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Copyright © 2012 das Organizadoras Todos os direitos desta edigdo reservados & Editora Contexto (Editora Pinsky Leda.) Foto de capa Jaime Pinsky Montagem de capa Gustavo S. Vilas Boas Diagramagio Esttidio Kenosis - Treparacdo de textos Daricla Marini Iwamoto Revisto Flavia Portellada Dados Internaciona's de Catalogagio na Publicagéo (cir) (Camara Brasileira do Livro, se, Brasil) ‘Texto ou discurso? / organiz-doras Beth Brait e Maria Cecfia Souza-e-Silva. — Sao Paulo : Contesto, 2012. Varios autores. ISBN 978-85-7244-731-7 ygustica I. Brit, Beth. 1. Anilise do discurso 2. IL Souza-e-Silva, Maria Ceclia. 12-06708 1. Teoria do discurso : Lingu(stica 401.41 2012 Eprrora Contexto Diretor editorial: Jaime Pinsky Rua Dr. José Elias, $20— Alto da Lapa (0508-030 - Sao Paulo ~ sp asx: (11) 3832 5838 contexto@editoracontexto.com. br www:editoracontexto.com.br A. NECESSIDADE DISTINGAO ENTRE TO E DISCURSO José Luiz Fiorin ‘A mim pouco importava. Tendo descoberto 0 mundo da palavra escrita, eu estava felis, muito feliz. | .] Bastavame o ato de escrever. Colocar no pergamninho letra apés letra, palavra apés palavra, era algo que me deliciava. Nao era sé um texto que ev estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta da ordem ¢ da harmonia, Eu descobria que uma letra atrai outra, essa afinidade organi- zando ao apenas o texto como a vida, o universo, (© que ew via no pergaminho, quando terminava 6 trabalho, era um mapa, como os mapas celestes que indicavam a posigio das estrelas e planetas, posigdo essa que nio resulta do acaso, mas da composigio de misteriosas forcas, as mesmas que, em escala menor, guiavam minha mio quando ela dleixava seus sinais sobre o pergaminho. Moacyr Scliar Para muitos estudiosos da linguagem, principalmente os que se ocupam da mada Linguistica Textual, texto e discurso sio sinénimos. Entre os autores jleiros, tomem-se, por exemplo: 146 ‘Texto ou discurso? Nio estando limitadas as ‘ronteiras da linguagem verbal, no plano semi6- tico de sentido multidimensional, texto e discurso sao sinénimos de pro- cesso que engloba as relagies sintagmiticas de qualquer sistema de signos.! Podese definir texto ou discurso como ocorréncia linguistica falada ou escrita de qualquer extensio, dotada de unidade sociocomunicativa semantica e formal. Antes de mais nada um texto ¢ uma unidade de linguagem em uso, cumprindo uma fungao identificével num dado jogo de atuacao sociocomunicativa. No entanto, a maioria dos linguistas distingue esses dois termos. Vamos diferencéclos e verificar se essa distingao € necessaria. Isso s6 ocorre quando uma disctiminacao é operatéria, quando permite caracterizar certos problemas que precisam ser analisados. Paul Ricoeur? dizia que 0 sentido do texto* é criado no jogo interno de dependéncias estruturais e nas relacdes com o que esta fora dele. Isso significa, de um lado, que o texto é uma estrutura, no sentido de que ele é um todo organizado de sentido,® que é composto com procedimentos linguisticos pro prios.* Com efeito, ele nao é uma grande frase nem um amontoado de frases, mas se constitui com processos especificos de composicao. Por outro lado, sabemos que nao temos acesso direto a realidade, porque nossa relagio com ela é sempre mediada pela linguagem. Por isso, um discurso nao se constrét sobre a realidade, mas sempre sobre outro discurso.’ Assim, a conexao com que esta fora do discurso ¢ uma vinculagao com outro discurso. E essa ligat que da dimensao histérica ao discurso. O discurso ¢ um objeto linguistico e um objeto histérico, o que signil que ele é uma construsdo linguistica, gerada por um sistema de regras define sua especificidade, mas, ao mesmo tempo, que nem tudo é dizivel. que se pode dizer forma um sistema e delimita uma identidade.* Uma teot do discurso deve, ao mesmo tempo, possibilitar a analise do funcionames discursivo e de sua inscrigao historica.? Isso indica que se pode fazer, nos termos bakhtinianos, uma disti linguistica e uma diferenciacao translinguistica entre discurso e texto.'° Cos cemos a analisar esses conceitos do ponto de vista linguistic. Tanto o texto quanto o discurso sio um todo organizado de sent separado por dois brancos. Tanto um quanto outro supdem uma organi 147 Da necessidade da distingdo entre texto e discurso transfrastica, o que significa que, mesmo quando o discurso tem a dimensao de uma frase (por exemplo, “Acesso restrito aos funciondrios”), ele mobiliza estruturas de ordem diferente das da frase. Ademais, o sentido de uma parte depende da relacio com o todo. Na Folha de S.Paulo, ha uma tira de Allan Sieber, intitulada Eu ndo te amo.'! No primeiro quadrinho, um rapaz diz para uma moga: “Vocé foi a melhor coisa que me aconteceu!”, Esta pergunta: “Jura, m6r? A melhor de todas?”. No segundo quadrinho, ele afirma: “A melhor depois da minha promogao, depois de descobrir que meu tumor era benigno, depois de fazer a cirurgia de aumento peniano...”. No terceiro quadrinho, ele continua: “... depois de ganhar a rifa do forninho portatil, depois de achar dez reais na rua, depois que meu time ganhou o campeonato da terceira divisao, depois que meus avés se separaram, depois da cleclaracao da independéncia do Quijiquistéo, depois que o...”. Quando se lé o primeiro quadrinho, tem-se um significado absoluto para o valor que o rapaz «/a a seu relacionamento; 0 todo do texto mostra que ele tem um sentido muito, mas muito mesmo, relativo. Por outro lado, texto e discurso tém uma dimensio ilimitada, gracas 4 propriedade da recursividade. Na pega A cantora careca, de Ionesco, temos um exemplo de recursividade na histéria sobre o vesfriado contada pelo bombei- ro. O absurdo, nesse texto, esta relacionado a uma extensio desmesurada do significante, que nao veicula nenhum sentido, porque o predicado do longo sujeito é absolutamente banal (“as vezes, no inverno, como todo mundo, pegava um resfriado”) e porque somos incapazes, diante da recursividade incessante, de compreender de quem se fala. O sujeito, que se prolonga por mais de duas paginas, comeca assim: Meu cunhado tinha, do lado paterno, um primo-irmio, cujo tio ma- terno tinha um sogro, cujo avé paterno tinha se casado em segundas nupcias com uma jovem indigena, cuj irmao tinha encontrado, numa de suas viagens, uma moga pela qual se apaixonou e com a qual teve um filho, que se casou com uma farmacéutica corajosa, que nao era senao a sobrinha de um cabo desconhecido da Marinha Britanica, cujo pai adotivo tinha uma tia, que falava espanhol fluentemente e que era talvez uma das netas de um engenhei*o, que morreu jovem e€ que era cele mesmo neto de um viticultor, que produzia um vinho mediano, mas que tinha um primo-segundo...” 148 Texto on discurso? No entanto, ha diferencas entre texto e discurso. Este ¢ da ordem da imanéncia e aquele, do dominio da manifestagao. Cabe lembrar, inicialmen- te, que os termos imanéncia e manifestagdo pertencem A metalinguagem e, por conseguinte, ndo portam nenhum indice de valor a eles associados na linguagem-objeto: imanente nao ¢ o mais profundo, o mais importante, etc. manifesto nao é 0 mais superficial, o menos importante, etc. A manifestagao a presentificacao da forma numa dada substancia, o que significa que o dis curso € do plano do contetido, enquanto o texto é do plano da expressio. Em outras palavras, este é da ordem do sensivel, enquanto aquele é do dominio do inteligivel. O texto é a manifestacao de um discurso. Assim, 0 texto pressupde logicamente o discurso, que é, por implicacao, anterior a ele. Aqui comega a delinearse a imiportancia de distinguir discurso e texto, pois o “mesmo” discurso pode concretizarse em textos muito diversos. Assim, Hora da estrela, de Clarice Lispector, manifesta-se por um texto escrito (o romance) ou por um texto que mescla diferentes linguagens, a visual, a verbal, a auditiva nao verbal (0 filme de Suzana Amaral). Poderse-ia dizer que, quando se passa de uma linguagem a outra, ha diferengas. E verdade. Isso concerne a chamada coergio do material, que ser discutida mais adiante. Existe uma primeira tipologia de textos: os nao sincréticos, que sio a manifestacdo de um discurso por uma s6 linguagem, ou, mais precisamente, por uma s6 substancia de ex pressao (um texto escrito, uma fotografia, uma pintura, etc.), e os sincréticos, que manifestam um discurso por virias linguagens, ou, mais tecnicamente, por diferentes substincias de expresso (o cinema, a 6pera, 0 jornal, etc.). O discurso e 0 texto sio produtos da enunciacao. No entanto, eles diferem quanto ao modo de exist®ncia semidtica. Aquele é a atualizacao das virtualidades da lingua e do universo discursivo, isto é, torna as unidades in absentia unidades in praesentia. O texto € a tealizacio do discurso por meio da manifestagao. Nao € preciso explicar a questao da atualizacdo das unidades da lingua. No entanto, nao é muito evidente o problema da atualizagao das vir tualidades do universo do discurso, que é a forma como se apresenta para ns uma formacao social, uma vez que, como ja dissemos antes, nao temos acesso direto realidade. O universo discursivo contém uma série de universais em sentido fraco, ou seja, generalizagses tidas como universais. A enunciagao €@ instancia de mediacao nao sé entre a lingua e o discurso, mas também entre as virtualidades e a atualidade discursiva, ou seja, entre os universais discursivos ¢ sua concretizacio. Comprovase. no processo de leitura, a existéncia desses Da necessidade da distingio entre texto e discurso 149 universais discursivos, dessas generalizagdes, dessas abstragdes. Ler ¢ apreen- der esses universais, ¢ fazer generalizagdes. Tomemos, por exemplo, 0 poema “Campo de Tarragona”, de Joao Cabral: Do alto da torre quadrada da casa de En Joan Miré. o campo de Tarragona € mapa de uma «6 cor. E terra de Catalunha terra de verdes antigos penteada de avela, oliveiras, vinha, trigo. No campo de Tarragona dase sem guardar desvios: como planta de engenheiro ou sala de cirurgiao. No campo de Tarragona (campo ou mapa o que se vé?) a face da Cataliinha € mais classica cle ler Podeis decifrar as vilas, constelagdo matematica, que o sol vai acendendo por sobre o verde de mapa. Podeis [eas na planicie como em carta geografica, com seus volumes cue ao sol tém agudeza de limina, podeis vé-las, recortadas, com as torres oitavadas de suas igrejas pardas, igrejas, mas calculadas. 150 Texto ou discurso? Girando-se sobre o mapa, desdobrado pelo chao ao pé da torre quadrada, se avista o mar catalao. E mar também sem mistério, é mar de medidas ondas, a prolongar o humanismo do campo de Tarragona. Foram aguas tao lavradas quanto os campos catalaes. Mas poucas velas trabalham, hoje, mar de tantas cas.'? E universal cultural a oposi¢io entre natureza e cultura, bem como a culturalizacao da natureza e a naturalizacdo da cultura. Tornam-e, assim, vir- tualidades do universo discursivo. No poema cabralino, aparece essa oposicao quando o poeta se pergunta: “campo ou mapa o que se vé?”. A luz do sol revela essa paisagem, que € natural (campo) e cultural (mapa): “Podeis decifrar as vilas,/ constelacdo matematica,/ que o sol vai acendendo/ por sobre 0 verde de mapa”. A visio é 0 sentido que opera a analise da paisagem da Catalunha: decifrar, ler, ver, avistar. O que é natural (“E terra de Catalunha/ terra de ver- des antigos”, “verde de mapa”), a partir do adjetivo “antigo” e da locucao “de mapa’ aplicados a “verde”, comeca a tornarse cultural, porque racionalmente organizado pelo trabalho humano: é planta de engenheiro ou sala de cirurgido. A vista vai lendo a paisagem como mapa, terra penteada, constelagio mate- mitica, carta geografica. Mesmo as igrejas sfio esvaziadas de sua forga mistica, porque sao igrejas, sim, mas calculadas. O mar assim como a terra foi lavrado pelo trabalho humano da navegacio, que, outrora, num tempo antigo (o das grandes navegacées?), foi muito intensa (“Mas poucas velas trabalham,/ hoje, mar de tantas cas.”). Essa operagao nautica levou a um dominio do mar (“E mar também sem mistério,/ é mar de medidas ondas”), que foi o caminho a levar a civilizacdo do campo de Tarragona a outros lugares do mundo (“a prolongar o humanismo/ do campo de Tarragona”). A paisagem é resultado de uma cultura, de uma civilizacio. O trabalho humano manifestase numa arquitetura que desvela uma histéria. Da necessidade da distingao entre texto e discurso 151 Como se observa, 0 percurso figurative do mapa, do tracado geométrico, atualiza o tema da culturalizagao da natureza, da historicizacao da natureza por ago do trabalho humano. Do ponto de vista translinguistico, o discurso ganha sentido e identidade na relacdo com outros discursos, que ele cira, parodia, estiliza, com que con- corda, de que discorda, a que se opée, etc. Essa relacao interdiscursiva é 0 dialogismo. Por serem dialdgicos é que os discursos sao objetos histéricos. Sua historicidade nao é algo externo, que é dade por referéncias a acontecimentos da época em que foram produzidos ou por curiosidades a respeito de suas condicées de producio (por exemplo, a biografia do autor ou relatos sobre o periodo em que 0 autor realizou sua obra). Ela é captada no proprio movimento linguistico de sua constituigao. E na percepcao das relagdes com o discurso do outro que se compreende a historia que perpassa o discurso. Com a concep¢ao dialogica, a analise histérica dos textos deixa de ser a descrigéo de uma época, anarrativa da vida de um autor, para se transformar numa final e sutil andlise semAntica, que vai mostrando aprovagées ou reprovagées, adesGes ou recusas, polémicas e contratos, deslizamentos de sentido, apagamentos, etc. A historia nao é exterior ao sentido, mas € interior a ele, pois ele ¢ histérico, ja que se constitui fundamentalmente no confronto, na contradi¢gao, na oposicao das yozes que se entrechocam na arena da realidade. Captar as relagdes do texto coma historia ¢ apreender esse movimento dialético de constitui¢ao do sentido. Por participar de um dialogo, sendo, pois, considerado uma réplica, um discurso tem um acabamento, ou seja, ele permite uma resposta; apresenta um enunciador, um enunciatirio e contém valoragées, emogdes, etc." A enunciagio constréi o discurso e este erige seu sujeito. A relacdo dialdgica entre discursos sera chamada relacao interdiscursiva e, na medida em que é constitutiva do discurso, é uma relacao necessaria. Nao ha discurso fora das relagdes interdiscursivas.'* Exemplifiquemos. Como o principio central do discurso estruturalista é o da prioridade das relagdes sobre os elementos e, por conseguinte, o de que as relagdes que definem a estrutura formam uma hierarquia - cujas partes estio relacionadas entre si e mantém relacdes com o todo que engendram -, © discurso estruturalista esta em oposicio ao discurso transcendentalista, ao analogista e ao anomalista. O discurso transcendentalista é aquele que faz da linguagem meio para compreender a sociedade humana, 0 psiquismo do homem, seu sistema concei- 152 Texto ou discurso? tual, a marcha do ser humano sobre a Terra, as propriedades fisicas dos sons, etc, Sem negar que a linguagem possa servir de meio para um conhecimento cujo principal objeto reside fora dela, o estruturalismo opée, ao ponto de vista transcendental, o principio da imanéncia: a linguagem deve ser estudada como “um todo que se basta a si mesmo, uma estrutura sui generis”. Nesse sentido, a linguagem deixa de ser meio e passa a ser um fim em si mesmo. A Linguistica deve “procurar a estrutura especifica da linguagem com a ajuda de um sistema de premissas exclusivamente formais”."* Isso significa que a explicagio para os fatos linguisticos estard no interior da linguagem, e nao numa realidade extralinguistica. Os analogistas e anomalistas veem os fatos linguisticos em si mesmos. ‘Aqueles assentam suas explicagdes na associacao por semelhan¢a. Como nota Mattoso Camara, isso “leva, sem duvida, a formulacio de um conjunto, mas nio estabelece um campo de relacSes em que o todo se explique pelas partes e cada uma das partes pelas outras e pelo todo”. Os anomalistas, por sua vez, prescindem até mesmo de uma sonia, “negando a possibilidade de um conjunto por associago de elementos. A rigor nao chegam a gramitica, que se reduz para eles em seguir 0 uso (cosuetudinem sequens), como dizia o anomalista Aulo Gelio” Para eles, a realidade € tinica, nao podendo os fatos ser generalizados. Ja notava Hjelmslev que a Linguistica estrutural, em sua busca de uma constan- cia, se chocaria com certa tradig¢ao humanista, que, em sua forma extremada, “nega a existéncia da constancia e « legitimidade de sua procura”, pois quer que “os fendmenos humanos, contrariamente aos fendmenos da natureza, sejam singulares individuais, nao podendo set submetidos, como os da natureza, a métodos exatos, nem ser generalizados”.”! Aos anomalistas, o estruturalismo opés 0 conceito de estrutura que estabelece que “a todo processo corresponde um sistema que’ permite analisélo e descrevé-lo com um numero restrito de premissas”; que 0 proceso deve ser composto de um numero limitado de ele- mentos que reaparecem em novas combinagGes; que esses elementos podem ser agrupados em classes, definidas pelas suas possibilidades combinatorias; que, a partir das possibilidades combina‘orias, poderia estabelecerse um calculo geral das combinacées possiveis.”” Em outras palavras, o que a Linguistica estrutural busca é uma constante que esta subentendida as flutuagoes. ‘Aos analogistas, o estruturalismo opés o principio de que a lingua é forma, endo substancia, o que leva a considerar nao somente semelhangas na analise Da necessidade da distingio entre texto e discurso 153 dos fatos linguisticos, mas principalmente diferencas. A diferenga supde a se- melhanga, mas, como diz Saussure, 0 que importa na lingua sao as diferengas.”* Em relagao aos discursos cientificos precedentes sobre a linguagem, 0 estruturalismo opée o principio da imanéncia, o da estrutura e o da forma. Em oposigao ao discurso utépico constituise o discurso distopico. Aquele desenha uma sociedade ideal, organizada racionalmente, na qual todos vivem em igualdade e liberdade, dedicados ao trabalho e ao cultivo das artes. Nas sociedades utdpicas, ha um equilibrio entre o homem e o mundo. O espago é edénico. Sao discursos otimistas, que acreditam no progresso da humanidade, na capacidade de o homem viver em harmonia e de ser feliz. Textos que mani- festam esse discurso sao, por exemplo: Utopia, de Thomas Morus ou A cidade do sol, de Tommaso Campanella. Ja 0 discurso distépico é pessimista, pensa que o destino da humanidade ¢ a degradacao. Nele, ha sempre o dominio dos individuos por uma forca que eles nao podem conter (0 estado totalitario, as maquinas fora de controle, os aparatos de entretenimento, uma grande companhia, etc.). Aparecem a vigilancia constante das pessoas, sua desperso- nalizacio, sua alienacdo e seu conformismo, o banimento da liberdade e da individualidade, considerados infamantes. No geral, as paisagens sao cinzentas; nao ha verde; as construgGes esto deterioradas, tudo € escuro e umido, ha um actimulo de lixo por toda a parte. As distopias revelam os grandes medos do homem na época em que foram produzidas: a diminuigao e até o desapa- recimento dos direitos individuais com o controle operado sobre as pessoas; a autonomizagao da tecnologia, que escaparia 10 controle humano; a devastagao do meio ambiente. Alguns textos que realizem esse discurso sao: os livros Nés, de Yevgeny Zamyatin (1921); 1984, de George Orwell (1949), Admiravel mundo novo, de Aldous Huxley (1935), Fahrenheit 45! (1953), de Ray Bradbury; 0 filme Blade Runner,-o cagador de androides, de Ridley Scott (1982). Como 0 texto é uma unidade de mani*estacdo do discurso, nao é neces- sario que ele mantenha relagdes dialégicas com outros textos. No entanto, isso pode acontecer. Assim, denominarse-a intertextualidade os casos em que a relacao entre discursos ¢ materializada em textos. Isso significa que a intertextualidade pressupde sempre uma interdiscursividade, mas que o contrario nao é verdadeiro. Quando a relacao dialégica nao se manifesta no texto, temos interdiscursividade, mas nao intertextualidade. No entanto, é preciso verificar que nem todas as relacdes dialégicas mostradas no texto devem ser consideradas intertextuais. Quando temos, por exemplo, um 154 Texto ou discurso? caso de discurso indireto livre, as duas vozes estao presentes no mesmo texto. Nesse caso, tratase de uma relacao intratextual. A intertextualidade diz respeito a relagdo entre mais de um texto; ocorre quando um texto se relaciona dialogicamente com ou‘ro texto ja constituido, quando um texto se encontra com outro, quando duas materialidades se entrecruzam, quando duas manifestacdes discursivas se atravessam.” Do ponto de vista da estruturagao linguistica, o discurso é um todo organizado de sentido, delimitado por dois brancos, pertencente a ordem da imanéncia, ou seja, ao plano do contetido; ¢ a atualizacao de virtualidades da lingua e do universo do discurso. O texto também é um todo organizado de sentido, delimitado por dois brincos, mas ¢ do dominio da manifestagao, isto é, do plano da expresso; é a realizado do discurso. Do ponto de vista translinguistico, o discurso ganha sentido na relagdo com outro discurso: ele tem autoria, dirige-se a um enunciatario, tem completude e expressa valores, emocoes, etc. O texto, sendo a manifestacao do discurso, pode estar em relacao com outros textos, mas nao é necessario que esteja. Picasso relé o texto de Manet intitulado Le Dejeuner sur l’herbe. O quadro de Manet apresenta uma cena idilica, exceto pelo fato de que uma mulher nua aparece diante de dois homens vestidos, marcando, assim, uma critica as convengées burguesas. Picasso extrema o contetido libertario dessa obra ao pintar uma série de releituras na década de 60 do século xx, a década que marca a liberacao sexual. O poema “No meio do caminho”, de Drummond, retoma, para parodia lo, desconstruindo sua solenidade, 0 titulo e um dos elementos centrais da composigao, o quiasmo, do poema “Nel mezzo del camin...”, de Bilac, que, por sua vez, cita o primeiro verso da Divina comédia, de Dante Alighieri: No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meic do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.” Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. Tinhas a alma de sonhos povoada, Eaalma de sonhos povoeda eu tinha...’° Da necessidade da distingio entre texto e discurso 155 Nel mezzo del cammin di nostra vita Miritrovai per una selva oscura, Che la diritta via era smarrita *” Cabe agora perguntar se essa distingao entre discurso e texto € necessaria. Como ja se viu, um mesmo discurso pode ter diversas realizagdes textuais. Entretanto, é preciso verificar ainda se a texiualizagao é diferente da discursi- 0 e agregaria vizacdo, o que garantiria ao texto uma autonomia de constru sentidos especificos ao discurso. A discursivizacao opera pelos procedimentos de tematizacao, figurativi- zacio, actorializacdo, temporalizagao e espacializacio. Jé a textualizacao valese de outros procedimentos: a linearizacao e a elastizagio. A linearidade espacial ou temporal do significante é uma caracteristica de diferentes sistemas semidticos e isso impée coercdes especificas a textualizagao. Ha, por outro lado, semidticas que nao sao lineares, mas simultneas (€ 0 caso das semiéticas planares, como a fotografia, « pintura, etc., que manifestam 0 significado em duas dimensdes). Assim, ha ‘extos lineares € nao lineares.* A linearizagio “consiste em organizar em contiguidades temporais ou espaciais (segundo a natureza do significante) as organizagdes hierarquicas, os segmentos substituiveis, as estruturas concomitantes, etc.”.? Um procedimento muito frequente ¢ a sequenciacao dos acontecimentos simulténeos. Na linguagem verbal, para marcar a simultaneidade do que € linear, usam-se, por exemplo, locugdes adverbiais, advérbios sequenciadores ou oragées adverbiais indicando simultaneidade (“E conversavam, enquanto Angelina punha a mesa”);* uma série de verbos que indicam concomitancia a um marco temporal (presente, pretérito imperfeito ou presente do futuro) no processo conhecido como descrigao (“O Areneu ardia. [...] Na casa de Aristarco reinava o maior siléncio.”)." No livro Conversa na catedral, de Mario Vargas Llosas, marca-se a simul- taneidade no texto por uma mistura das falas de didlogos que acontecem, ao mesmo tempo, em lugares diferentes. No filme Monty Python, em busca do célice sagrado, o rei Arthur convoca alguns cavaleiros para ajudéo a achar o Sento Graal: 0 grupo separase e ha narrativas distintas, que ocorrem ao mesmo tempo: a de Sir Robin, a de Sir Galahad, a do rei Arthur com Sir Bedevere e a de Sir Lancelot. Uma legenda introduz o nome de cada cavaleiro quando se vai contar o que ele tinha feito. E 156 Texto ou discurso? um tipo de “enquanto isso”: simulianeidades narrada em sucessao. No cinema, ha também simultaneidades narredas simultaneamente: em Narc (2002), de Joe Carnahan, dois policiais, Nick e Henry, empreendem uma investigacio pelo submundo de Detroit; eles separam-se e vao fazendo a investigacao; em certos momentos, a tela é dividida em duas e temos as aces simultaneas dos dois policiais; a tela é dividida em quatro e vemos a progressio da investigacio dos dois policiais.” Outro procedimento de linearizacao € a inverséo da ordem dos aconte- cimentos: eles sA0 narrados do fim para o comeco. Em Ineversfiel, filme de Gaspar Noé, 0 estupro de uma mulher leva dois homens ao submundo de uma grande cidade francesa (pontos de prostituigao, bares sadomasoquistas). Oepilogo é narrado no inicio e, a partir dai, os fatos sio narrados de tras para frente até o desenlace, que esta no prélogo no texto. Aparece a frase “O tempo destréi tudo”, no inicio e no fim, para marcar a irreversibilidade do tempo em sua marcha destrutiva. O exemplo classico de inversao, em nossa literatura, é Memérias péstumas de Bras Cubas, de Machado de Assis, que comega pela morte e pelo enterro do narrador. Outro exemplo é “Conte retroativo”, de Luis Fernando Verissimo.** Outro procedimento de textualizacao diz respeito a elasticidade textual, que € a propriedade que permite reconhecer como semanticamente equiva- lentes unidades discursivas de dimensao diferente. O texto pode, assim, fazer condensacGes ou expansdes, como. no caso, por exemplo, de denominagses e definicGes: orvalho é igual a “condensagao do vapor da agua da atmosfera que se deposita em goticulas sobre superficies horizontais resfriadas, pela manha e 4 noite”. A parafrase, que é “uma operacao metalinguistica que consiste em produzir [...] uma unidade discursiva que seja equivalente a uma anterior”, 86 € possivel em virtude do principio da elasticidade. Oactimulo de sindnimos é a textualizagao de um significado discursivo par- ticular de uma denominacio. Assim, Joao Antonio, em Ledo de chdcara, mostra, por meio de um grande ntimero de sindnimos, a onipresenca da preocupacao do dinheiro na vida dos desvalidos, que nao tém trabalho e vivem na viracao: Eu bem podia me virar ne Estagao da Luz. Também rendia lé. Fazia ali muito fregués de subtirbio e até de outras cidades, Franco da Rocha, Perus, Jundiai... Descidos dos tren, marmiteiros ou trabalhadores do comércio, das lojas, gente do escritéri> da estrada de ferro, todo esse povo de gravata Da necessidade da distingio entze texto e discurso 157 que ganha mal. Mas que me largava carvio, 0 moc6, a gordura, o mal dito, o tutu, © porord, 0 mango, o vento, a granuncha. A seda, a gaita, a grana, a gaitolina, o capim, o concre‘o, o abre-caminho, o cobre, a nota, a manteiga, 0 agriao, o pinhao. O pesitivo, o algum, o dinheiro. Aquele um de que eu precisava para me aguentar nas pernas sujas, almogando banana, pastéis, sanduiches. E com que pagava para dormir a um canto com os vagabundos li nos escuros dia Pensio do Triunfo.’ As relagdes texto e discurso desvelam significados. Trés procedimentos deveriam ser estudados: a expressao da duragdo narrativa, as relages semis- simbolicas e as chamadas figuras de expressao. A duracao diz respeito a relacdo entre o tempo da narracao e o tempo do narrado,® 0 que é do dominio do discurso. No entanto, ela sé pode ser apreendida na relacao entre texto e discurso. Pode-se ter uma identidade dos dois tempos, ou seja, o tempo da narrac4o corresponde a duragao do tempo do narrado; uma condensagao, em que 0 tempo da narracao é menor do que © tempo do narrado; uma expansio, em que 0 tempo da narragao é maior do que o tempo do narrado; um apagamento, em que 0 episddio nao € relatado, mas pode ser recuperado por catalise. Na arte verbal, a regra, exceto quando se relatam atos de fala, é a condensagao. Um dos preceitos da poética classica, que se tornou lema arcade, era Inutilia truncat. A identidade ocorre, na linguagem verbal, quando se relatam atos de fala em discurso direto ou quando se narram acoes bastante pontuais: Suponhamos (tudo é de supor) que Romeu e Julieta, antes que Frei J Lourengo os casasse, travavam com ele este dilogo curioso: Julieta: [. Frei Lourenco: Pode ser que tua mae nao entendesse a lingua da mae Juro-vos que nao entendo a lingua de minha mae. dela. A vida é uma Babel, filha; cada um de nds vale por uma nacio.” O Pimentel, que serviu de padrinho ao noivo, disse-lhe na igreja, que em certos casos era melhor valsar que nadar, e que a verdadeira chave do coracéo de Marcelina nao era ¢ gratiddo, mas a coreografia. Luis Bastinhos abanou a cabeca sorrindo; o major, supondo que eles 0 elo- giavam em voz baixa, piscou 0 olho.”* 158 Texto ou discurso? Como o cinema € uma arte que se desenvolve fundamentalmente no tempo, expressa melhor do que a linguagem verbal a identidade entre tempo da narracao edo narrado. Nele, o tempo da narrativa corresponde ao tempo do acontecimento: tempo “real” se transforma no tempo de manifestacao do textual, cilendesi:tloalis de que-o:veniprceepresentade conresponde a6-vempo vid Em Matar ou morrer, de Fred Zimmermann (1952), relatase a historia no tempo conepependidiy bexte'o:tecthiedetrrdaratmeara:pold ancien o-duclo finale minutos, marcados pelos reldgios espalhados no cenario. Andy Warhol, em Kiss, filmou um casal beijando-se por entediantes 18 minutos e, em Sleep, retratou um homem dormindo por oito horas. A expansio, procedimento raro na narragao, ocorre principalmente em descrigdes, que, quando feitas minuciosamente, é como se acompanhassem 0 olhar demorado do espectador. A tarde descia calma e rediosa, sem um estremecer da folhagem, cheia de claridade dourada, numa larga serenidade que penetrava a alma. [..] Do lado do mar subia uma maravilhosa cor de ouro pilido, que ia no alto diluir 0 azul, davalhe um branco indeciso e opalino, um tom de desmaio doce; 0 arvoredo cobria-se todo de uma tinta loura, delicada e dormente. Todos os rumores tomavam uma suavidade de suspiro per dido. Nenhum contornc se movia como na imobilidade de um éxtase. E as casas, voltadas para o poente, com uma ou outra janela acesa em brasa, os cimos redondos das arvores apinhadas, descendo a serra numa espessa debandada para » vale, tudo parecera ficar de repente parado num recolhimento melancélico e grave, olhando a partida do Sol, que mergulhava lentamente no mat... O cinema faz expansées mais facilmente: uma sequéncia que ocorre em se- gundos, numa fragio do pensamento, dura varios minutos. Em Laranja mecénica (1971), de Stanley Kubrick, um bando de delinquentes, num futuro proximo, pratica aces muito violentas, como espancar mendigos, invadir casas e maltra- tar os moradores, estuprar mulheres indefesas, etc. O chefe do bando, Alex, € io de seguranca maxima, onde ira sofrer uma operaco para acabar com a violencia. Preso, ele fica aos cuidados do capeléo. Numa cena, est na biblioteca da penitenciéria, lendo a Biblia, e comega a imaginar situacdes que poderiam ocorrer com ele. Por exemplo, numa preso e levado para ser reabilitado numa prit cena, vemos Alex, vestido de centurido romano, dando chicotadas em Cristo. necessidade da distingao entre texto e discurso 159 misto de éxtase e felicidade esta estampado em seu riso de satisfagao. Essa a que se refere a um rapido pensamento dura varios minutos. A condensacio, como se disse, é a regra geral das narrativas. No texto ‘a seguir, retirado do romance 2666, de Roberto Bolafio, condensam-se uma hora e quinze minutos de conversa entre as personagens Pelletier e Espinosa, mencionando o numero de vezes em que certas palavras foram pronuncia- das, Como essas palavras tem um sentido no contexto do romance, podese reconstruir 0 dialogo: Os vinte minutos iniciais tiveram 1m tom trigico em que a palavra destino foi empregada dez vezes ¢ a palavra amizade vinte e quatro. O nome Liz Norton foi pronunciado cinquenta vezes, nove delas em vio. A palavra Paris foi dita em sete ocasides. Madri, em oito. A palavra amor foi pronunciada duas vezes, uma cada um. A palavra horror foi pronunciada em seis ocasides ¢ a pelavra felicidade em uma (Espinosa empregotra). A palavra solugdo foi dita em doze ocasides. A palavra solipsismo em sete. A palavra eufemismo em dez. A palavra categoria, no singular e no plural, em nove. A palavra estruturalismo em uma (Pelletier). © termo literatura nor'e-americana em trés. As palavras anduiche em dezenove. As pala- vras olhos e mios e cabelos em catorze. Depois a conversa se fez mais jantar e jantamos e café da manha fluida. Pelletier contou uma piada em alemao a Espinosa ¢ este riu. Na verdade, ambos riam envoltos nas ondas ou seja 14 o que fosse que unia suas vozes e seus ouvidos através dos campos escuros e do vento e da neve pitenaica ¢ tios e estradas solivarias e respectivos e intermindveis subtirbios que rodeavam Paris e Medri.® Em 2001, uma odisseia no espaco (1968), ce Stanley Kubrick, na cena inicial, um dos primatas joga um osso para cima, hi um corte e, em seu lugar, surge uma nave espacial que est a caminho da Terra: 0 corte sintetiza toda a historia humana, desde a origem até a conquista do espago. O apagamento ocorre quando um faro nao € narrado, mas pode ser recuperado por catalise, que € “a explicitacio dos elementos elipticos que faltam na estrutura de superficie”. “Esse procedimento efetuase com a ajuda de elementos contextuais manifestados e gragas as relacGes de pressuposicio que eles mantém com os elementos impliciros”.# Neste passo do romance A 160 Texto ou discurso? reliquia, de Eca de Queirés, Teodorico conta que finge uma grande devocio: “Prodigiosa foi entéo minha atividade devota! Ia a matinas, ia a vésperas.”?” Nele, esta apagado o relato de atividades que nao contribuem em nada para a construcao dos sentidos criados pela narrativa: por exemplo, prepararse para sair, deixar a casa, transportarse até a igreja, entrar no templo para assistir as matinas e as vésperas. A duraco da narragdo é um dos procedimentos que contribui para criar oandamento do texto, que é 0 seu ritmo. Os romances com longas descrigdes e muitos comentarios do narrador tem um andamento mais lento do que os atuais best-sellers, que se caracterizam por uma narra¢ao muito rapida das aces e por dialogos. Alencar, em O guarani, mostra ter consciéncia do andamento lento do inicio de seu folhetim. Ao final do segundo capitulo, diz: Demorei-me em descrever a cena e falar de algumas das principais personagens deste dramia porque assim era preciso para que bem se compreendam os acontcimentos que depois se passaram. Deixarei porém que os outros pertis se desenhem por si mesmos.* A adaptagao de romances mais antigos para jovens é, em geral, uma mudan- ca de andamento, eliminando-se tudo 0 que contribui para a lentidao do texto. No cinema, a percepcao de um andamento diferente do normal é mais tangivel. Ha um andamento acelerado, nas cenas de sexo, em Laranja mecdnica (1971), de Stanley Kubrick; ha uma aceleragdo em programagio inversa, em A bossa da conquista (1965), de Richard Lester, na cena em que um ovo quebrado na frigideira volta para dentro da easca. O andamento lento mostra a excepcio- nal intensidade do momento: em Zero de comportamento (1932), de Jean Vigo, ha uma cena, em camera lenta, em que meninos, vestindo camisola, esto no meio de uma chuva de penas de uma luta de travesseiros. A imagem sugere anjos em uma tempestade de neve. O andamento pode ser suspenso, detido, congelado. Em Os visitantes da noite (1957), de Marcel Carné, dois cavaleiros, emissarios da morte, interrompem o tempo num baile para levar embora os: escolhidos da morte. A mtisica cessa, as pessoas ficam estaticas, espaco e tempo: congelam-se; somente os emissarios da morte continuam a atuar. Da nevessidade da distingio entre texto e diseurso 161 Segundo a natureza da relacao entre o plano da expressao e o do contetido, temos textos que se relacionam, simbolica, semidtica e semissimbolicamente, com 0 discurso. Os simbolos sao grandezas isomorfas a interpretagao, isto é, elementos dotados de contetido, mas nao passiveis de uma analise em unida- des menores constitutivas de uma forma de expressio correlacionada a uma forma do contetido. Ha, nos sistemas simbolicos, uma correspondéncia termo a termo entre o plano da expresso e o plano do contetido, o que significa que existe uma conformidade total entre esses dois planos. Um elemento de um simbolo nao pode servir para construir outro, porque ha uma relacio biunivoca entre expressao e contetido. Assim, por exemplo, a cruz gamada é © simbolo do nazismo. Este é seu contetido. No entanto, sua expresso nao € constituida de unidades menores, cuja relacdo estabeleceria uma forma da expresso. Seu contetido, do mesmo modo, nao se constitui de unidades me- nores. Da mesma forma, a foice e 0 martelo sao 0 simbolo do comunismo. A foice ai simboliza o campesinato; 0 martelo, o proletariado, e o cruzamento dos dois, a uniao dessas duas classes. No entanto, a foice em outro simbolo nao significara o campesinato; é no simbolo do comunismo que ela tem esse sentido. Constituido o simbolo, adquire ele um valor global. Ja nos sistemas semidticos nao ha ume conformidade entre o plano da expresso e o do contetido. Com efeito, o contetido deixa-se analisar em semas (por exemplo, touro analisa-se em /bovino/, /macho/, /reprodutor/) ea mesma coisa ocorre com o plano da expresso, que se decompée em femas. Nao ha, entretanto, correspondéncia entre as unidacles menores da expressio e as do contetido. Assim, uma unidade de um sistema semiético pode combinarse com outras unidades para formar outros significados. Os sistemas semissimbélicos so aqueles em que a conformidade entre os planos da expressao e do contetido nao se estabelece a partir de unidades, como nos sistemas simbdlicos, mas pela correlacao entre categorias (oposi¢ao que se fundamenta numa identidade) dos dois planos. Assim, na gestualidade, a ca- tegoria da expressao /verticalidade/ vs. /horizontalidade/ correlacionase a categoria do conteudo /afirmacao/ vs. /negagao/. E 0 semissimbolismo que explica os efeitos de sentido gerados pelas aliveraces, pelo ritmo, pelas rimas, etc. Nos versos abaixo do poema “A tempestade”, de Goncalves Dias, ha uma ‘oposicao entre sons continuos (constritivos, vibrantes e nasais) e descontinuos {oclusivos). Essa categoria da expresso correlaciona-se a continuidade da tempestade e a pontualidade de seus efeitos (queda dos troncos quebrados): 162 Texto ow discurso? Nos tiltimos cimos dos montes erguidos, Ja silva, ja ruge do vento o pegios Estorcem-se os leques dos verdes palmares, Volteiam, rebramam, deudejam nos ares, Até que lascados baqueiam no chao. Oestudo dos sistemas semissimbolicos estabelece as relagSes entre o sensi- vel eo inteligivel, pois, ao examinar as correlagSes entre categorias da expressio e do contetido, esta desvelando “os mecanismos reveladores da transfiguragao das sensacdes em manifestagdes signicas”.*° E 0 semissimbolismo que faz que a expresso néo seja um mero suporte do contetido, mas uma manifestac4o sensivel desse contetido. Em algumas das chamadas figuras da expressio, a organizagio textual expressa a organizacao discursiva: por exemplo, a gradagio ascendente ou descendente e o quiasmo. José Dias desculpavase: “Se soubesse nao teria falado, mas falei pela veneracdo, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um. dever amarissimo...""” Camargo adorava Euger ia: era sua religido. Concentrara esforcos e pen- samentos em faz@-la feliz, e para o alcancar nao duvidaria em empregar, se necessério fosse, a violéncia, a perfidia, a dissimulacao.* Nao era tanta a politica que os fizesse esquecer Flora, nem tanta Flora que os fizesse esquecer « politica.” A distingao entre texto e discurso é necessdria porque os procedimentos de discursivizacao sao diversos dos de textualizacdo, porque eles sao objetos que tém modos de existéncia semistica diversa: um é do dominio da atuali- zac&o, 0 outro, do da realizacio. Um ¢ da ordem da imanéncia, 0 outro, da manifestacao: texto ¢ a manifestagio do discurso por meio de um plano da: expressiio, o que significa que um mesmo discurso pode ser manifestado por textos diversos. Por outro lado, certas relacées que se estabelecem entre 0 t eo discurso dao uma dimensio sensivel ao contetido, porque ele nao é apenas veiculado pelo plano da expresso, mas recriado nele. ‘Da necessidade da distingao entre texto e discurso 163 NOTAS * E. Guimaraes, 1992, pp. 145. = M.G.C. Val, 1991, pp. 34. ® P.Ricocur, 1986, p. 152 ¢ 156. * O texto, em Ricoeur, é uma categoria associada a de discurso. Nao interessa aprofundar este ponto, mas apenas mostrar que o sentido é dado por uma organizagio interna e pela relagao do discurso com o que esti fora dele. Neste parigrafo, de certa forma, ainda estamos temando texto ¢ discurso como sinénimos. © Jé Quintiliano diz que o texto & uma organizagao: “Quod +i numeris ac modis inest quaedam tacita vs, in oratione ea vehementissima, quantumaue interest sensus idem quibus verbis efferatur, tantum verba eadem ‘qua compositione vel in textu iungantur vel in fine claudantr: nam quaedam et sententiis parva et elocutione modica vireus haec sola commendat” (1x, 4, 13) [Se ha nos -itmos e nas harmonias musicais uma espécie de forca secreta, ela é vivissima no discurso e tanto 0 valor do conteddo varia de acordo com as palavras que ‘© exprimem quanto o das palavras varia de acordo com a somposiglo que as une no texto ou no fim dos periodos, porque ha casos em que 0 conteiido € pobre e a expresso é mediocre e que tém valor apenas por esse mérito]. * A.]. Greimas e J. Courtes, 1979, pp. 389-90. * M. Bakhtin, 1998, p. 86. * D.Maingueneau, 1984, pp. 54. * Idem, p. 7 © M. Bakhtin, 1970, pp. 23841. ® Folha de S.Paulo, 9 jul. 2006, p. E9. ® E. Tonesco, 2006, p. 75. © J.C. Melo Neto, 1994, pp. 1545. 4 M. Bakhtin, 1998, p. 86, e 1992, p. 316. M. Bakhtin, 1992, pp. 24041, p. 299, pp. 308-12, p. 353. % CEJ. L Fiorin, 2006, p. 168 e 181 ™ L. Hielmslev, 1975, pp. 25. ® Idem, p.7. © JM, Camara Jr. sd. p. 7. ® Idem, p. 8. 2 L. Hjelmslev, 1975, p. 7 ® Idem, p. 8. ® F Saussure, 1969, p. 139, % J. L. Fiorin, 2006, pp. 181-2 ® C.D. Andrade, 1983, p. 80. % O. Bilac, 1997, p. 155. ® D. Alighieri s.d., p. 43. % Interessarnos aqui linearizacio, porque © trabalho com « texto verbal é que esti em pauta, mesmo que tenhamos mostrado que, sendo ele uma unidade de manifestacio, pode apresentarse por meio de qualquer plano de expresso. Ademais, nio foi feito ainda pelos espe:ialistas em Semidtica Plastica um trabalho sobre a simultaneizagio como o que fizemos para a linearizagic: sem duvida nenhuma, a perspectivagio ot 0 achatamento sio procedimentos de textualizacio das semicvicas planares. ® A.J. Greimas e J. Courtes, 1979, p. 211 ® A. Azevedo, 1938, p. 228. ™ R.Pompeia, 1997, p. 150. © Os exemplos de textos cinematogréficos foram extraidos dle dissertagio de mestrado de Odair José Moreira da Silva, 2004. © LF. Verissimo, 1982. ™ A. J. Greimas e J. Courtes, 1979, p. 268. % J, Antonio, 1975, pp. 634, ¥ Cf.G. Genette, 1972, pp. 12144. 7 JM. Machado de Assis, 1979, p. 615. 164 ‘Texto ou discurso? ® Idem, p. 885. [grifos meus] » E. Queirds, 1966, p. 171 * R. Bolafo, 2010, pp. 50-1. 4 AJ. Greimas e J. Courtes, 1979, p. 33. * E, Queinds, 1966, p. 1518. ® CEG. Genette, 1983, pp. 225. 4 J Alencar, 1964, p. 33 * G. Dias, 1957, p. 869. “ L. Teixeira, 1998, p. 50. JM. Machado de Assis, 1979, p. 812. 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