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rey Th nM 7% va ali =. LM a SBS Gas 9 —_ ee le eel A capula mével do Cinema Ideal, que aria nas noites de Verio. “Este artigo fol publicado na obra coleetiva O Brasil Republicano, Tomo Ul, 4 volume ~ Economia © Caltwra (1930-1963) ~ Ed. DIFEL, Sio Paulo 1984, pp. 465-197 Cinema Brasileiro 1930/1960 Maria Rita Galvio e Carlos Roberto de Souza‘ 20, com consequencias marcantes para a modesta produ- so nacional de filmes. Na passagem para os anos 30, 0 nema brasileiro vive um momento de grande animacao. Os imagem € universal e pode ser compreendida por t Povos, 0 mesmo nao acontece com a fala: supunha-se que cinema falado em lingua estrangeira nao seria aceite pela grande maioria do piblico brasileiro, ignorante de qual- ‘quer outra lingua que na« tempo,Passado o primeiro entusiasmo que qualquer novi- dade provoca, o piiblico certamente se afastaria dos filmes estrangeiros e se voltaria para a produgdo nacional falada em portugués. Restava ao cinema brasileiro aproveitar a oportunidade: chegara a sua vez. O cinema brasileiro vivia totalmente marginalizado do mercado exibidor, Durante os trinta anos anteriores, desenvolvera-se Iehta e penosamente uma produgfo cine- matografica artesanal bastante primitiva, que enfrentava toda a sorte de dificuldades, ma época em que a produgao cinematografica desenvolvi- Eva Nil protagonista de Na Primavera dla Vide primeira tonga- ‘metragem de Humberto Mauro, da ja implicava grandes investimentos. Apesar disso, esta producao precaria, parca e marginalizada conseguia a pou- co e pouco tomar pé; ainda que hi custa de intimeras ten- tativas mal-sucedidas, aprendiam-se os procedimentos niicos, desenvolvia-se a finguagem, superavam-se — com variados esquemas de cavacdo subdesenvolvida— os pro- blemas de financiamento, contoravam-se as dificuldades de produgao. No final dos anos 20, uma producao cinema- togrdfica nacional variada e estimulante, embora pouco numerosa e sem divida ainda precaria, atestava um domt- nio crescente dos recursos de expressto do cinema. Data. deste periodo, justamente, os melhores filmes mudos br leiros: Barro Humano, dle Adhemar Gonzags; Brasa Dor- ‘ida e Sangue Mineiro, de Humberto Mauro; Fragmentos da Vida, de José Medina; ¢ 0 legendario Limite, de Mario Peixoto, iniea incursao do cinema mudo brasileiro na van- guarda estética,/ Porém isto ocorria na virada da década, quando toda a linguagem cinematografica laboriosamente construida durante tantos anos, baseada nos pressupostos técnicos ¢ estéticos de uma arte muda, jé estava condenada pela revolucao sonora, E ainda —o que é-mais impor tante— tratava:se de uma produc&o eminentemente artesa- nal, que nao tinha a menor condigao de concorrer em mer- cado com a producao estrangeira industrializada. ‘A industria estrangeira. —e fundamentalmente americana — atulhavay os-nossos_mercados’com grande quantidade de filmes de todos os tipos que satisfaziam ple- namente 0 piblico. Acostumado a qualidade € ao bom acabamento do cinema estrangeito, 0 pitblico rejeitava 0 ptimarismo da produeao nacional, nas raras oportunida- des que tinha de vé-la nos cinemas; acostumado a ver re- flectida na tela a imagem reconfortante da realidade de paises desenvolvidos, nao recebia bem o reflexo do proprio subdesenvolvimento, traduzido sem disfarces e sem inten- glo na crueza das imagens do cinema brasileiro. Em tomo do cinema brasileiro, se organizara toda uma estrutura de imporiasao, distribuigao e exibicdo cinemato- grafica na qual a produgao brasileira no era necessaria nem tinha funcao. Evidenciava-se o facto de que o cinema brasileiro nao teria vez no seu proprio mercado enquanto, de algum modo, néio se conseguisse barrar cinema estran- geiro. Removido este obstaculo fundamental, os outros se superariam. Ao cinema brasileiro —dizia-se— com todas Aurora Miranda © Carmen Miranda em Ald, Ald, Carnaval de Wallace Downey e Adhemar de Barros (1935) um dos raros filmes brasieiros de ‘Carmen Miranda de que se conhece eipia 28 suas deficiéncias nao faltavam vigor e potencialiciades. De algum modo enconiraria o seu rumo — ¢ desde logo € preciso que se diga que o rumo almejado para o cinema brasileiro eta precisamente o de igualar-se ao cinema es- trangeiro aparecimento do falado parecia indicar que, final- mente, a situagtio tendia a inverter-se: 0 cinema estrangeiro seria preterido em favor do brasileiro. O proprio cinema estrangeiro criara uma barreira —a da lingua— que iria afastar dele 0 piblico ¢ permitir ao cinema brasileiro a ocupagiio do seu mercado. Acreditava-se que o desenvolvi- mento da produgto nacional viria fatalmente, como resul- tado de um processo natural ¢ necessirio. A demanda do iblico faria com que se produzissem cada vez mais fil- mes; com 0 aumento da quantidade, os filmes iriam se aprimorando, ¢ em pouco témpo se igualariam em qualida- de aos estrangeiros. E mais: descnvolvida a cinematografia nacional, 0 Brasil poderia mesmo substituir os Estados Unidos nos mercados latino-americanos — a proximidade das linguas faria com que os filmes brasileiros tivessem aceitacdo garantida. B claro que se cogitava também na possibilidade de a reciproca ser verdadeira: filmes falados em espanhol, ou mesmo em italiano, da mesma forma se~ riam compreendidos no Brasil. Porém nao se temia a con- corréncia de filmes italianos ou hispano-americanos: a pro- dugdo de outros paises latino-americanos era to ou mais, precaria que a brasileira, ¢ 0 nosso pilblico, acostumado durante anos 4 preponderancia da produgdo americana, apreciava menos os filmes europeus — muito lentos, muito pobres, muito antiquados face ao moderno cinema ameri- cano.'Mas, mesmo se admitindo a hipdtese da presenca de filmes falados em espanhol ou italiano no nosso mercado, © a accitacdo desses filmes por parte do pablico, eles nao constituiam perigo: ndo s¢ tratava dé cinematografias de senvolvidas e poderosas como a indistria americana, com las o cinema brasileiro poderia facilmente concorrer. Por qualquer lado que se encarasse a questo, previa-se o fim do dominio norte-americano e o fatal desenvolvimento da cinematografia brasileira, \ Porém, para enfrentar o desafio do tempo, era necessi- tio industrializar-se rapidamente, superando a fase da pre- ctria produgdo artesanal que até o momento tinha caracte- rizado os nossos filmes/ Era preciso criar uma verdadeira industria cinematogratica, com estiidios, maquinaria ade quada, efi lente © moderna, e com técnicos profissionais competentes / Era imprescindivel acabar com o precério fi- nanciamento de cavagéo, com a producéo amadoristica, com a improvisacao generalizada do cinema brasileiro, sem 0 que seria impossivel a superacdo rapida do estagio Primitivo de desenvolvimento em que ele se ncontravapE, evidentemente, era preciso interessar capitalistas dispastos a investir na actividade cinematografica, porque sem di- nheiro no se faz nada disso; fundamentalmente, nao se importam maquinas nem se constroem fabricas.\O equipa- Mento ¢ os estiidios séo verdadeiros mitos no pensamento cinematografico da época, € como se por si s6s, por sua simples existéncia, fossem resolvidos todos os problemas ddo cinema nacional. Bom nema’ Se faz cont estidios mo= dernos, bem equipados e organizados, fabricas de filmes capazes de produzir em quantidade ¢ em condigdes ade- quadas que permitissem a produgio de qualidade) Indis- ‘tia cinematogréfica — eis a chave para o desenvolvimento./ \\Por um curto periodo de tempo, a iluso pareceu tornar-se realidade, No Rio de Janeiro em 1930 6 fundada ‘8 Cinédia, produtora que concentra em si as grandes espe- rangas do momento, visto que tem a frente um dos maiores entendidos em cinema de que o Brasil dispunha entao: Ad- hemar Gonzaga, eritico ¢ redactor, da revista’ Cinearte ¢ realizador de Barro Humano (1929){Ao mesmo tempo, & airiz Carmen Santos, que j4 havia participado da produ- fo de alguns filmes nos anos 20, funda a Brasil Vita Fil- mes, outra produtora que tem 0 objective explicito de de- senvolver um cinema industrial de qualidade/Em varios Estados, alguns ciclos regionais agonizantes se reanimam, contagiados pelo entusiasmo geral. Em Sao Paulo, muitos produtores lancam-se avidamente a novidade do som; de- pendendo de suas possibilidades téenicas e financeiras, ad- quirem, adaptam, improvisam ou tentam inventar apare- Ihamento de registro e sineroniza&o sonora, produzindo filmes total ou parcialmente sonorizados, falados ou mera- ‘mente musicados, ou limitando-se a sonorizar filmes origi- nalmente mudos. Embora de existéncia efémera, € enorme Quem dri, mas ¢ mesmo Carmen Miranda numa foto publicria dos Inicos dos anos 30. 2 quantidade de companhias que surgem, tentam produzir ou efectivamente produzem um ou dois filmes antes de de- saparecet} Alguns homens de dinheiro — é verdade que poucos (Joaquim Garnier, Isaac Saidemberg, Alberto Byington) — dispdem-se a investir em cinema, a criar no Brasil a verdadeira indastria cinematografica/Alguns esta- ios, bastante precérios ainda, s2o instalados, ¢ importam- -se algumas efmaras modernas, especialmente para a fil- sagem de uma ou outra produco mais ambiciosa. Os jor- sais comentam com orgulho os altos custos (relativos) de @igumas producées —Escrava Isaura, Iracema, As Armas—, a grande figurasdo de que se utilizam, a quali- dade da fotografia e 0 seu bom acabamento (preciso de cetalhes, reconstituiedes de ambientes de época) como re- sultado directo da filmagem_em-«estidios»modernos € cquipados». © cinema brasileiro finalmente comegava @ construir as suas «fabricas de filmes». s resultados imediatos de toda esta animagao sfo pro- missores. Muda, falada ou semi-sonorizada, na passagem da década a produe%o brasileira se revitaliza, cresce a olhos ‘istos, ¢ exibida sem grandes problemas. Os primeiros fil- es sonoros brasileiros obtém um sucesso notivel. De inicio, 9 falado tem em Sao Paulo o seu grande cen- ‘ro produtor. © primeiro filme nacional totalmente sonori- zado € um filme paulista. Acabaram-se os Otérios (1929), de Lufs de Barros — um dos mais activos realizadores bra- sileiros. Sincronizada com discos, esta «super-comédia em seis actos» comtava as aventuras de dois caipiras (Genésio Arruda e Tom Bill). A historia do matuto Arrudinha, que chega a cidade grande e acaba comprando um bonde, lem- bra a primeira comédia cinematogrifica brasileira, Nhd Anasticio Chegou de Viagem (1908) — bem do gosto po- pular. Aproveitando o sucesso do filme, logo surgem ou- tr0s com a mesma dupla eomica: Lua-de-Mel, O Babao, Campeito de Futebol. Estes filmes indicavam um rumo que teria boas possibilidades priticas de continuagtio no cine- mma brasileiro. A produtora (a Synerocinex), sem dispor de recursos que Ihe permitissem seguir os conselhos da critica a epoca, construindo estéidios ou importando equipamen- to refinado, filma nas precérias eondi¢des com que conta, em barracdes improvisados e com o equipamento disponi- vel, da mesma forma que a grande maioria das produtoras nacionais do momento. O resultado sao filmes baratos e de grande aceitagao popular. Ao lado da chanchada caipira de Luis de Barros, outro rumo proficuo para o cinema nacional era apontado por Cousas Nossas (1931): 0 aproveitamento dos cantores ¢ Cotsas Nossas 0 primeiro éxito sonoro do cinema brasileta, realizado por Wallace Downey em 1935 . Foi uma das “chanchadas” de maior sticesso de todos os tempos atores que a rédio nascente comegava a tornar populares. Alberto Byington Jr. e Wallace Downey, respectivamente produtor ¢ realizador deste primeiro «musical» brasileiro, interessam-se pelo cinema com espirito realmente empresa- rial, ¢ continuarao activos durante a década de 30. Alberto Byington pertencia a uma familia de industriais e negocian- tes que incluia em sua actividade o ramo da aparelhagem eléctrica; Wallace Downey era um americano ligado & casa Byington, e ocupando posico de destaque na fabrica de discos Coliimbia. O aparecimento, depois de décadas de cavadores modestos, de personalidades como estas A testa de uma produtora brasileira (a Sonofilmes) parecia real- mente significativo de mudancas radicais na cinematogra- fia nacional. Com Cousas Nossas, o cinema brasileiro pro- curava canhestramente imitar os primeiros musicais ameri ‘anos que chegavam ao Brasil, porém o resultado nada ti- nha de semelhante: criava-se um género cinematogritico profundamente brasileiro que seria fartamente explorado pelo cinema earioca dos anos 30. O veio da chanchada ¢ 0 do musical se fundiriam em comédias entremeadas de can- ses populares, enraizadas nas tradigdes do teatro ligeiro do cireo, que em func&o dos artistas ¢ temas populares sempre teriam o seu lugar entre as camadas menos sofisti- cadas da populacio, Estes filmes, sem se preocuparem em procura-la, encontravam uma forma realmente brasileira —e duradoura— para 0 nosso cinema. Cousas Nossas apresentava desde Paraguacu, veterano de serenatas bo’- mias € de serdes familiares paulistanos, até os cémicos ¢ cantores da Radio Educadora Paulista; havia também mu- sica fina, e um rapaz cantava Singing in the Rain debaixo do chuveiro; Procépio Ferreira dizia um monélogo; ¢ a personalidade apresentada no prélogo era Guilherme de Almeida, O filme no tinha propriamente um enredo, era uma sucesstto de nimeros artisticos com um epilogo em es- tilo de grand-finale cinematografico, que mostrava a gran- deza ¢ 0 dinamismo de S80 Paulo. As imagens dos edifi- ‘ios maiores eram sobrepostas a fim de dar a impressio de arranha-céus nova-iorquinos, ¢ a montagem rapida de ce- nas de transeuntes e automoveis projectadas em ritmo ace- lerado procurava sugerir um transito infernal. A fita pas- sou praticamente em todas as cidades brasileiras que pos- suiam salas aparelhadas e foi um triunfo. Nunca antes um filme brasileiro tinha dado tanto dinheiro. O entusiasmo de criticos, produtores ¢ cineastas com desenvolvimento do cinema brasileiro parecia plenamente justificado. Porém a reflexaio em torno da cinematografia nacional, embora justificada pela aparéncia dos factos, se apoiava em premissas falsas. Fundamentalmente, na previ- sto da derrocada do cinema ameticano nos mercados es- trangeiros ¢, em decorréncia, na possibilidade de desenvol- Vimento de uma indistria cinematogréfica num pais em que nao havia embasamento de capitais, tecnologia, e mui to menos legislac&o protecionista para a produgdo indus- trial em qualquer campo. O que nao foi possivel perceber no Brasil da época foi o Facto de que estavamos apenas so- frendo os reflexos passageiros de uma crise que atingira ‘momentaneamente a indiistria americana e tendia a répida superagao, Nos Estados Unidos, os problemas especificos que en- frenta a indtistria cinematogrétfica decorrentes da introdu- so do sonoro sto agravados pelo craque financeiro de 1929. Em meio & atmosfera geral de retracdo de todos os negécios, as produtoras americanas concentram-se no seu proprio mercado — base de sustentacto de toda a indhistria cinematogrifica— relegando a segundo plano os mercados estrangeiros. Procurando capitalizar e consolidar o interes- se do publico pela novidade, atiram-se & produgo de fal- ‘Kies, ¢ com eles conseguem contornar a crise interna. Po- rém, 05 mercados estrangeiros efetivamente entram em crise ‘As consequéncias deste momento de transigao da in- Gistria cinematografica podem ser claramente percebidas através de seus reflexos nas distribuidoras americanas atuando no mercado brasileiro. Nao hé condicao de impor- tar em grande escala a nova produgio sonora americana Porque os cinemas nao esto aparelhados para exibi-la, € no tem sentido importar filmes mudos quando a grande novidade o som; mais gue isso, dentro de pouco tempo praticamente nao ha mais produgao muda a ser importada. As dificuldades de importacdo provocam a exibigao de int- ‘meras reprises. O problema do reaparelhamento dos cine- ‘mas restringe a exibigfto de filmes falados a umas poucas salas das grandes cidades que tém condicdes aceitaveis de reproducdo sonora. Os exibidores, incertos quanto & per- manéncia do som, hesitam em fazer os investimentos ne- cessarios para se equiparem, improvisam aparelhagens mal ‘seaptadas. Com a precariedade do equipamento técnivo, a s=producdo sonora é em geral literalmente um embrulho. Resolvidos 05 problemas técnicos de instalacao ¢ consegui ge uma reproducdo razoavel, o falado é igualmente incom- prcensivel: justamente é falado em lingua estranha. © desnorteamento em que fica o comércio cinemato- fico brasileiro é patente. Os jornais registram o retrai seento do pablico, queixam-se dos programas repetitivos, & importacdo de peliculas velhas. A dificuldade de obten: fo de filmes é a principal razao pela qual o cinema brasi Siro conhece neste momento um relativo sucesso: os filmes sscionais podem ser feitos e exibidos — varios com lu- <=o— porque a producao estrangeira chega aqui em quan- Sdade insuficiente © de modo irregular. Mesmo algumas Sscribuidoras estrangeiras se interessam em negociar com Dina Tereza, “a Severa” (Leitdo de Barros, 1931) tiunfou no Brasil com fesse fimo, Mais tarde fxou-se Is pars ser a grande vedeta que em Porta 5! nio conseguiu ser. mas com 3 reorganizagio do mercado a sa car. Feira nao prossegui filmes nacionais. O momentaneo sucesso da producao na- ional nao se deveu na verdade a nenhum desenvolvimento organic do proprio cinema brasileiro. Tampouco foram as tentativas industrialistas que criaram condigdes para atrair o publico, melhorando a qualidade dos filmes — pe- 10 contrario, os filmes brasileiros que maior sucesso alcan- gam na época nfo so os que saem dos precarios «esti- dios» que mal comecam a se construir, Nao havia nenhu- ma «inddstria cinematografican sequer esbocada — 0 que havia era o mito industrialista, mera construcdo de ideias inteitamente desvinculadas da realidade conercta. Em resu- mo, 0 cinema brasileiro teve a sua chance porque exibido- res e distribuidores nao tinham melhor escolha. Porém o cinema americano supera rapidamente a crise de transigao, Resolvidos os seus proprios problemas, volta fa se ocupar dos mercados estrangciros, ¢ langa mao de miltiplos recursos para superar a barreira da lingua. Pesquisam-se diferentes técnicas de dublagem e aposiga0 de letreiros. Enquanto elas nao sao viaveis, ainda em 1930 ‘as companhias americanas abrem sucursais na Europa pa- ra a refilmagem de originais americanos em diferentes lin- guas. O Brasil logo é invadido por filmes falados em espa- nhol, e mesmo em portugués. Tais recursos, caros ¢ com- plexos, logo se tornam desnecessarios. A técnica das legen- das superpostas progride rapidamente e, contrariamente a0 ue se previu, 0 piblico se acostuma de imediato com elas. Paralelamente, evidenciada a permanéncia do falado, os cinemas do mundo todo se reequipam com aparelhagem sonora. O mercado mundial se reorganiza. A indistria americana, revigorada pelo falado, produz em grandes Quantidades e se aperfeicoa incessantemente. © mercado brasileiro volta a normalidade, ¢ o cinema brasileiro entra em decadéncia, Toda esta animacto durou pouco tempo. Independen- temente das questdes de mercado, a crescente complexida- de do cinema falado — sobretudo apés a substituicao do primitivo sistema Vitafone, de sonorizacto com discos, pe- lo sistema Movietone, de som otico — criava imensas difi- culdades téenicas ¢ aumentava enormemente os custos de producdo. A oportunidade passou, ¢ 0 cinema brasileiro voltou a ocupar a posi¢ao de marginalidade que sempre foi @ sua no mercado nacional, inteiramente dominado pela producao estrangeira. ‘Também Beatriz Costa fo nos anos 30 para o Brasil a procura da “mil gre brasileito". Na foto, vémo-la em Aldeia da Roupa ranea (1938) rea Tizado por Chianca de Garcia, outro que também fo} atris da “fiticia euloria do eineina brasileiro” nos anos 30 Quaisquer que tenham sido os seus resultados préticos, este periodo de ficticia euforia do cinema brasileiro ¢ extre- mamente revelador. Nele se explicitam com extrema clare- za 08 mecanismos de relacionamento entre a producao lo- ‘cal e a importada: em que pese a sua precariedade, a uma simples diminuicao da presenga do cinema estrangeiro no mercado nacional, o cinema brasileiro floresce, vem tona com estimulante vigor. Por outro lado, mais uma vez demonstrou-se a incapacidade da precéria produgo local de concorrer com um produto industrial importado. A su- Jeig#o do cinema brasileiro ao estrangeiro claramente de- corre da impossibilidade de a actividade artesanal enfren- tar no mercado a indistria — 0 que leva a enxergar como \inica solugdio vidvel para o cinema brasileiro a industriali zagao. A indistria se associa, além da produgao em série, a ideia de «qualidade». Porém, no tendo possibilidade de coneretizar-se, 0 ideal da inditstria cinematografica vira ‘mera construcio ideolégica, Ignora-se o facto de que o de- senvolvimento industrial ¢ totalmente inyiavel sem a exis- tencia de condigdes infra-estruturais que o sustentem, supde-se possivel a industrializagao em decorréncia da von- tade de dois ou irés produtores de criarem «tbricas», on- de se fariam filmes to bem feitos quanto os estrangeiros. Nao se aceita 0 facto de que a produedo artesanal — com todos os seus percalcos — para o cinema brasileiro & condi- sao de existéncia, Num momento em que pequenos filmes despretensiosos baratos, como varios dos que se faziam enti, eram pelo menos vidveis, lutava-se contra o sistema de produgga em que eles se baseavam sonhando com grande industria, esta sim totalmente invidvel. Seria impos- sivel montar do dia para a noite uma indistria cinemato- grafica no Brasil, mesmo porque — como nao se cansavain de repetir criticos € produtores— nao tinhamos capitais, tecnologia, e muito menos uma politica governamental protecionista que criasse barreiras alfandegarias produ- go estrangeira ¢ incentivos a produgdo local. £ evidents ‘que os filmezinhos artesanais deste periodo estavam fada- dos cles proprios a serem massacrados pela produgao ¢s- trangeira, tal como os ambiciosos projectos industrais. ‘Mas ao menos havia a possibilidade pratica de se continuar tentando fazer um cinema modesto e artesanal sem que os prejuizos fossem grandes demais, enquanto que as tentati- vas industrialistas — como bem o demonstraram as expe- rigncias da época e muitas outras anteriores ou posterio- tes— nao tinham a menor viabilidade. Durante toda a década de 30, o cinema brasi nuou a ser feito artesanalmente — s6 que dentro das «fé- bricas de filmes» do Rio de Janeiro. 0 conti- A década de 30: a consolidagao do falado A produgfo cinematogratica brasileira dos anos 30 é fundamentalmente a produgao carioca. Passada a anima- ho dos primeiros filmes sonoros, o cinema paulista perde © vigor, e praticamente desaparece aps 1934. Nos prOxi- mos quinze anos, a contribuigdo de Sao Paulo ao cinema brasileiro nao vai além de meia diizia de filmes, que pas- sam inteiramente despercebidos em meio massa de filmes ‘Sstrangeiros que atulhavam os nossos mercados. No final ‘és anos 30, uma produtora mais ambiciosa (a Companhia Americana de Filmes), que tem a sustenti-la o capital de aleuns grandes fazendeiros, tenta fazer renascer 0 sonho justrialista: € iniciada a construcdo de grandes estidios, jportam-se equipamentos modernos, contrata-se um téc- ‘sico estrangeiro, obtém-se um financiamento oficial para a _produclo — mas todo este esforco traz como resultado um Snico filme —aque ironicamente se chamou Eterna Espe- “ranca— e em seguida a falencia. No resto do Brasil, o cinema s6 nfo acaba completa- ‘seente porque surge a lei da obrigatoriedade de exibieao do ‘complemento nacional (promulgada em 1932, mas que en- ‘=a em vigor efectivamente apenas em 1934). Desde 0 inicio Ga década de 30, paralelamente & producto de filmes de caredo, so numerosos os filmes naturais. As revolugdes ‘de 30 ¢ 32 siio fartamente filmadas por toda a parte onde se desenrolam os acontecimentos, e 0 mesmo acontece com ‘© movimento integralista. A. obrigatoriedade de exibicto do curta-metragem ‘sacional foi a primeira medida efetiva de protectio a0 Gnema tomada pelo governo brasileiro, O periodo de ‘snimago provocado pelo advento do sonoro fez com que -gomentasse consideravelmente o nfimero de pessoas inte- ‘essadas em cinema, E bom lembrar a vitalidade que co- shecetl, nos anos posteriores & Revolucdo de 30, 0 espirito -sssociativo. No campo que nos interessa, surgiram entdo a primeira Associagio de Produtores Cinematograficos © 0 ‘primeiro Sindicato de Técnicos de Cinema, que organizam ‘sconvencdes ¢ manifestacdes de classe junto a Gerilio Var- ‘ess. Estava também no ar a ideia da importéncia do cine- ma na educacdo, gracas as reiteradas campanhas de Fer- sando de Azevedo, Anisio Teixeira, Lourenco Filho, Ro- queite Pinto, Mario Behring e Canuto Mendes de Almeida, © governo nomeia uma comissto para tratar do assunto, formada por comerciantes de cinema, produtores, educa- . Continuava disseminado o sentimento de que, apesar és filmes, nao havia cinema no Brasil. As proprias revis- Ss de cinema podiam elogiar sinceramente Oscarito Grande Otelo, ¢ os sucessos de bilheteria tao animadores ‘p22 o cinema brasileiro, mas jamais ousariam dizer que a Sanchada era cinema. Diziam que os cendrios eram apres- seeds, a5 situagdes ilégicas, 0 corte descuidado, as hist ‘Ses mal costuradas, 0s dilogos ridiculos, o som ininteligi- ‘cl, « fotografia chapada, a produgdo paupérrima. Acha- sem, no fundo, tudo aquilo muito pouco «sérion. B recta- Sava que o Brasil, afinal, no era s6 carnaval: havia o Sendo, a selva amaz6nica, os pampas, o Nordeste, as len- ss « tradigdes, um folclore riquissimo, os grandes perso- seeens historicos, 0 desenvolvimento industrial, o progres- s urbano, a arte ¢ a cultura. Por que o cinema brasileiro ‘So explorava estes temas? O sucesso das chanchadas pro- sera que podia haver no Brasil uma atividade cinemato- ‘efica continua e rendosa: por que no poderia haver Ci- ema? A década de 50; afirmacao industrial eraizes do Cinema Novo final da década de 40 assiste a um revigoramento ge- sal do cinema brasileiro, visivel pela abertura de novas sompanhias produtoras, no s6 no Rio de Janeiro como sambém em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul, ¢ sobre- ado em Sao Paulo. O entusiasmo mineiro e gaticho traz ppouco resultado — apenas um filme em Minas (Caraga, a Porta do Céu) e um no Rio Grande do Sul (Vento Norte). Porm o paulista tera conseqtiéncias radicais para o desen- yolvimento do cinema brasileiro. Durante 0s anos 30 ¢ 40, 0 cinema em Séo Paulo mal existiu. Além da produgao documental, que garantiu um sinimo de continuidade para a atividade cinematografica durante este tempo, ¢ da tentativa frustrada da Companhia Americana, tivemos um filme em 1943 (O Canto da Raga, baseado no poema de Cassiano Ricardo, apreendido ¢ ‘queimado pela censura do Estado Nove sob & acusactio de bairrismo>), ¢ outro em 1946 (Palhaco Atormentado, fil- mado pelo veterano Gilberto Rossi, com 0 palhaco Arrelia), Na passagem para os anos 50, porém, o panorama se modifica inteiramente. Em 1949, dois filmes sto produzi- dos cm Sao Paulo (Luar do Sertdo ¢ Quase no Céu), ¢ en- tre 1949 e 1950 nada menos do que cinco companhias pro- dutoras sao criadas. Nos préximos trés anos, a quantidade de novas produtoras ultrapassa a casa das duas dezenas. A maior parte nto vai em frente, porém dentre elas a pelo menos trés empreendimentos de vulto, sustentados por grupos industriais paulistas: A Vera Cruz, a Maristela ¢ a Multifilmes, que pela primeira vez dariam a critica de cine- ma no Brasil a possibilidade de falar em «indéstria cinema- togréfice» sem eufemismos. Sao Paulo vivia entdo um momento de intensa ativida- de cultural, um pos-euerra rico de idéias ¢ de realizacoes. Num curto espaco de tempo — cinco, seis anos, talvez — a cidade assiste ao nascimento de dois museus de arte, a for ‘macao de uma companhia teatral de alto nivel, multipli- cago de concertos, escolas de arte, conferéncias, exposi- 98es, & eriacdo de uma filmoteca, @ inauguractio de uma bienal internacional de artes plasticas — a tudo quanto inal de existéncia e expansio de um interesse cultural vivo © atuante. Todo este process Vern no bojo do desenvalvi- mento industrial, ¢ é em boa parte promovido pela burgue- sia paulista. O cinema se inclui nesta movimentacto geral: pela primeira vez em S40 Paulo, nos anos 50, este até en- tio considerado «arte menor» passa a ser encarado como ‘manifestagao cultural respeitdvel, que se coloca no mesmo nivel que o teatro, as artes plasticas ou a literatura, formas de arte tradicionalmente respeitadas. Algumas das mais importantes iniciativas culturais da burguesia paulista deste periodo se devem ao grupo lidera- do por Francisco Matarazzo Sobrinho, ¢ seta ao conjunto de instituicdes que tém por base o seu prestigio ¢ a sua for- ‘tuna — fundamentalmente 0 Museu de Arte Moderna ¢ 0 ‘Teatro Brasileiro de Comédia — que ira se ligar 4 Compa- nhia Cinematogréfica Vera Cruz. No Museu de Arte Mo- era (como também no Museu de Arte, criado por Assis Chateaubriand) desenvolve-se intensa atividade cinemato- grafica, em torno de projegdes € discussdo sistematica de filmes, 0 que contribui para fomentar o erescente interesse cultural pelo cinema. Ao Teatro Brasileiro de Comédia — fundado por iniciativa de Franco Zampari, engenheiro que ‘cupava um alto posto nas Metalirgicas Matarazzo — se deve um importante movimento de renovagio do teatro nacional; desvinculando-se da modesta atividade teatral até entdo existente no Brasil, 0 TBC se propés a criar um movimento novo, encenando um repertério refinado de textos classicos ¢ contemporaneos, em montagens moder- nas ¢ bem cuidadas, importandlo da Europa diretores ¢ ce- nografos, € compondo o seu elenco com atores provenien- tes de conjuntos amadores. Em 1949, 9 mesmo grupo funda a Companhia Cinema- togrifica Vera Cruz, que se propée a repetir com 0 cinema © que fizera 0 TBC com o teatro: partindo do nada, criar um cinema brasileiro inteiramente novo ¢ totalmente des- vineulado do que existia até entao, um cinema que, pela primeira vez no Brasil, fosse’ «expresso de cultura». Em Sao Paulo, o desprezo pelo cinema brasileiro € to- tal. Vista de Sto Paulo, a produgo carioca € exclusiva- mente a chanchada — e a chanchada nao era cinema. A Vera Cruz explicitamente repudia o tom popularesco e vul- gar da chanchada carioca ¢ quaisquer vinculagdes com os seus quadros técnicos ¢ artisticos. Pretende, ela também, fazer um cinema «essencialmente brasileiro, mas de quali- dade internacional, um cinema «igual ao estrangeiro», que possa ser mostrado as platéias de todo o mundo. Para isso constréi estiidios gigantescos carissimos, tomando como modelo os de Hollywood, importa o melhor equipamento, contrata técnicos europeus de alto nivel, capacitados @ ga- antir a sua produgdo a almejada qualidade. Do TBC vém a maior parte dos diretores ¢ condgrafos, ¢ iniimeros ato- res, E para dirigir a empresa, a Vera Cruz tem como pro- dutor geral Alberto Cavalcanti, o nico cineasta brasileiro ‘que havia aleangado projeedo internacional, por sua parti- cipagiio nos movimentos da Avant-Garde francesa ¢ do do- cumentarismo inglés. A Vera Cruz implanta no Brasil um sistema de produco altamente complexo, que o cinema brasileiro nunca antes tinha visto ¢ poucas vezes veria de- pois. A sua existéncia é tida como garantia de que, final- mente, @ cinematografia nacional iria alcangar a fase da verdadeira industrializaeao, racional ¢ moderna. O presti- gio dos nomes de Matarazzo, Cavalcanti ¢ Zampari a testa da nova produtora garantiu & Vera Cruz apoio de toda a imprensa, dos meios culturais, da alta burguesia paulista, e mesmo do governo do Estado. No entanto, o deliberado afastamento da companhia ‘com relagaio ao cinema brasileiro traria como resultado um total desconhecimento do que fossem as condigdes reais da atividade cinematografica no Brasil. A Vera Cruz partiu da ilusao de que a boa produgao seria condigao suficiente pa- ra garantir a scus filmes um lugar no mercado, ignorando inteiramente as limitagGes que a propria estruturago do Alberto Cavaleanti ssercado impunha aos filmes brasileiros. Visando a alcan- g2r esta boa qualidade, a Vera Cruz se langa a grandes in- ‘ssstimentos totalmente incompativeis com as restritas pos- sbilidades do mercado nacional. Se a produgao carioca se equilibrava, e eventualmente obtinha grandes Iucros num mercado de baixo rendimento como era o brasileiro, isto %© podia acontecer porque os seus custos de producdo exam baixissimos, justamente adequados as condicdes do mercado. Os filmes da Vera Cruz custavam em média dez ezes mais do que a produeao carioca corrente; as «super- peodugdes», como Tico-Tico no Fubi, O Cangaceiro ou Sinkdé Moga, chegavam perto da dezena de milhdes, ¢ os Slmes mais baratos da companhia eram mesmo assim ca- sssimos se se levasse em conta o fato de que eles teriam de se pagos no mercado nacional. Porém, para os dirigentes & Vera Cruz, tais questdes ndo se propunham, porque os problemas de mercado eram equacionados em ambito mui- © mais amplo: sua meta era 0 mercado internacional, ¢ muito embora os seus filmes fossem carissimos para os pa- bes brasileiros, eram mais baratos do que filmes ameri- anos ou europeus do mesmo nivel, o que — supunha-se — possibilitaria a companhia concorrer com vantagens no mercado externo, Para atingir as platéias do mundo, basta- sia que os filmes se apoiassem numa tematica regional, tra- Guzida em termos formais na boa qualidade técnica de ‘ema producao de nivel internacional. Embalada no sonho ée produzir para o mundo, a companhia voltou-se funda- mentalmente para o mercado exterior, sem pensar que a base de rendimento de qualquer cinematografia, mesmo a americana, ¢ 0 mercado interno, Para a distribuigdo de seus filmes, tendo em vista a exportagdo, a Vera Cruz con- tratou empresas norte-americanas, inicialmente a Universal International ¢ em seguida a Columbia Pictures. Desde os primeiros lancamentos (Caigarra, de Adolfo Celi, Terra é Sempre Terra e Angela, de Tom Payne ¢ Ab\- lio Pereira de Almeida, ¢ os documentarios Painel ¢ San- mério, de Lima Barreto), foi sensivel a melhoria técnica que @ companhia introduziu no cinema brasileiro — um verdadeiro salto de qualidade na fotografia, no som, na montagem, no tratamento de laboratério, etc. Incorporava-se 4 cinematografia nacional, de um s6 golpe, toda a linguagem cinematogréifica convencional do bom nema da época, garantida pela atuacao de técnicos compe- tentes como o iluminador Chick Fowle, 0 engenheiro de som Erick Rasmussen ou! o montador Oswald Haffenrich- ter. Porém ao mesmo tempo havia um tom de impostacio ¢ attificialismo no tratar a realidade brasileira que incomo- dou a maior parte da critica da epoca. A acusagao mais frequente que se fazia aos filmes da Vera Cruz era qualifi- ca-los de «estrangeiros», ¢ 0 estrangeirismo vinha nao ape- nas dos diretores e téenicos importados mas da intencdo deliberada de fazer um cinema «em moldes internacionais», que por isso mesmo descaracterizava a realidade nacional. Vistos a distancia, ha nestes filmes to- dos uma impregnacdo muito grande de Brasil — talvez di- ficil de definir mas inegavelmente presente, mesmo nos mais «estrangeiros» dos filmes da Vera Cruz — que esca- pava a critica da epoca. No entanto, permanece 0 fato de que eles efetivamente nao correspondiam ao ideal de um cinema que fosse «expresstio cultural» da realidade brasi- leira. Na sua forma mais aparente, o cardcter de «brasii- dade» que se pretendia imprimir aos filmes efetivamente se esgotava em exotismo e folclore, € os verdadeiros proble- mas do homem ¢ da terra ficavam & marge. Nao demorou muito tempo para que a companhia co- megasse a se dar conta dos problemas especificos em que implicava a atividade cinematografica no Brasil. Nao obs- tante a macica propaganda ¢ o bom acolhimento do pabli- co aos seus filmes, a lentidao de retorno do capital investi- do impossibilitava que o rendimento dos primeiros filmes pudesse financiar os proximos. O mercado externo, por sua vez, logo apés as primeiras tentativas revelou-se prati- camente inantigivel. O desinteresse das distribuidoras ame- ricanas em patrocinarem 0 desenvolvimento de qualquer cinematografia que pudesse constituir-se em eventual con- corrente, mesmo que modesto, se patenteia de modo fla- grante. A companhia tenta agir por conta propria, promo- vendo os seus filmes no exterior. Mas a despeito dos enor- mes gastos com o envio de filmes ¢ delegagdes a festivais internacionais (Punta del Este, Cannes, Edimburgo, Vene- za, etc.), € de alguns prémios conquistados, os resultados so modestissimos: alguns contratos de exibigo para Por- tugal ou paises latino-americanos, cujas negociagdes se alongam por um tempo enorme. No mercado internacio- nal, a Vera Cruz tem de enfrentar, além dos trustes de dis- tribuicdo que © dominam inteiramente, toda sorte de bar- © Cangacero (Victor Lima Barreto, 1 Uriunfos em Cannes, Lembaiarse de 3) 0 pi filme brasileiro que Mii Rendcira"? reiras impostas pela legislactio da maior parte dos paises europeus visando a protecio das cinematografias locais (pesadas taxas alfandegarias, estabelecimento de quotas de entrada, vinculagao a tratados comerciais, obrigatoriedade de legendagdo, dublagem ou copiagem no proprio local etc.). A Vera Cruz volta-se entdo para o mercado interno. Tendo em vista a lentidao de retorno dos rendimentos dos filmes, procura produzit muito, para que a quantidade de filmes circulando no mercado fosse suficientemente grande para garantir um rendimento conjunto que possiblitasse a produco continua. Tentando deslanchar este processo, @ Companhia lanca mao de empréstimos banearios, a juros altos e prazos curtos, totalmente incompativeis com 0 rit- mo de circulacao financeira do capital empatado na ativi dade cinematografica, em que um filme demora cerca de cinco anos para percorrer o mercado. De inicio foram fi- nanciamentos de bancos particulares, e em seguida de inst tuicdes oficiais, 0 Banco do Brasil e o Banco do Estado de Sto Paulo, afogando a companhia num circulo vicioso de empréstimos, dividas e mais empréstimos para cobrir as di- vidas Evidenciava-se a necessidade de adequar a produgao — seus custos, seus prazos, 0s proprios temas — as condigdes do mercado. Embora tardiamente, a Vera Cruz procura di- versificar a sua produeo, iniciando, paralelamente aos fil mes de prestigio e altos custos, que vivam & conquista do mercado externo, uma linha de produgdes comerciais de nivel médio para o mercado interno, e uma linha de produ- {es populares, répidas ¢ baratas. Todo 0 processo de de- senvolvimento da companhia foi marcado por uma pro- ressiva conscientizayao dos problemas do mercado, resul- tando numa aproximactio muito maior com o cinema bra- Sileiro corrente do que desejaria a propria Vera Cruz. Os seus filmes mais populares (Familia Lero-Lero, Bsquina da Musdo, Sai da Frente, Nadando em Dinheiro, Candinho). embora tecnicamente melhores e sem diivida mais cuidados € bem acabados, se apoiam em situagdes € personagens muito proximos aos desenvolvidos pela chanchada earioca. A partir de 1952, a Vera Cruz tem mesmo em seus quadlros algumas figuras de projeccto do cinema carioca: o gala Anselmo Duarte, o foidgrafo Edgar Brasil, o argumentista Alinor Azevedo, os diretores Fernando de Barros e Alberto Picralisi, e varios atores. Porém tais medidas de pouco " adiantam. O proprio sistema de produgao da companhia —a manutengao dos estidios carissimos, a contratarao permanente de toda a equipe técnica e artistica, as varias enidades de produgdo atuando concomitantemente —, agravado pela ma administracao € desorganizacdo geral, Expedia a efetivarao de uma politica de barateamento de ‘exstos. Em meados de 1953, no momento mesmo em que a ‘Yera Cruz alcangava 0 seu maior sucesso com 0 O Canga- ‘eeiro — premiado em Cannes, distribuido por vinte ¢ dois paises ¢ recordista absoluto de bilheteria no Brasil — 0 Banco do Estado de Sao Paulo suspende o financiamento ‘gue vinha sustentando a companhia, ea Vera Cruz ¢ obri g2da a encerrar as portas, interrompendo em meio a pro- Gacdo de quatro filmes. No ano seguinte, gracas a intensa sampanha de imprensa ¢ dos meios cinematograficos ¢ cul- ‘erais, um novo empréstimo oficial permite a finalizagao ‘dss peliculas em andamento, porém pouco depois 0 Banco do Estado executa a divida acumulada e encampa a com- panhia. ‘A Vera Cruz desenvolveu uma atividade intensissima & 1950 a 1953, produzindo dezoito filmes de longa- ‘metragem ¢ alguns documentarios. Cavalcanti supervisiona: = produco dos dois primeiros filmes (Caigara e Terra é iio da tereira produgto (Angela) se sempre Terra) ¢ n0 i ‘afasta da companhia. Longe da Vera Cruz, dedica-se a cla- ‘era é Sempre Terra. segunda produgio de Vera Cruz, diigida por Tom Payne, autor do celebre Sink’ Mog (1951), boragfo de um anteprojeto para o Instituto Nacional de Cinema, encomendado pelo presidente Getilio Vargas, ¢ dirige trés filmes. A Vera Cruz tenta varios géneros cine- matograficos: o drama de época (Sink Moca, de Tom Payne); a comédia & americana ( Proibido Beijar, de Ugo Lombardi); o policial (Na Senda do Crime, de Flaminio Bollini, Luz Apagada, de Carlos Thiré); a comédia sofisti- cada (Uma Pulga na Balanca, de Luciano Salce); 0 melo- drama musical (Tico-Tico no Fubd, de Adolfo Celi); 0 me- lodrama expressionista (Veneno, de Gianni Pons); a comé- dia urbana e suburbana (Esquina da Tlusto, de Ruggero Jacobbi, Familia Lero-Lero, de Alberto Pieralisi, Sai da Frente e Nadando em Dinheiro, de Abilio Pereira de Al- meida); 0 western brasileiro ( Cangaceiro, de Lima Bar- reo). Das coniribuigdes da Vera Cruz ao espectaculo cine- matografico brasileiro merecem destaque especial © Can- gaceiro — um dos filmes mais famosos do cinema brasile ro —€ os trés filmes dirigidos por Abilio Pereira de Almei- da com o cémico Mazzaropi, a maior contribuicao paulista achanchada nacional: Sai da Frente, Nadando em Dinhei- 10 € Candidinho. Em O Cangaceiro, a forte personalidade do seu autor conseguiu amalgamar os elementos mais dis- pares: influéncias do cinema épico mexicano do faroeste, dialogos de Rachel de Queiroz, cangaes de Zé do Norte ¢ partituras de Gabriel Migliori, fotografia académica do in- glés Chick Fowle — e com tais ingredientes criar um filme que impressionow 0 Brasil inteiro, além de dar origem 2 um veio tematico dos mais fecundos no cinema brasileiro. O Camgaceiro teve ainda o mérito de conseguir furar o blo- queio do mercado internacional, exibido com sucesso por toda a Europa. Infelizmente, para a Vera Cruz, um suces- so que veio tarde demais: afogada em dividas, a compa- nhia vende & Columbia Pictures os direitos de explora¢a0 do filme. Os filmes estrelados por Mazzaropi, oriundo do mambembe, do espeticulo de variedades ¢ do rdio, tam- bem alangam grandes rendimentos no mercado interno. Acabada a companhia, Mazzaropi enriqueceu lancando pontualmente, todos os anos, um filme seu. O tipo subur- bano dos primeiros filmes € substituido pelo caipira que procura aproximar-se do Jeca Tatu de Lobato, retomando a personagem encarnada por Genésio Arruda nos anos 30. Ao lado de Mazzaropi e do filme de cangaco, uma con- tribuigdo mais geral e difusa da Vera Cruz —mas nem por isso menos concreta, € de importéncia fundamental— foi uma methoria generalizada no padrao técnico do cinema brasileiro, que atingiu até a chanchada. O dominio da lin- guagem de expresso cinematografica foi conquista irre- yersivel, incorporada no cinema brasileiro como um todo. Afora a Vera Cruz —e em parte por sua influéncia— surgiram em So Paulo nos anos 50 dois outros empreendi ‘mentos industriais importantes, embora de menor porte: a Cinematogriifica Maristela e a Multifilmes. Ambas as com- panhias pretenderam colocar como alternativa a producao cara ¢ complexa da Vera Cruz um tipo de filmes de nivel médio, de bom acabamento e orgamento modesto, que po- deriam enfrentar melhor as condigdes de baixo rendimento Mesguitinha em Simao, 2 Caolho, de Alberto Cavalcanti (1952). do mercado brasileiro. Alguns dos filmes da Maristela efe- tivamente corresponderam a essa proposta: O Comprador de Fazendas, adaptagao do conto de Monteiro Lobato, es- trelado por Procépio Ferreira e Henriette Morineau; Si- mao, 0 Caoiho, primeito filme dirigido por Cavaleanti no Brasil, apos a sua safda da Vera Cruz, com Mesquitinha no principal papel; ¢ ainda Presenca de Anita, baseado no ro- mance de Mario Donato, Suzana e 0 Presidente, que tenta- va copiar a comédia popular italiana, algumas co-pro- dugées que enveredavam decididamente pelos caminhos da produgao carioca: © melodrama, com Meu Destino é Pecar Quem Matou Anabela?, ¢ a chanchada, com Car- naval em La Maior (co-produzido por Adhemar Gonzaga), ‘©A Pensao de Dona Estela. A Multifilmes inicia @ sua pro- ‘Gusto com Modelo 19, em que pretendia retratar os pro- bblemas da imigrasao no Brasil, ¢ prossegue com uma linha é produedo préxima 4 da Maristela, com comédias ligei- sas (A Sogra, O Craque, O Homem dos Papagaios, etc.) que tiveram boa acolhida do pitblico, ¢ alguns dramas secnos bem sucedidos (Fatalidade, Fortunas Escondidas, ‘hamas no Cafezal, ets.). Em 1953, a companhia produz 0 pximeiro filme brasileiro colorido, Destino em Apuros, re- elado nos Estados Unidos. A figura chave nestas duas, grodutoras foi o italiano Mario Civelli, que teve muita in ueacia no cinema paulista da época. Inicialmente che- Sando a produgdo da Maristela, Civelli criou um padrao <& filmes comerciais de nivel médio cujas caracteristicas es- ‘enciais —filmagem répida, equipes pequenas, baixos ‘eustos — constituiram a base para as propostas de adequa- ‘Go da produgao paulista ao mercado, influenciando a pro- ‘pria Vera Cruze toda a produao independente. A Maris- ‘la, porém, desviou-se progressivamente da proposta ini- ‘Gaal, tendendo a aproximar-se do sistema de grande produ- ‘elo da Vera Cruz. Afastado da Maristela, Civelli tenta por ‘em pratica na Multifilmes a mesma linha de producao, ‘com idénticos resultados: também a Multifilmes almeja & grande producao de qualidade, ¢ se encaminha para a tti- tha da Vera Cruze da Maristela. Nenhuma destas produto- as, no entanto, dura o tempo suficiente para que seus fil- ames de produgao rapida e barata pudessem ter efectiva- ‘mente testado 0 seu rendimento no mercado nacional. Afora a Maristela e a Multifilmes, uma terceira empre- sa cinematografica que se apresentou como empreendi- ‘mento industrial com perspectivas de uma producao vul- suosa foi a Kino Filmes, dirigida por Alberto Cavalcanti Enquanto proposta, a Kino Filmes se aproximava mais da ‘Vera Cruz do que das outras produtoras paulistas meno- res, porém, na pratica a sua atuacao foi a mais restrita. Os ambiciosos estiidios planejados nao chegaram sequer & construc, ¢ logo apds o primeiro filme (0 Canto do Mar, Girigido pelo proprio Cavalcanti), a companhia enfrenta problemas financciros de tal ordem que abre faléncia antes mesmo da finalizacéo do segundo (Mulher de Verdade, também dirigido por Cavalcanti). Arrastadas pela crise ge- ral que atingiu 0 cinema brasileiro com a detrocada da Ve- ra Cruz, a Maristela e a Multifilmes também interrompe- ram a sua producao, sobrevivendo apenas como co- produtoras ou alugadoras de estiidio equipamento por mais alguns anos. Paralelamente produco paulista, a chanchada cario- ca vive nos anos 50 0 seu perfodo aureo. A Atlantida, es- treitamente ligada ao comércio exibidor, domina incontes- tavelmente toda a primeira metade da década, com os grandes sucessos que foram Aviso aos Navegantes (1950) € Al vem 0 Bardo (1951), de Watson Macedo; Barnabé, Tu és Meu e Trés Vagabundos, diigidos por Jost Carlos Burle em 1952; Matar ou Correr ¢ Nem Sansito nem Datita, reali- zados em 1954 por Carlos Manga. Mais para o fim da dé- cada, nota-se em algumas chanchadas da Atlantida um cer- to desprezo pela intromissao do samba, e um empenho em fazer um tipo de comédia mais pura, apoiada sobretudo na actuago de Oscarito — é 0 caso, por exemplo, de O Cu- im (1959), de Carlos Manga. Lentamente, a chanchada em geral vai se modificando, e se afastando do musicarna- valesco. Deixando a Atlantida, Watson Macedo funda sua propria companhia produtora, ¢ procura alcancar a quali- dade do musical americano esforgando-se por harmonizar samba ¢ cinema, «glamurizando» a chanchada musical, em filmes como Sinfonia Carioca (1957), por exemplo. No fi nal da década, a chanchada se volta menos para o carnaval do que para a pequiena crdnica do cotidiano eo folelore do Rio de Janeiro, com seus aluguéis atrasados, prestagdes, azares, vigaristas, otérios, sogras, esposas rabugentas, 0 custo de vida, lotacdes € muitas boates, com seus niimeros musicais — briga, mulheres ¢ samba: O Batedor de Cartei- ras, Camel da Rua Larga, Maluco por Muther, Mutheres @ Vista, Pé na Tébua, Com Ieito Vai, O Feijao & Nosso, Rico Ri Toa, Mina Sogra é da Policia, Garota Enxuta e dezenas de outras, estreladas por Osearito, Grande Otelo, Zé Trindade, Ankito, Costinha, Violeta Ferraz ou Dercy ves. A propria chanchada carnavalesca se renova © se aprimora em filmes como Tudo Azul, de Moacyt Fene- lon ¢ Alinor Azevedo. Pouco a pouco, porém, a chancha- «da vai perdendo o vapor, & medida que perde estrelas, can- tores ¢ vedetas para a televisdo, que se afirma definitiva- mente por volta de 1960 através da extensdo de suas redes retransmissoras pelo pais. Em Sto Paulo, apds a faléncia dos grandes estadios, a producdo recomeca lentamente. Assumindo a direcao da Vera Cruz, 0 Banco do Estado de Sto Paulo coloca a testa da sua produgao Abitio Pereira de Almeida, que moditica todo 0 sistema de produgdo da companhia. Langadas com ‘uma nova marca — Brasil Filmes — as novas produgies fil- madas nos estiidios da Vera Cruz procuram aliar a boa qualidade ao baixo custo, aproveitando as lighes da Maris- tela ¢ da Multifilmes. Abilio Pereira de Almeida entrega a direceto de seus filmes a jovens cineastas paulistas, quase todos estreantes: Walter George Durst, Agostinho Martins Pereira, Walter Hugo Khoury, os irmaos Santos Pereira, César Mémolo Jr., Carlos Alberto de Souza Barros, Ru- bem Biafora. Produgdes como O Sobrado, de Walter George Durst, Osso, Amor e Papagaios, de César Mémolo € Souza Barros ou Estranho Encontro, de Walter Hugo Khoury, suscitam discussdes sobre 0 «cinema de autor» € as possibilidades de desenvolvimento de diferentes estilos no cinema brasileiro; Rebelizo em Vila Rica, de Geraldo ¢ Renato Santos Pereira, transpondo para o periodo getuli ta 0 episodio historico da Inconfidéncia, sugere o interesse de uma reflexao sobre o presente apoiada na historia; o cri- Lima Barreto nunca mais repetiu 0 Brito de O Cangaceiro, Osso, Amor € Popagaios baseavi-se num eonto dee ¢ foi dirgido por Carlos Afberto de Souza Barras ¢ César MEmolo Tr tico Rubem Bidfora assina a produeao mais ambiciosa e mais cara de toda a série, Ravina; ¢ Agostinho Martins Pe- reira, com base num argumento de Abilio Pereira de Al- meida, dirige a produgao de maior sucesso da Brasil F mes, O Gato de Madame, estrelada por Mazzaropi. Vista em conjunto, esta produgdo variada e estimulante abria novos temas ¢ diferentes caminhos que poderiam ter conti- nuidade no cinema brasileiro. Porém, apés dois anos de atividade, 0 Banco do Estado novamente suspende o finan- ciamento que vinha sustentando a companhia, e a Vera Cruz mais uma vez é obrigada a cerrar as portas. O fracasso da produc&o industrial paulista, que tinha como proposta basica a ilusdo do universalismo, a aparén- cia do filme estrangeiro ¢ a obsessio da qualidade, criow um violento esforgo de superacdo dos modelos que até en- to se pretendia impor ao cinema brasileiro. Na segunda metade dos anos 50, contrapondo-se A fatuidade da preten- ‘slo industrial, surge pela primeira vez um cinema indepen- dente realmente significativo em termos culturais. Nao s6 em Sao Paulo, mas também no Rio, € pouco mais tarde também em Minas e na Bahia, procura-se refletir sobre 0 cinema brasileiro, seus caminhos e descaminhos, extraindo as ligdes da falencia industrial e do sucesso da chanchada, Organizam-se congressos para a discuss dos problemas do cinema no Brasil, cujo resultado & um proceso de cons- ientizagao dos mais fecundos que ja viveu o cinema nacio- nal. Nesses encontros delineiam-se praticamente todos os temas que iriam preocupar o pensamento cinematogratico durante 0s proximos vinte anos. E —o que ¢ fundamen- tal— as reflexdes sobre cinema se ligam visceralmente Producio, ao contrario do que até entdo acontecia, em que © pensamento critico girava sobretudo em torno de um ideal a ser atingido —a indistria cinematogrifica— e nao das condi¢des concretamente existentes para a producto. © pensamento sobre cinema brasileiro se desenvolve em varias direogdes simulténeas: além das indagagdes sobre a sua significagdo presente, calcadas na discussao critica da producao do momento, a reflexdo se volta para o passado, Procurando compreender ¢ incorporar as experiéncias de Humberto Mauro, Adhemar Gonzaga ou Alinor Azevedo, © se atira a conjeturas sobre os rumos que tomaré no futu- ro; as andlises dos filmes feitos, quer se aprovem quer niio as propostas em que se apoiam, conduzem a discussdes so- 2 tematica ea linguagem do cinema brasileiro. Os pro- ‘Siemas que enfrenta a producdo industrial paulista e as su- ‘sessivas crises dos estiidios —demonstrando claramente 0 to de que nao bastava ter dinheiro, modernas instala- ‘8s, equipamento adequado, técnicos competentes, serie- ‘Gade empresarial, etc., para ter sucesso na _producao “Snematogrtica— apontavam para a necessidade de refor- ‘salar 0s termos classicos em que se colocava o problema cinema no Brasil desde os tempos de Cinearte. Um séli- embasamento industrial nfio era, a0 contrario do que se 1 durante trinta anos, condigao suficiente (indipen- wente do fato de que se discutiria 20 mesmo tempo a tualidade de néio ser condicao necesséria) para o de- volvimento do cinema brasileiro. Evidenciava-se a ne- jade de se compreenderem coneretamente os mecanis- do complexo processo de producaio-distribuigao-exibi de filmes no Brasil — o que estimula estudos e pesqui- sistematica sobre o mercado cinematografico, Os conhe- tos sobre 0 mercado e a frustracao de boa parte das tas do cinema industrial levam a formulacao de no- propostas como alternativas de produco: sto as ork de um novo tipo de cinema independente brasileiro — cinema gue contrapondo-se as propostas industriais, € primeira vez artesanal, nao apenas por contingéncia, Por opeao. Os primeiros estudos rigorosos atinentes ao funciona- sto do mercado brasileiro chegam a conclusGes espanto- demonstrando cabalmente a total inviabilidade de de- wolvimento de uma indéstria cinematografica brasileira a implantacdo de uma legislacao protecionista que mo- se radicalmente a situagdio. Durante os Congressos Cinema Brasileiro, se faz de maneira sistematica a de- ia da estrutura de dominacao construida pelo cinema geiro para a manuten¢Ao do mercado. Reequacio- -se velhos problemas que vinham dos anos 20 e surgem questdes suscitadas pela recente industrializagdo do ‘a paulista. Denunciam-se diferentes tratados e convé- do Brasil com os Estados Unidos criando condigaes yoraveis & importacdo de filmes americanos para o Bra- ‘em detrimento de filmes estrangeiros de outras proce- ias, sobretudo europeus, que poderiam diversificar 0 do ¢ eventualmente diluir a sua estrutura dominante uncia-se © boicote das distribuidoras estrangeiras aos filmes nacionais; denuncia-se a pratica da distribuigao em lotes, que forga o exibidor — que depende do distribuidor estrangeiro para a sua programacao — a aceitar todos 0s filmes que acompanham um iinico em que esteja interessa- do. Cifras e mais cifras comprovam a quantidade de cam- biais que o Brasil perde por ano com remessa de lucros de filmes estrangeiros. Reinvindica-se a limitag8o da entrada de filmes estrangeiros no pais por meio do estabelecimento de quotas e por taxagdo. Iniimeras outras reivindicagées e recomendagdes atinentes & organizagao do mercado cine- matografico brasileiro sao encaminhadas ao Congreso Fe- Gilda Nery fi um dos rostos do cinema brasileira dos anos 50, deral a guisa de sugestdes ¢ solicitacdes para a regulamen- taco do futuro Intituto Nacional do Cinema ¢ de uma le- sislagao cinematogrifica inteiramente nova, tendo em vista ‘a conquista pelo cinema brasileiro do seu proprio mercado. E, finalmente, denuncia-se o artificio cambial que autori- zava as companhias cinematograficas estrangeiras a expor- tarem para os paises de origem, pelo cambio oficial, seten- ta por cento dos Iucros obtidos na exploracao de seus file mes em territério nacional. A descoberta do mecanismo cambial de remessa de lu- cros das empresas americanas atuando no Brasil langa uma luz inteiramente nova no problema das relagdes do cinema brasileiro com o cinema estrangeiro. Até entdo, tinha-se a ilustio de concorrer em mercado com uma poténcia forte, sem divida, mas auto-suficiente. Neste momento se com- preendeu que, na verdade, 0 governo brasileiro financiava a exibicao de filmes americanos no Brasil cobrindo a dife- renga entre o cambio oficial, que mantinha o délar artifi- cialmente fixado em C$ 18,80, € 0 cambio livre, em que o délar valia no momento (meacios dos anos 50) por volta de C$ 100,00. Com a violenta inflacdo de todo o periodo, 0 tabelamento dos ingressos de cinema reduzira em cinco ve- zes 0 seu valor, transformando o espetaculo cinematografi- co num simbolo mistificador de ndo-inflacionismo. Efeti- vamente 0 preyo das entradas de cinema no Brasil estava entre os mais baixos do mundo, cerea de cinco vezes infe- rior aos pregos médios estabelecidos no mercado interna ional. Para evitar a (remota) possibilidade de afugentar a produgdo estrangeira oferecendo lucros muito pequenos, 0 governo brasileiro, ao mesmo tempo em que reduzia pelo tabelamento a renda do cinema em cruzeiros, aumentava esta renda em divisas pelo artificio cambial. A indéstri nematografica nacional, que contava com uma renda em cruzeiros € nao em divisas, era a grande vitima do tabela- mento, recebendo em cada entrada paga cinco vezes menos do que 0 seu valor em termos de mercado mundial. A clara compreenstio de todas estas quest6es conduziu, por um lado, a uma série de campanhas reivindicatérias de medidas protecionistas para o cinema brasileiro, pela pri- ‘meira vez fundamentadas efectivamente num conhecimen- to global do mercado que até envio possuiam apenas as distribuidoras estrangeiras. E, por outro lado, tentativas de adequagio da produgo — agora também fundamenta- Em 1955, o cinema mexicano ~ nos tempos de Fernandez e Figueros cchexou ao Brasil em forea e deixow rastos. Esta € a fachada do cincs {sito para receber Maria Candelaria ¢ Rio Escondido, como 0 nome ‘paréncia indicam das em maior conhecimento de causa — As mesquinhas possibilidades de rendimento do mercado. Cabalmente ‘comprovada a impossibilidade de desenvolvimento de uma indéstria cinematografica baseada no sistema de produgo do cinema americano, pesquisam-se novas formas de pro- dugdo fundamentalmente artesenais, que dispensem gran- des estiidios ¢ todo 0 aparato téenico que caracterizava a producdo estrangeira. E diretamente relacionado com tais, propostas, hé todo um processo de descoberta e de refle- xio sobre a significado cultural do cinema no Brasil. Tentando resumir os temas fundamentais do pensa- ‘mento cinematografieo da época, temos, em primeiro lugar, a proposta de um novo tipo de produc: artesanal, rapi- da, barata, feita por pequenas equipes e de preferéncia fo- ra dos estiidios — a idéia de que o estiidio conduz a um fal- seamento da realidade impde-se cada vez mais. E de certo modo sem escriipulos técnicos, uma vez que se procurava enfatizar a necessidade de dar maior atencdo ao «conted- do» dos filmes do que ao refinamento formal. © modelo do conieiido ¢ claramente sugerido pelo neo-realismo ita- liano, que impressionava grandemente a critica cinemato- grafica brasileira da época. Contrapunha-se 0 humanismo a pungente «realidade» dos filmes italianos, tecnicamente precérios ¢ muito pobres em termos de producto, mas ple- nos de significagao social, politica ¢ cultural, ao artificialis- mo ¢ superficialidade do cinema hallywoodiano corrente. No que diz respeito aos assuntos a serem pesquisados para © cinema nacional, tratava-se de desenvolver uma «temiti- ca brasileira»: implicita na proposta do «tipicamente na- cional» esta a procura do homem brasileiro — sobretudo o homem do povo — do seu trabalho, da sua estrutura men- tal, da sua mancira de andar, de falar, de vestir, de se me- xer, de ser, de existir. Pensava-se em retratar «sem disfar- ces», como no neo-realismo, a realidade subdesenvolvida gue era a nossa — porém se pensava num retrato que fosse a mesmo tempo verdadeito ¢ elaborado, submetendo a realidade a um trabalho intelectual que a refinasse, trans- formando-se em obra de arte. Tratava-se de transpor para © cinema a visdo critica da realidade social que fora a do romance brasileiro pos-modernista. E ainda, havia a aspi- racdo de submeter a realidade a uma elaboracto teérica que a explicasse, a partir do traiamento dado aos temas, € dos proprios temas problemas abordados. O cinema de- veria ser antes de mais nada «meio de expessdo» a servigo da cultura, da criagGo de uma cultura autenticamente bra- sileira. Implicita, hé a negac2o da arte como objeto de me- ra fruiedo, ¢ a aspiracao de utiliza-la como forma de ques- tionamento da realidade. O que havia realmente era um anseio muito grande de autenticidade, ¢ a aspiragao de uma maior acuidade psicolégica e sociolégica no retratar 0 povo brasileiro no cinema. Convém precisar mais alguns componentes destas idéias, que se desenvolveriam sobretu- do no final da década: ambigdes politicas, declaradas ou ‘no, mas sempre clarissimas — o linguajar da esquerda na- cionalista brasileira da época é inconfundivel; pretenstio de fazer ao mesmo tempo obras de arte e de reflexto; uma lu- ta para «autenticizar» a nossa cultura — aliada & deniincia ideoldgica da «colonizacao cultural» resultante da sitnaclo de dependéncia econdmica do pais — embrenhando-se nas, suas raizes. A atitude critica em face do cinema é funda- ‘mentalmente uma atitude critica também em face da socie. dade, Tudo quanto se tentava ou se pensava traduz uma procura penosa de uma forma cinematografica adaptada as exigencias e as possibilidades de um pais subdesenvolvi- do ¢ inculto, onde esta tudo por fazer, ¢ ndo s6 em matéria de cinema, Tratava-se da tentativa de alcancar, e se preciso fosse inventar, uma expresso cinematogriifica adequada a uma certa realidade cultural, econdmica, politica, social, que ao mesmo tempo fosse reflexo desta realidade ¢ fator atuante na sua superacdo. Propunha-se que o cinema aju- dasse a formar uma nova cultura, apoiando-se na preexis- tente para enriquecé-la e transformé-la, Assim, em termos sociolégicos, entendia-se 0 cinema enquanto manifestagao representativa de uma realidade historica determinada que se pretende desvendar e analisar eriticamente, e enquanto Fator interveniente nesta realidade. E em termos estéticos — enquanto arte — o cinema deveria ser no apenas obje- to de frui¢ao, meramente espetaculo, mas também e sobre- tudo uma forma de reflexao, um meio de se relacionar ¢ in- teragir com a realidade brasileira — e seria este 0 critério do seu valor artistico. Concretamente, tenta-se por em pratica estas idéias em alguns filmes que tinham em comum sobretudo a procura deliberada de expresso cultural da realidade brasileira e a precatiedade das condieses de produc. O Saci (1953), de Rodolfo Nanni, tomando como ponto de apoio as historias de Monteiro Lobato, procurava deserever 0 modo de vida dos sitios e fazenda brasileiras; Cara de Fogo (1958), de Galileu Garcia, também se ligava a terra, tendo como tema ‘8 mitos e supersticdes dos caboclos paulistas. Na mesma ha ainda, temos uma comédia, A Carrocinha (1955), de Agostinho Martins Pereira, que trabalhava a crOnica do vi- larejo de interior. A Estrada (1957), de Oswaldo Sampaio, descrevia a vida dos choferes de caminhao. Algumas pro- ducdes da Brasil Filmes — sobretudo Osso, Amor e Papa- dios — se aliam a este movimento pela procura tematica, ‘Alguns filmes independentes, cujos autores nao participam deste movimento de idéias, trazem contribuigdes importan- tes para a renovacdo do cinema paulista — 6 0 caso de Ab- solutamente Certo (1957), por exemplo, em que Anselmo Duarte tomava como ponto de partida alguns temas, per- somagens e situaedes da chanchada carioca, ¢ ao traté-los com acuidade, esmero técnico sobretudo leveza de hu- mor, obtinha um resultado inteiramente novo. A esta pro- duco independente paulista correspondiam alguns filmes cariocas buscando os mesmos objectivos. Alex Viany reali- za no Rio Aguiha no Patheiro (1953), em que explicitamen- te tenta concretizar as ligées do neo-realismo; um cinema de rua, com personagens populares (um condutor de bon- de, uma mocinha do interior, a populag#o de um bairro operdrio), linguagem simples e despojada. Mesmo na pro- duc&o empresarial carioca vez por outra surge um filme com as mesmas propostas — Amei um Bicheiro (Atlantida, 1953), por exemplo, em que Jorge Ileli faz a crénica do jo- g0 do bicho. Independentes ow nao, estas produgses im- pregnadas de neo-tealismo se aproximam do homem do ovo, procurando (com maior ou menor sucesso) aprofun- dar a cr6nica urbana e rural até transformé-la em visa cri- tica. De modo ainda desajeitado ¢ canhesto, os filmes ten- tam compreender ¢ reflectir diferentes aspectos da vida brasileira pesquisando temas, personagens, sittiagdes As propostas tedricas do neo-realismo e a possibilidade de novos esquemas de produsao sugeridos pela producao paulista ou carioca se encarnariam de modo pleno num fil- me de 1955, realizado no Rio de Janeiro pelo paulista Nel- son Pereira dos Santos (que fora assistente de Alex Viany em Agulha no Palheiro ¢ de Rodolfo Nanni em O Saci) Rio, Quarenta Graus. Do ponto de vista da producao, & nova formula era a associacdo da equipe em cooperativa. ponto de vista tematico, era um filme popular num sen- rocurava revelat © Povo ao povo, numa visio , de idéias claras e expostas com a maior simplicida- sem subtefiirgios e sem sombra de retérica, desvendan- miséria e marginalidade, Ambientado em cenérios natu- ‘como 0 Maracand, 0 Corcovado, as favelas, as pragas cas, Rio, Quarenta Graus era povoado de malandros, los rasos, deputados, favelados e pivetes. Foi um es- ‘ulo inusitado, e de um tal poder de choque, no seu jjamento, que a censura apreendeu o filme. A campa- de intelectuais ¢ estudantes em torno da liberayao de ‘Quarenta Graus correspondeu a uma verdadeira ex- de consciéncia no cinema brasileiro. A revelacao de © cinema efetivamente poderia servir como instrumen- de expressio e denicia de nossas deformidades sociais emocionou uma juventude inteira, marcando as origens do que seria o Cinema Novo. Apds Rio, Quarenta Graus, Nel- son Pereira dos Santos dirige Rio, Zona Norte, € produz ‘em $a0 Paulo © Grande Momento (1958), dirigido por Ro- berto Santos. Este filme admiravel, de um equilibrio € de ‘um rigor de construcdo que nao existiam em nenhum dos anteriores, partindo da pequena erénica de bairro aleanga ‘uma ressondncia dramitica inteiramente inédita na comé- dia brasileira, No final dos anos 50, em que pesasse a frustagao indus- trial e 0 esvaziamento da chanchada, existia afinal no Bra- sil um cinema que expressava culturalmente a realidade na- cional, sém precisar do empenho e da benevoléncia de criti- 0s ¢ estudiosos para ser considerado importante e valido. Rio, 40 Graus (1955) foi a primeira longi-merragem de Nelson Peters ‘dos Santos ¢o filme precursor do “cinema novo"

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