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Folhas de Outono escrita por Mylanessa [ Comentários ]

Capítulo 6
Capítulo V — Daniel

"A inocência genuína rende-se; não sabe defender-se."

(Camilo Castelo Branco)

Ver a chuva cair à noite por trás das vidraças era assustador. Não havia lua, estrelas, ou
qualquer fonte de luz natural que ajudasse a enxergar o que acontecia do lado de fora. Na
escuridão, o céu pouco se distinguia da terra. Pareciam unidos, como uma cortina nebulosa
e impenetrável de sombras. Mas se olhasse fixamente, depois de um tempo Daniel
conseguia identificar uma massa de nuvens cinzentas e tempestuosas coroando o tempo lá
em cima da abóbada celeste. Estava sentado sobre o parapeito da janela e via nitidamente
as gotas batendo com ferocidade contra o vidro, como se quisessem o atingir. Vez ou outra,
o clarão eventual dos relâmpagos transformava a noite em dia por uma fração de segundo.

Daniel conhecia histórias de fantasmas que só podiam ser vistos sob a luz dos relâmpagos.
Conta-se que entram nas casas pelas frestas, como fios gelados que as pessoas normalmente
acreditam ser apenas resultado de uma forte ventania.

Tentou evitar esses pensamentos, embora esquadrinhasse o quarto a cada clarão, com
medo de que houvesse alguma alma penada infiltrada ali. Quem sabe escondida atrás de
algum móvel, ou até mesmo atrás de mim! Chegou ao ponto de considerar o fantasma de
Werther, com o buraco causado pela pistola logo acima do olho direito, e seu sangue, ainda
fresco, escorrendo da ferida letal. Imaginou-o balbuciando o nome da amada, como um
fantoche vingativo dominado pelos tormentos da vida passada. Que estupidez! Werther
sequer existiu! E mesmo que tivesse existido, que motivos teria para vir me fazer mal depois
de morto?

O vento veio novamente com força, insinuando-se através das fissuras. Daniel se agarrava
ao próprio corpo e diminuía de tamanho dentro das cobertas. Puxou a lanterna para mais
para perto, tendo cuidado para não derrubá-la de cima do parapeito. O espaço era pequeno,
mas se encolhesse bem as pernas, conseguia uma posição quase confortável. Mas quando o
próximo relâmpago inundou o quarto de luz incandescente, Daniel saltou de cima do
parapeito como se a própria morte estivesse no seu encalço. Pulou apressado na cama e
acendeu o abajur ao lado, sentindo-se mais seguro na claridade, mesmo que mortiça. Se ao
menos eu tivesse um pouco de papel e tinta para não pensar nessas bobagens... Pena que
gastei todo o que tinha na análise de Goethe.

O escritório de seu pai ficava lá embaixo, mas, se saísse do quarto àquela hora, jamais
escaparia sem ter de dar algumas explicações. Se fizesse um pouquinho de esforço,
conseguia escutar vozes na sala e a música doce de Olivia ao piano. Devem ter acabado de
jantar... Daniel escolheu não descer naquela noite. Fez todas as refeições principais em seu
quarto com a companhia da mãe. Havia uma certa presença à mesa que preferia evitar.
Não poderia suportar a diligência costumeira impressa nos olhos do professor. Não poderia
encará-lo em silêncio, insistindo na teimosia dos sentimentos que o impulsionaram a
abandoná-lo mais cedo. Não com a sensação de culpa mastigando seu peito ante a
lembrança do abraço, e dos cuidados de Benjamin ainda carimbados em torno de si.

Quando as luzes se apagaram e o casarão imergiu em silêncio, Daniel correu até a porta e
espiou de um lado e do outro. Esgueirou-se para fora com a lanterna numa mão, os pés
sobre as pontas dos dedos, silencioso como uma pluma. Desceu as escadas e seguiu pelo
corredor, direto até o escritório do pai. Revirou as gavetas e apanhou um tanto de papel,
não se esquecendo do tinteiro em cima da mesa.

Voltou para o quarto ansioso, temendo que a luz chamasse a atenção de algum empregado,
ou que alguém o pegasse de surpresa nas escadas. Quando fechou a porta de seus aposentos
atrás de si, Daniel pensou que poderia simplesmente bater à porta do pai e pedir que
descesse e lhe trouxesse papel e tinta — o que Percival faria de bom grado, sem a menor das
objeções. A ideia tardia o fez se sentir estúpido.

Foi até a escrivaninha, deixou sobre ela a lanterna e organizou-se para escrever.
Inicialmente, seus pensamentos estavam confusos, um entrando na frente do outro.
Rascunhou dois esboços, mas foi apenas no terceiro que finalmente conseguiu se articular.

Caro professor Mitchell,

Como sabe, nossa discussão terminou de maneira desagradável, para não dizer abrupta.
Antes de tudo, gostaria que o senhor soubesse que não estou nada orgulhoso ou satisfeito com
isso. Me traz muita tristeza e inquietação saber que por minha culpa os ânimos entre nós
acabaram estremecidos. Ainda mais sendo você alguém a quem tenho uma estima muito
grande, apesar do nosso pouco (mas precioso) tempo de convivência.

Não pretendo me estender em desculpas ou retirar as palavras que disse nesta manhã. Enfim,
te escrevo para deixar claro meu reconhecimento pelos seus gestos e palavras. Não me
comovo com tanta facilidade na frente dos outros, mas não sei explicar o que houve comigo
hoje cedo. Sou grato por sua preocupação, é verdade. Tudo que disse me tocou imensamente,
embora meu coração não tenha sido forte o bastante para ser persuadido por seus conselhos.
A teimosia é um grave defeito meu. Mas, como consolo, confesso que agi de modo infantil, e,
por isso, peço que desconsidere essa minha atitude.

Nada me aborreceria mais no momento do que prolongar esse nosso estúpido


desentendimento. Gosto muito da sua companhia e do seu humor. Perto do senhor me sinto
verdadeiramente ativo e desafiado. Não é a mesma coisa de quando se vive à mercê dos
elogios fáceis, apenas porque as pessoas sentem pena de ti. Sei que não o fazem por mal, mas
também não me levam a lugar algum, senão a aceitar calado a minha recompensa como um
cãozinho domesticado.

Então, espero que possamos continuar de onde paramos, embora eu não ache necessário
retomar o assunto da discussão. Não para sempre, mas pelo menos por enquanto. Até lá vou
tentar educar meu coração para ser mais flexível, de modo que a cena de hoje não volte a se
repetir. Odiaria que nossa relação adquirisse um caráter de palavras medidas. Quero poder
conversar com o senhor com honestidade e sem restrições.

Desculpe pelo comprimento da carta.

Espero que tenha uma boa noite.

Daniel.

Dobrou o papel e lançou-se com o coração aos saltos para fora do quarto. Não tinha
envelopes, mas supôs que naquela ocasião esse tipo de formalidade não seria necessária.
Dobrou o corredor e viu de imediato o contorno de luz que escapava dos aposentos do
professor. Ainda está acordado. Daniel estancou-se diante da porta como se deparasse com
um obstáculo intransponível. Suavemente inclinou-se e encostou a orelha sobre a madeira
na tentativa de captar qualquer ruído do lado de dentro. Mas a chuva despencava com
força sobre o teto. O barulho era tão forte que mal podia ouvir a própria respiração.
Afastou-se, conformado.

Talvez eu devesse entrar e conversar com ele pessoalmente... Mal começou a ponderar a
ideia, já havia a descartado. Começou a sentir frio, então se apressou. Abaixou e enfiou a
carta pelo vão inferior. Deu três fortes batidas na porta e correu.

—x—

Havia sonhado coisas estranhas outra vez.

Acordara se sentindo esquisito, as pernas um tanto dormentes, embora não de maneira


desagradável. Seu baixo ventre formigava, e em suas veias circulava a frustração de correr
para algo e não conseguir alcançá-lo.

No sonho viu-se abraçado novamente pelo professor. Não sentia apenas os braços dele em
volta de si, mas também a movimentação de suas mãos e corpo. Tinha fresca na memória
recente a lembrança dos dedos firmes, dedilhando e apertando-lhe os flancos. Fazia cócegas
em lugares que jamais imaginou que fosse possível senti-las. A sensação conduzia-o a uma
disposição crescente que contaminava seu sangue, incitando-o a ceder. Estava entregue e
entorpecido sem saber a quê nem de quê. O abraço era tão morno, seu rosto tocava o fraque
do professor com uma maciez sem par. No sonho havia uma serenidade inexprimível
pairando ao redor de ambos. Embora por dentro estivesse trêmulo, como se suas entranhas
travassem uma guerra contra os seus pensamentos. Ao acordar, seus membros queimavam
de um confuso desejo, mas estava completamente sem direção. O cheiro de tinteiro e papel
lhe subiu tão vivo às narinas, que era como se Benjamin estivesse ali, debaixo de suas
cobertas, junto de si. Mas esse era um disparate tão absurdo, que só de imaginá-lo a
vergonha mordia-lhe por dentro com presas de ferro. Logo esquecerei esses pensamentos,
são apenas sonhos, estúpidos sonhos.

Daniel permaneceu imóvel, os olhos fixos no teto, vidrados como duas gemas azuis e
estáticas. Ficarei aqui até que isso passe. Sua pele pinicava como se saísse nu ao sol após
anos escondido num cômodo úmido e escuro. Preciso de um banho.
Seu estado de profunda agonia foi interrompido pelas criadas que vinham trazendo água
quente para o seu banho matinal. Antes de entrar, a primeira delas colocou seu balde
fumegante no chão e abaixou-se para apanhar um papel lacrado que avistara a poucos
centímetros da porta. Com seu sorriso mais submisso, ela foi até o garoto para entregar-lhe
o achado e depois voltou a atenção para os seus afazeres.

Daniel saltou da cama com fogo a lamber-lhe as paredes do estômago. Correu para longe
das criadas, em busca de alguma privacidade. A carta em mãos, apertada, e os dedos frios
de ansiedade. Arreganhou a janela e empoleirou-se no parapeito sem se importar com o
vento frio que lhe castigava o rosto. Quebrou o selo e começou a ler, faminto de uma fome
que nunca antes experimentara:

Meu caro jovem Darlington,

Não sabe como me deixa aliviado receber de você estas palavras. Não tentarei amenizar
minha preocupação com o que aconteceu, pois nunca fui o tipo de homem que sabe disfarçar
suas fraquezas. E é redundante para mim, dizer o quanto essa situação também trouxe
aborrecimentos. Passei o dia apreensivo, refazendo mentalmente toda a discussão em busca
de pistas ou deslizes que me levassem a entender melhor o que causou aquela tua reação. No
fim, fui obrigado a reconhecer minha própria insensibilidade.

Preferi não voltar a procurá-lo, pois pensei que a solitude seria mil vezes mais favorável para
o seu ânimo que a minha presença. E fico feliz por não ter errado nesse palpite. Não há
companhia mais apropriada que a própria consciência em momentos como esse. A voz da
mente não nos diz mentiras.

Mas, em vista das consequências gerais, permita-me desculpar por quaisquer mágoas ou
provocações que minhas palavras lhe causaram. Talvez eu o tenha interpretado mal. Não é a
primeira vez que minha ousadia é tomada por atrevimento e provoca mal entendidos dessa
natureza. Tenho a terrível mania de ganhar liberdade com muita facilidade. Mas sou sincero
quando digo que não houve, da minha parte, qualquer intenção de conduzir as coisas para
aquele fim desagradável.

Aproveito para lhe assegurar de que a minha consideração pelos seus sentimentos continua
intacta, e que respeitarei sua decisão de proceder como mais confortável lhe parecer. Também
não me agrada voltar a cutucar feridas que ainda não foram completamente curadas. Tome o
tempo que lhe for necessário. Afinal, o que é homem senão um escravo dos remédios que cabe
apenas ao tempo ministrar?

Agradeço-o por todos os cumprimentos, embora eu admita que tenha certa dificuldade em
aceitá-los. É um rapaz bastante sincero e gentil. Sabe como usar as palavras para deixar um
homem crescido mais encabulado que o admissível. E faço das suas as minhas palavras para
descrever a estima que tenho por ti.

B. Mitchell.

Mesmo após terminar a leitura, Daniel demorou a perceber que as empregadas já tinham
ido embora. Olhou em volta, satisfeito por estar sozinho. Saltou da janela, o coração dando
coices contra o peito. Despiu-se apressado, largando as roupas pelo caminho. Ansiava
apenas pelo calor da água quente para assentar a difusão indócil de sentimentos que
pareciam querer romper a barreira da carne.

—x—

Foi uma surpresa quando o sol despontou no céu naquela manhã. Da sala, era possível
ouvir a conversa das empregadas discutindo sobre a imprevisibilidade do tempo,
atribuindo o fato à suas próprias crenças e superstições. Mas, para Daniel, a surpresa maior
estava diante dele, com um olho roxo e alguns arranhões na face.

Christopher chegara durante a madrugada, ouvira Emma dizer. A mãe estava tão
assombrada pelo risco que o filho mais velho correra sobrevivendo de carruagem à
tempestade, que creditou a “façanha” a um milagre. “Foi a mão do bom e generoso Deus
quem o trouxe a salvo de volta para casa”, ela bradava. Assim que o dia clareou, mandou
chamar um criado para selar o melhor cavalo e acompanhá-la até a capela. E lá ela passou
toda a manhã em devoção às orações.

O humor do pai já não era assim, tão amistoso. Daniel ouviu de Olivia que Percival havia
passado um bom tempo trancafiado com Chris em seu escritório. E tudo o que escapava lá
de dentro eram vozes que se confundiam facilmente com as trovoadas.

— Como não escutei um ruído sequer a noite toda? — Daniel perguntou, abismado,
enquanto seu desjejum era servido. — Meu sono é tão leve que acordo se um alfinete cair
no colchão.

— Sim, mas não se esqueça da recaída que teve ontem, muito menos da semana de estudos
que fugiu à sua rotina. É natural que tenha tido um sono mais pesado.

— Não diga essas coisas, Liv. — Chris espetou o garfo numa panqueca com violência
desnecessária, embora seu rosto fosse dos mais sorridentes. — Faz parecer que Dan nunca
poderá exceder suas expectativas, que assim como as do resto desta família, são tão
limitadas, que se derem um passo a frente, correm o risco de não saírem do lugar. É tudo
uma questão de se adaptar, irmãozinho.

Percival entortou o bigode que mais parecia uma velha lagarta se contorcendo abaixo de
seu nariz. Seus olhos faiscavam. Apanhou o jornal e arreganhou-o diante do rosto, criando
uma barreira entre ele e o restante da mesa. O café da manhã continuou no mais mórbido
silêncio. O Sr. Darlington só desfez de sua armadura quando Benjamin juntou-se a eles.

O professor tinha a longa e loura cabeleira solta naquela manhã. As lentes redondas, como
sempre, encimando os olhos verdes. Daniel respirou fundo ao sentir o coração expandir
dentro do peito. Que bom que tudo se resolveu entre nós. Mal posso esperar para saber sua
opinião sobre minha análise de Werther. Teremos muito que discutir na aula de hoje. O
professor cumprimentou todos antes de sentar e demorou-se um pouco mais em Chris,
enrugando as sobrancelhas para a aparência do rapaz.

— Que foi, professor? Pareço mais bonito que o habitual? Não fique tão surpreso, logo esses
machucadinhos irão sumir e voltarei a ser como era.

Benjamin passeou os olhos em torno da mesa, como se pudesse encontrar respostas no


rosto de alguém. Mas nenhum dos presentes parecia disposto a socorrê-lo. Daniel sentiu-se
constrangido por ele. Desejou em segredo que o irmão já estivesse esgotado de sua cota
picante de piadinhas — o que já poderia ser comemorado como um progresso. O que
aconteceu, afinal? Seu único consolo era Mitchell, que parecia tão alheio aos fatos quanto
ele mesmo.

— Quando chegou? Mal posso acreditar que atravessou toda a tempestade.

— Deus, aparentemente, está do meu lado. Ao contrário desta casa que se diz abençoada
por Ele. — Respondeu Chris a Benjamin, gargalhando do próprio sarcasmo como se para
torná-lo mais evidente. Não houve aquele que permaneceu imune à provocação, mesmo
Daniel que não era apegado à religião e desconhecia a conjuntura da situação. — Cheguei
pela madrugada, mas estou de partida amanhã. Se esse tempo maluco me permitir, é claro.
Não estou disposto a repetir a aventura da noite passada.

— Ah, é claro! As férias de verão acabam nesta semana. — A voz de Mitchell parecia ser a
única coisa viva naquela sala. — Aproveite seu último ano de universidade. Apesar de ser o
ano mais exigente, nem se compara ao que terá de encarar quando estiver com o diploma
em mãos. É um mundo concorrido lá fora. Tem sorte de já estar encaminhado na Câmara.

— Estou mesmo, não estou, professor? — Chris riu. — Trate de encaminhar meu
irmãozinho também. Tem bons métodos e contatos, é o que dizem sobre você. E Dan tem
potencial, sabe disso. Não podemos desperdiçá-lo deixando-o mofar aqui.

Daniel enrubesceu, ansioso por ouvir o que o professor teria a dizer sobre aquilo. Trocaram
olhares, o de Mitchell confiante e engrandecido pelo seu melhor sorriso. O ingênuo bom
humor de Benjamin lhe trouxe segurança em meio a uma mesa tomada por teias invisíveis
de tensão. Tem um rosto ainda mais gentil quando sorri.

— Bom, assim que eu tomar um conhecimento mais aprofundado das aspirações de Daniel,
pretendo sim, conduzi-lo da melhor maneira em seus futuros estudos. Antes de tudo, creio
que o certo seja respeitar suas decisões.

— Suas decisões, você diz? Engraçado. Diga a ele, papai. Diga ao Sr. Mitchell sobre os seus
planos! — Christopher levantou-se deixando um murro sobre a mesa pontuar suas
palavras. Benjamin arrastou sua cadeira para o lado, naturalmente repelido pelo rompante
de fúria inesperado. — Conte sobre como o senhor pretende acorrentar Daniel a esta casa
até o fim de seus dias! Conte sobre o amor incondicional que tem por este patrimônio, mas
tão grande que o impede de enxergar a realidade do mundo fora de suas benditas terras!

O Sr. Darlington pousou sua xícara fazendo uma careta para o gole de chá que acabava de
engolir. Devagar, massageou a testa com as mãos. O modo excessivamente calmo como
manifestava sua apreensão, só servia para deixar os outros ainda mais curiosos. Por que é
que ninguém diz o que está acontecendo?! Daniel sabia que seria repreendido ou ignorado se
fizesse qualquer pergunta. Preferia não arriscar. As chances de o pai mandá-lo desaparecer
eram tão exatas, que a verdadeira surpresa se escondia por trás do motivo que lhe dava
permissão para ainda continuar sentado à mesa. Se ao menos Olivia ou o Sr. Mitchell
interferissem, se dissessem algo, qualquer coisa... Mas em razão das circunstâncias, os
esclarecimentos teriam de ser adiados.

— Não aqui, Chris, por favor. Passamos parte da madrugada discutindo esse assunto. Já
sabe minha decisão. Contenha-se. Ben e seus irmãos querem desjejuar em paz.

— PAZ?! — Outro murro foi lançado à mesa fazendo os copos e pratos tilintarem. Daniel
sobressaltou-se, com medo, mas sem a coragem de sair do lugar. — Há uma guerra
acontecendo nas cidades e o senhor deseja desjejuar em paz. Mais de oitenta trabalhadores
foram brutalmente assassinados em motins, só nesta semana. Se bem que, nas condições
que trabalhavam, cedo ou tarde a morte era destino certo. Um alívio, de tão desgraçados
que se encontravam! E o senhor, assim como outros senhores de terra com a capacidade de
interferir, preferem se agarrar às saias daquele bando de sacerdotes vagabundos e
mesquinhos. Mas quem se importa? O senhor Darlington quer que seus filhos desjejuem em
paz! Bravo!

Por um instante Daniel pôde jurar que vira um relance de cor tomar o rosto do pai, mas
olhou novamente e já não estava mais lá. Então, naquela fração de silêncio as palavras do
irmão retumbaram: Guerra? Só pode estar blefando, tem que ser mentira, tem que ser!
Christopher ergueu um coro solitário de palmas, enquanto Benjamin espiava o jornal pelo
canto de olho com grande interesse.
— Não é mentira quando diz que nós, senhores de terra, temos poder influente em mãos.
Mas o que espera que eu faça? Sou um homem dentro da lei. Pago minhas contas, sirvo com
lealdade, pela prosperidade e proteção desta casa! Não tenho nada além dessas terras e da
minha família. E você chega até aqui com um plano de sabotar o próprio Parlamento e pede
que eu estenda a minha mão? Seria menos trágico se apontasse de uma vez a pistola na
cabeça de cada um de nós.

— Ah, a covardia do homem de bem! Sempre colocando a família à frente de seus medos e
indolências. — Chris gesticulava largamente numa tentativa teatral de representar a atitude
do pai. O resultado da encenação foi algo que beirou o grotesco. — Não pense o senhor que
compactuarei para encobrir a conivência dos seus crimes. O mundo não se restringe dentro
dessas malditas paredes! Há decisões que podem ser difíceis, mas se não as tomar hoje,
voltarão com o peso multiplicado. E ninguém sofrerá mais com elas do que Liv e Dan.

— E quem poderá me garantir que o sofrimento deles não será maior se eu arrastá-los para
o olho do furacão? Basta! Esse foi o limite de seus rompantes e discursos extremistas. Se
ainda deseja viver sob a segurança deste lar, com o amor de sua mãe e irmãos, deixe sua
rebeldia do lado de fora da minha porta.

O efeito da última frase em Christopher era quase palpável. Daniel ficou em dúvida se seus
olhos fulminavam de medo ou raiva. Talvez um pouco de cada um. Desejou mais do que
nunca que a mãe estivesse ali. Queria suas palavras inflamadas, seu jeito espalhafatoso,
mas cuidadoso de resolver as coisas. Sentia-se como uma criança perdida e assustada em
meio à balbúrdia da capital. Estivera poucas vezes em Campvale, mas jamais se esqueceria
da gritaria, da marcha infindável de botas pisoteando tudo o que encontravam pelo
caminho, sem se preocuparem com o que era vivo ou morto. Havia também o rugir
metálico e estridente das carruagens se espremendo em ruelas estreitas. Era assim que
estava se sentindo: emparelhado, sufocado, os pensamentos falando tão alto, colidindo,
deixando-o desnorteado.

Como se não bastasse o ponto em que a disputa de argumentos havia chegado, Chris parecia
ter algo mais a trovejar.

— O senhor, papai, não passa de uma estúpida ferramenta provedora. Prefere engordar a
ostentação inóspita do Estado ao invés de apoiar a causa do próprio filho! Nenhum de vocês
enxerga além do próprio umbigo. Tudo com o se preocupam é proteger seus próprios
interesses, quando têm em mãos poder de fazer muito mais. Essa sua negligência mal
justificada faz do senhor um assassino! Se leu o jornal de hoje deve saber muito bem disso.

Ninguém moveu um dedo sequer enquanto Christopher jorrava seu discurso inflamado
para cima do pai. Quando terminou, o rapaz tinha as bochechas rubras de raiva. O caçula
chegou a temer que fosse explodir. Os olhos tinham um aspecto que não se parecia com
nada que Daniel pudesse comparar. Não deste mundo. Olivia segurava as lágrimas, mas
secou-as antes de deixá-las cair. Foi a primeira a deixar a mesa. O segundo foi Percival. Em
espantosa serenidade, afastou a cadeira para trás e levantou-se. Antes de deixar a sala
disse:

— Aproveite sua estadia, Christopher, grave bem este lugar na memória, cada cômodo, cada
fresta. Pois quando estiver fazendo suas malas amanhã, saiba que é a última vez que seus
pés tocam este chão. Não voltará a se sentar nesta mesa, ou a respirar o mesmo ar que o
assassino do seu pai. Sua presença não é mais desejada e não será tolerada nesta casa.

— Covarde! Desgraçado! Nunca passou de um velho covarde!

Christopher cuspiu mais de uma fileira de ofensas nas costas do pai. Aos poucos sua cólera
foi se desfazendo em uma torrente de gargalhadas, que por sua vez converteram-se num
berro cortante, e por fim, começou a chorar. Bateu com a testa contra a mesa, as mãos em
volta da cabeça enquanto grunhia dizeres ininteligíveis consigo mesmo.

O corpo de Daniel moveu-se sozinho. Correu porta afora, esbarrando numa das empregadas
pelo caminho. Não enxergava nada, não pensava em nada. Havia um borrão diante dos
seus olhos. A única coisa real naquele instante era o vento cortante que arranhava seu rosto
enquanto corria. Sequer dava para sentir as lágrimas escorrendo.

O que aconteceu? O que está acontecendo? O que acabou de acontecer? O que, por quê? O que
significa todas aquelas coisas sobre mortes e guerra? Sobre Chris ir embora, sobre... As
perguntas atropelaram a lentidão com que tentava pensar em respostas. Os pés, entretanto,
eram velozes, e avançavam pela campina como se tivessem um destino certo. Mas no fundo,
ele sabia que corria para lugar nenhum. A cada segundo o casarão era deixado mais e mais
para trás, e, por enquanto, sentia-se vitorioso por isso.

—x—

Seu estômago revolvia. O pouco do desjejum que engolira estava entalado na garganta, com
gosto acre, bastante desagradável. Tinha o rosto afundado entre os joelhos e os braços
abraçavam as pernas com força, como se isso lhe desse alguma segurança. Não soube por
quanto tempo ficou ali, daquele jeito. Seus pulmões e garganta doíam tanto. Tanto. E por
isso se esforçava para não chorar. Mas quanto mais resistia, mais o impulso o assaltava com
força, fazendo seus órgãos se estirarem dolorosamente. Podia nomear o que sentia de
medo, mas quem teme, teme a alguma coisa. E sequer sabia a origem daquele sentimento. É
mais fácil ter medo do que a gente conhece, mesmo que não entenda.

Ninguém havia ido procurar por ele. Nem mesmo Olivia, nem mesmo seu pai. Não sabia
dizer se deveria se sentir grato ou triste por isso. Acabou concluindo que não valia a pena se
importar. Olivia deve estar tão brava e chateada como qualquer um de nós.

Ouviu um farfalhar de folhas que ia aumentando de volume, embora não houvesse vento
algum. Quando ergueu a cabeça, sua visão estava borrada, e por isso, demorou a decifrar a
figura que se aproximava.

— Não acha que deveria entrar? Está ficando frio aqui fora. Especialmente aqui, no campo
aberto. — Benjamin estava de pé a sua frente. — Imagine como sua mãe não ficaria se o
visse dessa maneira. Não precisamos dar a ela mais essa preocupação, não é mesmo?

— Não acho que lá dentro esteja melhor do que aqui.

O professor olhou para os lados. Suspirou, resignado, como se concordasse. Aproximou-se


com diligência. Daniel percebia que ele contava os passos. Benjamin tirou o próprio
sobretudo e sentou ao seu lado, recostando-se no tronco do velho castanheiro. Jogou a peça
de roupa sobre os ombros do rapaz, trazendo à tona aquele cheiro característico de tinta.
Daniel encolheu-se dentro da roupa que era quase o triplo do seu tamanho. Estava quente.
Quente do calor dele.

— Falei com sua irmã — disse o homem. — Ela me disse que Chris e mais alguns rapazes
estão encabeçando um projeto em prol dos operários. Quer criar um sindicado trabalhista e
candidatar-se ao parlamento.

— Não faço ideia do que isso significa. — Respondeu, sacudindo a cabeça com seus olhos
injetados e inchados. — É algo tão grave que justifique papai tê-lo expulsado de casa?!

— Bem, sim e não. Nenhum dos dois está totalmente errado ou totalmente certo. Há
coragem e justiça no que Chris diz e pretende fazer. E riscos também. Grandes riscos. Mas
não podemos censurar seu pai por querer proteger sua família. São caminhos diferentes.
Embora o nome Darlington possa sofrer consequências, mesmo que seu irmão nunca mais
volte a pisar aqui.

Daniel sentiu que novas lágrimas teimavam em brotar, mas engoliu o choro e esfregou o
rosto com a manga da camisa. Não posso chorar na frente dele outra vez, ou vai acabar
julgando de vez que sou um fracote digno de pena. Se bem que, o que sou, não é muito longe
disso. Queria que Mitchell o abraçasse como no sonho. Sentiu-se tolo por isso, mas queria
seu calor e um pouco de segurança. Ter onde escorar e se agarrar, porque sentia como se
nada dentro do casarão o pertencesse. Chris, Olivia, seus pais... todos pareciam imersos em
seus pequeninos mundos, com problemas maiores para se ocuparem. Nessas horas o caçula
era apenas o caçula. Menino demais, ingênuo demais, pouco adulto demais.

Fora daquele seio havia Benjamin, que estava ali para se ocupar dele e nada mais. Bom, ele
ainda tem seus trabalhos particulares. Mas conseguia conviver com isso. Dividi-lo com uma
pilha de papéis não soava assim tão mal. Se algo der errado posso pedi-lo para me levar
embora daqui. Gostou da sensação que o pensamento desencadeou, como um remédio
tranquilizante que se alastra pelo corpo.

— Eu sonhei com você essa noite. — Disse, deixando as palavras escorregarem, sem saber
ao certo a razão de contar aquilo ao professor. — No sonho o senhor também tinha cheiro
de tinta e papéis.

Um riso abriu-se com facilidade no rosto do professor. Estava encabulado. Daniel nunca viu
alguém que parecesse tão humano quando sorria. Seu sorriso fazia o mundo parecer
desprovido de tristezas. É isso. É daí que vem esse seu ar gentil. Me faz sentir feliz.

— Tinta e papéis, hã? Acho que no fim das contas, não consigo evitar.

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