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Dados Internacionais ce Catalogacao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Koch, Ingedore Grunfeld Villaga, 1933- Desvendando os segredos do texto / Ingedore Grunfeld Villaga, Koch -7. ed. ~ Sao Peulo : Cortez, 2011. Bibliografia. ISBN 978-85-249-0837-8 1. Linguistica 2. Yextos I. Titulo. 02-0782 CDD-415 indices para catalogo sistematico: 1. Linguistica textual 415 2. Texto : Linguistica 415 CONCEPCOES DE LINGUA, SUJEITO, TEXTO E SENTIDO 13 CAPITULO | CONCEPCOES DE LINGUA, SUJEITO, TEXTO E SENTIDO Enquanto vocé Ié estas palavras, esté tomando parte numa das ‘maravilhas do mundo natural. Vocé e eu pertencemos a uma espécie dotada de umia admirével capacidade, a de formar idéias no cérebro dos demais com esquisita preciso. Eu no ime refiro com isso & tclepatia, o controle mental ou as demais obsessées das ciéncia: ocultas. Alias, até para os crentes mais convictos, estes instrementos de comunicagao sao pifios em comparagao com ume capacidade que todos possuimos. Esta capacidade é a linguazem (Steven Pinker, O Instinto da Lin- guagem). Como ponto de partida para as reflexes que serao feitas nesta primei- ra parte do livro, é de suma importancia retomar algumas das questes basi- cas que, no momento, vém permeando os estudos sobre texto/discurso: a concepgao de sujeito, de lingua, de texto e de (construgao do) sentido. Concepgao de lingua e de sujeito A concepgio de sujeito da linguagem varia de acordo com a con- cepgiio de lingua que se adote. Assim, 4 concep¢ao de lingua como repre- sentacao do pensamento corresponde a de sujeito psicolégico, individual, dono de sua vontade e de suas ages. Trata-se de um sujeito visto como 4 DESVENDANDO OS SEGREDOS DO TEXTO um ego que constréi uma representacao mental e deseja que esta seja “cap- tada” pelo interlocutor da maneire como foi mentalizada. Na verdade, porém, este ego 140 se acha isolado em seu mundo, mas é, sim, um sujeito essencialmente histérico e social na medida em que se constréi em sociedade e com isto adquire a habilidade de interagir. Daf decorre a nogao de um sujeito social, interativo, mas que detém o dominio de suas ages. A concepgio de lingua como estrutura, por seu turno, corresponde a de sujeito determinado, assujeitaco pelo sistema, caracterizado por uma espécie de “nao consciéncia”. O principio explicativo de todo e qualquer fenémeno e de todo e qualquer comportamento individual repousa sobre a consideragao do sistema, quer lingiifstico, quer social. Sao trés, portanto, as posigdes classicas com relacao 10 sujeito: 1. Predominio, sendo exclusividade, da consciéncia individual no uso da linguagem — o sujeito da enuaciagio é responsével pelo sentido. A lingua é um instrumento que se encontra a disposi¢ao dos individuos, que © utilizam como se ele nao tivesse histéria. Trata-se do sujeito cartesiano, sujeito de consciéncia, dono de sua yontade e de suas palavras. Interpretar €, portanto, descobrir a intengao do falante. J4 Locke (1689) dizia que a comunicagio verbal é uma forma de telementation, ou seja, a transmis- sao exata de pensamentos da men‘e do falante para a do ouvinte. Com- preender um enunciado constitui, assim, um evento mental que se reali- za quando 0 ouvinte deriva do enunciado o pensamento que o falante pretendia veicular. Uma caracteristica important» desta concepgiio é que se acentua 0 predominio da consciéncia individual no uso da linguagem. O correlato politico desta concepeao seria a ideologia liberal, segundo a qual os sujei- tos é que fazem a histéria. 2. “Assujeitamento” — de acordo com esta concepgio, como bem mostra Possenti (1993), o individu» nao é dono de seu discurso e de sua vontade: sua consciéncia, quando existe, € produzida de fora e ele pode nao saber o que faz e 0 que diz. Quem fala, na verdade, é um sujeito anénimo, social, em relagao ao quel o individuo que, em dado momento, ocupa o papel de locutor é dependente, repetidor. Ele tem apenas a ilustio de ser a origem de seu enunciado, ilusdo necessria, de que a ideologia langa mao para fazé-lo pensar que ‘ livre para fazer e dizer 0 que deseja. Mas, na verdade, ele sé diz e faz 0 que se exige que faca e diga na posi¢o em que se encontra. Isto é, ele esta, ‘le fato, inserido numa ideologia, numa instituigao da qual é apenas porta- voz: € um discurso anterior que fala através dele. Os enunciados nac tém origem, séo em grande parte CONCEPCOES DE LINGUA, SUJEITO, TEXTO E SENTIDO 8 imemoriais, e os sentidos que carregam »40 conseqiiéncia dos discursos a que pertenceram e pertencem, € nao do fato de serem ditos por alguém em dada instancia de enunciagao. A fonte do sentido é a formagdo discursiva a que o enunciado pertence. Repudia-se qualquer sujeito psicolégico ou ativo e responsdvel (0 sujeito da pragmatica). Aqui se pode incluir a con- cepgaio de sujeito “nconsciente”, que niio controla o sentido do que diz. Quem fala é 0 inconsciente, que as vezes rompe as cadeias da censura e diz 0 que 0 ego nao quer. Eo “id” que fala, nao o ego. Como afirma Lacan: “0 sujeito nao sabe 0 que diz, visto que ele nao sabe o que 6”. Com relagiio as teses do assujeitamento, Possenti ainda questiona: “(...) é necessério interrogar-se se a descoberta do inconsciente exclui radi- calmente qualquer manobra conscienie dos sujeitos, se 0 sujeito precisa saber o que é para saber o que diz, se « existéncia de condigdes anula qual- quer opgdio ou aco consciente de sujeitos (...)”. E prossegue: “Para que o sujeito possa ser concebislo como algo mais que um lugar por onde 0 discurso passa, vindo das estruturas, é necessario fazer a hipétese minima de que ele age. Que, por excmplo, para compreender textos, nao basta que ele ocupe um lugar, 6 nece:sério que ele produza uma arividade (grifo meu). (...) Para a compreensic de textos, so necessérios, além do conhecimento lingiifstico, conhecimentos, experiéncias, etc. que séo clas- sicamente analisados relativamente # sujeitos psicolégicos, e nfo a posi- ges e vetores. Penso que a A. D. ganlaria se propusesse uma teoria psico- légica, na qual 0 sujeito fosse ‘clivado pelo inconsciente’, mas nio fosse reduzido a uma pega que apenas sofre efeitos. Certamente, hé dominios em que os sujeitos s6 sofrem efeitos, mas hé outros em que sua atuagio é de- mandada e verificdvel”. (Possenti, 1993: 16) 3. Finalmente, 4 concepgao de ‘ingua como lugar de interacdo corresponde a nogao de sujeito como & itidade psicossocial, sublinhando- se 0 cardter ativo dos sujeitos na produco mesma do social ¢ da interagaio e defendendo a posigéo de que os sujeitos (re)produzem o social na medi- da em que participam ativamente da def, nico da situagao na qual se acham engajados, e que sao atores na atualizacdo das imagens e das representa- ges sem as quais a comunicagdo nao poderia existir. Como bem diz Brando (2001: 12), retomando as colocagGes de Bakhtin (1979): _.. € um sujeito social, hist6rica e ideologicamente situado, que se constitui ha interagdo com 0 outro. Eu sou na snedida em que interajo com o outro. 16 DESVENDANDO OS SEGREDOS DO TEXTO © outro que dé a medida do que sou. A identidade se constréi nessa relagao dinamica com a alteridade. O texto encena, dramatiza ess relagdo. Nele, 0 sujeito divide seu espago com 0 outro porque nenhum discurso provém de um sujeito adamico que, hum gesto inaugural, emerge a cada vez que fala/escreve como fonte tinica do seu dizer. Segundo essa perspectiva, 0 conceito de subjetividade se des- loca para um sujeito que se cinde porque dtomo, particula de um corpo hist6rico-social no qual interag> com outros discursos, de que se apossa ou diante dos quais se posiciona (ou € posicionado) para construir sua fala. Chega-se, assim, a um equil’brio entre sujeito e sistema, entre a “so- cializagéo” e a producao do social. Para tanto, postula-se a natureza cognitiva do social, das estruturas ¢ de tudo aquilo que poderia ser visto como um dado objetivo “exterior” aos sujeitos. Nestas condigées, diz Vion (1992), tudo passa pelo sujeito: O risco de conceber um sistema sem ator ultrapassa (...) largamente os avatares do pensamento estruturalista ou sistémico. Quando se pensa o su- jeito como (produto) social, sao considerdveis os riscos de concebé-lo como totalmente determinado por esta ordem social a ponto de estabelecer uma relago causal unidirecional que vai desde um social ‘totalitério’ a um su- jeito totalmente apagado, assujeitado, compreendendo-se dentro do seu campo de ago as pressées desse sistema (p. 59). Concepgao de texto e de sentido O proprio conceito de texto cepende das concepgdes que se tenha de lingua e de sujeito. Na concepgao de lingua como representagdo do pensamento e de sujeito como senhor absoluto de siias agdes e de seu dizer, 0 texto é visto como um produto — légico — do pensamento (representag’io mental) do autor, nada mais cabendo ao leitor/ouvinte sendo “captar” essa represen- tacao mental, juntamente com as intengdes (psicolégicas) do produtor, exercendo, pois, um papel essencialmente passivo. Na concepgio de lingua como cédigo — portanto, como mero ins- trumento de comunicagéo — e de sujeito como (pre)determinado pelo sistema, 0 texto é visto como simples produto da codificagao de um emis- sor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, 0 conhecimento do cédigo, j4 que o texto, uma vez codificado, é totalmente explicito. Também nesta concepgio o papel do “decodificador” é essen- cialmente passivo. CONCEPCOES DE LINGUA, SUJEITO, TEXTO E SENTIDO uv J4 na concepgio interacional (dialégica) da lingua, na qual os sujei- tos sao vistos como atores/construtores sociais, 0 texto passa a ser consi derado o proprio ugar da interagao e os interlocutores, como sujeitos ati- vos que — dialogicamente — nele se constroem e sao construfdos. Desta forma hd lugar, no texto, para toda uma gama de implicitos, dos mais variados tipos, somente detectéveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interagao. Adotando-se esta tiltima concepgao -— de lingua, de sujeito, de texto — a compreensio deixa de ser entendida como simples “captagao” de uma representagio mental ou como a decodificagao de mensagem resul- tante de uma codificagio de um emissor. Ela é, isto sim, uma atividade interativa altamente complexa de producdo de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos lingiifsticos presentes na superfi- cie textual e na sua forma de organizacao, mas que requer a mobilizagao de um vasto conjunto de saberes (enciclopédia) e sua reconstrugao no in- terior do evento comunicativo. O sentido de um texto é, portanto, construido na interagao texto- sujeitos (ou texto-co-enunciadores) € 140 algo que preexista a essa interagdio. Também a coeréncia deixa de ser vista como mera propriedade ou qualidade do texto, passando a dizer respeito ao modo como os ele- mentos presentes na superficie textual, aliados a todos os elementos do contexto sociocognitivo mobilizados na interlocugao, vém a constituir, em virtude de uma construgdo dos interlocutores, uma configuragao veiculadora de sentidos. Em um texto denominado “Modelos (Je Interpretagdo”, Dascal (1992) escreve que, talvez, a melhor caracterizag io da espécie Homo Sapiens re- pouse no anseio de seus membros pelo sentido. O homem, seria, assim, um “cagador de sentidos”, um bem precioso, que se encontra para sempre de certa forma “escondido”. E pergunta: Se estamos fadados a cagar cons- tantemente o sentido e nosso apetite pare tanto é insacidvel, como sabe- mos onde parar? Quais as condigées e pressuposigdes que regulam nossa procura? Como, em suma, agimos ou deverfamos agir nessa busca? Dascal passa em revista as teorias que, segundo ele, tentam respon- der a essas quest6es: + modelo “criptolégico” — o sentido est objetivamente “14” (no texto), basta descobri-lo. A lingua é um cédigo, um sistema de signos, e o sentido é um dado a ser inferido deles. Basta usar 0 cédigo e as chaves adequadas (““textualistas”); 18 DESVENDANDO OS SEGREDOS DO TEXTO modelo “hermenéutico” — o sentido nao est “la”, mas “aqui”. Ele é um construto a ser engendrado no processo interpretativo, criado pelo intérprete, de acordo com as suas circunstancias e os seus propésitos, sua bagagem, seus pontos de vista etc. (“desconstrutivistas”); modelo “pragmatico” — o sentido é produzido por um agente, por meio de agfio comunicativa. Uma agao € sempre animada por uma intengiio. Por isso, na busca pelo sentido, € preciso lévar em conta a intencdo do produter do texto; modelo “superpragmitico” — 0 intérprete capta (grasp) 0 sentido do falante diretamenie, com base na informagao contextual, sem precisar levar em conta 0 sentido do enunciado (“contextualistas”); modelos de estruturas profundas causais — tais estruturas profun- das podem ser infra-individuais (0 inconsciente) ou supra-indivi- duais (a ideologia). O sentido é 0 produto de um jogo de forgas que subjazem a determinada atividade humana. A nogao de sujeito é, portanto, desnecessdria e enganadora. Dascal se diz adepto do modelo pragmitico. Todavia, propde que os varios modelos sejam vistos como complementares, recorrendo também a metéfora do iceberg. No tope, esté o signo a ser interpretado. Abaixo dele, varias camadas de sentido a ser cacado. Imediatamente abaixo da superfi- cie, encontra-se 0 sentido semAntico cristalizado, ao qual 0 modelo criptolégico almeja. Mais abaixo, as intengdes (speaker's meanings), que pedem uma interpretagdo pragmitica. Mais ao fundo ainda, as florestas geladas em que os tedricos das causas profundas exercitam seu jogo favo- ito. J4 os defensores do modelo hermenéutico recusam-se a mergulhar na Agua. Alguns deles até negam que 0 iceberg tenha partes submersas. Nem mesmo gostam de cagar: preferem criar seus proprios animais de estima- ¢do, em castelos perfeitamente adequados, construfdos no ar, sobre 0 topo da montanha de gelo. Evidentemente, os limites entre as camadas sao bastante difusos e cada camada — que pode se* muito fina — precisa ser protegida e respei- tada, para evitar 0 desmoronamento de todo 0 iceberg. Esta metéfora de Dascal é bastante til para uma reflexéo sobre a leitura e a produgdo de sent do. Em sua eterna busca, 0 ouvinte/leitor de um texto mobilizara todos os componentes do conhecimento ¢ estratégias cognitivas que tem ao seu alcance para ser capaz de interpretar 0 texto CONCEPCOES DE LINGUA, SUJEITO, TEXTO E SENTIDO 19 como dotado de sentido. Isto é, espera-se sempre um texto para o qual se possa produzir sentidos e procura-se, a partir da forma como ele se encon- tra lingiiisticamente organizado, construir uma representagao coerente, ativando, para tanto, os conhecimentos prévios e/ou tirando as possfveis conclus6es para as quais 0 texto aponta. O processamento textual, quer em termos de produgao, quer de compreenisio, depende, assim, essencial- mente, de uma interagiéo — ainda que latente — entre produtor e interpretador. Pelas razes até aqui expostas, 0 meu ponto de partida para a elucidagdo das questées relativas ao sujeiio, ao texto e 4 produgio textual de sentidos tem sido uma concepgao socivinteracional de linguagem, vis- ta, pois, como lugar de “inter-aga« jeitos sociais, isto é, de sujei- tos ativos, empenhados em uma atividade sociocomunicativa. Como bem diz Geraldi (1991: 9), “o falar depende niio s6 de um saber prévio de re- cursos expressivos disponfveis, mas de operagdes de construgao de senti- dos dessas expressdes no préprio momento da interlocugao”. E claro que esta atividade compreende, da parte do produtor do tex- to, um “projeto de dizer”; e, da parte do interpretador (leitor/ouvinte), uma participacao ativa na construgao do sentido, por meio da mobilizagio do contexto (em sentido amplo, conforme serd conceituado mais adiante), a partir das pistas e sinalizagdes que o texto lhe oferece. Produtor e interpretador do texto so, portanto, “estrategistas”, na medida em que, ao jogarem o “jogo da linguagem”, mobilizar uma série de estratégias — de ordem sociocognitiva, interacional e textual — com vistas 4 produgaio do sentido. Tem-se, assim, como pegas desse jozo: 1. 0 produtor/planejador, que procura viabilizar 0 seu “projeto de dizer”, recorrendo a uma série de estratégias de organizagao textual e orien- tando o interlocutor, por meio de sinalizag6es textuais (indfcios, marcas, pistas) para a construcao dos (possiveis) sentidos; 2. 0 texto, organizado estrategicamente de dada forma, em decorrén- cia das escolhas feitas pelo produtor entre as diversas possibilidades de formulagao que a lingua lhe oferece, de tal sorte que ele estabelece limites quanto as leituras possiveis; 3. 0 leitor/ouvinte, que, a partir do modo como 0 texto se encontra lingiiisticamente construido, das sinalizagses que lhe oferece, bem como pela mobilizagao do contexto relevante . interpretagao, vai proceder a construgao dos sentidos. 20 DESVENDANDO OS SEGREDOS DO TEXTO Estas convicgdes me levem a subscrever a definigéo de texto propos- ta por Beaugrande (1997: 10) “evento comunicativo no qual convergem. ages lingiifsticas, cognitivas © sociais”. ‘Trata-se, necessariamente, de um evento dialégico (Bakhtin), de interagao entre sujeitos sociais — contem- pordneos ou nao, co-presentes ou nao, do mesmo grupo social ou nao, mas em didlogo constante.

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