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Adriano Codato RSP

Intervenção estatal,
centralização política e reforma
burocrática: o significado dos
departamentos administrativos
no Estado Novo
Adriano Codato

Introdução

Este artigo trata da configuração político-burocrática do Estado brasileiro


no período do Estado Novo (1937-1945).
Não pretendo, todavia, fazer uma história administrativa no sentido conven-
cional do termo, já que procuro analisar a ossatura material do Estado a partir de
um ângulo, senão incomum, infrequente. A literatura de sociologia política, história
econômica, administração pública e história das instituições políticas brasileiras
já havia inventariado e descrito a existência de inúmeros institutos, conselhos,
departamentos e comissões para regular os vários setores da economia nacional
no pós-trinta (CUNHA, 1963; IANNI, 1971; DINIZ, 1991). Interessa-me mostrar, ao
invés, a aparelhagem política que permitiu que o governo federal regulasse as
relações de poder com as classes dirigentes estaduais.
Para tanto, investigo a origem e os modos de funcionamento do sistema estatal
autoritário após a edição do Decreto-lei no 1202, em 8 de abril de 1939. Descrevo o

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processo de criação dos departamentos limitar-se à definição das funções gerais


administrativos dos estados, analiso sua desse Estado – a promoção do desenvol-
posição estratégica no quadro institucional vimento capitalista –, à caracterização da
do Estado Novo e especulo sobre o signifi- sua ideologia (autoritária), ou à análise dos
cado, para o regime, de uma agência com as processos históricos que tornaram possível
características e as atribuições dos chamados a modernização conservadora. Além do
“daspinhos”. A hipótese é que o Código mais, há, por parte da literatura especiali-
Administrativo (ou Código dos interven- zada, certa insistência em entender as trans-
tores), conforme ficou conhecido o Decreto- formações do aparelho do Estado tão
lei no 1202/39, é estratégico para entender o somente em função do processo de
lado propriamente político do processo e do industrialização e das novas formas de
projeto de construção de um Estado “forte, negociação com as classes economica-
autônomo e soberano”, como se conven- mente dominantes, desprezando-se, com
cionou dizer nos anos 1930, no Brasil. Esse isso, tanto o jogo político intraelites quanto
código permite, igualmente, não apenas o marco institucional que regulou e
redesenhar os organogramas do governo dita- viabilizou essas disputas.
torial, mas indicar as formas de recrutamento De maneira geral, todos os autores
dos grupos dirigentes estaduais e o locus que estudaram o período concordam, sem,
institucional onde se dá e de onde advém contudo, avançar muito além desse ponto,
esse mecanismo, ressaltando o papel deter- que o caráter centralizado e monolítico
minante, embora nem sempre muito visível, do Estado brasileiro durante esse período
das instituições burocráticas do Estado Novo. de sua história política autorizou o alto
O Estado Novo, e mesmo o primeiro grau de autonomia que ele desfrutou em
governo de Vargas, foi percebido e descrito relação à sociedade (DINIZ, 1991, p. 79).
normalmente como um regime personalista, Ainda que isso seja correto, resta uma série
isto é, como sistema ordenado e garantido de questões a serem investigadas. Por exem-
apenas pelo carisma do líder, conforme o plo: se a diminuição da heteronomia do
roteiro do “populismo” (SOLA, 1990); ou Estado é um efeito da concentração do
como sistema apoiado exclusivamente nas poder político no governo central, a concen-
relações tradicionais de confiança – baseadas tração resulta do que exatamente? Quais os
no clientelismo –, que ligavam as oligarquias seus mecanismos? Quais os seus aparelhos?
regionais ao poder central, exatamente como Como eles estavam dispostos e hierarqui-
ocorria durante a Primeira República zados? Quais as relações de poder entre eles
(MARTINS, 1983). Ao contrário, insisto aqui e as elites que os comandava?
no papel central das instituições de governo Fausto (1972) ponderou, já há um bom
para compreender o funcionamento tempo, que a constatação de que durante o
concreto desse regime político. regime de 1937 o Estado tornou-se o polo
dominante diante da sociedade, é lugar
O problema da autonomia do comum. Seria recomendável superar essa
Estado brasileiro pós-oligárquico declaração incontestável e excessivamente
genérica em nome de uma explicação
O exame da estrutura institucional do efetiva sobre como isso se deu. Assim,
Estado brasileiro no pós-1930, e do arranjo “o que impor ta saber – e para isso
político-ditatorial no pós-1937, não pode nos faltam estudos – é como se efetivou

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concretamente esta dominância, preci- oligárquicos tradicionais de negociação e


sando-se o grau de autonomia do Estado solução de conflitos intraelite, mas aniquilar
diante das diferentes pressões articuladas seus recursos institucionais – em especial,
pela sociedade” (FAUSTO, 1972, p. 85). Na partidos e parlamentos.
mesma linha, Souza advertiu que “A quase
totalidade dos estudos existentes sobre o Antecedentes políticos e buro-
Estado Novo prescinde de uma análise cráticos dos departamentos admi-
mais detida da estrutura de poder que então nistrativos
se constituía, e dos mecanismos que lhe
davam feição marcadamente burocrática” Carone (1977) tem razão em lembrar
(SOUZA, 1990, p. 84). que, do ponto de vista político-adminis-
Talvez não faltem mais estudos histó-
ricos descritivos sobre esse tema atualmente.
Essas advertências, todavia, são mais compli-
cadas, porque elas não se referem à quanti- “O Estado Novo, e
dade de informações acumuladas pelos inves- mesmo o primeiro
tigadores. Elas, na realidade, põem em
governo de Vargas,
questão quatro problemas interligados, mas
distintos, e que não são tão evidentes quanto foi percebido e
a relação desbalanceada entre o Estado e a descrito
sociedade faz acreditar. Esses problemas são, normalmente como
do meu ponto de vista, os seguintes: i) as um regime
condições sócio-históricas da autonomia do
Estado brasileiro; ii) os mecanismos político-
personalista, isto é,
institucionais que produzem e/ou permitem como sistema
essa autonomia; iii) a intensidade sociopolítica ordenado e
dessa autonomia; iv) os agentes políticos (ou garantido apenas
burocráticos) que desfrutam dessa auto- pelo carisma do
nomia; e v) os agentes sociais, diante dos quais
se exerce essa autonomia.
líder, conforme o
Neste artigo trato apenas de um item roteiro do
desse rol de problemas: os mecanismos que “populismo.”
produzem e garantem a independência
política do governo federal. Na sequência,
discuto a configuração do Estado ditatorial,
focalizando três aspectos da sua história trativo, a consolidação do regime ditatorial
político-administrativa: a criação dos do Estado Novo é lenta e insegura, se
departamentos administrativos dos estados, fazendo segundo as circunstâncias, pois
a posição dos departamentos admi- falta ao governo uma orientação única,
nistrativos no organograma e a significação ideológica e política, pelo menos no que
dos departamentos para a estrutura política diz respeito ao período logo após o golpe
do regime. Eles são uma chave, entre de Estado, em novembro de 1937. A
tantas outras possíveis, para entender como melhor evidência do caráter processual da
foi possível desmontar não só os esquemas institucionalização política do governo

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autoritário, das dificuldades da centrali- interventorias federais: i) faltava regula-


zação do poder, e da demora na regula- mentar a intervenção decretada pelo art.
mentação legal das relações entre as 176, parágrafo único da Constituição de
oligarquias estaduais e a União é o fato de 1937, organizando burocraticamente a
que, entre a extinção dos partidos e asso- administração política de estados e muni-
ciações políticas (em dezembro de 1937) e cípios (assunto diferente, bem entendido,
a edição do Código dos interventores (em da racionalização dos serviços públicos,
abril de 1939), vai quase ano e meio que não se confunde com a primeira); e
(CARONE, 1977, p. 267). Ademais, certa ii) faltava criar um instrumento politica-
inércia – resultado das acomodações neces- mente capaz de garantir e aprofundar a
sárias entre grupos vitoriosos e facções centralização do poder decisório, levando
derrotadas –, além das lutas pelo domínio adiante a obediência estrita dos estados aos
da situação política nos estados, que objetivos do regime, propósito que somente
decorrem desse imobilismo que se segue a confiança pessoal do ditador no inter-
ao golpe, adia a fixação de medidas defini- ventor seria incapaz de providenciar.
tivas de configuração administrativo-política Carone é excessivamente otimista ao
do regime. Contudo, diz ele, “com o correr ver no Código dos interventores, de agosto
do tempo, a indeterminação administrativa de 1931 (como depois alguns analistas
pesa negativamente”, o que obriga o gover- viram no Código Administrativo de abril
no a formular o decreto que, enfim, subor- de 1939), um dos exemplos mais cons-
dina completamente estados e municípios cientes da história da reforma adminis-
ao poder central (CARONE, 1982, p. 155). trativa brasileira. Ele teria representado a
É preciso notar que esse decreto – o tentativa dos vitoriosos da Revolução de
Decreto-lei n o 1202 dispunha sobre a 1930 de substituir a política partidária pela
concepção, provimento e funções dos técnica administrativa. O Decreto no 20348
departamentos administrativos – não previa seria, nesse sentido, um passo importante
uma inovação institucional no sistema polí- dentro de uma política de moralização
tico brasileiro tão original, assim como pública. O tema será reprisado, em parte,
Loewenstein registrou (1944). Em certos durante o Estado Novo, com o Dasp. O
aspectos, os departamentos administrativos próprio Carone reconhece que o docu-
revivem os antigos conselhos consultivos mento de 1931 deveria enquadrar os
de Estado1, e a ideia de recriá-los, em abril tenentes, diminuir os “abusos” por eles
de 1939, corresponde menos a um expedi- praticados durante essa primeira fase do
ente improvisado diante das pressões dos Governo Provisório e, de quebra, contor-
grupos oligárquicos que haviam ficado de nar “as restrições das máquinas adminis-
fora dos esquemas políticos arrumados às trativas locais contra eles” (CARONE, 1978,
pressas nas interventorias comandadas p. 441 e p. 28, respectivamente). Como o
pelos tenentes (como no arranjo de 1931), código original proibia os estados de con-
e mais à pretensão do Estado autoritário trair empréstimos sem a prévia autorização
de reorganizar todo o processo de gover- do governo federal e restringia os recursos
no, e a distribuição de poder dele resultan- que cada estado poderia destinar às suas
te, em novos moldes. Nesse sentido, o tex- forças policiais – impedindo-as de rivalizar
to legal de 1939 pode ser lido como indício com o Exército nacional –, acabou se
de duas limitações do sistema de tornando, na prática, muito mais medida e

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instrumento de centralização do poder na pretenso plano de reforma da adminis-


esfera federal do que qualquer coisa. É esse tração pública.
aspecto, ainda que não por meio dos Como não há, na documentação dispo-
mesmos dispositivos, que conecta o nível, um projeto por escrito, uma minuta
Decreto de 1931 ao Decreto de 1939. ou uma exposição de motivos que anteceda
e fundamente o decreto presidencial,
A gênese institucional do tentarei reconstruir sua gênese institucional
Decreto-lei no 1202 a partir da história política da organização,
a fim de inseri-lo na configuração institu-
Se a fórmula autoritária de governo, cional do Estado ditatorial.
imposta pelo golpe de novembro e legali- A prática do regime de redesenhar
zada pela Constituição, pretendia resolver frequentemente o marco institucional, ou
certos problemas colocados pelos círculos introduzir modificações marginais no
dirigentes do regime – como, por exemplo, sistema decisório, poderia sugerir mais
o poder residual das oligarquias –, ela não ajustes graduais – seja em função de defeitos
foi tão eficiente para construir, como foi detectados no arranjo inicial do sistema
para destruir. Duas questões que estão na estatal, seja em função das adaptações a um
base da edição do Decreto-lei no 1202 – a meio ambiente hostil – do que uma ação
questão da administração pública e a cega de tentativa e erro. Em todo caso, na
questão, tão ou mais complicada, da ausência de uma ruptura institucional
representação política dos estados – efetiva – uma transformação institucional
permitem pôr em evidência o problema da radical –, a ideia de Krasner (1984) da
gênese institucional da estrutura ditatorial vigência de um sistema institucional equili-
e, em menor medida, o tema da autonomia brado, pontuado por momentos de crise, é
e da capacidade do Estado autoritário. mais descritiva do que realmente ocorre
O caráter ultracentralizado e, principal- nesse caso.
mente, secreto do processo decisório sob Algumas evidências esparsas sugerem
o Estado Novo, o formalismo de todos os quatro razões diferentes, de peso desigual,
comentários constitucionais (PONTES DE que estão na origem dos departamentos.
MIRANDA, 1938) e o sentido triunfante das Em primeiro plano, há a necessidade de
explicações oficiais tornam problemático melhor repartição de funções entre
refazer o percurso de qualquer decisão do governos estaduais e governo federal, em
regime autoritário, desde sua formulação termos orçamentários. O principal seria
até sua implementação. Notas na imprensa saber quem financiaria o quê, quando,
sobre questões políticas são escassas ou como e com que recursos; daí o papel atri-
protocolares e apenas registram, burocra- buído à agência na revisão do planejamento
ticamente, feitos e fatos do governo. O caso anual de receitas e gastos elaborado pela
da concepção de um departamento admi- Secretaria de Governo da Interventoria.
nistrativo em cada estado dos Estados Possivelmente, esse foi o motivo inicial do
Unidos do Brasil não é diferente. É mais Código Administrativo. Menos de um ano
fácil ler sua história a partir dos conflitos após a vigência da Constituição de 1937,
reais, que exigem um aparelho com as Vargas anotou, contrariado, os problemas
características e os poderes referidos no decorrentes do desencontro de contas entre
Decreto-lei no 1202, do que a partir de um os estados e a União, os aborrecimentos

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que a ir responsabilidade fiscal dos na classe política. Almir de Andrade, ao


primeiros causava e como, dadas as circuns- comentar a excelência da lei orgânica dos
tâncias políticas, isso havia se tornado estados (o nome pomposo desse decreto-
inadmissível, uma vez que os políticos não lei), lembrou que os poderes conferidos aos
tinham mais como barganhar vantagens e interventores são muito mais limitados do
recursos, como de hábito: que o dos antigos governadores de estado.
Para que se tenha uma ideia precisa disso,
É curioso como os estados procuram ele enfatiza que o artigo 32 previa nada
por todos os meios arrancar dinheiro à menos de vinte e três hipóteses, em que a
União. No regime constitucional, em validez dos decretos-leis expedidos pelos
que o governo federal só se mantinha a interventores depende estritamente da
custa da transigência com os mandões aprovação do presidente da República.
locais, este sistema era corrente. Hoje, Além disso, “os artigos 33 e 24 da lei
porém, as coisas estão diferentes. É pre- orgânica estabelecem quinze hipóteses
ciso que os estados façam administração diferentes, nas quais é vedado aos estados
dentro dos próprios recursos, e não com e municípios expedir decretos ou praticar
o dinheiro do Banco do Brasil. A União atos [...] que [...] digam respeito a matérias
realiza nos estados o que está no reconhecidas pela União como de sua ex-
programa federal (VARGAS, vol. II, clusiva competência” (ANDRADE, 1941 apud
p. 160-161)2. RODRIGUEZ, 1983, p. 157-159).
Do momento em que o Código dos
Retomando e refazendo a questão: Interventores começou a ser tratado em
como e por que as instituições políticas despachos com o ministro da Justiça, em
desse Estado específico mudaram ao longo 16 de janeiro de 1939, à sua publicação no
do tempo? Trata-se de uma necessidade Diário Oficial, em 10 de abril, os prepostos
administrativa, sem dúvida, mas cuja estaduais ficaram três meses em estado de
solução, política, deveria ser imposta alerta, aguardando o que viria pela frente.
conforme as regras burocráticas do novo Imediatamente depois de divulgado o de-
regime. Ou seja, mais um aparelho, entre o creto, tornaram-se “um pouco apreensivos”
presidente e os interventores, para supervi- (a impressão é de Getúlio Vargas) e, no
sionar o processo decisório dos estados. mês seguinte, atacaram abertamente a nova
Em segundo lugar, e em segundo plano, legislação.
estava a exigência, decorrente da primeira, Benedito Valadares era um dos que
de controlar burocraticamente mais e demonstraram, segundo o presidente, “má
melhor as situações estaduais – i.e., as vontade” com o código administrativo. E
oligarquias locais – e, em especial, o próprio é bem possível que ele previsse grande
interventor, nomeado pelo presidente. oportunidade para os mandachuvas da
Essa evidência pode ser lida tanto nas política mineira se rearticularem e se
pretensões explicitadas pelo presidente de voltarem contra seu governo; ou que fosse
eliminar as práticas e os vícios decorrentes isso e mais uma vingança pessoal de
da antiga política dos governadores – em Francisco Campos – grande arquiteto do
especial, as barganhas –, quanto nas reações negócio todo – contra sua nomeação para
que a implementação dos dispositivos, o Governo de Minas. Acertou-se então que,
previstos no Decreto-lei no 1.202, suscitou após suas gestões contra o decreto-lei, e

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não sendo possível voltar atrás depois de a um clima de incerteza jurídica que afetava
divulgada a decisão no Diário Oficial, a atividade comercial, a industrial e o direito
“seriam feitas algumas retificações por ele de propriedade. Ele profetizou que,
sugeridas”; uma vez “publicadas estas, seria enquanto for possível fazer decretos com
o Código posto em execução”. Cordeiro forma de leis gerais para resolver casos
de Farias, por seu turno, interventor do Rio particulares, não haverá ambiente adequado
Grande, simplesmente ameaçou renunciar para investimentos. A lei orgânica seria,
“se não fossem atendidas suas ponde- então, um dos capítulos centrais dessa
rações” – sendo a mais importante a de atividade legiferante e casuística, elaborada
que os departamentos administrativos por advogados perigosos. Na parte do
fossem tão somente órgãos consultivos, bilhete manuscrito de Maciel Filho a Vargas,
não deliberativos. Não foi atendido e
também não renunciou. Em junho, o
Decreto-lei no 1202 foi revisto. Mesmo “Se a fórmula
assim, o presidente da República enfrentou
mais um pedido de exoneração, o de autoritária de
Osvaldo Aranha, que, entre motivos governo, imposta
alegados e não alegados, engrossou o coro pelo golpe de
de oposição à lei orgânica dos estados3. novembro e
Vargas anota que, em meio a esse vai e
legalizada pela
vem do chanceler, Maciel Filho procurou
repercutir as críticas do ministro do Constituição,
Exterior em seu jornal, O imparcial. Essa pretendia resolver
história merece ser contada. certos problemas
Em correspondência particular ao colocados pelos
presidente, à mesma época, o jornalista
voltou a expor sua divergência total com
círculos dirigentes
Francisco Campos, ministro da Justiça e do regime...ela não
autor declarado do novo sistema de foi tão eficiente
governo. Por meio de uma argumentação para construir,
complicada, de umas tantas referências a como foi para
conspirações, antipatias pessoais e
mexericos palacianos envolvendo perso-
destruir.”
nagens centrais e periféricos da política
mineira, Maciel sustentava basicamente que
a gang (sic) que atuava sob a direção do em que enumera suas divergências técnicas
ministro da Justiça e Negócios Interiores, em relação ao decreto dos interventores,
por meio da recém-criada Comissão pode-se ler uma lista de defeitos de ordem
Revisora de Leis e Decretos4 (Sabóia de jurídica: i) “o texto do decreto fere, em mais
Medeiros, Pedro Batista Martins, Otacílio de 15 artigos, a Constituição de 10 de
Negrão e Múcio [ilegível]), tinha adquirido Novembro” (embora não os especifique);
o poder de, arbitrariamente, explorar os ii) “nossas instituições de direito público não
decretos-leis em proveito próprio. Isso admitem a subordinação dos governos dos
conduzia, segundo o informe do jornalista, estados – ainda que interventores – aos

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ministros, que são secretários do presiden- obstáculos políticos ao progresso nacional,


te”; e iii) “para se determinar a orientação entre eles “a política facciosa, em que as
administrativa dos interventores, não é dedicações eleitorais eram pagas com
necessário um decreto; basta uma circular favores onerosos; o provincialismo, que
de administração ordinária e mais dois ou criava e multiplicava obstáculos ao livre
três funcionários na Secretaria da Presi- curso dos valores econômicos; os particu-
dência para a correspondência, arquivo” larismos, que estabeleciam preferências
etc. Politicamente, o Código Adminis- para a outorga de benefícios; a pretensão
trativo, adotado em um momento em que de hegemonias, que prejudicavam o enten-
o “governo federal não [estava] uniforme, dimento de todos os brasileiros” (VARGAS,
constituindo um só bloco, [i.e., sem grandes 1940, p. 74 e 124).
conflitos] nem forte financeiramente, nem Pode-se especular, com razoável
organizado tecnicamente para uma ação margem de certeza, que a criação dos
dessa envergadura”5, a ação de criar esses departamentos administrativos responde a
departamentos arriscava, segundo o uma necessidade política – bem mais com-
autonomeado consultor do presidente, em plexa do que o controle e a supervisão
duas frentes: ao concentrar todos os burocrática das finanças do interventor –,
poderes no Rio de Janeiro, isto é, na União, cuja solução, também política, deveria ser
unificava os estados contra o presidente imposta conforme os objetivos declarados
(não se entrega a adversários uma bandeira de centralização do novo regime.
tão popular como o federalismo”) e facili- Uma prova adicional das contradições,
tava, sabe-se lá como, a execução de um em que estava enredado todo o sistema de
golpe técnico contra o próprio Vargas, interventorias de 1938 em diante, e que
possivelmente por meio de alguma descul- repercutiam seja sobre a relação entre a
pa jurídica6. Presidência e os estados – o que eu
Não só pelo comentário legal de Almir chamarei de conflito interelite –, seja sobre
de Andrade, mas pelas reações aqui refe- a política interna de cada estado – conflito
ridas, pode-se especular que um dos intraelite –, deriva do descontentamento ou
propósitos enfiados na legislação, a prin- do desconforto que sua baixa eficiência
cípio destinada apenas a ordenar as finanças suscitava em personagens situados nas mais
públicas, pretendia diminuir significa- diversas posições.
tivamente a autonomia dos interventores Segundo Francisco Campos, essa revo-
e aumentar, na mesma proporção, o poder lução jurídica, que seu gênio político
fiscalizador do ministro da Justiça. No promoveu, não era só justificável. Ela estava
inspirado discurso que pronunciou na aber- plenamente de acordo com os princípios
tura da Conferência Nacional de Economia expostos na Carta de 1937, que exigiam todo
e Administração, em 10 de novembro de poder ao presidente. Os departamentos
1939, Vargas pontificou sobre os avanços administrativos deveriam, segundo o minis-
na esfera administrativa, após dois anos tro, apenas preencher o vazio institucional
exatos do Estado Novo, e celebrou sua lei que o constituinte não previu (e que tam-
orgânica dos estados, a providência mais bém não reconhecia como um defeito de
importante do governo para eliminação sua autoria), a fim de complementar a ação
dos resquícios do regionalismo ou da Interventoria, introduzindo mais uma
caudilhismo. Essa medida derrubava os coluna no edifício. A nova medida,

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concretizada no Decreto-lei no 1202, “não dos grupos oligárquicos excluídos, margi-


procurava efetuar a centralização adminis- nalizados ou integrados de forma precária
trativa”; essa era um pressuposto de todo ao sistema político ditatorial. Essa
o sistema constitucional. Ela “visa, apenas, imprevidência acrescentava ao regime outra
a centralização política” (CAMPOS, 1940, dificuldade: agravava o conflito intraelite.
p. 170-171). Campos apresenta, assim, os A indignação dos políticos do Paraná,
departamentos como um progresso polí- diante das atitudes e do comportamento
tico, não como resultado natural da do interventor nomeado por Vargas, é
evolução do sistema institucional, mas com prova disso e dá o tom da carta-protesto
uma peculiaridade: os dois aparelhos – que enviaram ao presidente da República
Departamento e Interventoria – e seus em 1 de fevereiro de 1938, dando-lhe
ocupantes eventuais deveriam assumir, ciência do divórcio entre a opinião pública
antes de tudo, um compromisso ideológico paranaense (isto é, eles mesmos) e a pessoa
com o Estado Novo, ou seja, acatar como do Sr. Manoel Ribas. O rosário de recla-
seus “os propósitos de defesa e de consoli- mações ia do peso dos impostos ao tempe-
dação do regime” do presidente Vargas ramento impulsivo, intratável, afrontoso e
(CAMPOS, 1940, p. 115). agreste do interventor; dos seus esquemas
Os departamentos administrativos para beneficiar-se pessoalmente das rendas
respondem a uma necessidade ideológica do dos jogos de azar à sua falta de cultura e
regime – bem mais sutil do que o controle modos; do superfaturamento de obras à
político dos oligarcas –, cuja solução, dependência de conselhos políticos de
institucional, deveria ser imposta conforme terceiros etc. A sugestão era que ele fosse
os preceitos doutrinários do seu jurista. substituído imediatamente7. Em São Paulo,
Esse espaço vazio na estrutura gover- a situação não era melhor. Vargas regis-
namental foi identificado também pelas trou que seu pedido, para que o PRP
oligarquias não incluídas no novo esquema. fizesse, logo após o golpe de 1937, um
Se a antiga fórmula autoritária da centrali- governo de concentração com Cardoso de
zação (presidente + interventor), adaptada Melo Neto (do PC), não seria atendido
do Governo Provisório, pretendia achar a pelos mesmos motivos que opunham os
solução para os problemas práticos da políticos paranaenses ao seu próprio
governança, ao simplesmente enquadrar as interventor: “desprestígio, negociatas e difi-
situações estaduais, acabava criando outros, culdades de sindicância para apurar respon-
tão ou mais delicados. Ao contrário do que sabilidades” (VARGAS, 1995, vol. II, p. 91 e
poderia parecer, a destruição dos canais 93; entradas dos dias 9 e 14 dez. 1937).
tradicionais de agregação e representação Em 1939, provavelmente muito preocu-
de interesses – partidos, parlamentos – não pado com a qualidade da administração
reduzia o pluralismo no universo das elites, pública, o PRP rompeu politicamente com
mas promovia-o, já que havia vários Ademar. No ano seguinte, abriu campanha
critérios de escolha do representante pública contra a administração calamitosa
estadual, o que poderia aumentar o conflito do Sr. Ademar de Barros, para repetir o
interelites. Por outro lado, esse “pluralismo título de um livro famoso à época, e em
limitado”, para falar como Linz (1980), não 1941 conseguiu enfim sua destituição.
era ainda amplo o suficiente para expressar, Segundo Hayashi, a causa das denúncias
politicamente, as demandas por participação de corrupção contra o interventor teriam

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sido os interesses políticos de elementos sequência de acontecimentos. Instituída a


perrepistas que se consideravam margina- Constituição em novembro de 1937, ao
lizados do poder. Ademar, segundo consta, longo do tempo tornou-se cada vez mais
“demitira todos os prefeitos do estado e, necessário, e depois cada vez mais urgente,
para substituí-los, nomeara elementos criar alguma instituição representativa que
jovens, alguns sem qualquer ligação com pudesse, sem desorganizar muito o
o PRP e outros vinculados a grupos rivais esquema então planejado, articular e
do partido” (HAYASHI, 1996, p. 122). A agregar interesses políticos, acomodando
ironia, contida na queixa do doutor a complexidade das situações regionais,
Armando de Sales Oliveira ao general Góes divididas e subdivididas em grupos subme-
Monteiro, de que “as reformas com o tidos exclusivamente ao reduzido jogo dos
colorido característico do novo Estado, interventores. A instituição dos departa-
prometidas para revelar a felicidade aos mentos administrativos dos estados, em
brasileiros, foram adiadas, e não se falou abril de 1939, parece expressar não esse
mais nos órgãos que deveriam substituir a desígnio, mas a percepção do problema.
representação nacional destruída” não foi Na realidade, esse deve ter sido o ganho
completamente em vão (OLIVEIRA, 2002, adicional e inesperado da intenção presi-
p. 460).8 Com a instituição do Departa- dencial de organizar melhor a intervenção
mento Administrativo, cumpria-se enfim, federal. A função fiscalizadora – política e
e dessa forma, a promessa, contida na Carta administrativa – atribuída ao aparelho su-
de 10 de Novembro, de encontrar uma geria a preocupação de Vargas em dotar o
solução diferente, mais moderna e mais sistema político de um mecanismo de
eficiente, para o problema da representação contrapeso ao poder dos interventores, em
política. que o próprio presidente surgisse como
O Departamento Administrativo árbitro final das disputas intrarregionais.
responde a uma necessidade social (bem Essa versão da história fica mais visível
mais útil do que a mera doutrinação ideo- quando se olha para a ordem político-
lógica da elite estadual), cuja solução, prag- burocrática do regime.
mática, deveria ser imposta conforme os
procedimentos usuais da época: a inclusão O lugar do Departamento no
de alguns nomes a mais na administração organograma de governo
ordinária do aparelho do Estado. Nesse
sentido, em vez de seguir a lógica do A posição formal do Departamento,
clientelismo, o aparelho é um sucedâneo no sistema administrativo do Estado Novo,
dos conselhos econômicos corporativos – permite deduzir as relações estratégicas
trata-se de um corporativismo político. entre os diversos centros de poder, do nível
O Departamento Administrativo não federal ao municipal, e suas respectivas
foi criado para isso, ou em função das funções político-burocráticas.
necessidades referidas por um ator pode- Mesmo um exame superficial do
roso e onisciente. Sustento que ele serviu organograma – referido apenas às compe-
para isso, o que é bem diferente. Na expli- tências respectivas desses aparelhos, tal
cação da sua gênese, é preciso ter presente como definidas administrativamente na
tanto o contexto quanto o timing do legislação – sugere alguns tópicos interes-
processo político nacional, isto é, a santes. Destaco, sem me aprofundar muito,

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alguns aspectos políticos que essa configu- e adaptada sucessivamente para operar
ração institucional indica. como uma máquina de concentração e
Essa estrutura, embora possa ser centralização de poder e decisões e funcio-
separada analiticamente em quatro compar- nou, de 1939 a 1945, até onde se pôde

Presidência da República

Ministério da Justiça e
Negócios Interiores

Comissão de Estudos
dos Negócios
dos Estados

Interventoria Federal Departamento Administrativo

Departamento
das Municipalidades

Prefeituras Municipais

Fonte: o autor, a partir do Decreto-lei 1 202/39.


Organograma 1: Organização política da administração pública no regime da
Constituição de 1937

timentos ou em quatro níveis de autoridade, estimar, de forma coordenada. A ordenação


níveis esses que recobrem e se confundem desse sistema, a posição de cada aparelho
com a “divisão administrativa” do regime e a relação que seus controladores mantêm
– no primeiro nível, a Presidência da entre si denunciam que ele é em quase tudo
República, a última instância do sistema o avesso da estrutura de poder que vigorou
estatal; no segundo nível, o Ministério da na Primeira República.
Justiça e Negócios Interiores e a Comissão O sistema político da Terceira
de Estudos dos Negócios dos Estados; no República (1937-1945) era altamente
terceiro nível, a Interventoria Federal e o institucionalizado, ou melhor, burocrati-
Departamento Administrativo; e no quarto zado, por oposição ao informalismo e aos
nível o Departamento das Municipalidades acordos tácitos típicos da política dos
e as prefeituras –, foi construída, redefinida governadores no pré-1930. Ele era

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RSP Intervenção estatal, centralização política e reforma burocrática: o significado dos departamentos administrativos no Estado Novo

unificado ideologicamente, ou ao menos se devesse ser prestar “assistência técnica” ao


pretendia assim, e não vagamente “liberal”. Ministério “em todos os assuntos referentes
Esse sistema político não dependia do voto à administração estadual que dependessem
eleitoral para qualquer instância de governo, da aprovação do Presidente” (WAHRLICH,
o contrário da regra de ouro da República 1983, p. 718)9. Por sua vez, o Departamento
Velha. E o fluxo de transmissão da legitimi- das Municipalidades, inventado já em 1938,
dade de um nível a outro não era ascenden- age em nome do interventor e cumpre,
te (dos coronéis, que controlavam o eleito- diante dos prefeitos, praticamente a função
rado, ao presidente), mas descendente (da que os departamentos administrativos
Presidência às prefeituras). desempenham no nível estadual diante do
A hierarquia aqui entre municípios, esta- interventor: supervisão e controle. Subme-
dos e União, para falar na linguagem jurí- tido politicamente à Interventoria Federal,
dica, é muito rígida, verticalizada e integrada burocraticamente incumbido de processar
e essa cadeia foi definida por uma série de os projetos anuais de orçamento elaborados
disposições legais: prefeitos na base e presi- pelas prefeituras e, caso desse tempo,
dente no topo estão ligados por uma carreira formular sugestões técnicas para aperfeiçoar
de aparelhos na qual um nível subordina-se a administração municipal, os departa-
política e burocraticamente ao outro. Ou mentos das municipalidades foram, na
melhor, onde “um nível serve-se de sua melhor das hipóteses, transformados num
ascendência burocrática para governar poli- estágio obrigatório entre as prefeituras do
ticamente o outro”. Apenas a Interventoria interior e os departamentos administrativos
e o Departamento Administrativo estão no por onde as decisões deveriam passar. E na
mesmo nível, sutileza do legislador que não pior delas convertidos tão somente em
merece passar despercebida. Mais pelo supercâmaras de vereadores. Segundo Mello,
desenho do que pelas práticas efetivas, o os departamentos das municipalidades
organograma sugere uma relação de super- acabaram por isso “dominados quase
visão recíproca, embora na realidade só o sempre por políticos de segunda ou terceira
segundo tivesse, de fato, poder burocrático ordem” que terminavam por utilizar o
sobre a primeira (já que podia vetar suas aparelho “como instrumento dos seus inte-
decisões). A posição intermediária dos dois resses eleitorais” (MELLO, 1971, p. 69; apud
aparelhos divide o nível federal do nível COLUSSI, 1996, p. 92).
municipal e essa simetria não é uma prefe- As associações políticas entre os
rência estética, mas a maneira de superin- controladores desses aparelhos seguiam,
tender e controlar as iniciativas e as deci- sempre a partir do topo do sistema, duas
sões mais desimportantes mesmo na ponta rotas. A primeira e mais comprida saía do
do sistema, propósito em tudo de acordo presidente, pulava o ministro, chegava ao
com a peculiar doutrina municipalista interventor, ao diretor do departamento
advogada pelo Estado Novo. O Ministério das municipalidades e daí aos prefeitos.
da Justiça e Negócios Interiores age, nessa O primeiro nomeava o segundo e o
geografia, como um filtro e como um dique, terceiro e, esse último, o quarto e o quinto
anteposto à Presidência. Ele atua executi- elementos10. A liberdade (e a discriciona-
vamente através da Comissão de Estudos riedade) que o presidente usufruía na
dos Negócios dos Estados, embora a fun- escolha dos interventores era semelhante
ção dessa Comissão, criada em 1939, à autonomia e arbitrariedade do interventor

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Adriano Codato RSP

para indicar seus prefeitos. Todavia, a verificar, com base no raciocínio e nas
clientela de intendentes municipais não era informações expostas neste artigo, que são
similar à freguesia de interventores federais as instituições políticas – essas instituições
já que esses últimos sempre podiam políticas, ou melhor: essa configuração
acumular mais poder que aqueles e subir o institucional – as responsáveis, ou melhor,
valor das transações no mercado de apoios um dos dispositivos responsáveis para
políticos. realizar, na prática, a capacidade estatal, ou
A segunda rota saía também do presi- ‘a supremacia do Estado sobre a sociedade’,
dente, passava, ao contrário da primeira, conforme sua formulação. O Departamento
pelo ministro da Justiça e chegava enfim
aos departamentos administrativos. Ainda
que a nomeação legal dos seus ocupantes
coubesse apenas ao chefe do Executivo “A posição formal
federal, a recomendação de possíveis do Departamento,
integrantes ou provinha do próprio
ministro, ou passava por ele, já que seu
no sistema
titular filtrava candidatos apresentados administrativo do
pelas elites locais ou mancomunados com Estado Novo,
os interventores. Nesse contexto legal, os permite deduzir as
intervetores federais desejariam tudo,
relações
exceto um departamento politicamente
antipático a suas propostas e iniciativas. estratégicas entre os
Em resumo: existe uma novidade aqui diversos centros de
que permite ver onde e como se reproduz poder, do nível
o sistema de dominação política e quem se federal ao
encarrega, ao menos em parte, dessa
reprodução. Insisto sobre esse ponto,
municipal, e suas
mesmo correndo o risco de me repetir: é respectivas funções
preciso levar em conta as instituições político-
políticas do Estado Novo, ainda que elas burocráticas.”
façam toda figura de repartições “adminis-
trativas”. E preciso levar em conta tam-
bém a função burocrática dos seus
controladores, ainda que se reconheça a Administrativo dos estados é uma forma
centralidade e a importância do persona- particularmente útil para viabilizar o novo
lismo autoritário e do seu papel na cons- compromisso interelites. Esse compro-
trução e na estabilização do regime políti- misso é, por sua vez, a garantia da auto-
co autoritário. “Autoritarismo”, nesse nomia do Estado nacional diante das
sistema, não é igual a personalismo. O situações políticas regionais. Para com-
personalismo é a forma de resolução dos preender esse aspecto é suficiente afirmar
conflitos nesse regime; as instituições que o ingresso da elite tradicional no
autoritárias são, no caso, os meios. aparelho do Estado, via daspinhos,
Retomando o programa de pesquisa aumenta, paradoxalmente, a independência
sugerido por Fausto (1972), pode-se desse Estado, já que os políticos têm pouco

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RSP Intervenção estatal, centralização política e reforma burocrática: o significado dos departamentos administrativos no Estado Novo

controle sobre o processo decisório, inicial pela finalidade, que pode inclusive
centralizado na Presidência da República, ter-se alterado ao longo do tempo graças à
e baixa influência sobre o processo polí- interação e aos confrontos com outras insti-
tico como um todo, já que perderam para tuições, ou mesmo em função das
sempre dois de seus principais instru- alterações no meio ambiente político. Outra
mentos de atuação: os partidos oligárquicos suposição igualmente problemática
e o sistema eleitoral. A liberdade de ação consiste em optar por explicar o desenvol-
da Presidência e dos “órgãos técnicos” a vimento institucional por uma espécie de
ela associados é, entre todos os indicadores “partenogênese organizacional”: uma ins-
desse período, o melhor índice para estimar tituição (no caso, o Departamento Admi-
o grau dessa autonomia. nistrativo) seria gerada da institucionalidade
Por isso, a função das instituições anterior (o regime de intervenção nos
autoritárias e, em especial, a função do estados, por exemplo), como um efeito sem
Departamento Administrativo foi, nesse causa identificável.
contexto, certa: à medida que ele ampara e Por outro lado, quando se assume uma
abriga as demandas dos oligarcas por perspectiva mais contextual que funcional,
presença e participação na “vida política”, o que ressalta na explicação são justamente
também serve de endereço para hospedar, os confrontos políticos e burocráticos que
tutelar e dar um formato mais moderno deixam ver, nessas opções institucionais,
(isto é, “burocrático”) à política nacional e decisões mais ou menos conscientes
ao espírito conservador da elite. (escolhas entre alternativas, projetos, delibe-
rações), e na definição final do desenho
Conclusões institucional do regime do Estado Novo o
resultado da luta, até certo ponto bem
A explicação sobre a invenção de um explícita, entre as forças políticas em
aparelho como os departamentos adminis- presença.
trativos envolve um risco evidente, ou seja, De toda forma, esse dispositivo admi-
a tentação das explicações funcionalistas. nistrativo, imaginado originalmente como
Pensando esse caso de modo mais amplo, o uma forma de controle e não como um
problema fica mais enfático – e mais inte- canal de representação dos setores descon-
ressante – quando vem associado a uma tentes da elite estadual, só na aparência
questão teórica: como e por que instituições pode ser percebido como resultado da
mudam ao longo do tempo? infinita capacidade do presidente em “con-
Explanações usuais para essa charada ciliar os opostos”, conforme a mitologia
tendem quase sempre a enfatizar obri- varguista. Ele deve ser visto, na realidade,
gações sistêmicas: instituições são produ- como um modo possível de ingresso da
zidas, transformadas ou mesmo desapa- elite política – ou pelo menos de uma parte
recem em razão das necessidades objetivas dela, a que havia restado depois de
que cumprem. Assim, o procedimento mais inúmeras composições, destituições, reabi-
simples (e mais arriscado) seria deduzir os litações e recomposições – na arena
motivos da criação do Departamento política. É certo que a configuração
Administrativo das funções que ele cum- institucional depois de 1939 queria
priu depois que foi criado. Essa posição responder às pressões acumuladas (mas
tem o inconveniente de tomar o propósito difusas) da oligarquia tradicional por

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participação política desde o Governo lógico e fim prático” – se dá através de um


Provisório (1930-1934). No entanto, desde aumento do controle da elite nacional sobre
que isso fosse feito “administrativamente”. a elite regional. Esse é um dos fatos que
O característico é que a fórmula adotada está na base da inflação do poder do Estado
para a solução dos conflitos no universo brasileiro no pós-1930.
das elites – e que tem no Departamento (Artigo recebido em outubro de 2011. Versão
Administrativo uma espécie de “princípio final em novembro de 2011).

Notas

1
Esses conselhos foram instaurados em todos os estados do Brasil, em alguns municípios e
no Distrito Federal pelo Decreto no 20.348, de 29 de agosto de 1931. Eles funcionavam, ainda
que sem muita capacidade decisória efetiva, como um complemento político ao poder do
interventor após a Revolução de 1930. Ver o decreto do “Código dos Interventores” de 1931
em Carone, 1975, p. 374-381.
2
O presidente refere nessa passagem a gestão do interventor do Rio Grande do Sul para
onerar “a União” com alguma obrigação adicional e a gestão do secretário de Viação de São Paulo,
para desonerar o estado da taxa federal cobrada do Porto de Santos. Entrada do dia 28 set. 1938.
3
Todas as passagens entre aspas são do Diário de Vargas. Para a data inicial de concepção do
decreto-lei, ver a entrada de 16 jan. 1939; para a assinatura do documento, ver a entrada de 8 abr.;
para a apreensão dos interventores, 14-16 abr.; para a atuação do governador de Minas Gerais
contra o Código, ver a entrada de 19 maio; para a gestão do interventor do Rio Grande do Sul, 22
maio; e para a pressão de Osvaldo Aranha, ver a entrada de 9 jun. Cf. Vargas, 1995, vol. II, p. 192,
215, 217, 224, 224-225 e 230, respectivamente.
4
Não consegui determinar a informação, mas parece que a denominação oficial do órgão
era “Comissão de Revisão dos Projetos de Lei”, criada pelo Decreto-lei 1.019, em 31 dez. 1938.
Ela era integrada pelo consultor-geral da República, pelos consultores jurídicos do Ministério
do Trabalho e da Justiça e pelo ministro dessa pasta.
5
Bilhete manuscrito de Maciel Filho a Getúlio Vargas. Museu da República. Arquivo
Histórico. Arquivo Getulio Vargas – GV cr 940.00.00 GV 04 cr (1).
6
Bilhete manuscrito de Maciel Filho a Getúlio Vargas, cit.
7
Arquivo Nacional. Fundo: Gabinete Civil da Presidência da República. Série: Governos
Estaduais. Lata 268. Documento no 4927.
8
Trata-se de trecho de uma carta enviada de Paris em 25 fev. 1939.
9
A comissão era integrada por onze pessoas, entre os quais o presidente do Dasp. Como
mais tarde esclareceu o ministro Marcondes Filho, a Comissão era, na “órbita federal”, “o apa-
relho destinado a divulgar igualdades desconhecidas e a aplainar diferenças evitáveis” resultan-
tes dos processos decisórios dos departamentos administrativos. Discurso proferido pelo minis-
tro Marcondes Filho, O Estado de S. Paulo, 11 nov. 1943, p. 6.
10
Benedito Valadares gaba-se de ter sido o autor da “emenda” à Constituição de 1937, que
deu o poder de nomeação dos prefeitos ao interventor (artigo 27). Segundo ele, “era um dispositivo
esdrúxulo, mas necessário” (VALADARES, 1966, p. 164).

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RSP Intervenção estatal, centralização política e reforma burocrática: o significado dos departamentos administrativos no Estado Novo

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RSP Intervenção estatal, centralização política e reforma burocrática: o significado dos departamentos administrativos no Estado Novo

Resumo – Resumen - Abstract

Intervenção estatal, centralização política e reforma burocrática: o significado dos


Departamentos Administrativos no Estado Novo
Adriano Codato
O objetivo deste artigo é expor e explicar um momento específico da evolução político-
institucional brasileira. São explorados os conflitos que estão na origem da escolha e a
implementação de uma nova ordem político-administrativa no pós-1930. São examinadas as
origens, a concepção e os objetivos que guiaram a invenção de um aparelho burocrático que,
juntamente com o interventor federal, não só controlou as elites políticas regionais, mas tam-
bém contribuiu para a organização do poder do Estado em bases nacionais, cooperando para
viabilizar a capacidade estatal: os Departamentos Administrativos. Analiso o contexto político,
os antecedentes legais e as inovações institucionais do decreto-lei nº 1202/39, a fim de respon-
der a duas questões bem específicas: por que e com que objetivo essa lei sobre a administração
dos estados e dos municípios foi criada durante o Estado Novo?
Palavras-chave: Departamento Administrativo; Governo Vargas; administração pública.

La intervención del Estado, la centralización política y la reforma burocrática: el


significado de los Departamentos Administrativos en el Estado Novo
Adriano Codato
El objetivo de este trabajo es exponer y explicar un punto específico de la evolución de la
política brasileña institucional. Se exploran los conflictos que llevaron a la elección y aplicación
de un nuevo sistema político-administrativo en el post-1930. El documento explora los orígenes,
el diseño y los objetivos que llevaron a la invención de un aparato burocrático que, junto con
el interventor federal, no solamente controla las élites políticas regionales, sino que también
contribuyó a la organización del poder estatal a nivel nacional, cooperando para facilitar la
capacidad del Estado: los Departamentos Administrativos. Analizo la historia política, jurídi-
ca y las innovaciones institucionales del Decreto-Ley 1202/39, con el fin de responder a dos
preguntas muy concretas: por qué y para qué esta ley sobre la administración de gobierno
estatal y local se creó durante el Estado Novo.
Palabras clave: Departamento Administrativo; Gobierno Vargas, administración pública.

State intervention, political centralization and bureaucratic reform: the meaning of


the Administrative Departments in Estado Novo
Adriano Codato
The purpose of this paper is to expose and explain a precise moment of the Brazilian
political-institutional evolution. It explores the conflicts that are at the origin of choice and
implementation of a new politico-administrative system in post-1930. The paper explores the
origins, design and objectives that drove the invention of a bureaucratic apparatus which, together
with the Federal Interventor, not only controls the regional political elites, but also contributed
to the organization of state power on a national basis, cooperating to facilitate state capacity: the
Administrative Department. I analyze the political context, legal history and the institutional
innovations of the Decree-Law 1202/39 in order to answer two very specific questions: why

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Adriano Codato RSP

and for what purpose this law on the administration of state and local government was created
during the Estado Novo.
Keywords: Administrative Department, Vargas government, public administration.

Adriano Codato
Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professor de Ciência Política na Univer-
sidade Federal do Paraná (UFPR), editor da Revista de Sociologia e Política e um dos coordenadores do Núcleo de
Pesquisa em Sociologia Política Brasileira (NUSP) da UFPR. Contato: adriano@ufpr.br

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