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15 poemas 7 Oaniversdrioda libertagio de Auschwitz=—Birkenau Oo poemas O Holocausto sempre me inquietou aalma,o pensamento e afé a consciéncia. Nao ha memoria de sofrimento ehumilhacao maior, imposto a tantas mulheres, homens e criangas, familias inteiras, seres humanos absolutamente inocentes. O seu tinico “pecado” era, nao exclusivamente, mas na sua esmagadora maioria serem judeus. Mas também polacos, russos, homossexuais, jeovas, ciganos e outras minorias étnicas foram vitimas desta criminosa accao nos intimeros campos de concentracao e exterminio nazis. O que aqui vos deixo, sdo 15 poemas. 15 poemas em discurso directo e em que visito, olho, interpelo e, sobretudo, sou interpelado pelas vitimas que ali, como sombras, encontro aprisionadas. Etudo “como se li tivesse estado”. > Q campo de Auschavitz-Birkenau foi libertado hid 73 anos, ent 27 de Janeiro de 1945. wf (oP rect Sa K BRR Sar Tete) de Auschwitz=Birkenau Memérias de Auschwitz - Birkenau (Como se lé tivesse estado) “Reflitam e recordem que tudo isto aconteceu” Primo Levi A Primo Levi, @ minha companheira Eva, aos meus filhos Ivo e David. Detido pelas tropas alemds em Dezembro de 1943, Primo Levi, quimico de formagéo académica e membro da resistencia, é um dos mais icidos ¢ impressionantes escritores sabre os campos de exterminio nazis. Tendo confessado a sua ascendéncia judaica é deportado e internado, em Fevereiro de 1944, no campo de conceniragao de Auschwitz. Primo Levi é um dos mais icidos ¢ impressionantes escritores acerca dos campos de exterminio nazis. Deziicou a sua vida a escrever e a fazer palestras, sobretudo em escolas, sobre o Holocausto, Nunca conseguindo libertar-se totalmente de tal pesadelo, viria a suicidar-se em 11 de Abril de 1987, em Turim, Itdlia, terra onde nascera em 31 de Julho de 1919. vp aniversdrioda libertagio de Auschwitz=Birkenau Memérias de Auschwitz - Birkenau (Como se lé tivesse estado) Vés que viveis tranquilos Nas vossas casas aquecidas, Vos que encontrais regressando a noite Comida quente e rostos amigos: Considerai se isto é um homem Quem trabatha na lama Quem nao couhece a paz Quem luta por meio pao Quem morre por um sim ou por um ndo. Considerai se isto é uma mulher, Sem cabelo e sem nome Sem mais forca para recordar Vazios os olhos e frio 0 regago Como uma ra no Inverno. Meditai que isto aconteceu: Recomendo-vos estas palavras. Esculpi-as no vosso coragio Estando em casa, andando pela rua, Ao deitar-vos e ao levantar-vos; Repeti-as aos vossos filhos. Ou que desmorone a vossa casa, Que a doenca vos eutrave, Que os vossos filhos vos virem a cara. (Primo Levi, in Se isto é wm homem) Ny TUR Lee KU ee edt (Como se la tivesse estado) Que fique um rosto Czestazva Kiwoka era uma crianea polaca, catélica, que morreu no campo de concen- tracao de Auschwitz com 14 anos. Ela foi uma dos milhares de criancas vitimas do terror nazi. Entrou no campo em Dezembro de 1942 e morreu em 12 de Marco de 1943. Czestawa nasceu em Wolka Ztojecka, na Polonia, em 15 de Agosto de 1928, filha de mae catélica e também prisioneira naquele campo. Czeslawa (prisioneira niimero 26947) havia sido COUN PAs EOE MOTE eee rancor stg! MeN See N sua mde ali morrer também. Lé-se no seu obituario: As causas da morte de Czestawa Kwoka tee ae ee eee cL ERC M TNE RC RUS tey Copel tesce ca Vane eis OL CK oA OE Meee Pe LUO uoc en Cac Ty deportadas para Auschwitz-Birkenau de 1940 a 1945. Dessas cerca de 230 mil criangas e jovens, mais de 216 mil eram de descendéncia judaica; Mais de 11 mil vieram de familias ciganas, sendo as outras de varias origens étnicas. A maioria dessas criancas chegou a Auschwitz acompanhada das suas familias. Estas operagdes faziam parte das varias tdcticas que os nazis levaram a cabo contra grupos étnicos ou sociais inteiros, visando de forma especial os judeus, como parte da orientacdo para o exterminio total desse povo. O mesmo se passava com os ciganos, os polacos, os bielorrussos e os soviéticos. INE CBrText oon elo CRU as COC MELE Br uoucCeCORt OMe TU eOeN ene Ton CLL Oe Memiorias de Auschwitz - Birkenau, Comics ia tveseeeatnich Nao entreis Faz-te ao portao o mais serenamente que puderes, poeta e olha bem. Vé com olhos de ver 0 que vés. Vé, mas verdadeiramente nao entres. Nao, poeta, nao entres nunca! Eu digo-te: aqui é 0 inferno e sao as chamas do inferno eo terror todo a uma s6 vez! Eo terror e o inferno, aqui, rimam com Auschwitz, com Birkenau logo ao lado e rimam com pérfidos carrascos, com o mal. Com todo o mal do mundo aqui, entrando este portao. Faz-te ao portao, poeta e leva os teus filhos, os teus amigos e os teus inimigos contigo e olhem bem. Vede com olhos de ver 0 que vedes. Vede, mas verdadeiramente nao entreis. Anténio F. Martins CTT a ae Une Lae 2 (Como se la tivesse estado) (Em memoria de Primo Levi ) Nao nos esquecas, nunca OP Ce ete c eee tree Rear enn Rest tse OCR EBC co ic ea revolta a cada dia se faz vida CER CE roc Cets SEB EO Ons emo none loec Gerona er canister niece Ja nao somos sequer gente. Jénem sabemos softer. Nao nos esquecas, nunca, poeta. I Greg eee eer bis gee iii 21) (Como se la tivesse estado) CT Ean Eh Nao sei dos meus pais. Preemie ETE entre casernas frias e gente, Ponce ote CRE Bin Rese oe to nc Cee one CEC hte ce sty SERB RO ROSCA RRO Cem cera) C8 Nao sei dos meus pais. PCr CRTs ceo Le OUR kunt RRL bon ones acon eC Rrra Peep ieteRoiue cmt ete Coe Erp nite Roa eT oes (opirtitear (on ECR Om OB Ce toe Aqui nao encontro nada mais que nada. Orgone Antonio F. Martins Memirias de Auschwitz - Birkenau, Poema IV (Como se a tivesse estado) Nunca me esquecas Repara no meu olhar, 1é nos meus olhos o que eu nunca te vou poder dizer. Nao me perguntes nada. Aqui, eu ja nao tenho nem idade nem nome que te diga. Guarda de mim s6 0 olhar. Nunca me esquegas. Anténio F. Martins Memorias de Auschwitz - Birkenau, Poema V (Como se la tivesse estado) Krystyna Trzesniewska - Polaca, judia, 13 anos Enttrou emt Auschwitz em 13 de Dezenibro de 1942 - Morren em 18 de Maio de 1943 Taluvez seja medo Nao me perguntes se é medo se é raiva se é espanto envergonhado 0 que sinto aqui neste lugar perto do meu e ao mesmo tempo tao distante. Nao me perguntes o que sei deste lugar que eu s6 sei que aqui eu sou igual a dor dos outros que aqui estao. Nao me perguntes de onde vim, quem me trouxe, porque me querem aqui, que eu nao sei dizer-te. Agora, aqui, so tenho frio. Um frio que me gela mais que 0 corpo a alma toda. Olha, poeta, talvez seja medo. Vé nos meus olhos, talvez seja medo! Lembra-te de mim, assim. Antonio F. Martins ie de Auschw Memorias de Auschwitz - Birkenau, Poema VI (Como se lé tivesse estado) Temos que ir Abraca-me assim com a alma e o coracao. Nao tenho medo, minha mae. Leva-me em ti assim como se tu eu fossemos um s6, num cais de partidas, tao perto da viagem e oalém muito além. E eu que nao sei nada do caminho, minha mae. Aperta-me bem agora contra o teu peito que eu vou contigo, minha mae. Temos que ir. Anténio F. Martins . @ 5 “ wae er | ff’ rey A a Memiorias de Auschwitz -Birkenau, ff [eonmiea inet ett) | i Um HOMEM aqui ® be Um HOMEM perguntou-se em Auschwitz: O que é aqui? O que faco aqui? Does Perctsg Deveria um HOMEM, cada HOMEM, Coto m Mune ey asia Um HOMEM sobreviveu em Auschwitz PUPP CBE CHE gy Que Clya Um HOMEM morreu, sobrevivendo nee lea i Um HOMEM estando, nunca esteve ConmU ani iea Que sabem vocés, os que nunca estiveram mw eoniesg Nenhum HOMEM sobreviveu uence lea Um HOMEM aqui. Anténio F. Martins Memérias de Auschwitz - Birkenau, (Como se la tivesse estado) Vé como te olhamos Nao sei 0 que vai ser de nds, poeta, aqui, nesta tragica gare dos destinos, aguardando firmes a escolha do verdugo. Vé como parecemos serenos, esperando talvez a morte num grito anunciada. Olha para nos: criancas, velhos, mulheres eo mundo inteiro caindo negro sobre nos, um a um ja quase mortos, perdida a esperanca. Vé como te olhamos. ‘Vé como queremos que saibas que te olhamos. Fala de nés, poeta. Nao esquecas nunca a nossa dor. Vamos. Anténio F. Martins irkenau Memérias de Auschwitz - Birkenau, Poema 1X (Como se la tivesse estado) Fala de nos Que sabes tu deste lugar, poeta? Desta gente que nos grita o medo e dia-a-dia nos ensina o perto e a morte e um destino destruido no presente. Que sabes tu deste lugar, poeta? Desta gente que nos levou os pais, 0s av6s, os tios, a familia toda e os amigos e nos levou até os sonhos e os sorrisos de crianca. Que sabes tu deste lugar, poeta? Que sabes tu deste frio que nos mata, da fome, tanta fome que j4 nem a sentimos e desta dor que nos nao larga e nos consome, medonha, os dias ea esperanca? Que sabes tu deste lugar, poeta? Que podes tu saber? Que aqui, nunca 0s teus olhos nem a tua alma o saibam, nem 0 teu corpo aqui o sinta. Nem os teus filhos eos filhos dos teus filhos Fala de nés. Anténio F. Martins Memorias de Auschwitz - Birkenau, ener eel Memérias de Auschwitz - Birkenau, (Como se la tivesce estado} Nao morrerei sozinho Ajuda-me, poeta, perdi-me e perdi aqui o meu amigo, o amigo do meu amigo. Ja nem sei de mim e entre tanta morte nao encontro ja sequer a minha alma no olhar. Nao hei-de morrer sozinho, poeta. Anténio F. Martins Memb6rias de Auschwitz - Birkenau, (Como se la tivesse estado) Dos velhos chegados Que vés em nés, poeta, que nao seja espanto nos olhares, que nao seja veres em cada um um velho rosto marcado de destinos? Que vés em nés, homens de pé, aqui neste cais medonho de tragicas chegadas, e nunca, nunca de partidas? E nés viemos de tao longe, poeta, do longe do fundo das raizes mais profundas, ancestrais, das casas, das aldeias, das cidades, do mais longe de nos mesmos. Porque nos trouxeram eles de tao longe e nos deixaram aqui, neste lugar que nao é lugar nenhum? Porqué? Nunca te esquecas de nés, poeta. PNG Enin) Memi6rias de Auschwitz -Birkenau, = (Como se lA tivesse estado) BST eet rm tree Ronee te) aqui tivesse estado Cp COC rapier ice) EC meh raceme hte Cey CO Cp aco eme Hits) nunca querem ver. Estou aqui, poeta, no mais profundo PEW ComnG ears (EC Ron enn Ey e eu olhando-te nao te visse. Estou aqui, poeta, SOR Tse SC hos) e atordoantes siléncios, como se fora s6 eu, COC Ror were LEC Cero neo no fundo dos meus olhos. NT RoC eC Btw etsy Ca Cees ECO SL Le Quando te fores, poeta, CMa enone Bote ent quando chegar a primavera. POOP ety Memérias de Auschwitz - Birkenau, Poema XIV (Como se i tivesse estado) Nao deixes que nos esquecam Diz-nos, poeta, se aqui, neste lugar medonho ainda parecemos gente. Diz-nos se vés no fundo dos nossos olhos que ainda estamos vivos? Se aqui, em nés, ainda vés, batendo, um coracao de gente e um pedaco de alma ainda no olhar? Diz-nos, poeta, se os que aqui vés atras da dor farpada te parecem homens iguais aos outros homens? Nos ja nao sabemos nada. Nada! Sequer quem somos. Liberta-nos agora, para sempre, poeta. Liberta-nos agora, nas asas longas da palavra e leva-nos daqui, pelo menos na memoria. Poeta, nao deixes que nos esquecam. Antonio F. Martins peppy ae Memiorias de Auschwitz - Birkenau, (Como se la tivesse estado) Nao sei do sol, poeta Nao sei do sol, poeta, nao sei do sol aqui neste lugar. Ja ha muito me perdi nos dias sempre tao vagos da memoria. Sem memé6ria nenhuma. Perdi-me na noite, poeta e é tudo noite, tudo negro aqui neste lugar. Diz-me poeta: Porque me olhas como se aqui nao visses nada, nada mais que dor, sé dor e nada? De onde vieste tu, de que terras, de que cidades, de tao longe ver-me aqui, assim como aqui estou neste fim no fim do fim do mundo? Leva-me contigo nesse teu olhar aceso, poeta. Leva-me num qualquer lugar vazio da tua alma, leva-me daqui, impio lugar que me tortura ou deixa-me talvez, de vez, aqui perdido, morrendo de frio nos frios ventos da infami Olha, esta tao escuro aqui. Nao sei do sol, poeta. Anténio F. Martins 7 Oaniversdrioda libertago de Auschwitz=—Birkenau Memérias de Auschwitz - Birkenau (Como se lé tivesse estado) Uma especial vénia i memséria de todos quantos, criangas, mulheres e homens, pereceram nos campos de concentragdo e exterminio nazi, aos que ali conseguiram sobreviver e, dun modo muito especial, a todos quantos aqui me concederam o privilégio de “querer falar comigo”. Foram todos. Uma tanibém muito especial vénia de respeito e reconhecimentto a todos os fotdgrafos, profissionais ou néo, que tiveram a coragem, 0 discernimento e o arrojo de registar as imagens de que aqui pude dispor.

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