, 1995; 286). 16, Estruturagio dirctaments estimativas sugerem que se, em 95 As duas primeiras dizem respeito 4 emersio de protagonistas sociais que, para retomar a feliz expressio de Hobsbawm, se pdem nos processos em curso como “agentes sociais independentes”: as mutheres e os jovens. As peculiares problematicas femininas (nem sempre inteiramente recuperadas pelos movimentos feministas'’), indo da opressdo no espago doméstico aos mais variados tipos de subalternidade/exploragdo no espago pdblico, irromperam pesadamente nos cinco tiltimos lustros. Gragas fundamentalmente aos empenhos de suas vanguardas, as demandas femininas ganharam tamanha forga eman- cipatéria que, independentemente do alcance efetivo de suas conquistas, passaram a atravessar as praticas sociais como questées que jd ndo podem ser ladeadas, Quanto & juventude, que esteve na base da “revolugaio de costum dos anos sessenta, ela passou — na escala em que as relagdes geracionais foram grandemente redimensionadas — a constituir uma categoria social especffica que adquiriu amplitude internacional, gerando inovagdes valorativas € rupturas com padrées de comportamento, freqiientemente incorporadas (quando nao induzidas) por varios setores industri Enfim, cabe referir a existéncia — decisivamente influenciada pelo cardter acentuadamente concentrador (de renda, riqueza e propriedade), na atividade econémica, e excludente ¢ restritivo, no Ambito das garantias sociais, do capitalismo tardio que se quer “flexibilizar” — de uma mirfade de segmentos > desprotegidos. Tais segmentos compreendem universos heterogéneos, desde aposentados com pensées miserdveis, criangas © adolescentes sem qualquer cobertura social, minorias e/ou migrantes, doentes estigmatizados (recorde-se a situagdo de aidéticos pobres), até trabalhadores expulsos do mercado de trabalho (formal e¢ informal). O que singulariza tais segmentos nao € o fato de encarnarem uma qualquer “nova pobreza” ou de marcarem a emergéncia de “subclasses”, nem o de nao serem identificados com o antigo /umpem!®; © que peculiariza boa parcela desses segmentos € que, situados nas bordas da “sociedade oficial”, eles se véem e sido vistos como uma “nio-sociedade” ou uma “contra-sociedade” — e assim interatuam com a ordem. 2 Numa imbricagdo simulténea com as transformagGes que estamos suma- Se i - inthe ‘Oriando, ocorrem alteragdes substantivas no Ambito da cultura, em todos os sentidos do termo. 18. Hobsbawm (1995: 311) indica algo a respeito, Quanto aquelas problemiticas, Santos, que, por seu turno, valoriza amplamente os movimentos feministas, oferece delas relevantes apontamentos (Santos, 1995: 301 ¢ ss). 19. O préprio humpemproletariado se metamorfoscia — pense-se, por exemplo, nat organizagio “empresarial” de atividades ilicitas e/ou criminosas, bem conto na sua interagio com o mundo da “economia oficial”. 96 A dinamica itali : “est parametrada he aang tardio que se vem “fexibitizando” Bisdos os S res: a translagdo da légica do capital para eee do espaco cultural (producao, divulgagao, consumo) e o Bei\cviseo, oe ges sileenh socializéveis pelos meios eletrénicos (a iride cla jr a pth O trago mais notével dessa cultura F icorpor aracteristicas tipicas da mercadoria — sua obsolescéncia 4 programada, sua fungibilidade, sua imediaticidade reificante. Mesmo que a sociedade tardo-burguesa esteja longe de ser uma “sociedade de consumo”, a cultura que nela hoje se afirma é uma cultura do consumo (Featherstone, 1995): cla cria a “sensibilidade consumidora” que se abre 4 devoragdo indiscriminada equalizadora de bens materiais e ideais — e, nela, a propria distingio entre realidade e signos se esfuma: numa semiologizagao do real, © signo é o real. A imediaticidade da vida social planetariamente mercantilizada ganha 0 alidade — e, nao por acaso, a distingao cldssica entre aparéncia 0. © efémero, o molecular, o descontinuo tornam-se a pedra-de-toque da nova “sensibilidade”: 0 dado, na sua singularidade empfrica, desloca a totalidade ¢ a universalidade, suspeitas de “totalitarismo”. ndo: da tese conforme a qual, a partir da) deste século, exauriu-se o programa da Modernidade, fundado inista do projeto ilustrado (Rouanet, 1993), configurando-se estrutural, que implicaria a anacronizagio dos | as categorias teGricas) dos objetos socioculturais e dos projetos sociais a eles vinculados; ou seja: de uma parte, terfamos uma “crise de paradigmas”, com a superagio das metanarrativas ¢ das abordagens tedricas calgadas na categoria de totalidade; de outra, estaria colocada a urgéncia de s6 pensar a micropolitica ou de encontrar novos referenciais para a agao sociopolitica (Lyotard, 1979; Santos, 1989 e 1995). O que se poderia chamar de movimento pés-moderno € muito heterogénco (cf., por exemplo, Connor, 1993) e, especialmente no campo das suas inclinagdes polfticas, pode-se até distinguir entre uma teorizagdo pés-moderna de capitulagao e uma de oposigao (Habermas, in Foster, org., 1984; Huyssen, in Hollanda, org., 1992; Foster, in Picd, org.. 1992). Do ponto de vista de seus fundamentos ee pistemoldgicos e tedricos, porém, 0 movimento € funcional & ldgica cultural estatuto da re: esséncia € desqualificada” Sabe-se do que estamos falat segunda metade | no capitulo ilumi uma mutagdo sociocultural padrées de andlise (e das su i t & tebrica pés-moderno dos mais sérios, que nilo pode ser acusado de cumplicidade ‘der a, distingio aparéncia/esséncia um dos. supore do. vchega a vinculé-la. ao “eurocentrismo” ¢ alirma com limpidez que o paradigma A jingdo entre aparéncia € esséncia” (Suntos, 1995: 331). es ee Senn capita ismo | (Jameson, 1984): é-0 tanto ao Ss ExpressGes culturais da ordem tardo-burguesa quanto ao romper com os yetores eriticos da Modernidade (cuja racionalidade os P6s-modernos reduzem, abstrata e arbitrariamente, 4 dimensao instrumental, abrindo a via aos mais diversos irracionalismos). Mas, por essa mesma funcionalidade, a retérica pés-moderna nio € uma intencional mistificagio elaborada por moedeiros falsos da academia ¢ publicitada pela mfdia a servigo do grande capital. Antes, ela € um sintoma das transformagées em curso na sociedade tardo-burguesa, tomadas na sua epidérmica imediaticidade — como Eagleton observou em belo ensaio!, © que os pés-modernos tomam como tareta “criadora” (ou, segundo alguns, “desconstrutora”) & a prépria funciona- lidade fdeo-social da mercadoria e do capitalismo. Essa funcionalidade esté em maré-montante nos anos correntes. A solugao de antigas identidades sociais (classistas), a atomizaciio e a pulverizagao imediatas da vida social, as novas “sensibilidades” produzidas pelas tecnologias da comunicago — tudo isso, mais as transformagdes ja sinalizadas, erodiu 9s sistemas constitufdos de vinculagdo e insergdo sociais. Nao € um acidente, pois, que grupos, categorias e segmentos sociais se empenhem na construgao de “novas identidades” culturais, nem que busquem, desesperadamente, estruturar suas “comunidades”. A “cultural global” (Featherstone, org., 1994) se mo- yimenta entre a produgio/divulgagio/consumo mercantilizados de “artefatos globais” e a incorporacio/consagrago de expressGes particularistas — movi- menta-se entre 0 cosmopolitismo e o localismo/singularismo, entre a indife- renciagdo abstrata de “valores globais” e xenofobias fundamentalistas. Quer no cosmopolitismo, quer no localismo/singularismo, hé uma nftida desqualifi- cagao da esfera ptblica universalizadora: no primeiro, 0 privilégio é conferido a um individualismo de carater possessivo; no segundo, o “direito 4 diferenga” se imp6e abstrata e arbitrariamente (Eagleton, 1993). Nessa cultura, parece vigorar a m4xima segundo a qual “nao hd sociedade, s6 individuos". E por isso que nao parece exagerado concluir que “a revolugdo cultural de fins do século XX pode assim ser mais bem entendida como o triunfo do individuo sobre a sociedade, ou melhor, 0 rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais” (Hobsbawm, 1995: 328). As transformag6es ocorrentes no plano politico sao igualmente notdveis € portadoras de novas problemdaticas, Impactados pelas novas dinamicas eco- 21. “Da polis a0 p6s-modernismo”, in Eagleton (1993). 22, Pense-se na “cultura jovem” e suas “tribos", na “cultura feminina” etc. 23. A frase, como se sabe, € da Sra. Margaret Thatcher. 98 némicas e socioculturais, Estado ¢ sociedade civil da ordem tardo-l -burguesa _ modificam-se nas suas esferas préprias e nas suas relagdes. de maneira crescentemente articulada, encontrando e forjando canais e insti- tuiges para dar forma a seus projetos, as tradicionais expressdes e representagdes das classes e camadas subalternas experimentam crises visiveis (pense-se na dessindicalizagao e nos impasses dos partidos polticos populares e/ou operarios), ao mesmo tempo em que emergem no seu espago “novos sujeitos coletivos”, de que os noves movimentos sociais sio o sinal mais significativo™. Tais movimentos, demandando novos direitos (Bobbio, 1992) e aspirando a am- | pliagSes do estatuto de cidadania — que a melhor tradigéo liberal nao imaginava coexistindo sem tensdes com a estrutura de classes (Marshall, 1967; Barbalet, 1989) —, vém vitalizando a sociedade civil ¢ renovando pulses | democraticas. Na medida, contudo, em que a esses movimentos, até agora, | ‘nfo se imbricaram instancias politicas capazes de articular e universalizar a | pluralidade de interesses e motivagées que os enfibram, seu potencial eman- cipatério vé-se freqiientemente comprometido (inclusive com a recidiva de vincos corporativos). Também o Estado burgués, mantendo o seu cardter de classe, experimenta um redimensionamento considerdvel. A mudanga mais imediata € a diminuigado da sua agio reguladora, especialmente o encolhimento de suas “fungdes legitimadoras” (O’Connor, 1977): quando o grande capital rompe o “pacto” que suportava o Welfare State, comega a ocorrer a retirada das coberturas sociais ptblicas e tem-se 0 corte nos direitos sociais — programa thatcherista gue encama a estratégia capitalista de “redugio do Estado”, num processo de “ajuste” que visa a diminuir os 6nus do capital no esquema geral de reproducio da forga de trabalho (e das condigées gerais da reproducio capitalista). Entretanto, aquela diminuigao, bem definida nas palavras-de- ordem da “flexibilizagao” e da “desregulagdo”, decorre do préprio movimento da globalizagio. De uma parte, a magnitude das atividades planetdrias das poragGes monopolistas extrapola largamente os controles estatais, fundados circunscrigaéo nacional do Estado; de outra, dada a articulagio privada iquelas atividades, torna-se limitada a interven¢do estatal no nivel ma- ; Na sociedade civil, enquanto a oligarquia financeira global se movimenta E f , E f i 2 Dentre a larga bibliografia a cles pertinente, cf. Scherer-Warren © Krischke, orgs. Cardoso (in Almeida © Sor), orgs., 1988), Scott (1990) © Santos (1995). _25. No que toca & natuteza classista do Estado, no vejo alterag6es substantivas no curso. insit “estan ste xa nate, ome ines que ‘ofereci em a ees croecondmico”*. E evidente que o capitalismo tardio nao liquidou com o Estado nacional, mas € também claro que vem operando no sentido de erodir a sua soberania*? — mas € bom assinalar a diferencialidade desta erosao, que atinge diversamente Estados céntricos e Estados periféricos. A desqualificagio do Estado tem sido, como se sabe, a pedra-de-toque do privatismo da ideologia neoliberal”: a defesa do “Estado minimo” pretende, fundamentalmente, “o Estado maximo para © capital” (Netto, 1993: 81); nas palavras de Przeworski (1991: 258), constitui um “projeto histérico da Direita”, dirigido para “liberar a acumulagio [capitalista] de todas as cadcias impostas pela democracia”. Independentemente da viabilidade politica de longo prazo desse projeto®, h4 que constatar que ele conquistou, enquanto satanizagao do Estado, uma ponderdvel hegemonia: desenvolve-se hoje uma “cultura politica” anti-Estado — e ela nao tem sido estranha as relagdes contempordneas entre Estado e sociedade civil. As corporagGes transnacionais, 0 grande capital, implementam a erosio das regulacdes estatais visando claramente 4 liquidagao de direitos sociais, ao assalto ao patrim6nio e ao fundo ptiblico, com a “desregulagio” sendo apresentada como “modernizagio” que valoriza a “sociedade civil”, liberando-a da wtela do “Estado protetor” — e hd lugar, nessa construgio ideoldégica, para a defesa da “liberdade”, da “cidadania” e da “democracia”. E, com freqiiéncia, forcas imediatamente opositivas ao grande capital tém incorporado © antiestatismo como priorizacao da sociedade civil e, também, como demanda democritica, do que decorrem dois fenémenos: 1) a transferéncia, para a sociedade civil, a titulo de “iniciativa auténoma”, de responsabilidades antes alocadas & ago estatal; 2) a minimizagio de lutas democraticas dirigidas a afetar as instituigGes estatais. As implicagdes da incorporagao desse antiestatismo pelas forcas opositivas pode significar nao apenas a politizagao de novos espacos sociais (ou a repolitizagao de espacgos abandonados), mas, ainda, a despolitizagao de demandas democriticas, numa quadra em que — precisamente 26, Atesta-o, por exemplo, o fluxo planetirio de capital meramente especulativo, que nio 6 controlado por nenhuma autoridade monetiria. Recorda Harvey (1993: 154): “... a partir de 1973, o sistema financeiro mundial conseguiu (...) fugir de todo controle coletivo, mesmo nos Estados capitalistas mais poderosos”; ¢ ele estima que, em 1987, 0 mercado financeiro, “sem © controle de nenhum governo nacional”, movimentou quase dois irilhdes de d6lares. 27. “O mundo mais conveniente para os gigantes multinacionais é aquele povoado por Estados andes, ou sem Estado algum” (Hobsbawm, 1995: 276). 28. Sobre o neoliberalismo, enquanto discurso ideolégico ¢ pritica, cf. entre outros, Nunes (1991), Brunhoff (1991), Netto (1993), Sader e Gentili, orgs. (1995) © Laurell, org. (1995). 29, Para apreciagdes diversas dessa viabilidade, cf. Nunes (1991: 510-520), Netto (1993: 50-56, 81-85) e Anderson, in Sader ¢ Gentili, orgs. (1995: 22-23). 100 pelas caracterfsticas das praticas neoliberais f — as lutas pela democracia se fevestem de importancia maior, Em pinceladas muito largas, esse € o perfil com que a sociedade -tardo-burguesa se apresenta na tiltima década do século XX, E, na entrada desta década, esse conjunto de transformagées societérias configurava uma . ‘série inequfvoca de vitérias do grande capital. Do ponto de vista politico, as ‘medidas de “ajuste” © “desregulagao-privatizagao” foram caucionadas por _ Mecanismos eleitorais dotados de legitimidade (Anderson, in Sader e Gentili, _ orgs., 1995). Do ponto de vista fdeo-cultural, contando com a vaga p6s-moderna _ de capitulagao (ou neoconservadora, segundo Habermas), os ganhos nao foram despreziveis — contribuiram para conter e reverter os avangos sociais dos _ anos sessenta e inicios da década de setenta*! e até a proposta socialis _ revolucionaria foi acantonada, posta no bivaque das velharias da modernidade> _E, do ponto de vista econémico, a lucratividade das grandes corporacdes foi recuperada®>. E Essas vit6rias, contudo, nada aportaram de favordvel ou positive — nem | poderiam fazé-lo, ou nao estarfamos mais no quadro do capitalismo tardio — | A “classe-dos-que-vivem-do-trabalho”. Para além de no eliminarem o ciclo | critico da dinimica capitalista (manifestado na crise da bolsa nova-iorquina em outubro de 1987 e na crise internacional do cambio de 1992) e de nao reverterem a curva propria da “onda longa recessiva’™, tais vitérias custaram 30. Esté claro que a luta pela democracia permanece questio fulcral, merecendo atengii especial de pensadores que se situam nas inflexdes da tradigdo liberal (de um Rawls, 1972 a | um Bobbio, 1986, pasando por um Dahl, 1990) a criativos social-democratas (Santos, 1995); | € notério que a bibliografia marxista, na sua heterogeneidade, também vem renovando o debate | da questiio democratica — cf., entre outros, Ingrao (1977, 1978), Mandel (1978), Fernandes (1979), Bahro (1980), Poulantzas (1981), Heller e Feher (1981), Markovic (1982), Lukécs (1987), Coutinho (1980, 1992) © Netto (1990). 31. Navarro (in Laurell, org., 1995: 92-95) assinala as principais conquistas legais do | Movimento operdrio nos pafses capitalistas desenvolvidos, contra as quais viria a levantar-se a “ofensiva neoliberal. E 32. Citando pesquisas de opiniio norte-americanas e inglesas, Navarro (in Laurell, org., 1995: 110 ¢ ss) problematiza a tese de que o reaganismo ¢ 0 tatcherismo teriam ganho hegemonia tas seu argumento me parece polémico, 33. “Se, nos anos 70, a taxa de lucros das indistrias nos paises da OCDE caiu em cerca t 4.2%, ‘nos anos 80 aumentou are Essa recuperagdo foi ainda mais impressionante na ° de mlos negativos para 5.3 pontos positivos” © Gentili, 1995: 15). lickin onan a aan Ocidental como um todo, 34. “Entre ‘05 anos 70 ¢ 80 no houve nenhuma mudanga — nenhuma — na taxa ® muito baixa, nos patses da OCDE” (Anderson, in Sader ¢ Gentili, orgs., muito a fried es oa Pecan Ree » fia le desemprego, que era de 4% nta, duplicou na década seguinte — e, em meados dos anos noventa, chega a cifra absoluta de 40 milhées de desempregados. Custaram, em segundo lugar, compressdes sobre os saldrios daqueles que conseguiram manter seus empregos, derivando no aviltamento do padrao de vida*>. Custaram, em terceiro lugar, um forte ataque aos sistemas piiblicos de seguridade social € &s formas institucionalizadas de coberturas privadas*®. Mas esses custos s6 podem ser devidamente contabilizados se se faz um balango abrangente das duas primeiras décadas da “flexibilizagao” do capitalismo tardio — e, aqui, o que se constata € que a pauperizagao absoluta e a relativa, conjugadas ou nao, cresceram, mesmo que diferencialmente, para a maioria esmagadora da populagéo do planeta (Banco Mundial, 1991). Em sintese, a “flexibilizagio” do capitalismo tardio, levando a “classe- dos-que-vivem-do-trabalho” a defensiva e penalizando duramente a esmagadora maioria da sociedade, nfo resolveu nenhum dos problemas fundamentais postos pela ordem do capital. Mais ainda: diante da magnitude hoje atingida por estes problemas — e expressa em trés dados: “‘o crescente alargamento da distancia entre 0 mundo rico € 0 pobre (e provavelmente dentro do mundo rico, entre os seus ricos € OS seus pobres); a ascensiio do racismo e da xenofobia; e a crise ecolégica do globo, que nos afetard a todos” (Hobsbawm, in Blackburn, org., 1992: 104) —, todas as indicagdes sugerem que 0 capitalismo “flexibilizado” oferecerd respostas dominantemente regressivas, operando na diregio de um novo barbarismo, de que as atuais formas de apartheid social so premonit6rias. Entretanto, a presente reestruturagao do capitalismo, com as transformag6es societarias que estio em curso na sociedade tardo-burguesa, peculiarizando-a no marco histérico do capitalismo, segrega novos vetores de colisdo, contradi¢ao e antagonismo — e a velha toupeira de que falavam os classicos dificilmente deixaré de fazer o seu trabalho subversivo: aqui e acold, seja na calorenta Los Angeles de 1994 ou na gélida Paris de dezembro de 1995, os sismégrafos do capital comegam a registrar movimentos suspeitos. Precisamente porque 35, Dados sobre os Estados Unidos ¢ a Gri-Bretanha slo fornecidos por Navarro (in Laurell, org,, 1995: 110 © $5); sobre a América Latina, por Borén (in Sader e Gentili, orgs., 1995: 82 e ss); sobre outras direas, por Hobsbawm (1995: 395 ¢ ss). 36, Referencias sobre os primeiros encontram-se em Mota (1995: 117 © ss); quanto as segundas, veja-se 0 exemplo, um entre dezenas, da assisténcia médica aos novos trabalhadores ‘americanos (Navarro, in Laurell, org., 1995: 114). 102 aquelas transformagies se dio sob 0 comando do capital, a partida ainda dista muito de um resultado decisivo. ee ee en BASEN Cedi conexas, ndo escapa a Sociedade eaainie Beis Sorc que Beerone sociedade participa da inflexio ne i refragGes derivadas, em primeiro lugar, da sua condigaio perif€rica ©, em segundo, do préprio nfvel de desenvolvimento e articulagao das suas relagGes capitalistas. Numa palavra, as_transformagdes Societarias que acabamos de mencionar processam-se no Brasil mediadas pela insergdo subalterna do pais no sistema capitalista mundial (Gongalves, 1994: 123'e ss) © pelas particularidades da sua formagio econémico-social’”, Con- Seqiientemente, € falacioso transpor diretamente os processos ocorrentes nas dreas céntricas do sistema para as nossas latitudes tropicais. Na primeira metade dos anos oitenta, a derrota da ditadura do grande capital, instaurada em 1964, bem como a faléncia do seu “modelo econdmico”™, nao implicou a quebra da dominagao burguesa; marcou, antes, a emersio de um projeto de hegemonia, patrocinado por um compésito consércio de re- presentantes do capital. Talvez como em nenhum outro momento menos recuado da nossa histéria, segmentos burgueses revelaram-se pretendentes nao 86 & dominagio, mas 4 diregdo da sociedade brasileira. Todavia, dois condi- cionantes limitavam essa pretensdo: de um lado, # propria natureza da nossa burguesia, associada e servil ao capital estrangeiro e, sobretudo, a sua notavel rapacidade, responsdvel por uma estreiteza e uma mesquinhez de classe quase insuperdveis: de outro, a forga das aspiragdes democraticas de amplos setores populares (com a ponta do proletariado a frente), liberadas apés vinte anos de opressio e repressio. Ademais, a gravidade do legado econémico-social da ditadura — a famosa “dfvida social”, na expressao do licido conservador Tancredo Neves — problematizava, nas condigdes referidas, um projeto de hegemonia que pouco concederia aos que Florestan Fernandes chamava “os de baixo”, As decepgGes com a “transi¢do democrdtica” — que, em meio a depressao que vinha de 1982, nao se traduziu em ganhos materiais para a massa da populacio, conduzindo & perda da capacidade de imantagio das vanguardas populares —, a reconcertagiio dos interesses do grande capital, a forga inercial 37. Entre todos aqueles que buscaram estudar essas particularidades (Caio Prado Jt., Nelson Werneck Sodré, Octavio lanni, Celso Furtado, Francisco de Oliveira, para citar alguns), _ deyemas a Florestan Fernandes a interpretagiio seminal (Fernandes, 1975). _ 38. Para uma aniilise da ditadura ¢ seu “modelo”. apoiada em larga bibliografia, remeto Netto (1994: 15-112). 103 do conservadorismo da sociedade brasileira, mais os condicionantes macroe- condmicos do capital transnacional e os vetores fdeo-culturais da ofensiva neoliberal em escala mundial logo recompuseram o contexto capaz de revigorar © projeto de hegemonia sinalizado no inicio da década. Assim, o ordenamento constitucional de 1988 — manifestagiio da anterior densidade das aspiragGes democraticas — viu-se logo colocado na contracorrente: j4 desde o capitulo aventureiro (mais para a cronica policial que para a resenha polftica) de Collor de Melo, a Constituigio de 1988 tornou-se o alvo do grande capital. E, no rastro da derrota eleitoral de 1989, que confundiu as forgas democraticas, € da curva descendente da organizagiio e da mobilizagdo populares, em meados dos anos noventa o projeto hegemGnico burgués péde avangar — a eleigdo de Fernando Henrique Cardoso é um sinal inequfvoco do seu éxito fdeo-politico —, integrando propostas econémico-sociais da agenda neoliberal. A particularidade brasileira, contudo, impde & face desse projeto feigdes singulares, Nao ha, aqui, um Welfare State a destruir; a efetividade dos direitos sociais € residual; nio hd “gorduras” nos gastos sociais de um pafs com os indicadores sociais que temos — indicadores absurdamente assimétricos capacidade industrial instalada, 4 produtividade do trabalho, aos niveis de desenvolvimento dos sistemas de comunicagio e 4s efeti demandas e possibilidades (naturais e humanas) do Brasil*?. Aqui, um projeto burgués de hegemonia nfo pode, com a rude franqueza da Sra. Thatcher, incorporar abertamente a programatica compativel com a “desregulagao” e a “flexibilizagao” — ele deve travestir-se, mascarar-se com uma ret6rica nao de individualismo, mas de “solidariedade”, nio de rentabilidade, mas de “competéncia”, nfo de reducdo de coberturas, mas de “justiga’”. E por mais que suas praticas estejam dirigidas & “desregulagdo” e “flexibilizagao”, seu escamoteado neoliberalismo também deve ser matizado — ao contrério da desfagatez de um Felipe Gonzalez e da truculéncia de um Salinas de Gortari e um Carlos Saul Menem, © sociélogo-presidente social-democrata vem exercitando um “neoliberalismo light” (tomo a expressio de Luis Fernandes)*°. 39. Um historiador de estilo reconhecidamente s6brio refere-se a0 Brasil, reiteradamente, pe “monumento de injustiga social", “monumento a negligéncia social” (Hobsbawm, 1995: 97, 555). 40. E bom nio esquecer que, na década de oitenta, foram precisamente social-democratas curopeus os eficientes aplicadores das medidas de “ajuste”, como o testemunham as gestdes de Gonzalez, Mitterrand (depois de 1983) © Papandreou (depois de 1985). Observa um Iicido analista: “Toda tentativa de identificar na social-democracia européia a portadora de uma alternativa econdmica ao laissez-faire € desmentida pelo papel central desempenhado pelos Partidos da Segunda Internacional nesse ‘avango neoliberal’... O curriculo das ‘euro-socialistas’ no poder tem sido uniformemente negativo” (Callinicos, 1992: 106). 8, aqui na América Latina, © exemplo de um Carlos Andrés Pérez & de meméria recente. § 104 Esse projeto de hegemonia est4 longe da consolidagio. Por uma parte, encontra ponderdveis resisténcias no interior mesmo do campo do capital e da propriedade; por outra, as reformas “modernizadoras” que se prop6e a implementar chocam-se com interesses democratico-populares (e, ainda, com interesses fortemente corporativos e mesmo de setores po) identes). Tudo indica que, como projeto patrocinado pelo grande capital, a médio prazo onerara ainda mais a maioria da populagio. Se essa avaliagao ¢ procedente, pode-se também supor que se trata de um projeto fortemente passfvel de reversio. Mas a sua viabilidade atual mostra que a sociedade brasileira esta sintonizada com os rumos “flexibilizadores” do capitalismo (ardio. E qualquer que seja o seu desdobramento (naturalmente condicionado pelo quadro mundial), esse projeto hipotecard significativamente o futuro do pais Mencionamos a sintonia brasileira com a reestruturagao as reservas decorrentes das observagdes anteriores, € indiscutivel a distancia entre a nossa configurag%o societéria e aquela da ordem tardo-burguesa do capitalismo céntrico. Entretanto, e sem dualismos — antes, numa verdadeira simbiose —, tracos especificos e determinantes da ordem tardo-burguesa estao se incorporando rapidamente & nossa vida social, e de forma tal que passam a ser crescentemente relevantes. Nio ocorre aqui a oswaldiana antropofagia: niio é o “atraso” nacional que deglute o “moderno” —- sdo os vetores sor Larios tardo-burgueses que vio refuncionalizando e subsumindo o “tradicional”. A internalizagao das grandes corporagdes transnacionais no espago socioecondmico brasileiro; as reestruturagdes dos conglomerados nacionais; o intercambio econdmico e cientifico-tecnolégico com o mundo “globalizado”; as diferen- ciagdes na polarizada estrutura de classes; uma indtistria cultural muito bem estruturada e monopolizada, dotada de uma midia eletrénica com cobertura (espacial e social) inclusiva — tudo isso poe a sociedade brasileira no patamar tardo-burgués. Aqui, a constituigio da ordem tardo-burguesa ndo se apresenta, nem se apresentard, tal como nas sociedades céntricas em que se desenvolve primariamente — sua configuragao se estrutura sem que haja a evicgio do “atraso” e do “tradicional”; estrutura-se como ordem tardo-burguesa periférica. b ; Tudo isso quer dizer que, entre nds, as transformagdes societérias em ‘curso no capitalismo tardio que se “flexibiliza” vio se processar combinando suas seqiielas especfficas com a cronificagio daquelas que marcaram a “modernizagtio conservadora” operada pela ditadura do grande capital e nao | sentio agravadas subseqiientemente. Nessa angulagdo, para a sociedade ‘ingresso no patamar tardo-burgués significa que a “divida social” se com. as implicagGes altamente negativas que a “flexibilizagac tem acarretado para os mais amplos contingentes popu i apitalista, Com todos os quadrantes em que se efetiva. Significa, em suma, que enfrentaremos, no curto e médio prazos, um cenario econémico € sociapolitico nada favoravel — mas tendencialmente o tinico que nos reserva a insergao, sob a hegemonia burguesa, no mundo “globalizado” pelo capital. 2. O Servico Social no Brasil na entrada dos anos noventa Na entrada da década de noventa, o Servigo Social se apresenta no Brasil como uma profissao relativamente consolidada. No plano da formagio (com um curriculo minimo nacional e legalmente inserida no nfvel superior), cerca de setenta unidades de ensino estavam em funcionamento ¢ poucos estados da Federagdo nio contavam com escolas de Servico Social*!, A pés-graduagao em sentido estrito, implantada na primeira metade da década de setenta, encontrava-se afirmada em sete universidades*” e, em sentido lato, registrava experiéncias importantes. Uma instituigao cre- dibilizada, a ABESS*3, renovara-se como foro expressivo dos debates sobre a formacdo profissional e procurava animar, desde 1987, um organismo académico de pesquisa (0 Centro de Documentagao e Pesquisa em Servigo Social ¢ Politicas Sociais/CEDEPSS). Do ponto de vista da chamada produgio cientifica, o Servigo Social — que agéncias oficiais de fomento ja reconheciam como 4rea apta a receber recursos para a investigagéo — mostrava um dinamismo estimulante: nao sé tinha na academia um espago efetivo de elaboragio“, como jd dispunha de 41. A distribuigio das escolas é irregular, com evidente concentragio na regifio sudeste. Releva notar que pouco mais de um tergo dos cursos (oferecidos por escolas, faculdades ou departamentos) insere-se nas instituigdes de ensino superior pubblicas —~ dado importante, uma vex que, entre nés, ¢ ensino superior privado na drea das Cigncias Humanas ¢ Sociais nfo passa, com honrosas excegbes, de indisfargada atividade comercial (0 que nto significa, obviamente, que 6 ensino pablico seja, por esta simples condiga0, exemplar). 42, Quatro universidades piiblicas (UFRJ, UFPE, UFPB ¢ UnB) ¢ ués privadas, da rede catélica (PUC-RJ, PUC-SP ¢ PUC-RS). 43. A Associagio Brasileira de Ensino de Servico Social (originariamente, Associagio Brasileira de Escolas de Servigo Social) fora criada na segunda metade dos anos quarenta. 44, Pesquisa ainda em andamento, apoiada pelo CNPq © coordenada, pela Dra. Nobuco Kameyama (UFRJ), levantando todas as dissertagées de mestrado € teses defendidas, entre 1974 ¢ 1994, nas instituigdes citadas na nota 42, encont quais 47 em nivel de doutorada), assim distribuidos segundo seus obj 19; cidadania, democracia e direitos sociais: 3; crianga ¢ adolescente: 106, j wh ae : uma bibliografia prépria, alargada num fluxo constante, blica i i Ft iversitéri Gam periods meer crosunts voce cea io 3 ais de uma década (como se sabe, Servigo Social & Sociedade existe desde 1979). EB mais: alargou-se a demanda, pelo exterior, da presenga de profissionais beasts oo agoes de formaciio e eventos académicos ¢ seus textos encontraram divulgagao além-fronteiras; profissionais estrangeiros (notadamente da América Latina) aumentaram a sua freqiiéncia nos nossos cursos de pés-graduagio e agéncias nacionais de formagio estenderam, institucionalmente, a sua influéncia a outros pafses*®, Por outro lado, a drea de Servico Social abriu-se a amplo didlogo interdisciplinar, promovendo a interlocugio com importantes teéricos € intelectuais do pais e do exterior’. © mantinha, além de Também a corporacao profissional, com um contingente estimado em mais de sessenta mil (60.000) assistentes sociais, registrava ganhos quer na sua representag3o junto aos organismos estatais — com a dinamizacio dos seus Conselho Federal e Conselhos Regionais —, quer na sua experiéncia associativa enquanto vendedora de forga de trabalho (Abramides e Cabral, 1995). Ganhos expressos claramente na regularidade, representatividade e abrangéncia de seus grandes encontros nacionais, os Congressos Brasileiros deficiéncia e doengas mentais: 8; desenvolvimento de comunidade: 31; formagdo profissional: 97; género ¢ familia: 48; hist6ria do Servigo Social: 32; instrumentos e técnicas profissionais: 23; movimentos sociais: 61; politica social: 70; processos socioculturais: 28; processo de trabalho: 45; pratica profissional: 133; realidade sociaV/condigdes de vida de usudrios: 23; sade: 16; teoria ¢ método profissionais: 45; terccira idade: 15. Esses dados esto sendo objeto de aniilise ¢ qualquer inferéncia, feita agora, é muito provis6ria; de qualquer forma, é de notar 0 peso das preocupagées com a “internalidade” do Servigo Social: 230 trabalhos (31% do total) incidem sobre pritica e formagiio profissionais; se a eles agregacmos os referidos a histéria profissional (42), teoria e método (45) ¢ instrumentos ¢ técnicas (23), a cifra chega a 330 (44,5% do total. 45. Nesse imbito, salvo erro, 0 papel pioneiro coube ao Programa de Estudos Pés-Graduados em Servigo Social da PUC-SP, que firmou convénios com instituigdes portuguesas e argentinas. ‘Mais recentemente, o Programa de Pés-Graduagio em Servigo Social da UFRJ seguiu a mesma via, firmando convénios com a Universidad de la Republica (Uruguai). 46. Atualmente, esse didlogo interdisciplinar esté muito desenvolvido na maioria dos ‘programas de pés-graduagio; alguns deles, alids, em promogdes conjuntas ou nil, jf trouxeram "a0 pais, para o debate com profissionais de Servigo Social, figuras como Michael Lowy, Jean -Lojkine, Robert Castel, Agnes Heller ¢ Ferenc Feher. Creio que se deve destacar, também sa "6 papel importante desempenhado pelo Programa de Estudos Pés-Graduados em Scrvigo Social PUG-SP que, j4 na década de setenta, oferecia uma formagiio que contava com a contrit 7 ea poe Femandes, Octavio lanni, Evaldo A. Vicira ¢ Mauricio Tragtenberg: E ge de Assistentes Sociais (CBAS), que vieram num crescendo desde 0 terceiro (1979), culminando no mais recente, 0 oitavo (1995)*7. a que nao é estranha a politizagio progressista da vanguarda da categori evidente no ocaso da ditadura militar instaurada em 1964 — tem seu marco mais saliente na contribuigdo oferecida pelos assistentes sociais quando dos debates, na entrada da década de noventa, para a elaboragio da Lei Organica da Assisténcia Social (LOAS), processo no qual, por meio de suas entidades Fepresentativas e de alguns de seus investigadores mais Operosos, a categoria profissional ofereceu um ponderdvel aporte 4 sociedade brasileira. Este cenario do Servigo Social no Brasil, na passagem dos anos oitenta a0s noventa, mesmo que tragado — como aqui — impressionisticamente, é revelador dos avangos aleangados pela profissio, num empenho que pode ser fastreado ainda na inicial militincia dos grupos catdlicos que, na segunda metade da década de trinta, trouxeram o Servigo Social ao pais E também, contudo, um cendrio carregado de questées e problemas — herdados, uns ¢ outras, do passado recente, mas ainda uns € outras novos ¢ emergentes; todos, porém, exprimindo a propria insercio do Servigo Social na malha das concretas relagdes da sociedade brasileira. A primeira questdo que ressalta, na probleméatica atual da profissio, refere-se A sua legitimidade social. Ji em 1981, Ilamamoto demonstrava que a “crise de legitimidade” do Servigo Social consistia na assimetria da sua demanda por parte das classes sociais fundamentais: a profissio, caucionada pelas classes dominantes em fungao do seu conservadorismo (politico, mas igualmente teérico e operativo), nio contava com a mesma caugao por parte dos seus usuarios, inseridos majoritariamente nas classes e camadas subalternas (amamoto, 1992). Decorridos quinze anos dessa anal ise, os termos da questiio foram alterados — mas o problema permanece em aberto. Se amadureceu, no campo profissional, um vetor de ruptura com o conservadorismo*8, ele ainda nao consolidou uma “nova legitimidade” para 0 Servigo Social junto as classes subalternas; de outra parte, em dreas de intervengio em que tradicionalmente 0 Servigo Social aparecia legitimado para os representantes do capital e do Estado, surgem outros profissionais que disputam papéis ¢ 47. Cabe notar que os estudantes de Servigo Social tém tido um papel relevante no movimento profissional, inclusive articulando um organismo de carter nacional, a Secretaria de Servigo Social da Unitio Nacional dos Estudantes (SESSUNE). 48. Remeto o leitor & andlise que fiz, noutra ocasizio, acerca da perspectiva da “intengdo de ruptura” (Netto, 1994). 108 com Os assistentes Sociais, pondo em xeque a legitimidade anteriormente (€ j4 questionada Por aqueles representantes na medida em que, no Social, o conservadorismo perdia espagos). E claro que os conflitos atribuigdes af localiziveis (pense-se nas “fronteiras profissionais” contem- leas € praticas entre Servigo Social e, por exemplo, Psicologia Social, iologias Aplicadas, Administracio de Recursos Humanos e Educagiio) nao lem ser equacionados a base de regulagdes formais ou reivindicagdes | Corporativas. Absolutamente compreensiveis na dindmica da divisdo sociotécnica | do trabalho, eles s6 podem ser enfrentados positivamente com o desenvolvimento ‘de novas competéncias, sociopoliticas e teérico-instrumentais. £ nessa dupla dimensio-que se podem Promover (re)legitimagdes profissionais, com o alar- gamento do campo de intervengio (“espago profissional”) das profissdes. Ora, novas competéncias remetem, direta mas nao exclusivamente, @ pesquisa, & produgao de conhecimentos e as alternativas de sua instrumen- talizagGo — e, no caso do Servigo Social, isso quer dizer conhecimento sobre a realidade social*?, Os avancos e 0 actimulo realizados no Servigo Social, até a entrada dos anos noventa, foram, neste dom{nio, enormes™; porém, siio ainda flagrantemente débeis em face das novas realidades societérias e mesmo da prépria extensio das praticas profissionais. Além disso, a categoria profissional naio dispde de Suficientes canais e circuitos que operem uma efetiva socializagiio de tais avangos — o que tem contribudo para alargar, numa escala Preocupante, a distancia entre as vanguardas académicas e a massa dos profissionais “de campo”. Entretanto, o que € central na articulagéio das novas competéncias aludidas reside nos seus pardmetros teéricos e ideo-politicos (que, igualmente, Tebatem no plano da formagio) — a eles me teferirei adiante. As novas competéncias passam, incontornavelmente, pela formagao pro- ional — e, aqui, os problemas (que extrapolam as imprescindiveis deter- inagOes técnicas) estéo longe de um enquadramento satisfatério, como o 49. Conhecimento que, nas palavras de Iamamoto, no mesmo texto de 1981, obter-se-ia “enriquecimento do instrumental cientifico de andlise da realidade social e oacompanhamento da dindmica conjuntural” (lamamoto, 1992: 37), Escapa inteiramente aos limites deste artigo mesmo que uma simples listagem desses no expaigo académico (cf. nota 44). Cabe apenas lembrar que af Prova, alids, o longo debate que, dinamizado unidades de ensino mais atuantess!. A questo da forma gO remete, obviamente, & Politica nacional de educagio — que ultrapassa © protagonismo dos profissionais de Servigo Social pela ABESS, tem envolvido as da instituigao © pela permanéncia de tragos herdados da ditadura (0 buracratismo, o Parasitismo, concepgdes atrasadas e/ou inoperantes da relagdo ensino-pesquisa-extensio. ) € outros gestados NOS anos oitenta (o “populismo académico”, 0 corporativismo); mesmo assim, nela as condigdes de trabalho sio em geral menos constrangedoras que as da maioria absoluta das escolas da rede privada, nas quais a légica que opera € a da pura rentabilidade capitalista®?. No entanto, esta claro que 0 protagonismo docente dos assistentes sociais vem endo problematizado, dentre um amplo leque de condicionalismos, por dois fenémenos cujas natureza ¢ requerem acurada consideragio: 1) uma perceptivel mudang: condmico da massa do alunado, cada vez mais recrutada em estratos médio- baixos e baixos das camadas urbanas; 2) um visivel empobrecimento do universo cultural do alunado. Os dois fenémenos, que nio se conectam obrigatoriamente por uma relagdo causal, ndo afetam exclusivamente ao Servigo Social; mas, na nossa profisso, ganham enorme ponderagio: sio concomitantes a exigéncia de maior qualificag’o intelectual e cultural, derivada da propria consolidagiio académica do Servigo Social — esta posta, af, uma contradigao que nao ser facil solucionar com éxito. Quer-me parecer que o perfil econédmico-social e cultural deste “piiblico-alvo” — sem esquecer o dos docentes mesmos, nem sempre distinto — é um elemento de excepcional importancia a ser levado em conta no enfrentamento da problemiatica da formagao. implicagdes ‘a no perfil socioe- No campo da chamada pratica profissional, se as conquistas foram expressivas, também 0 sido os impasses. A efetiva existéncia de um mercado nacional de trabalho (seja no dmbito jé tradicional d instituigdes governa- mentais, seja no plano das instituigdes privadas e, mais recentemente, das “organizagdes nado-governamentais”), crescentemente diferenciado em todos os niveis — ¢ a que nao tem correspondido formagio especializada —, certamente tem propiciado experiéncias inovadoras e fecundas; no entanto, a visibilidade 51. As dificuldades que tém cercado 0 “processo de revisio/reforma curricular” sio facilmente detectiveis nos eventos preparatérios ¢ na documentagao produzida para a XXIX Conyengiio Nacional da ABESS, realizada hi pouco (1995) em Recife. 52. B, em qualquer caso, o trabalho docente vem limitado pelo lamentivel quadro do ensino fundamental donde provém o alunado. 110 is & ao Ad aan Tee Tian cee conexdes entre centros viabilizar inovagSes, bem como z sua fehsal ey nie ae rs cui, & incesvel tr imentagao pela realidade das p A gavel um mitituo desconhecimento*3. De outra, em fungao do anterior, as novas demandas (potenciais e/ou reais, postas | Seja pelas transformagGes societarias, seja pelas alteragdes politico-institucionais) | sfo enfrentadas pelos profissionais em condigées freqiientemente desfavordveis: seguros pelas fragilidades da sua formag’o (ou por causa de uma formag3o “que nao responde a realidade em que se inserem), desmotivados pelas baixas remunerac6es, pressionados pela concorréncia de outros profissionais (aparen- temente mais “seguri mais “legitimados”), condicionados ainda por um Jastro conservador em relagio aos seus papéis e atribuigdes — por isso e muito mais, € fregiiente uma atitude defensiva e pouco ousada dos assistentes sociais em face das novas demandas, o que acarreta a perda de possibilidades de ampliacdo do espago profissional. Falta acrescentar um elemento crucial a essas breves consideragée: necessariamente esquemiticas e incompletas, para que fique esbogado o cenario \ do Servigo Social no Brasil na entrada dos anos noventa: trata-se dos pardmetros {deo-politicos e teérico-culturais de mais forte presenga no campo profissional. A década de oitenta consolidou, no plano fdeo-polftico, a ruptura com 0 hist6rico conservadorismo do Servigo Social. Entendamo-nos: essa ruptura nao significa que 0 conservadorismo (e, com ele, 0 reacionarismo) foi superado no interior da categoria profissional; significa, apenas, que — gragas a esforgos que vinham, pelo menos, de finais dos anos setenta, e no rebatimento do movimento da sociedade brasileira — posicionamentos ideolégicos e politicos de natureza critica e/ou contestadora em face da ordem burguesa conquistaram ‘legitimidade para se expressarem abertamente. FE correto afirmar-se que, ao final dos anos oitenta, a categoria profissional refletia o largo espectro das | tendéncias ideo-politicas que tensionam € animam a vida social brasileira. ‘Noma palayra, democratizou-se a relagio no interior da categoria € legitimou-se _0 direito a diferenca tdeo-politica, Nunca sera exagerada a significagio dessa |‘ conguista, num corpo profissional em que o doutrinarismo catélico inseriu, _originariamente, uma refinada ¢ duradoura intolerdncia. 53. de toda a preocupagiio com a “priitica”, pouco se tem elaborado no. sentido se pestianss das prdticas Sroneainals ‘no mercado de trabalho. Os ¢sforgos feitos “diegio — investigagées como a tealizada em Vitra (ES) pela Profa. Rach) a je que resultou uma tese de doutoramento Gentili, 1994), ou pesquisas atualm “ ES a PvMP ARS Re a ML TR RE Entretanto — € 0 fendmeno é compreensfvel, quer pelas condigdes gerais da derrota da ditadura e, na seqiiéncia, pelo avanco democratico no pais, quer pelas caracterfsticas do corpo profissional —, na imediaticidade das expressdes da categoria, a magnitude dessa ruptura foi hiperdimensionada. A dindimica das yanguardas profissionais, altamente politizadas, ofuscou a efetividade da persisténcia conservadora: quem quiser apreender 0 perfil ideo-politico da categoria examinando as mogdes e resolugdes dos congressos da década de gitenta certamente ter o retrato de um exército militante de combatentes anticapitalistas... Nada mais distanciado da realidade: 0 conservadorismo nos meios profissionais tem raizes profundas e se engana quem o supuser residual. A legitimidade alcangada para a diversidade de posigdes esta longe de equivaler & emergéncia de uma maioria politico-profissional radicalmente democritica ¢ progressista que, para ser construfda, demanda trabalho de largo prazo e conjuntura sécio-histérica favordvel. A consolidagio da ruptura com o conservadorismo — entendida no sentido aqui circunscrito — favoreceu a renova tedrico-cultural da profissio. Se nao ha simetria entre uma e outra, a sua conexdo é inegdvel: a primeira desobstruiu a via para a segunda. E esta, no curso dos anos oitenta, na maturagao do que, noutra oportunidade, designei como “intengdo de ruptura” (Netto, 1994), foi um dos principais suportes para a sélida insergao do Servigo Social na academia. Creio que um ponto é pacffico: a década de oitenta assinalou a maioridade do Servigo Social no Brasil no dominio da elaboragao tedrica. Nesse decénio, desenvolveu-se, no interior da categoria, uma “divisio de trabalho” (uma especializagio) que € prdpria das profissGes amadurecidas: a criagdo de um segmento diretamente vinculado 4 pesquisa e 2 produgdo de conhecimentos. Constituiu-se uma intelectualidade no Servigo Social no Brasil, que passou a ser o vetor elementar a subsidiar o “mercado de bens simbdlicos” da profissao. Foi caracterfstica desse mercado a circulagio de produgées brasileiras — nao € de menor importincia, no perfodo, a diminuta difusdo de literatura profissional estrangeira™. E, nesse mercado, foi dominante a produgao influenciada pela tradigao marxista (nas suas mais diversas vertentes). No curso dos anos oitenta, a tradigo marxista se colocou no centro da agenda intelectual da profissdo: todas as polémicas relevantes (0 debate sobre formagado profissional e sobre teoria e metodologia, sobre Estado e movimentos sociais, sobre democracia 54. & processo a investigar com cuidado as perdas e os ganhos derivados. da reduzida divulgagiio entre nés, na década de oitenta, de material profissional produzido no exterior, M12 i fania Sobre politicas sociais ¢ assisténcia) foram decisivamente marcadas ‘Pensamento marxista. Ao fim da década, apenas para mencionar alguns Sbvios, tinha-se uma referéncia claramente marxista em obras que am a aniilise da polftica social (Faleiros, 1980), a compreensio do nificado social da profissio (lamamoto, in Iamamoto ¢ Carvalho, 1982), avaliagao da reconceituagdo e uma tematizagio da “transformagao social” valho, 1984), bem como o exame da problematica metodolégica (Vv. Aa., 9). Para além da referéncia direta, a tradigdo marxista rebateu forte em tos que se tornaram material de base na formagao profissional, como é 0 o da produgio de pesquisadores da PUC-SP (Sposati et alii, 1985; Sposati, | 1988); e em livros que renovaram a leitura da histéria do Servico Social | (Martinelli, 1989). E inteiramente fundado, pois, considerar que, nos anos oitenta, sem prejufzo da existéncia de perspectivas alternativas e concorrentes®, foram os influxos da tradigio marxista que deram o tom ao debate profissional®®, Essa dominincia dos influxos da tradigio marxista — a que nao era alheio o didlogo privilegiado entretido com a Economia Politica, a Sociologia ‘Critica e a Filosofia — contribuiu fundamentalmente para outras duas notas caracteristicas da década: a valorizagao da elaboragio teérica (a antes mencionada | maioridade intelectual do Servigo Social) e a interlocugao dos seus protagonistas, na condi¢gao de parceiros, com outras dreas de conhecimento — a intelectualidade profissional desenvolveu a sua audiéncia para além dos limites da categoria. Ao mesmo tempo, e explicavelmente, aquela dominancia centralizou a cultura profissional no interior da academia. Por essas razGes, a dominancia das correntes profissionais inspiradas na | tradigdo marxista ganhou uma credibilidade tao forte que seus oponentes foram | compelidos a uma extrema cautela defensiva; a resisténcia 4 tradigdo marxista, indamente arraigada em ponderdveis segmentos da categoria, nao se reduziu — simplesmente ndo encontrava condigdes para manifestar-se franca e aber- nente. E para isso colaboravam, e com vigor, os vetores ideo-politicos que, categoria, jogavam contra o conservadorismo, construindo uma cultura fissional politizada a esquerda. Na virada da década, contudo, as bases dessa domindncia teérico-cultural gam a ser deslocadas. Multiplos, e de natureza variada, sio os elementos € concorrem Para esse deslocamento: o impacto, nas esquerdas, do colapso piri ento -edesdobramentos das linhas-de-forga teérico-profissionais que também para. eam, dessas linhas, cf, Netto (1994: 164-249). 4 ae beast ssional de toda a década de oitenta tenha sido a 0 ¢ Carvalho (1982). do “socialismo real”; a ofensiva neoliberal; a reconversio (condicionada pelos dois componentes anteriores), no exterior e no pafs, de numerosos intelectuais a0 idedrio da ordem; os giros no processo politico brasileiro etc, Mas, muito especialmente, conta nesse deslocamento a inflexdo que se registra nos meios aeadémicos com a maré-montante da pés-modernidade (notadamente em sua Yersao neoconservadora): é no préprio espago — universitério — em que aquela dominincia se afirmara que emergem os elementos que operam para desqualificé-la. E, muito rapidamente, a desqualificagdo comega a ganhar corpo: © racionalismo dialético € posto sumariamente no mesmo nfvel da razio miserdvel positivista, e ambos sao inapelavelmente impugnados como “para- digmas” anacrénicos; 0 humanismo marxista 6 acoimado de “eurocéntrico”; a perspectiva da totalidade (bem como a anilise sistematica que € seu coroldrio) € equalizada 4 “vontade totalitdria”; a preocupago com a dindmica histérica € infirmada pela atencdo as “continuidades profundas”; a énfase na macroscopia social € catalogada como discurso generalizante...57 Do ponto de vista dos parametros tedricos, 0 que € saliente, no Servigo Social no Brasil, na entrada dos anos noventa, € 0 fato de se registrar a emergéncia da critica formal as correntes marxistas no campo profissional. Dada a relevancia destas nos desenvolvimentos da década passada, a critica, todavia, nao se apresenta como antimarxista; antes, cla se realiza sob duas formas principais, aliés complementares: 1) uma critica & ortodoxia (que, para 9s criticos, € sindnimo de dogmatismo) dos marxistas brasileiros no Servigo Social; 2) uma critica as lacunas (e nado aos equivocos®’) existentes nos seus trabalhos. No primeiro caso, a critica se dirige no sentido de “ampliar’, “abrir”, “flexibilizar” a perspectiva teérica, incorporando os autores que sejam do gosto do critico (Habermas para uns, Foucault para a maioria) e as tendéncias mais prestigiadas e mais up to date nos circulos académicos e na indGstria cultural (os pés-modernos). No segundo, constatando-se que a ela- boragdo dos anos oitenta nado lavrou sobre um amplo rol de objetos (questdes de género, de cultura, de minorias etc.), insinua-se que isso se deve a uma espécie de inépcia imanente as correntes marxistas para enfrentd-los. E nio 57. O deslocamento referido antes é também claro quando se consideram as disciplinas {e, mais que elas, as suas correntes) que passam a constituir entiio os principais interlocutores do Servigo Social: parcelas da Antropologia, a “Nova Hist6ria” e vertentes das Psicologias. Especialmente certas tendéncias da Psicologia Social comegam a rebater fortemente na claboragiio Profissional — veja-se, por exemplo, como a nogdo de representagdo (competentemente criticada, alias, por Crochik, 1994) vem ganhando corpo no debate profissional mais recente. 58. Nao 6 esta a ocasitio para avaliar a qualidade da produgtio dos marxistas brasileiros no Servigo Social — cla também marcada por uma problemética que envolve simplismos, ecletismos, interpretagdcs vulgares etc. = Rpaiengetars 114 im, nos dois casos, um tratamento caridoso aos marxistas, tratamento Senerosamente se dispensa aos habitantes do Jurassic Park, 3. Perspectivas imediatas, mercado de trabalho e tendéncias de desenvolvimento Quando se consideram as caracterfsticas estruturais da sociedade brasileira © sua modalidade de insergdo no sistema capitalista comemporfineo, independente dos rumos politicos imediatos, verifica-se que a demanda objetiva de uma profissdo como o Servigo Social nao tende a se contrair, A dinamica das telagdes capitalistas no marco nacional (periférico ¢ heteronémico), as imy cagoes da brutal concentragio da propriedade e da renda, os padrdes arraiga- | damente estabelecidos de inclusio/exclusio social, os profundos impactos de uma urbanizacao veloz e inteiramente descontrolada, a ruptura acelerada de | telagGes familiares tradicionais, o perfil demografico do pafs, a necessidade | de mecanismos de cobertura e protegdo macro e microssociais em larga escala | — tudo isso concorre para constituir um quadro societario que, objetivamente, -garante €spagos aos assistentes sociais, quer operem com “o paradigma das Ges interindividuais”, quer trabalhem com “o paradigma das relagdes de rea, poder e exploracao” (Faleiros, 1993; 126 e ss). E evidente, porém, que egemonias politicas diferentes, concretizando projetos sociais diversos no nacional, direcionarao distintamente 0 processo social brasileiro e andardo diferenciadas perspectivas e estratégias de agiio profissional. ida e da sua maior ou menor compatibilidade com a hegemonia vier a afirmar-se e/ou da sua funcionalidade em relagio as a-hegemonias” que puderem se desenvolver. E claro que, se de elaborar respostas qualificadas para as demandas — e essa grande medida, seri aferida em funcio da racionalidade 2 monia que se afirmar —, o Servigo Social pode muito mar-se um exercicio profissional residual, gs mesmo nao é indiferente as hegemonias ee 8 " politica da profissio reside precisamente na articulagiio do seu significado social objetivo com os projetos sociais (postos pela vontade politica dos ‘sujeitos) que nele incidem. Assim, a cultura profissional — principios, valores, objetivos, concepgdes tedricas, instrumentos operativos — joga um papel importante na delimitagdo da compatibilidade entre exercicio profissional e uma dada hegemonia politica. Por isso mesmo, num ordenamento social com fegras democriticas, uma profissaio é sempre um campo de lutas, em que os diferentes segmentos da categoria, expressando a diferenciagiv fdeo-politica existente na sociedade, procuram elaborar uma diregdo social estratégica para a sua profissao. Cabe esclarecer, a essa altura, que (1) a consolidagao de uma determinada diregao social estratégica nio equivale 4 supress’o das diferencas no conjunto da categoria ou a equalizagio dos vetores que compédem a cultura profissional © que (2) se uma diregio social estratégica tem seu nervo num componente ideo-politico, ela esté longe de reduzir-se a ele, envolvendo, necessariamente, o complexo da cultura profissional. Quanto ao primeiro ponto, ha que lembrar que estamos diante de um processo nao de monopélio, mas de luta por hegemonia, de diregao: nao se trata de consagrar identidades cristalizadas, mas de promover unidades dindmicas. Nas condigdes contempor4neas, uma categoria profissional jamais é um bloco identité ou homogéneo — € sempre, sob todos os prismas, um conjunto diferenciado e em movimento. Uma diregio consolidada € aquela que, sintonizada com as tendéncias sécio- hist6ricas mais significativas, circunscreve 0 espago de enfrentamento das diferengas em fungio de objetivos que se fazem reconhecidos como legitimos € pertinentes; nessa Gtica, alias, 6 apenas em face de uma direcio determinada que as diferengas profissionais adquirem sentido. Quanto ao segundo aspecto, € preciso enfatizar que nao basta a uma direcdo social estratégica 6 enunciado do seu horizonte fdeo-polftico; para que esse transcenda o plano da petigio de principio (ou da mera intencionalidade), € necessfrio que se articule congruentemente aos tragos mais determinantes da cultura profissional; se ele carece dessa articulagao ou se, a sua revelia, metamorfoseia-se a cultura profissional, a diregao perde vigéncia, No caso do nosso Servigo Social, o rompimento com o conservadorismo engendrou uma cultura profissional muito diferenciada, prenhe de diversidades, mas que acabou, ao longo da década de oitenta e na entrada dos anos noventa, Por gestar e formular uma diregao social estratégica que colide com a hegemonia Politica que o grande capital pretende construir (e que vem ganhando corpo desde a ultima eleicio presidencial) — diregdo suficientemente explicitada no Cédigo de Etica Profissional em vigéncia desde margo de 1993: direcgio que, 116

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