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Copyright do texto © Mauricio Abdalla, 2009 todos os direitos de edigo, em lingua portuguesa, ‘em territério nacional, reservados a Publicagées Mercuryo Novo Tempo Ltda. Rua Gomes Freire, 234 Sao Paulo SP CEP 05075-010 Tel. (11) 5531 8222 Pax (11) 5093 3265 ‘wwwanercuryojovem.com.br e-mail ione@mercuryojovem.com.br skype ionemercuryo,jovem http://www facebook com/mercuryojovem {M Editora Tone Meloni Nassar 18! Edico de arte César Landucci ff Projeto gréfico e diagramacao aeroestiidio ‘i Impressao Prol Editora Grafica capa em papel cartio 250 g/m? ilo em papel Polen 90 g/m? Como ensinar Filosofia? O desafio do filésofo- -educador/ Mauricio Abdalla. 1. ed. So Paulo ‘Mercuryo Novo Tempo, 2009, ISBN 978-85-7272-264-3 1. Filosofia 2, Metodologia 3. Métodos de ensino cbD 101 FILOSOFIA: UMA DISCIPLINA DIFERENTE A GRANDE MATRIARCA A Filosofia é um dos mais antigos saberes sistematicos do Ocidente. Seu surgimento na Grécia, por volta do século VI a.C, esta relacionado & superacéo das explicagdes miticas sobre o ser humano e a natureza que caracterizavam as grandes narrativas épicas, como as de Homero. Inicialmente — e por muito tempo depois — a Filosofia abrangia pra- ticamente todas as areas de conhecimento, desde a investigacao da nature- za até a consciéncia humana, passando pelas matematicas, a ética e as rela bes sociais. No século XVII, apés as transformagées ocorridas no mundo ociden- tal durante o Renascimento (do final do século XIII a meados do século XVID), os avancos dos conhecimentos em uma area chamada “Filosofia natural” produziram 0 que hoje se conhece como Revolugao Cientifica. O incrivel actmulo de conhecimentos acerca da natureza e a transformacao das bases tedricas de compreensao do mundo tiveram como resultado 0 surgimento de diversas areas do saber. A partir dai, os campos do conheci- mento que antes se abrigavam sob a designagio de Filosofia desenvolve- ram diferentes métodos e organizaram-se em disciplinas autonomas com nomes especificos, como Fisica, Quimica, Biologia. Um pouco mais tarde, outros saberes nao relacionados ao conheci- mento da natureza ou & dimensao bioldégica do ser humano também ga- COMO ENSINAR FILOSOFIA? nharam autonomia em relacao a Filosofia, Tratava-se dos campos vincula- dos ao estudo do comportamento humano, da sociedade e da politica, como a Psicologia, Sociologia, Ciéncia Politica, Direito. Atualmente, 0 quadro de disciplinas e de saberes especificos & extre- mamente amplo e engloba uma gama enorme de éreas que aparentemente cobrem todos os fendmenos conhecidos do universo. De uma certa manei- ta, todos sao “filhos’, “netos” ou “bisnetos” da Filosofia, mas ganharam autonomia e desenvolveram-se de maneira independente. Por isso, © quadro atual dos saberes coloca questées de grande relevan- ©a para a Filosofia: teriam os seus “herdeiros” se apropriado de todos os seus bens e deixado-a sem objeto? O que restou de conhecimento possivel Para a grande matriarca? Se praticamente todos os fendmenos conhecidos Possuem uma disciplina que deles se ocupa, para quais fendmenos se volta a Filosofia? Qual 0 seu contetido e o seu status no mapa atual dos saberes? As respostas a essas perguntas nao esto livres de debates e divergén- cias. Mas, a0 mesmo tempo, sao elas que definem a compreensio atual de Filosofia, seu papel no mundo contemporaneo e sua configurado como disciplina escolar. Consequentemente, sao essenciais para a reflexao sobre a metodologia de ensino da Filosofia. Afinal, s6 podemos nos perguntar “Como ensinar?”, se tivermos claro “O que ensinar”. Em outras palavras, antes de se perguntar pelo caminho (que esta na raiz etimoldgica da pala- vra “método”), é preciso saber aonde se deseja ir. A compreenséo adequada do contetido é um passo essencial para se definir a forma de desenvolvé-lo em um processo de ensino-aprendizagem eficaz ¢ adaptado aos objetivos da disciplina, Assim, comecemos por res- ponder as questées relativas ao carter papel da Filosofia na contempora- neidade, para, somente depois, entrarmos em questées de metodologia, Segundo o fildsofo espanhol José Ortega y Gasset, a forma de exposi- go da Filosofia nao é “A é BY, mas “A nao é C, e sim BO filésofo queria dizer que a exposicéo sobre o que é uma coisa deve, primeiro, negar as concepsoes diferentes para, depois, propor uma mais adequada. Como “fi- losofia” € uma palavra de uso corrente ¢ esta presente no mundo intelectu- 10 FILOSOFIA: UMA DISCIPLINA DIFRENTE ale escolar, a sugestao de Ortega y Gasset ser muito util para desfazermos algumas confusées e caminharmos para uma abordagem mais apropriada acerca desse saber milenar que ainda est4 vivo em nosso meio. Comece- ‘mos, entdo, por tentar entender 0 que nao deve ser a Filosofia como disci- plina do Ensino Médio. O QUE NAO E FILOSOFIA? Mesmo com a multiplicidade de disciplinas auténomas, com objetos € métodos préprios, e ainda que todos os fenémenos conhecidos possuam uma area de saber a eles relacionada, a Filosofia permanece viva como uma area de conhecimento. Ouvimos falar de Filosofia politica, Filosofia da educagao, Filosofia das ciéncias, Filosofia da arte, Filosofia da mente, Filosofia da religiio, Filosofia da linguagem. Além disso, os cursos de gra- duagao e pés-graduacao em Filosofia continuam a existir e a disciplina esta presente nos Parametros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM). Muitas vezes, porém, a aparente completude do quadro de saberes atu- al, mencionado na seco anterior, gera muitas confusdes a respeito do por- qué da permanéncia da Filosofia na escola. Dessas confusées resultam ba- sicamente duas maneiras de se conceber 0 ensino de Filosofia que nao fazem jus ao que a disciplina tem realmente a oferecer. Sao elas a concep- a0 “museoldgica” e a concepgao “esotérica’. A concepcao “museoldgica” da Filosofia Como todos sabem, museu é um espago para se manter vivo 0 acervo histérico e cultural da humanidade, por meio da conservagio, organiza- Gao, estudo ¢ exposigdo de pecas histéricas ao puiblico. A Museologia é a ciéncia que trata dos principios de conservagio, organizagéo, compreen- sao e apresentacao das pecas de museu. Trata-se de um campo de extrema ‘COMO ENSINAR PILOSOPIA? importancia para a compreensao do passado e do presente de nossas socie- dades. Mas nao é objetivo do museu “produzir” suas pecas. A Museologia recolhe os elementos ja existentes ou por se encontrar, mas nao inventa seus objetos e nem se volta para o estudo da dinamica turbulenta do coti- diano. A existéncia de pegas atuais em museus (como os museus de cera com réplicas de figuras contemporaneas notérias) deve-se ao fato de que tais pecas sao consideradas de valor histérico para as proximas geracées. A Filosofia concebida como “museologia” faz. o mesmo com os chama- dos “textos filoséficos”. Para essa concepgao, todos os contetidos da Filoso- fia jd estao prontos e podem ser encontrados nos livros classicos dos filé- sofos que ganharam renome mundial em fungao de suas obras. A tarefa de quem estuda Filosofia na atualidade seria apenas a de organizar, compre- ender, conservar expor as pecas histéricas, ou seja, as obras clissicas dos autores que compéem 0 acervo da histéria da Filosofia. Consequentemen- te, o ensino de Filosofia resumir-se-ia 4 transmissao das ideias dos filéso- fos ¢ exigiria do aluno apenas o esforco para compreender textos classicos aumentar sua erudicao. No entanto, essa atividade que alguns confundem com a propria Filo- sofia ndo é mais que apenas uma area dos estudos especializados dessa disciplina, a saber, a Histéria da Filosofia. Nao se pode confundir a Filoso- fia com um de seus campos de especializagao, pois uma coisa é 0 estudo aprofundado de quem deseja dedicar-se profissionalmente a uma area do saber e outra, bem diferente, é 0 que essa drea tem a oferecer para a educa- 40 escolar, Por isso, hé sempre um recorte nas areas especificas do conhe- cimento quando se elaboram os curriculos. Mas hé outra questao que ajuda a refutar a concepgio museolégica. Se a Filosofia se resumisse & histéria do pensamento dos fildsofos, 0 que te- riam feito os filésofos que entraram para a histéria? Se eles apenas tivessem estudado 0 pensamento de um antecessor, qual teria sido a sua contribuicao original que o destacou dos outros? Se pensarmos, por exemplo, em qual discipulo de Platao se tornou conhecido e entrou para a histéria, certamen- te lembraremos de apenas um: Aristételes. Nao por acaso, foi exatamente o FILOSOFTA: UMA DISCIPLINA DIFRENTE que nao apenas repetiu o que aprendeu, mas ousou pensar novas coisas € discordar do mestre. Dos outros discipulos nem sequer temos noticias. Assim fizeram todos os filésofos conhecidos através dos tempos e, apenas por isso, péde-se construir a histéria tao vasta das ideias que com- pdem 0 acervo da Filosofia, Ou seja, s6 existe historia da Filosofia porque a Filosofia nao se confunde com o estudo de sua histéria! Por se tratar de um saber em movimento, ha sempre novidades na Fi- losofia e suas areas especificas se estendem também aos novos fendmenos estudados pelas ciéncias naturais e humano-sociais. Veja-se, por exemplo, as atualissimas discusses no campo da Filosofia social e politica, da Bioé- tica, da Filosofia das ciéncias e 0 novissimo campo conhecido como Filo- sofia da mente. Certamente o que os especialistas dessas disciplinas esto fazendo nao se resume ao trabalho museolégico sobre as obras classicas e suas elaboragées so de grande importancia para a compreensio do mun- do atual. Isso nao significa dizer que os alunos no precisam conhecer elemen- tos de Histéria da Filosofia e ter acesso aos textos classicos. O que destaca- mos aqui é que a Filosofia ndo é uma peca de museu, mas um saber em movimento, que fem histéria, mas ndo se resume a sua historia. As orientagées educacionais complementares aos PCNEM (PCN+), na drea de Ciéncias Humanas e suas Tecnologias destacam: Lembramos aqui a citacao de Kant, inumeras vezes repetida: “nao se ensina Fi- losofia, ensina-se a filosofar”, o que nos convence a evitar a abordagem tradicio- nal de oferecer aos alunos a heranca filoséfica de maneira passiva, como um produto acabado. Para apropriar-se de fato do texto filosdfico, o aluno deverd compreender o processo de um modo de pensar peculiar que s6 € possivel pelo desenvolvimento da competéncia discursivo-filos6fica. (1 Resta acrescentar que esse recurso da historia da Filosofia nao se reduz a simples exposicao histérica de fatos e ideias, mas representa o retorno a génese dos conceitos e a sua reinterpretacao até compreendé-los a partir do contexto atual.' 1 MEC. PCN+. Ciéncias Humanas ¢ suas Tecnologias, pp. 47 ¢ 51. COMO ENSINAR FILOSOFIA? A concepcao “esotérica” da Filosofia Saber esotérico é todo aquele que se restringe ao grupo de especialis- tas ou iniciados que a ele se dedicam, nao sendo, portanto, extensivel aos demais membros da sociedade. O léxico do saber esotérico é compreendi- do apenas pelos membros de um grupo e a linguagem especializada tor- na-se quase um cédigo incompreenstvel para os que nao fazem parte des- se grupo. Todos os campos do saber possuem uma parte esotérica. Basta ver, por exemplo, a linguagem e os cédigos utilizados nas revistas especializadas de cada area das ciéncias e nos congressos académicos. A dimensao esotérica &essencial para os trabalhos internos da comunidade de especialistas, pois agiliza a comunicagao e possibilita uma maior precisdo dos conceitos na linguagem especializada. A divulgagao dos resultados das pesquisas, por sua vez, precisa adotar outra linguagem, que seja acessivel ao piiblico em geral. Este absorve aprende os resultados e até os utiliza em sua vida cotidiana, mas nao se sente capaz de produzi-los e, nem sempre, de questioné-los. Os livros di- daticos ou de divulgagao da Fisica, Astronomia, Biologia, Genética, Bio- quimica, Geografia, Histdria... so a apresentagio nao esotérica do traba- lho interno da comunidade dos especialistas. Da mesma forma, 0 planejamento do ensino das diversas disciplinas na educagao basica, que nao tem por objetivo formar especialistas em cada drea, exige uma selegao dos aspectos mais importantes dos resultados do trabalho esotérico para compor os curriculos escolares com base em obje- tivos bem definidos e para a organizacao dos contetidos em uma lingua- gem compreensivel para o nivel de cognigao dos educandos. A Filosofia também possui sua dimensao esotérica, mas € preciso te- cer algumas consideragdes a respeito da relagao entre essa dimensao ¢ 0 seu papel na sociedade e na escola, Em fungio da confusdo que muitas eres se faz sobre o papel da Filosofia em um mundo todo ocupado por saberes especificos, alguns acreditam que a Filosofia trata de um campo 14 ew PILOSOFIA: UMA DISCIPLINA DIFRENTE de fendmenos nao coberto pelas ciéncias. Mas a dificuldade para identi- ficar esse campo € tao grande que provoca um resultado estranho: muitas vezes, os conceitos, a linguagem e as questdes da Filosofia passam a ser, eles mesmos, 0 objeto de trabalho do circulo esotérico. Ou seja, é como se a Filosofia trabalhasse apenas com conceitos abstratos e sem vincula- 40 com 0 mundo vivido e com questées incompreensiveis ao cidadio comum. Os que compreendem a Filosofia como um saber exclusivamente eso- térico enfrentam dificuldades para planejar seu ensino nas escolas, uma vez que 0 universo de conceitos e questdes filoséficas, bem como a lingua- gem de que a Filosofia se serve para expressd-los, sfo tao abstratos que a tradugio para a linguagem comum nao esotérica se torna quase impossi- vel. Alguns dos que a compreendem assim chegam até a se posicionar con- tra o ensino de Filosofia na Educagao Basica, por acreditarem que crian- gas, adolescentes e jovens sao incapazes ou imaturos para apreender a profundidade e complexidade dos problemas filoséficos. Outros derra- mam sobre os alunos uma enorme quantidade de conceitos ou de questées que, nao raramente, entram em choque de maneira abrupta com as com- preensdes prévias, valores, crengas ou cultura dos educandos. A conse- quéncia disso é que a Filosofia acaba se afastando do universo dos alunos, em vez de inserir-se nele. A compreensio esotérica da Filosofia pode também transformar seu ensino em uma espécie de “doutrinagao’, pois nao fornece aos educandos as condicdes adequadas para que possam questionar os produtos do pen- samento filoséfico e compreender a génese e 0 contexto de sua elaboracao. Seu ensino acaba sendo uma apresentagdo de “verdades” abstratas ¢ con- ceitos incomuns, as vezes sob a forma de frases de efeito de filésofos famo- sos, repetidas — mas nem sempre compreendidas — como ensinamentos quase “revelados” Fssa forma de ensino também contradiz os principios da Educagio Basica atual, Os PCNEM, por exemplo, propdem a adaptagao e redugao dos contetidos programaticos de cada disciplina, “que néo podem ser vis- 15 COMO ENSINAR FILOSOFIA? tos como um fim em si, mas apenas como meios para que os educandos construam conhecimentos’? Além disso, Uma das funcées do filsofo-educador consiste em dar elementos para 0 aluno ‘examinar de forma critica as certezas recebidas e descobrir os preconceitos mui- tas vezes velados que as permeiam. Mais ainda, 0 refletir sobre os pressupostos das ciéncias, da técnica, das artes, da acao politica, do comportamento moral, a Filosofia auxilia 0 educando a lancar outro olhar sobre o mundo e a transformar a experiéncia vivida numa experiéncia compreendida> MAS O QUE £ FILOSOFIA, AFINAL? ‘Tanto a concepgio “museolégica’, quanto a “esotérica’, além de se tra~ duzirem em priticas educativas que ferem os principios defendidos pelos PCNEM, deturpam a contribuicao que a Filosofia tem dado ao mundo na hist6ria. Varios movimentos histéricos que geraram grandes transforma- des na sociedade (para o bem ou para 0 mal) tiveram uma fundamenta- do tebrica inspirada em alguma concepgio filoséfica. A politica, ciéncia, religido, arte, compreensao do ser humano, ética e varios outros produtos do espirito humano tém inspiragao em ideias filoséficas e, ao mesmo tem- po, também alimentam a produgao de conhecimentos na prépria Filoso- fia, Mas como poderiamos defini-la? A definigao de Filosofia nao é uma das tarefas mais faceis. Felizmente, nao é objetivo deste livro desenvolver uma definicao exaustiva. Ha um consenso minimo ja definido nos PCN+5 Ciéncias Humanas e suas Tecno- logias, na drea Filosofia: Mesmo reconhecendo a multiplicidade de caminhos que cada filsofo-educador possa privlegiar, por questOes didéticas, optamos por assumir determinada orientacdo — uma entre muitas possiveis [...]—, pela qual a Filosofia é compre- endida em linhas gerais como uma reflexao critica a respeito do conhecimento 2. MEC, PCN+. Ciéncias Humanas e suas Teenologias, p. 22. 3 Idem, p. 45. PILOSOFIA: UMA DISCIPLINA DIPRENTE da aco, a partir da andlise dos pressupostos do pensar e do agir e, portanto, como fundamentagao tedrica e critica dos conhecimentos e das praticas.* Essa breve definigio traz alguns elementos fundamentais para se en tender os contetidos da Filosofia que deverao, posteriormente, definir um. processo de ensino-aprendizagem dentro de uma metodologia adequada. Primeiro, fala-se de uma “reflexao critica a respeito do conhecimento da aco” Isso indica que o objeto da Filosofia nao é algo definido, como nas demais disciplinas como a Fisica, Quimica, Histéria... mas sim 0 ambito geral do conhecimento e da ago, o que engloba a totalidade da existéncia humana e suas realizagées tedricas e praticas. Em outras palavras, se com- preendemos a amplitude do que se designa como “conhecimento” e “acao”, chegamos a conclusao de que tudo pode ser objeto do pensar filoséfico. Mas a totalidade para a qual a reflexo filosdfica se dirige nao é um campo “bruto” de objetos. Como vimos, para praticamente todos os campos de fendmenos conhecidos ha uma area do conhecimento rela- cionada. Por isso, o mundo que se torna objeto da Filosofia jé vem “lapi- dado” pelo conhecimento produzido pelas ciéncias e pelas artes. A Filo- sofia, entiio, se caracteriza por ser um tipo especifico de reflexao sobre o mundo estudado por outras areas do saber. Consequentemente, nao ha objeto que seja exclusivo do pensamento filoséfico. Mas qual é, afinal, a especificidade da Filosofia? As ciéncias naturais procuram entender o funcionamento da natureza e sistematizar suas leis. As ciéncias humanas e sociais buscam compreen- der 0 ser humano nas suas relagées sociais, econdmicas e linguisticas e nas suas realizacées (materiais e espirituais) no espaco e no tempo. A Filosofia, por sua vez, reflete sobre o processo de constru¢4o ou aquisicao de conhe- cimentos e as implicagdes dos resultados das ciéncias para a compreensio da realidade como um todo e sobre o sentido da ago humana no mundo, na sua génese, fundamento, consequéncias e valores. 4 Idem, p. 44. 17 COMO ENSINAR FILOSOFIAt ‘A reflexdo sobre o conhecimento trata, entre outros, de problemas como: O que éa verdade?; Quais os critérios para o conhecimento valido?; Quais sao os limites do conhecimento humano?; Qual a relagao entre ver- dade e mundo real?; Quais sio as diferentes formas de conhecimento ¢ as suas relagdes?; Como se relacionam conhecimento e poder; conhecimento ¢ linguagem; conhecimento e arte? A reflexio sobre a a¢ao dirige-se, entre outras coisas, para a presenga ativa do ser humano no mundo como sujeito que constréi a sociedade, trava relacées interpessoais, cria valores, produz e divide (de determinada forma) os meios necessarios para sua existéncia, relaciona-se com a natu- reza e a transforma, cria leis, emite juizos sobre 0 certo e 0 errado, exerce poder, expressa-se sob formas culturais e artisticas. Seja qual for o objeto escolhido para a reflexao, a Filosofia volta-se sempre para seus fundamentos, ou seja, para sua génese (hist6ria) e seu sentido (I6gica). Por isso, ela nunca se satisfaz apenas com 0 aparecer ime- diato das coisas e fendmenos ou com a descrigao da realidade, por mais minuciosa, cientifica ou exata que seja, pois os fundamentos nio se reve- lam sem mediac6es abstratas. Para tornar essas afirmagées mais compreensiveis, pensemos em um exemplo bem simples: a existéncia de um giz na sala de aula. A presenga desse objeto em uma sala de aula é tao corriqueira que ninguém se pergun- ta pelos seus fundamentos. Mas a existéncia do giz. nesse local possui uma historia e uma légica que nao se revelam apenas pelo aparecer do giz aos nossos sentidos. Para provar isso, faga a seguinte experiéncia mental: ima- gine que o giz, em ver de estar na sala de aula, tenha sido encontrado den- tro de uma panela que estava no armario da cozinha de nossa casa. Nesse caso, estamos diante de um fenémeno estranho, ja nao mais corriqueiro. Por mais que se examine o giz e ainda que se faca todo um estudo sobre as suas propriedades quimicas, densidade, e sua fungao na educagao, jamais iremos compreender os fundamentos da presenga daquele giz em um Iu- gar tao inapropriado. O que devemos fazer? 18 i FILOSOFIA: UMA DISCIPLINA DIFRENTE Em uma situago como essa, fazemos basicamente duas pergunta: Como o giz foi parar ali? e O que o giz esté fazendo naquele local? A primei- ra pergunta refere-se ao fundamento hist6rico (a génese) da existéncia do giz naquelas circunstancias e a segunda refere-se ao fundamento légico (0 sentido) da existéncia do giz naquele local. As repostas para ambas as per- guntas s6 serao obtidas pela mediagio de alguma narrativa abstrata sobre elementos que nao est4o mais visiveis no aparecer imediato do fendmeno. Para simplificar 0 exemplo, imaginemos que alguém da casa nos conte que comprou o giz em uma papelaria e 0 colocou na panela por causa de uma “simpatia” para afastar os “maus fluidos” da casa. Com essas respostas, conseguimos o fundamento que nos dé a compreensao do fendmeno antes nao entendido. O estranhamento inicial se desfaz, pois agora compreende- mos 0 como e o porqué da existéncia do giz na panela em nosso armario. Podemos, entao, voltar a preparar o jantar... Se repararmos bem, o exemplo nao traz nenhum objeto desconhecido. Falamos de giz, panela, armario, cozinha. Qualquer um pode definir cada um desses objetos € tanto os cientistas como os profissionais que traba- Tham com cada um deles poderiam passar horas explicando detalhes acer- ca de sua composigao e funcionamento. O estranhamento nao foi causado pela falta de conhecimento acerca dos objetos envolvidos e sim pela falta de conhecimento dos fundamentos abstratos que faziam parte daquela realidade (a presenca do giz na panela em nossa cozinha), mas que nao estavam disponiveis a percepgao ou ao entendimento. Pois bem, basta levar em conta que tudo no mundo possui tais funda- mentos — desde a nossa existéncia individual até a forma como a socieda- de se configura nos dias atuais (e, inclusive, a tao corriqueira presenga do giz na sala de aula!) — para compreendermos a fungio da Filosofia. A forma como organizamos a sociedade e nos relacionamos com as pessoas, os valores que sustentamos, as verdades que aceitamos, a maneira como compreendemos ¢ nos relacionamos com a natureza, a cultura e a arte que produzimos, os objetos que consumimos, as relagées de poder que estabe- lecemos, tudo possui, além dos aspectos relacionados as suas dimensées 19 ‘COMO ENSINAR FILOSOPIA? visiveis, uma fundamentacio historica e logica que é acessada pelo pensa- mento filoséfico. Como nao temos alguém para nos contar a histéria € esclarecer 0 sentido de tudo, ou como nem sempre as narrativas dispon{- veis sio totalmente confidveis, pensar filosoficamente exige um maior ri- gor na busca dos fundamentos do que 0 que é expressado com o exemplo do giz na panela. Portanto, o que distingue a Filosofia das outras disciplinas nao é 0 campo de fenémenos para o qual ela se volta (seu objeto), mas sim, a ma- neira de abordar os objetos ¢ 0 tipo das perguntas que orientam a busca de respostas. Aplicada ao ensino escolar, esta compreensao deixa claro que os contetidos da Filosofia como disciplina nao sao as obras dos filésofos nem os conceitos abstratos de sua dimensao esotérica, mas sim, o mundo que educando e educador tém diante de si e com qual necessariamente se relacionam, ‘Toda essa reflexio tem implicacées profundas para a metodo- logia de ensino da Filosofia, como veremos mais adiante. O fato de nao se satisfazer com o aparecer imediato dos fendmenos da A Filosofia o carater de reflexdo critica, conforme a definicéo dos PCN+, cita- da anteriormente. Ser critico significa nao aceitar como verdade final o sim- ples aparecer das coisas ou a forma como elas so apresentadas, seja no dis- curso cotidiano, nos meios de comunicagao ou na elaboracao das ciéncias. O pensamento nao critico absorve os fendmenos apenas como dados, ao passo que o pensamento critico busca entendé-los por meio da compreen- sio da fundamentagao do que aparece como dado. Disso decorre a segunda parte da breve definicao de Filosofia, segundo os PCN+, que a apresenta “como fundamentacao tedrica e critica dos conhecimentos e das praticas”.

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