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O Ceu Silencioso - Lloyd Biggle JR
O Ceu Silencioso - Lloyd Biggle JR
O CÉU SILENCIOSO
Título original: The Silent Sky
Tradução de Mário de Abreu
NOTA DO EDITOR SOBRE LLOYD
BIGGLE, JR.
Escritor e musicólogo, Lloyd Biggle, Jr., é doutorado em Musicologia
pela Universidade de Michigão. O seu interesse pela música e outras
manifestações artísticas reflete-se nas suas obras de ficção científica, tendo a
música como tema no primeiro conto que publicou, «Gypped» (1956), na
revista Galaxy.
Bastante conhecido do público português, Lloyd Biggle não é um autor
prolífero, tal como acontece com os demais escritores americanos da sua
geração. Nascido em 1923, publicou o primeiro livro relativamente tarde, em
1959, intitulado The Angry Espers. Outras obras em que se manifesta o seu
interesse pela música associada a histórias épicas são: All the Colors of
Darkness (1963), Watchers of the Dark (1966), The World Menders (1971),
This Darkening Universe (1975) e Silence is Deadly (1977).
Tendo escrito algumas space opera, Lloyd Biggle não apresenta a
característica geral deste género, que é o puro entretenimento,
aprofundando, pelo contrário, questões mais complexas.
Em 1965, então secretário da poderosa Associação Americana dos
Escritores de Ficção Científica (que atribui anualmente os famosos prémios
Nebula), Lloyd Bigle, Jr., propôs que todos os anos um escritor-associado
organizasse e prefaciasse uma antologia dos contos e novelas premiados no
ano anterior com o Nebula, além de incluir uma seleção de outros trabalhos
concorrentes ao cobiçado e prestigiado prémio. É a conhecida coleção de
antologias intitulada «Nebula Award Stories». A primeira foi organizada,
nesse mesmo ano, por Damon Knight. O próprio Lloyd Biggle encarregou-se
da sétima antologia, respeitante ao ano de 1972. Paul Andersen, Clifford D.
Simak, Isaac Asimov, Roger Zelazny e Ursula K. Le Guin são alguns dos
conhecidos escritores de ficção científica que desempenharam a mesma
tarefa de editores do «Nebula Award Stories».
ÍNDICE
1 — A Regra da Porta
2 — Uma Pequena Vigarice
3— A Capitulação
4 — O Dia do Juízo
5 — Arma Secreta
6 — O Castigo Perfeito
7 — Uma Breve Passagem pelo Limbo
8 — D. C. F.
9 — Asas da Canção
INTRODUÇÃO DO AUTOR
Logo na aurora da sua existência consciente, o homem começou a
maravilhar-se e a interrogar-se sobre o seu destino.
O pequeno mundo por ele habitado estava cercado de profundas
incógnitas: os montes na linha do horizonte, as agourentas formas das
florestas primitivas e essa inexprimível fonte de todos os mistérios que é o
mar. Receosamente, perguntava a si próprio o que estaria para além do que
via e o que lhe aconteceria se se aventurasse até lá — ou se o que nesse além
se encontrava viesse até junto dele.
Quando acabou por se lançar nessa aventura, não quis crer no que
descobriu, porque até uma fase avançada da sua história os seus sonhos foram
sempre muito mais grandiosos do que as realidades que lhes corresponderam.
Além disso, sempre que o homem ultrapassava uma barreira, logo outra se
erguia no horizonte para lhe avivar a imaginação.
Com o desabrochar da sua consciência começou a exploração de outras
barreiras: que estará para além do amanhã? Ou para além das estrelas? Ou
para além da vida?
Tal como acontece com a maioria dos empreendimentos humanos,
surgiram homens que se especializaram no sonho e na imaginação e se
tornaram profissionais. Atualmente, alguns deles escrevem ficção científica.
Esta expressão foi examinada semanticamente e acabou por concluir-se
que era incongruente, pois associa uma palavra que tem que ver com a
objetividade, com o conhecimento sistematizado, com factos e, em última
análise, com a verdade, a uma outra que significa o oposto, isto é, algo que é
forjado ou imaginado; porém, a ciência destituída de imaginação tem
promovido mais doutrinas falsas do que todas as ficções intencionais até hoje
urdidas. A ficção científica combina a literatura mais venerável que o homem
já produziu com a sua literatura mais moderna; o seu temor reverente e
hereditário do desconhecido e a sua irresistível tendência para se maravilhar
com ele, com as especulações acerca do temível poder que a ciência pôs à sua
disposição para construir o seu próprio destino... Ou destruí-lo.
O homem primitivo habitava um mundo aterrorizado, onde até uma
simples brisa despertava uma interrogação e o faiscar de um relâmpago
constituía uma ameaça de infelicidade ou de condenação. Ele não reconhecia
as suas fantasias como se fossem ficção científica, mas elas eram-no. O
homem especula inevitavelmente sobre o desconhecido com base do que dele
é conhecido e a palavra «ciência» significava originalmente «conhecimento».
Ao longo de toda a história da humanidade, cada idade produziu uma
«ficção científica» que refletia a tecnologia e o pensamento científico dessa
mesma idade.
O homem primitivo povoava as suas fantasias de espíritos; os gregos da
Antiguidade Clássica povoavam-nas de deuses. Os auditórios de Homero
aceitavam as suas poesias épicas como se elas fossem história e, em grande e
surpreendente medida, eram-no de facto. Porém, eram também a «ficção
científica» daquela época, a realização das fantasias humanas em termos de
compreensão do seu ambiente, cerca de oitocentos anos antes de Cristo.
Alguns dos temas mais importantes da atual ficção científica têm a sua
raiz longínqua e ininterrupta nas fantasias primitivas do homem, inserindo-se
profundamente no seu Folclore e nos seus mitos mais arcaicos. A viagem
fantástica deve ter fascinado o homem muito antes do périplo épico de
Ulisses pelas maravilhas do Mediterrâneo. Ela ainda o fascina, seja através do
espaço deserto ou da recente Viagem Fantástica através de um corpo
humano. As assombrosas criaturas descritas em narrativas de viagens do
passado são, a seu modo, tão extraordinárias como os monstros de olhos
desorbitados que habitam os remotos mundos da atual ficção científica.
Tribos, raças, civilizações, continentes e mundos têm ocupado as fantasias do
homem desde que, pela primeira vez, ele projetou a sua imaginação para além
do horizonte. A utopia arquetípica foi sem dúvida sonhada durante um
período de excesso de população e de carência de cavernas no Plistocénico, o
romance interplanetário não é mais moderno do que o século II d. C. e os
visitantes do espaço exterior têm já uma história veneranda. O homem
artificial, ou robot, já fazia parte dos mitos sobre a antiga Creta.
Existem diferenças significativas entre a atual ficção científica e a
«ficção científica» da Antiguidade. Duas delas são patentes pelo uso das
palavras «ficção» e «ciência». As modificações ocorridas na ciência e na
tecnologia forjaram transformações nas fantasias humanas e as modificações
experimentadas pela literatura afetaram as formas por que elas se exprimem.
O florescimento gradual da ficção como uma forma literária respeitável
libertou os escritores da necessidade de apresentarem a literatura imaginária
como se de experiências verdadeiras ela tratasse (embora esta prática venha a
subsistir certamente enquanto houver um público crédulo e simples suscetível
de ser enganado por divertimento ou pela procura de lucros). As fantasias do
homem foram contudo moldadas sob a forma de ficção pelo menos já desde
os tempos de Aristófanes. Uma literatura de ficção científica orientada na sua
moderna acepção só foi, porém, possível após os enormes progressos
científicos e tecnológicos do século XIX e, dado que eles transformaram o
meio ambiente no decurso normal de uma vida humana, pressagiando assim,
com toda a evidência, um progresso contínuo e acelerado, possibilitaram
novas dimensões para a fantasia. Os profetas de outras épocas pesquisavam o
futuro nas estrelas ou através de práticas divinatórias acompanhadas de
sacrifícios ou ainda por meio de sonhos provocados por drogas; o profeta
moderno consulta revistas técnicas e a sua régua de cálculo. Pela primeira vez
na história da humanidade, revelou-se possível calcular o futuro.
Finalmente, a ficção científica dos nossos dias reflete a abertura dos
horizontes do homem moderno. O mundo mediterrânico de Homero podia
exceder as maravilhas de dois poemas épicos, mas os homens alcançaram os
horizontes cantados pelo poeta e ultrapassaram-nos, ocupando assim
gradualmente os espaços em branco dos mapas terrestres. Mesmo neste
planeta de dimensões encurtadas ainda há espaço suficiente onde encontrar
motivos de maravilha, e os escritores que assim procedem continuam a
descobrir mundos desconhecidos: o Mundo Perdido, sul-americano, de A.
Conan Doyle, e o Horizonte Perdido, himalaio, de James Hilton, para nomear
somente dois exemplos do século XX. Outros mundos têm sido entrevistos
em lugares tão improváveis como o fundo da toca de um coelho, como
acontece em Alice no País das Maravilhas.
O homem tem contudo prestado cada vez mais atenção para fora de si e
para dentro de si. Por um lado, as ciências espaciais e, por outro, ciências em
fase de crescimento, como por exemplo a psiquiatria, a psicologia e a
sociologia, sondam as últimas barreiras que se lhe erguem: o espaço exterior
e o próprio homem. Nos últimos três mil anos, o homem explorou um mundo
e descobriu dois universos — um no céu e o outro na sua própria mente. Hoje
ele fantasia; amanhã, mais milénio menos milénio, adquirirá o conhecimento.
Mas muito antes desse tempo terá avistado novos horizontes.
Para se maravilhar com eles.
Loyd Biggle, Jr.
1
A Regra da Porta
(«The Rule of the Door»)
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3. ARNOLD STEPHENS
Mark Jackson veio aos escritórios da Empresa de Vendas Terra.
Apenas alguns dias depois de eu ter recebido a carta do Prof. Parkins a seu
respeito. Reconheci-lhe o nome imediatamente e presumi que o professor o
havia mandado falar comigo.
Durante muitos anos entrevistei eu próprio todos os candidatos a
vendedor, dado que me consideram a pessoa mais indicada para esta tarefa.
Dei instruções para que Jackson fosse trazido prontamente à minha presença
e depois de ter lido o que Parkins havia escrito fiquei bastante surpreendido
ao verificar que não havia nada de obviamente diferente que distinguisse
aquele homem. As invulgares inflexões da sua maneira de falar poderiam
facilmente passar desapercebidas e, quanto ao resto, parecia uma pessoa
perfeitamente normal. Se eu não conhecesse Parkins tão bem, tanto
pessoalmente quanto profissionalmente, poderia considerar-me vítima de
uma brincadeira. Jackson era um indivíduo ainda jovem, de boa aparência,
bastante mais solene do que a maioria das pessoas, e a única coisa que o
distinguia dos outros candidatos que eu tinha entrevistado naquela manhã era
a sua atitude de uma determinação serena.
— Julgo que sabe que o Prof. Parkins me escreveu a seu respeito —
disse eu.
Pareceu surpreendido.
— Não, não sabia. Falei com uma pessoa com esse nome há três ou
quatro semanas, mas estivemos a falar de... Outras coisas.
— Compreendo. Porque quer ser vendedor?
Pôs-se de pé.
— Eu já sou vendedor! — Disse com firmeza. E começou a
desbobinar. Nunca assisti a uma demonstração tão assombrosa. Portou-se
com a perícia de um orador profissional e foi mais do que eloquente, foi
brilhantemente persuasivo. Se não fosse o seu sotaque e o frequente uso de
palavras estranhas, ter-me-ia empolgado. A maior parte da sua exposição
tratou da sua perícia e da experiência que possuía a vender automóveis, que
mais tarde vim a saber tratar-se de um obsoleto meio de transporte.
Foi notável, mas também foi lamentável. Ouvi-o até ao fim e abanei a
cabeça com tristeza, dizendo-lhe:
— Lamento, mas não posso oferecer-lhe emprego.
— Porque não?
As habilitações e aptidões de um vendedor eram então o segredo mais
guardado do mundo dos negócios. Embora não pudesse dar-lhe uma resposta
direta, achei que a sua demonstração lhe dava direito a merecer mais do que
uma breve despedida.
— Diga-me, candidatou-se a outra empresa de vendas? — Perguntei.
— Claro que sim! Esta é a vigésima terceira e ainda tenho de bater à
porta de mais dezasseis. Comecei pela indústria. Nada a fazer. Nenhuma
dessas empresas tem vendedores. A Companhia de Carros Aéreos Cadrovet,
de Nova Detroit, ofereceu-me cinco empregos diferentes, mas não me quis
empregar como vendedor. Disseram-me que já haviam passado cento e
cinquenta anos desde a última vez que tiveram um vendedor próprio. Todas
as vendas são feitas por empresas especializadas. Assim, vim para Nova
Iorque para tentar as empresas de vendas, e todos me deram a mesma
resposta: «Meu rapaz, para ser vendedor é preciso aprender primeiro a
vender-se a si próprio.» Acho que é uma posição sensata, pelo que aluguei
um gravador. A noite passada estive a pé quase toda a noite a trabalhar numa
argumentação de vendas para me poder vender. O senhor acaba de a ouvir.
Penso que é boa. Raios, tenho mesmo a certeza de que é boa! Mas a reação é
sempre a mesma. Aprenda a vender-se. Na minha última entrevista, um
velhote gordo olhou-me de soslaio e disse: «Deixe-me contratá-lo a prazo!
Desafio-o a fazer a experiência!»
Contive o riso e disse:
— Esse devia ser o Barlow, das Vendas Ilimitadas.
— Ouça. Eu sei que sou capaz de vender. Só quero que me deem uma
oportunidade. Pode empregar-me à base de comissões, e isso não lhe custará
nada se eu não vender. Que mal há nisso? Eu sou algum peçonhento?
— O Prof. Parkins contou-me que você está convencido de ter sido
transferido do século XX para este século por qualquer processo que
desconhece. Ele parece mais ou menos inclinado a acreditar em si.
Jackson fez um gesto de desagrado.
— Não vou confirmar nada disso. Já passei tempo de mais naquele
hospital.
— Compreendo. Mas, mesmo que você fosse um bom vendedor no...
Bom, fosse onde fosse, julgo que vai ter de encontrar outro modo de ganhar a
vida. Eu aconselhá-lo-ia a aceitar um daqueles empregos que lhe foram
oferecidos na Cadrovet.
— Só quero uma oportunidade — suplicou. — Sei o que sou capaz de
fazer. Sou capaz de vender seja o que for.
— A quem quer que seja?
— Que é que quer dizer com isso?
Pensei um breve instante.
— Devido à sua experiência invulgar, vou abrir uma exceção e revelar-
lhe o que se exige dos nossos vendedores. Siga-me, por favor.
Levei-o à sala de arquivos e abri uma gaveta de ficheiro ao acaso.
— Aqui está o registo da atividade da semana passada de um dos
nossos vendedores. Este não é mais que um trabalhador marginal, mas está a
melhorar. Como vê, fez cento e sete contactos de venda, ou seja, uma média
de vinte e um por dia. Destes contactos resultaram duzentas e quarenta
vendas, das quais vinte e duas foram vendas importantes, isto é, vendas que
montaram a dois mil dólares ou mais.
— Ninguém se negou a comprar? — Exclamou Jackson.
— Claro que não. Não temos lugar para vendedores a quem os clientes
se negam a comprar. Não faço ideia de qual terá sido o seu currículo lá no...
Fosse onde fosse, mas, a menos que possa conseguir um palmares deste
género, não há empresa de vendas que possa perder tempo consigo. E você
também não se pode dar ao luxo de perder o seu tempo. Este vendedor ganha
a sua vida, mas o padrão que atingiu não é famoso. Se não apresentar uma
melhoria substancial lá para o fim do ano, teremos de o demitir ou de o
transferir.
— Estou a ver — disse Jackson. De súbito pareceu terrivelmente
cansado.
— É melhor voltar à Cadrovet — aconselhei-o eu. — Trata-se de uma
boa empresa e julgo que eles estão convictos de você ser competente, pois de
contrário não lhe teriam oferecido cinco empregos à escolha.
— Fizeram-me testes de aptidão durante dois dias! Mas o que eu sou é
vendedor. Não me sentiria feliz sentado atrás de uma secretária ou aldrabando
o patrão numa linha de montagem. Estou-lhe grato por ter sido amável
comigo, mas não posso seguir o seu conselho.
— Deduzo que esteja mal de finanças. Você terá de trabalhar em
qualquer coisa!
— Eu sei. Bem... Esta manhã vou ter com um tipo que conheci em
Nova Detroit. Chama-se Erf Zedden. É técnico espacial e pensa poder
arranjar-me um emprego numa nave mineraleira que faz serviço de carga
entre Marte e Calisto. Neste momento é uma solução que me está a agradar.
— Isso não é lugar para um homem competente.
— Também penso assim, mas sinto necessidade de me afastar por uns
tempos. Preciso de tempo para pensar.
Falei com ele por mais alguns minutos tentando dar-lhe alento, mas
sem grande êxito. Ele agradeceu-me e retirou-se. Só dois anos depois o voltei
a ver.
4. ERF ZEDDEN
Encontrei o Mark Jackson novamente em Nova Iorque e achei-o com
um aspecto tão miserável que parecia estar em vias de se deitar a afogar no
rio. O meu dinheiro é escasso e ele diz-me que o dinheiro que conseguiu pela
venda de algumas das suas coisas a um museu se está a esgotar. Nisto,
exclamo:
— Raios! Vou voltar para Marte dentro de alguns dias. Venha comigo
aos escritórios da Companhia Mineira Jupiteriana, que eu arranjo-lhe um
emprego. A carreira Marte-Calisto é boa e fácil, o ordenado é bom e quando
se está demasiado velho para se carregar com o minério eles reformam-nos e
dão-nos uma boa pensão. Que é que você perde com isso?
Ele diz-me que vai pensar no assunto, mas que quer encontrar-se com
mais algumas pessoas. Ao fim do dia vem ao meu hotel.
— Quando é que partimos? — Perguntou.
E foi assim que lá fomos, a caminho de Marte.
Acreditem-me. Este Jackson é bom homem. Ao fim de dois meses
neste emprego já é meu chefe. No fim do ano é ele quem dirige toda a
organização em Calisto e a Companhia Mineira Jupiteriana gratifica-me por
eu o ter recrutado. Nunca vi um tipo subir tão depressa, mas, não sei porquê,
ele não parece feliz. Contudo, apesar da altura a que subiu, continuamos a ser
bons amigos, e sempre que vou a Calisto fico em casa dele.
Por isso é natural que quando começo a falar de umas férias na Terra
ele pense logo que poderia também tirar férias, e assim começamos a
combinar ir juntos e gozar um pouco a vida no velho planeta.
Afinal sigo eu à frente, porque ele insiste em fazer uma paragem na
Lua para uma visita turística. Ainda lhe digo:
— Que é que há assim de tão especial na lua da Terra quando você tem
estado a viver numa das luas de Júpiter desde há quase dois anos?
Não me dá ouvidos, e por isso dirijo-me à Cidade Estelar com um dia
de avanço sobre ele. Encontro um quarto para ambos numa hospedaria
espacial e na manhã seguinte deixo-lhe uma nota pedindo-lhe para se
encontrar comigo no Clube dos Foguetões e saio para me juntar a duas
raparigas. Foi neste dia que as coisas começaram a aquecer na Terra.
As raparigas que me acompanham não são qualquer coisa; são altas e
robustas, com capas tão transparentes que bem podiam não usar nada que
nenhuma diferença faria. Usam os cabelos apanhados para cima, num
daqueles estilos que desafiam a gravidade, e parece que são movidas a
energia nuclear. Estou a pensar que estas férias vão ser daquelas que vale a
pena recordar.
Sentamo-nos no Clube dos Foguetões a tomar umas bebidas e pouco
depois aparece Jackson, pelo que voltamos para a hospedaria, subindo a
Avenida Plutão. De repente surge-nos uma turba de gente, que corre na nossa
direção.
Como disse atrás, este foi o dia em que as coisas começaram a aquecer
na Terra. Encostamo-nos a um edifício enquanto a turbamulta passa e
conseguimos ter uma rápida visão da cara lívida do homem que eles
perseguem. Está a fugir para salvar a pele e os seus perseguidores são o
magote de assassinos mais odioso que até hoje já vi.
— Livrámo-nos de boa! — Diz uma das raparigas. — Vamos vê-los a
acabar com ele!
Jackson não ouviu as notícias que correm e brada:
— Eh! Que é que se passa?
Não há tempo para lhe explicar. A turbamulta passa a galope e eu
consigo mandar parar um táxi aéreo para onde subimos, ficando por ali a
flutuar juntamente com o resto da frota que observa o espetáculo.
— Porque estão eles a persegui-lo? — Pergunta Jackson.
— Ele é um hipno — digo-lhe.
De facto é um hipnotizador bastante bom e está a dar um ótimo
espetáculo. De vez em quando olha para trás sobre o ombro e imobiliza dois
ou três membros da turbamulta. Os outros derrubam-nos sem cerimónia e
passam por cima deles, continuando a correr. À distância consigo ver
algumas patrulhas aéreas a aproximar-se a grande velocidade e penso cá para
mim se elas chegarão a tempo.
É claro que não chegam. O hipno corre tanto quanto pode até que se
volta para enfrentar a multidão. Mesmo um hipno de grau I, como ele era,
não teria qualquer hipótese. Basta à turbamulta evitar-lhe os olhos. Logo o
derrubam e espezinham, com as facas em riste e quando as patrulhas aterram
já a pequena multidão se espalhou, não lhes restando mais nada que fazer
senão limpar toda aquela confusão de despojos.
O táxi deixa-nos na hospedaria. As raparigas ainda estão a dar gritinhos
de excitação e Jackson parece enjoado. Seguimos para o nosso quarto, ele
deixa-se cair numa cadeira e toma um bom gole de gim marciano.
— Mas porquê? — Pergunta.
— Porquê o quê? — Diz uma das raparigas.
— Porque é que mataram o homem?
A rapariga fica a olhar para ele espantada.
— Não ouviu dizer?
— Não ouvi nada. Acabo de chegar da Lua há apenas algumas horas...
Lembra-se?
Vou até ao visiscópio e pomo-nos a olhar para ele. Paris: seiscentos
hipnotizadores assassinados, e o número continua a subir. Imagens de
multidões a perseguirem hipnotizadores. Aplausos e risadinhas das raparigas.
Londres: mais de duzentos hipnos assassinados. Multidões incontroladas
perseguindo-os pelas ruas. O Instituto Internacional de Hipnologia em
chamas. Nova Iorque: declarada a lei marcial. Não existe uma estimativa do
número de mortos. E por aí fora...
— O Comité do Congresso publicou um relatório esta manhã — diz
uma das raparigas. — Há milhões de hipnotizadores na Terra e oitenta e
cinco por cento deles são vendedores. Cada vez que alguém se volta, logo um
deles lhe vende qualquer coisa, deixando o comprador a pensar porque é que
comprou aquilo, até que vem outro e lhe vende outra coisa. Cheguei aqui
vinda de Vénus há três meses. Sabe quantos carros aéreos tenho? Três. Nem
sei como usar um, mas tenho três. O último comprei-o há uma semana,
juntamente com o aluguer de uma garagem a uma milha e meia de distância
do meu apartamento. Troquei o novo por um dos que já tinha? Não. Por isso
não deixo de me perguntar: «Porquê? Porquê fazer uma coisa tão estúpida?»
Então, esta manhã tive conhecimento deste relatório e fiquei a saber. Foram
os hipnos que me venderam tudo. Tenho dois sintetizadores de alimentos no
meu apartamento. Um deles dá para alimentar dez pessoas, e eu vivo sozinha
a maior parte do tempo. Miseráveis hipnos! Tenho roupa que me chega para
dez anos! Tenho um visiscópio em cada divisão da minha casa. Há tanto lixo
por toda a parte que nem me posso mexer à vontade. Vim para a Terra com
bastante dinheiro e passados três meses já não tenho nada e vou ter de pagar
toda esta sucata durante vinte anos. Os hipnos! — E dizendo isto sibila como
uma daquelas cobras que vi no Zoo da última vez que estive na Terra.
— A minha irmã tem três alcatifas a forrarem o chão da casa dela —
diz a outra rapariga. — Alcatifas caras, umas sobre as outras. Teria passado
um mau bocado com o marido se não fosse o facto de ele próprio ter
comprado quatro carros aéreos.
O visiscópio continua a mostrar imagens das várias cidades. A crise é
planetária e, de Moscovo a Honolulu, os hipnos são perseguidos através das
ruas ou expulsos das suas casas à força.
— Deixe-me dizer-lhe uma coisa — sentencia uma das raparigas. —
Quando isto tiver acabado, os hipnos, se alguns restarem, não venderão mais
nada. Se não for o Governo a pôr cobro à situação, nós próprios nomearemos
um novo governo.
Jackson bate palmas, beija ambas as raparigas e dá-me uma palmada
nas costas. Reparo que há uma expressão galhofeira nos seus olhos que nunca
antes havia visto.
— E eu arranjarei um emprego como vendedor — diz ele. — Alguém
bebe?
Na manhã seguinte corremos com as raparigas e tomámos um foguetão
para Nova Iorque. Elas não ficam muito satisfeitas com a brincadeira, pois
estavam a contar talvez com um mês passado na companhia de homens do
espaço endinheirados e de boa posição e afinal acabaram por ser corridas.
Jackson abastece-se de notícias em banda antes de tomarmos o foguetão e
não tira os olhos delas durante todo o percurso até Nova Iorque, a ler o que
dizem sobre os tumultos.
Também leio alguma coisa, só para passar o tempo, e não vejo nada
que seja muito emocionante sobre o relatório do Congresso. Somente se diz
que os hipnos constituem um estrato da população maior do que se supunha e
apresenta-se uma análise das suas ocupações por ramos: dois por cento são
políticos, oito por cento trabalham nalguma especialidade médica, três por
cento são criminosos, dois por cento distribuem-se por várias atividades e
oitenta e cinco por cento são vendedores.
Isto não significa grande coisa para nós, técnicos espaciais. Os
vendedores nunca nos incomodaram porque nós não temos cartões de crédito.
O resto da população, porém, tem dividas até à ponta dos cabelos, por
comprar, comprar até mais não, coisas que não pode pagar. Quando o
relatório é publicado, as pessoas começam a somar dois com dois e não
gostam da resposta que obtêm.
Em Nova Iorque, Jackson arrasta-me com ele para um elegante edifício
de escritórios. A tabuleta que se encontra por cima da porta diz EMPRESA DE
VENDAS TERRA e lá dentro tudo está num pandemónio. Há polícias de guarda,
há homens a substituir vidros partidos e a varrer lixo do grande átrio e todos
os empregados estão com cara de quem acaba de perder um tio rico que não
deixou testamento.
Jackson parece verdadeiramente satisfeito com tudo e consegue
convencer os guardas e as secretárias a deixarem-no passar. Acabamos por ir
ter ao gabinete de um homem chamado Stephens.
Este cumprimenta-nos muito cortesmente, embora seja óbvio que não
está com disposição para falar seja com quem for.
— Lembro-me de si — diz ele a Jackson. — Você é o homem do...
Como tem passado?
Jackson puxa duas cadeiras para nos sentarmos e inclina-se sobre a
secretária, como se ela lhe pertencesse a ele e não a Stephens. Depois de o ter
visto a trabalhar em Calisto pergunto a mim próprio se ele não irá talvez
apoderar-se do lugar do outro.
— Compreendo agora porque é que você não quis empregar-me — diz
Jackson. — Todos os seus vendedores são hipnotizadores.
Stephens acena que sim.
— É claro que são!
— E se um homem fosse incapaz de o hipnotizar convencendo-o a
empregá-lo, você recusava-o.
Stephens acena que sim novamente.
— A minha resistência à hipnotização é maior que o normal, e se um
homem for capaz de me hipnotizar é porque é bom. É claro que não
empregávamos qualquer hipnotizador.
— De acordo com as notícias em banda de hoje, o Governo irá atuar
antes do fim do dia para vos impedir de voltar a empregar hipnotizadores.
Portanto, quero um emprego.
— A resposta ainda é negativa — diz Stephens.
— Se você vai ficar impedido de empregar hipnotizadores, terá de dar
os lugares a outras pessoas ou então desistir do negócio.
— Tivemos esta manhã uma reunião para definição da política a seguir
— diz Stephens. — O conselho geral das empresas de vendas também se
reuniu e decidimos todos suspender as nossas atividades se a situação chegar
a tal ponto que a isso nos obrigue. — Sorri para nós, mas vê-se que o seu
sorriso não significa felicidade.
— Quaisquer restrições que o Governo imponha não poderão durar
mais de um mês. Será o tempo suficiente para provocar a pior crise
económica da história. A nossa economia não pode de modo nenhum
funcionar sem os hipnotizadores. Não há outro meio de fazer a população
comprar as enormes quantidades de bens materiais produzidos. Lamento, mas
a recomendação que lhe fiz há dois anos ainda é válida.
— Penso que você ainda não compreendeu a situação — diz Jackson.
— Estas restrições não vão ser temporárias, mas como já esperei mais de dois
anos, sou capaz de esperar um pouco mais.
Stephens diz-lhe amigavelmente que é tempo perdido e despedimo-nos
dele.
— Que é que vai acontecer agora? — Pergunto.
— Vamos pedir à Companhia Mineira Jupiteriana uma licença
ilimitada — responde Jackson. — Depois arranjamos empregos como
funcionários públicos, onde a crise de que ele falou não nos afetará, e
esperaremos. Tenho a certeza de que vou conseguir um emprego como
vendedor. Talvez até consiga fazer de si um vendedor!
Não me agrada muito aquela ideia, mas como simpatizo com este tipo
vou atrás dele. Não temos qualquer dificuldade em obter as licenças
ilimitadas. Já trabalho na Companhia há dezoito anos e tenho bastantes
licenças acumuladas para gozar. Por outro lado, Jackson é um funcionário tão
bom que eles o querem de volta. Arranjamos assim empregos no Serviço
Postal e aguardamos a ver o que acontece.
5. ARNOLD STEPHENS
Na ocasião em que Mark Jackson me veio ver, pensávamos realmente
que poderíamos aguentar o tempo suficiente para que os nossos
hipnotizadores regressassem ao trabalho. A crise desenvolveu-se
rapidamente. Da noite para o dia, a nossa economia passou de uma situação
em que todos compravam tudo para outra em que ninguém comprava nada.
Milhões de trabalhadores ficaram desempregados ao fim da segunda semana
e este número aumentava diariamente. Os desempregados nada compravam;
os seus fundos de reserva foram desviados para as reformas sociais, exceto os
dez por cento reservados ao subsídio de alojamento, que foram absorvidos
pelos arrendamentos. Pareciam no entanto perfeitamente satisfeitos ao
passarem sem luxos, tais como alimentos frescos, e bastava-lhes o usufruto
das compras antigas. A família média possuía um sintetizador de alimentos
por pessoa e poderia ter subsistido à base de comida sintetizada durante um
ano ou mais sem necessidade de reabastecimento. Os que tiveram a sorte de
não perder os empregos pagaram relutantemente as coisas que já haviam
adquirido e tentaram economizar algum dinheiro.
Todas as nossas previsões se confirmaram, com exceção de uma:
mesmo com a economia em situação de catástrofe, o Congresso recusava-se
ainda a revogar as suas leis antihipnos. Só três meses depois conseguimos
persuadir um congressista a apresentar nova legislação, o que ele fez, para
logo no dia seguinte a retirar, quando os seus eleitores principiaram a fazer
circular uma petição nesse sentido.
Foi então que aceitámos o inevitável e começámos a empregar não
hipnotizadores para os lugares de vendedores. Fiz então um esforço para
localizar Jackson, mas ele não deixara endereço e a companhia mineira para a
qual trabalhara não sabia nada dele, exceto que estava de licença.
Um mês depois apareceu-me.
— Então você está finalmente a empregar não hipnotizadores! — Disse
ele.
— Pois estou — confessei.
— Um deles tentou hoje vender-me um carro aéreo. Nunca assisti a
uma atuação tão miserável! Fez-me parar na rua e pôs-se a gaguejar
desajeitadamente durante pelo menos cinco minutos, até que finalmente
disse: «Não está interessado em comprar um novo carro aéreo, pois não?»
Respondi que não, e ele agradeceu-me muito atencioso, afastando-se.
Depois de me relatar isto riu-se a bandeiras despregadas e eu tive de me
calar, pois pouco poderia acrescentar.
— E agora olhe para isto — disse ele, desdobrando-me sob os olhos um
noticiário em banda.
Numa pequena caixa ao centro da página, um título mandava-me olhar
para os meus sapatos, o que eu não fiz, continuando porém a ler a notícia.
«Está com aspecto andrajoso e miserável? Compre um novo e cintilante par
de EXCONS!»
— Que diabo é isto? — Exclamei.
— É um anúncio. O primeiro anúncio do século XXIV que vejo. Não
está mau, para uma profissão que agora nasce. É trabalho muito mais perfeito
do que o que vi fazer àquele vendedor! — Respondeu.
Puxei para fora o mapa de vendas das últimas quatro semanas e
estendi-o sobre a secretária. Jackson ficou a olhar para ele abismado.
— Não tem vendido nada?
— Nada. Nem uma venda. Pusemos um milhar de vendedores não
hipnotizadores em campo e até agora nem uma só venda fizeram. As pessoas
estão tão encantadas por serem agora capazes de dizer não às suas propostas
que não querem comprar nada. Você pensa que seria capaz de dar um jeito?
— É claro que seria, cos diabos!
Apesar de a nossa situação ser desesperada, hesitei. Ele era uma pessoa
tão agradável que me custava vê-lo falhar!
— Estou certo de que numa sociedade onde não existem vendas
hipnóticas os vendedores desenvolvem faculdades e técnicas altamente
especializadas e eficientes, mas tenho muitas dúvidas sobre se essas técnicas
terão êxito numa sociedade onde todas as vendas se têm baseado no
hipnotismo — disse eu. — Dar-lhe-ei uma oportunidade e toda a ajuda de
que necessitar. Só espero que não fique muito desapontado com os
resultados. Vou levá-lo ao armazém e pode lá escolher o que quiser vender.
Jackson sorriu.
— Há muito tempo que esperava por isto. Vamos lá então!
A sua escolha recaiu sobre um belíssimo ornamento doméstico: uma
fonte em miniatura portátil, que incluía a sua própria fonte de energia e que
produzia uma fascinante cascata de cores ao premir-se um botão. Expliquei-
lhe como utilizar os nossos boletins de encomenda e ele por sua vez pediu-me
um gravador de bolso para levar consigo.
— Importa-se que eu o observe enquanto trabalha? — Perguntei.
Julgo que a ideia lhe agradou. Passou algum tempo a escolher um
edifício de apartamentos e quando finalmente tomou uma decisão perguntei-
lhe a razão da escolha.
— Escolhi estes por serem funcionários públicos — esclareceu. —
Ainda estão empregados mas não pertencem a uma classe de rendimentos
suficientemente elevada para que as suas portas tenham telas de
visionamento. Se se quiser vender a uma dona de casa, tem de se poder pôr o
pé na porta.
Começou logo a sua primeira visita, antes mesmo de eu ter tido tempo
de lhe pedir para me explicar melhor aquilo. Assim que a porta se abriu fez
uma grande vénia e disse:
— Estamos a fazer um inquérito ao consumo. Importa-se que
entremos?
Não sei qual de nós dois estava mais espantado, se eu ou se aquela
gorducha dona de casa que recuou serenamente e nos mandou entrar.
Fiquei à porta enquanto ele dava uma volta pela sala de estar
inspecionando os móveis. A dona de casa seguia-o parecendo a cada passo
mais perplexa.
— Os móveis estão em razoáveis condições — observou ele. — Mas a
senhora está com bastante falta de espaço, não está?
A senhora gaguejou:
— Bem, não...
Este esquema de cores não joga muito bem. Foi a senhora quem o
escolheu?
— Eu...
— E a disposição da sala também deixa a desejar. Lamento, mas não
pode concorrer.
— Concorrer a quê? — Perguntou ela.
Jackson tirou a fonte do saco, pô-la sobre a mesa e carregou no botão.
A sala ficou inundada de cores. Olhei para a satisfação infantil expressa na
cara daquela dona de casa e pensei que ele ia mesmo conseguir vender
aquilo. No instante seguinte, porém, o que Jackson fez emudeceu-me por
completo.
— Fui autorizado a colocar um número limitado destas maravilhosas
fontes nas casas que o merecessem — disse ele. — Contudo, conforme lhe
disse, a sua está impossibilitada de concorrer. Lamento-o.
Desligou a fonte, meteu-a no saco e encaminhou-se para a porta.
Poucas vezes vi uma mulher tão furiosa. Com a face congestionada e
agitando os braços, postou-se à entrada da porta e recusou-se a deixá-lo sair.
Os dois discutiram durante alguns minutos e ele acabou por ceder e deixá-la
assinar um boletim de encomenda.
Havia sessenta e dois apartamentos naquele edifício. Jackson vendeu
sessenta e duas fontes sem modificar uma vírgula à sua técnica. Depois
entregou-me os boletins de encomenda e disse num tom de quem pede
desculpa:
— Estou um pouco em baixo de forma e cansado. Para mim foi um dia
fatigante.
Eu estava exausto só de o ver em ação e custava-me a acreditar no que
havia visto. Não parava de perguntar a mim próprio se era assim que se
vendia no século XX. Insultando os clientes e tentando impedi-los de
comprar. Fui para casa e deitei-me cedo.
Um telefonema de Jackson acordou-me pouco depois da meia-noite.
— É melhor vir aqui à Central da Polícia — disse. — Estou preso.
— Preso? — Exclamei. — Como... O que é que... — Gaguejei.
— Estou preso por ser acusado de venda hipnótica. Estão aqui vinte e
um maridos a queixar-se de que eu lhes hipnotizei as mulheres para que
comprassem aquelas fontes. Dizem-me que a pena máxima é a prisão
perpétua. Admira-me que não seja condenado à morte!
Naquele momento tive uma ligeira dúvida, pois pensei na sua estranha
atuação e nas invulgares reações daquelas mulheres.
— Jackson, você por acaso não as hipnotizou, pois não? — Perguntei.
— Claro que não! — Berrou ele.
— Vou já para aí!
Contactei o consultor jurídico da empresa e combinámos ir juntos. A
Central da Polícia estava agitadíssima. Havia mais de quarenta maridos
queixosos quando lá chegámos e o número ia aumentando. Alguns traziam
consigo as mulheres e argumentavam encolerizados. As mulheres
confessavam que Jackson não lhes vendera nada. Na realidade, havia mesmo
tentado recusar-se a vender o que quer que fosse. Elas é que tinham insistido
porque queriam a fonte. E ainda a queriam. Um grupo de juízes convocados à
pressa escutava as declarações, ouvia uma gravação das várias entrevistas
com as donas de casa feitas por Jackson no seu gravador de bolso e emitiu
cautelosamente a opinião de que, se bem que um hipnotizador pudesse ter
fascinado daquele modo os seus potenciais clientes, não compreendiam
porque se daria ao trabalho de o fazer assim. Um psiquiatra declarou que
Jackson não era hipnotizador, mas sim um psicólogo extremamente hábil e
talvez muito mais perigoso. Os jornalistas tomavam notas alegremente e
fotografavam e entrevistavam as mulheres. Jackson acabou por ser libertado.
Na manhã seguinte a sua fotografia apareceu nos visiscópios e ao alto
de todos os noticiários em banda. As legendas chamavam-lhe MESTRE DOS
VENDEDORES. Jackson irrompeu no meu escritório e disse furioso:
— Temos de acabar com isto!
— Você é a notícia — respondi eu. — É a primeira vez, desde há
longos meses, que alguém, em todo o planeta, compra alguma coisa sem ser
por absoluta necessidade! Não podemos impedir que os meios de
comunicação falem disso!
— Mas eu é que não estou a gostar da brincadeira — disse ele
encolhendo os ombros. — Vem hoje comigo de novo?
Foi ao armazém e tirou fotografias a cores dos últimos modelos de
carros aéreos. A seguir precipitámo-nos na direção do parque de
estacionamento governamental. Vinha a entrar um veículo um tanto ou
quanto estafado e Jackson aproximou-se do condutor, que era um corpulento
funcionário do governo com ar importante.
— O senhor é o dono desta sucata? — Perguntou.
O homem estremeceu.
— Ouça lá, donde é que eu o conheço?
Jackson ignorou a pergunta.
— Estou surpreendido por ver um homem com a sua posição a voar
numa cafeteira destas! Olhe só para aquele carro que ali está.
Dizendo isto, apontava para um modelo faiscante que obviamente fora
comprado antes de os tumultos terem ocorrido.
— As pessoas avaliam um homem pelo carro que conduz. Aposto que
os vizinhos do dono daquele carro pensam que ele é alguém na vida.
A cara do homem passou por diversos estádios de perplexidade.
— Nunca pensei nisso — confessou. — As crianças realmente
desgastam um carro num instante. Tenho cinco carros aéreos e todos estão
neste estado.
— Isso resolve-se facilmente — respondeu Jackson. — Compre um
carro novo e reserve-o só para si. É bonito, não é? — Perguntou exibindo
uma das fotografias que havia tirado.
— Sem dúvida! — Admitiu o homem.
Subitamente apareceu uma nota de encomenda nas mãos de Jackson.
— Assine aqui e farei com que lho entreguem esta tarde.
O homem assinou. E foi assim que vi Jackson vender sete carros aéreos
antes do meu regresso ao escritório. Quando ele me apareceu ao princípio da
tarde trazia consigo trinta e nove notas de encomenda assinadas.
Trinta e nove vendas importantes! Nenhum vendedor hipnotizador
conseguira jamais controlar tantos clientes de categoria num só dia!
— É assombroso! — Exclamei. — Você tem a certeza de que não tem
qualquer espécie de capacidade hipnótica latente?
— Se a tivesse não seria vendedor. Onde está o prazer de vender se o
cliente não pode dizer não?
— Seja o que for que você tem, estou convencido. Nunca fui
convencido tão eficazmente na minha vida. Vou pedir ao conselho de
administração para o nomearem vice-presidente, encarregado da formação do
pessoal de vendas. Se você souber ensinar os outros a fazer o que vem
fazendo...
— Ainda não. Preciso de experimentar um pouco mais. Há nisto uma
coisa que me aborrece: é que as pessoas são demasiado ingénuas. Com os
métodos infantis que estou a utilizar devia estar a enfrentar muitas negativas,
e isso não está a acontecer. Amanhã vou tentar vender fontes novamente.
Jackson foi outra vez foco de notícias na manhã seguinte, bem como os
homens a quem ele vendera os carros. Alguns deles estavam vexados, outros
revoltados e só um ou dois pensavam que realmente precisavam de um carro
novo.
— Gostava que eles deixassem de falar no assunto — desabafou
Jackson.
— Mas não deixam — disse-lhe eu. — Já lhe disse que você é notícia e
que as pessoas que lhe fazem compras também o são. Você acaba por se
habituar, verá.
Pegou numa fonte no armazém e começou a fazer a sua volta. A
primeira dona de casa recebeu-nos à porta olhando-nos demoradamente e
dando depois um gritinho de satisfação.
— Ah! Você é o tal vendedor! Eu vi a sua fotografia. Entre, por favor.
Jackson fitou-me, encolheu os ombros com enfado e pôs depois um
sorriso para uso exclusivo da dona de casa. Seguimo-la até à sala de estar e
ela não o largava, excitada.
— Li tudo o que se tem publicado sobre isto — disse efusivamente. —
Repita comigo exatamente como fez com todas as outras mulheres!
Jackson mantinha o sorriso com dificuldade. Deu uma vista de olhos
pela sala e disse:
— Não, desculpe-me. A senhora não pode concorrer...
Ela estremeceu de tanto rir.
— É mesmo assim! É exatamente assim! Não me escapou relato
nenhum! Faça mais um bocadinho!
— A sua sala de estar é demasiado pequena.
Outra gargalhada.
— É assim, é!
— A combinação de cores é péssima.
— Isso mesmo!
Jackson pôs a fonte sobre a mesa.
— É um lindo ornamento, mas lamento que a senhora não possa
concorrer.
— Está bem — disse ela. — O meu marido também não me deixaria
comprá-la. Mas de qualquer modo agradeço-lhe muito por me ter feito a
demonstração.
Vimo-nos de novo no vestíbulo e ambos estávamos tremendamente
enervados. Passámos por mais dez sessões com donas de casa fascinadas e
galhofeiras, até que Jackson desistiu e foi para casa. Não vendeu nenhuma
fonte.
Na manhã seguinte dedicou-se de novo aos carros aéreos, mas
regressou antes do meio-dia sem encomendas.
— Dão-me pancadinhas nas costas e convidam-me a ir tomar uma
bebida. Tomei esta manhã mais bebidas à borla do que em qualquer semestre
de que me lembre. Dão umas voltas comigo e apresentam-me aos amigos, e
quando tento encaminhá-los para o assunto que ali me leva, que é vender,
riem-se na minha cara e dizem: «Ah! Você é então o tal vendedor!
Experimente vender-me qualquer coisa.»
— É a publicidade — lembrei eu.
— Pois. Vou ter de pensar em qualquer coisa de novo.
E pensou. No dia seguinte foi sensacional. Mas no outro dia não
conseguiu vender nada. À medida que os dias passavam repetiu-se aquele
esquema inúmeras vezes. Ele tentava um novo método e obtinha um êxito
fenomenal. Invariavelmente um exército de jornalistas recolhia o nome dos
seus clientes na Central de Crédito, entrevistava-os e na manhã seguinte
todos os pormenores eram revelados espetacularmente ao público leitor e
ouvinte. E assim, aquele método nunca mais resultava.
— Julgo que percebo o que se passa — disse Jackson finalmente. — Se
apanho este tipo de cliente do século XXIV distraído, ele é incrivelmente
ingénuo. É incapaz de dizer que não. Mas se é avisado previamente, tem uma
resistência terrível à venda. Se ao menos nos pudéssemos livrar desta
publicidade...
— Isso é que não podemos — insisti eu. — A questão que se põe é se
você seria capaz de ensinar outros vendedores a inventar novos métodos
diariamente.
— Não. Com o tempo, alguns deles seriam capazes disso, mas é
necessário ter capacidades inatas para lá chegar e muita experiência de venda.
O máximo que eu poderia fazer a princípio seria ensinar-lhes um método que
eu próprio tivesse ensaiado.
— Mas uma vez que você o tivesse ensaiado ele já não daria resultado.
— Parece não haver dúvidas quanto a isso.
— Então receio que tenhamos sido derrotados — disse eu. — Você está
a fazer um sucesso notável, mas um só homem não pode travar uma crise
económica.
Jackson levantou-se com ar aborrecido.
— Deve haver qualquer maneira de resolver o problema. E se a houver,
descubro-a.
Porém, não a descobriu. Trabalhou incansavelmente, adquiriu uma
expressão de obcecado e tornou-se cada vez mais irritável. Parecia estar a
esgotar-se de dia para dia, até que finalmente o obriguei a descansar uma
semana.
Durante essa semana o Congresso encheu-se de coragem e agiu.
Elaborou então um código minucioso do que poderia ser vendido e a quem,
quanto poderia vender-se de cada mercadoria e autorizou os hipnos a
voltarem ao trabalho. Quando Jackson regressou de férias já a crise
económica dava sinais de recuar. Por muito que eu lamentasse isso, tive de
despedi-lo.
— Você pode voltar ao seu antigo emprego e continuar a fazer a sua
vida como quiser — disse-lhe eu. — Dei o devido valor ao que tentou fazer e
ninguém pode negar que a sua atuação foi notável. Contudo, competir com
hipnos é uma tarefa muito difícil.
Ele reagiu à decisão surpreendentemente bem.
— Eu sei — disse impassível. — Mas ainda penso que posso resolver
este problema. Continuarei a pensar nele. E prometo-lhe voltar. Nunca
esperei voltar a vê-lo.
6. ERF ZEDDEN
Jackson faz-me passar maus bocados enquanto exerce a profissão de
vendedor e a coisa piora dia a dia. Descarrega para cima de mim se a mais
pequena coisa corre mal no apartamento e passa a maior parte da noite de pé
a imaginar a melhor maneira de vender diversas coisas. Penso que o tipo se
está a matar e fico bastante satisfeito quando o chefe dele o faz gozar uma
semana se férias. Vamos passar toda a semana num daqueles hotéis de luxo
que há na Lua, e embora eu odeie o local, não digo nada porque sei que ele
precisa de descanso.
No dia seguinte ao nosso regresso à Terra vai ao trabalho como é hábito
e volta para casa um pouco mais tarde, dizendo-me então que tudo acabou.
Considero que isto é a primeira notícia agradável desde os tumultos. Partimos
para Marte no mesmo dia e a Companhia Mineira Jupiteriana está toda feliz
por nos ter de volta. Por o ter de volta a ele, pelo menos. Fazem-no aceitar
uma despromoção por ter estado ausente tanto tempo, mas não tarda a
reocupar o lugar que antes ocupava e continua a ascender. Em apenas cinco
anos sobe a hierarquia toda até ao lugar de presidente.
Vamos viver em Marte e eu levo uma promoção e um aumento de
vencimento, passando a ser aquilo a que ele chama o seu braço-direito,
função que consiste essencialmente em cuidar que ele se mantenha saudável e
em ocupar-me de pequenas tarefas. Continuo preocupado com ele, porque
vejo que não é feliz, seja qual for a altura a que suba. Já é talvez a décima
milésima vez que me diz: «Quando se é vendedor uma vez, é-se vendedor
para toda a vida.» É vendedor que ele quer ser e convenceu-se de que vai
voltar à profissão qualquer dia e mostrar a todos aqueles hipnos como é que
se trabalha.
Calcorria o apartamento de um lado para o outro com aquela expressão
estranha nos olhos e por vezes mantém-se levantado até altas horas a pensar
nos modos de vender as mais diversas coisas e a ensaiar discursos de vendas,
que pratica em mim. Passo a vida a dizer-lhe que são bons, embora ao fim de
ouvir um ou dois me pareçam todos iguais.
As coisas passam-se deste modo durante um par de anos, comigo cada
vez mais preocupado com a saúde de Jackson, e então dá-se de súbito um
acontecimento na indústria mineira que o faz ter algo mais em que pensar. É
o facto de as minas de Calisto começarem a tornar-se um encargo financeiro
não compensador.
O importante disto é que a Companhia Mineira Jupiteriana está à espera
deste acontecimento desde há cinquenta anos e que em Ganimedes, Europa e
Io estão em curso novas explorações desde muito antes de eu ter iniciado a
minha vida no espaço, tendo a Companhia entretanto feito talvez dez milhões
por cento de lucros sobre o investimento inicial em Calisto e não estando
ninguém desgostoso por abandonar aquela lua.
Ninguém, exceto Jackson. É que ele pensa que se está perante uma
crise, e então arrasta-me para uma reunião de diretores para operar um
projetor de imagens.
— Trata-se de um desperdício escandaloso — diz ele. — Temos seis
cidades de certa dimensão em Calisto e o custo de recuperar todo aquele
plástico fundido seria maior do que o seu próprio valor.
— Nem pense nisso! Se a recuperação custa demasiado, esqueça-a pura
e simplesmente!
— É mau negócio inativar um investimento daquela dimensão.
— Meu caro amigo — dizem eles. — O nosso investimento em Calisto
já foi amortizado há cem anos. A nossa Companhia nunca pensou que as
minas produzissem durante tantos anos. Por isso achamos que é realmente
um bom negócio inativá-lo.
Jackson abana a cabeça e reparo que os seus olhos exibem aquela
estranha expressão a que me vem habituando.
— Calisto é propriedade exclusiva da Companhia Mineira Jupiteriana
— diz ele. — Visto que já não tem qualquer utilidade para nós, peço ao
conselho de diretores licença para a vender.
Faz-se um silêncio de cerca de dois minutos, seguido do riso mais
espontâneo e incontrolado que já ouvi desde os tempos dos tumultos
antihipnos. Aqueles velhotes encostam-se às cadeiras e põem-se, pura e
simplesmente, a rir de maneira estúpida. Vender Calisto? E porque não
vender Marte? Ou a Terra?
Jackson aguarda calmamente que eles sosseguem e apresenta depois
uma moção com a proposta de venda de Calisto, retendo a Companhia todos
os direitos sobre os minérios. Os diretores não veem nada de mal na ideia em
si, a não ser que a acham impraticável, e Jackson consegue uma aprovação
unânime para a sua moção. Na manhã seguinte partimos para a Terra.
Jackson aluga um terminal de dados e passa alguns dias a encher um
livro de apontamentos com notas estatísticas e mais alguns dias a organizá-
las. Vamos então visitar um tal Sr. Whaley, que é presidente de uma grande
agência de viagens.
— Julgo saber que os senhores passaram por um mau período desde
que entrou em vigor aquela legislação sobre a venda hipnótica — diz
Jackson.
Este tal Whaley fica todo satisfeito por encontrar alguém com quem
possa lamuriar-se e expõe-nos os seus problemas. Ficamos a saber que antes
dos tumultos antihipnos ele tem em campo uma equipa de vendedores
hipnotizadores a vender excursões a pessoas que não sentem necessidade
delas. Muitas dessas pessoas nem sequer as querem depois de as terem
comprado e portanto não chegam a utilizar os bilhetes, o que acrescenta uma
bonita fatia aos lucros puros da agência de viagens. Depois dos tumultos, o
Governo põe um travão no negócio.
— Desde então tem andado à procura de atrações invulgares para
induzir as pessoas a viajarem, não é assim? — Pergunta Jackson.
— É assim mesmo — confessa Whaley.
— E neste preciso momento estão a pensar construir um hotel de luxo
na Lua, para noivos em viagem de núpcias.
— Pensámos nisso, mas já desistimos — diz Whaley. — Os hotéis que
já lá existem far-nos-iam uma enorme concorrência e os custos de construção
têm subido tão depressa que teríamos de cobrar tarifas que os casais jovens
não poderiam suportar.
— Mas eu tenho uma resposta para o seu problema. Leve os seus
noivos para Calisto, onde já existem instalações ótimas. Só teriam de fazer
algumas alterações, mas as despesas seriam mínimas.
— Calisto fica demasiado longe. A maior parte da lua-de-mel já teria
passado quando os noivos lá chegassem.
— Estou certo de ter na minha posse factos que lhe interessarão — diz
Jackson abrindo o livro de apontamentos.
Durante vinte minutos submerge Whaley com dados estatísticos.
Assim, informa-o de que noventa por cento dos que emigraram para Marte
são jovens e solteiros e de qual é a percentagem de casamentos naquele
planeta. Mostra-lhe ainda dados sobre o montante que o Governo está a
despender para interessar os cidadãos da Terra a fixarem-se em outros locais
do sistema solar e diz-lhe que o Governo concederia com satisfação subsídios
para a constituição de uma frota equipada com motores militares rápidos,
destinada a servir as viagens de núpcias.
— A elevada percentagem de casamentos em Marte assegura-lhe um
negócio estável logo desde o início, o qual dará receitas que excederão os
custos de exploração — diz ele. — Poderá controlar o negócio das viagens de
luxo na Terra e no resto do sistema solar. E, o que é mais ainda, terá algo
para vender. Algo que interessará e excitará as pessoas. Pense nas frases
publicitárias que poderá usar: «Lua-de-mel por entre as luas», «As dezasseis
luas de Júpiter», «Lua-de-mel sob Júpiter, a maior lua do Universo.» Não é
um êxito certo?
Whaley sacode dos olhos a expressão sonhadora com que está e diz:
— Diga-me só o que está a querer vender-me!
— Calisto — responde Jackson.
— Não temos dimensão suficiente para isso. Nenhuma agência de
viagens tem a dimensão suficiente para um empreendimento desses.
— Se as agências se juntarem já têm a dimensão suficiente. Todos
lucram. O meu plano destina-se a criar oportunidades de negócio.
— Não tenho autoridade para tal. Teria de resolver o assunto com o
conselho.
É claro que o episódio termina com Jackson a vender-lhes Calisto. Pelo
menos vende-lhes os direitos de superfície da Companhia Mineira Jupiteriana
em Calisto, mas para as agências noticiosas isso vem a dar na mesma.
Durante alguns dias somos esmagados pelos jornalistas e Jackson salta para
as primeiras páginas dos jornais com títulos como «O MESTRE DOS
VENDEDORES VENDE UMA LUA». Os diretores da Companhia Mineira
Jupiteriana enviam-lhe uma gratificação e decidem por votação atribuir-lhe
uma parte das ações da Companhia. Dizem-lhe ainda para gozar umas férias,
aproveitando o facto de se encontrar na Terra. Está-me a parecer que ele vai
começar de novo a pensar no regresso à profissão de vendedor, mas afinal
isso não acontece. Só tira umas férias.
Então, um dia, o tal Stephens, da Empresa de Vendas Terra, convida-
nos para jantar. Penso que talvez ele queira que Jackson volte a trabalhar com
ele, mas não, somente comemos um belo jantar enquanto Jackson é
apresentado à sua filha. Pelo modo como ambos reagem, penso que Jackson
será um dos próximos clientes das viagens de núpcias a Calisto.
— Vejo que você acabou por resolver o seu problema — diz Stephens.
— É verdade. Se as minhas atuações de venda não dão resultado mais
que uma vez, só me resta vender qualquer coisa que só se venda uma vez.
Na ocasião não entendo a frase, mas neste momento estou a pensar no
seu real significado. Jackson casa-se com a filha de Stephens e leva-a para
Marte, onde se instala para criar uma grande família e aumentar os lucros da
Companhia Mineira Jupiteriana. Está a um passo de ser o próximo presidente
do conselho de administração, o que é um triunfo notável para um indivíduo
jovem como ele, mas vejo que ainda não está satisfeito consigo próprio.
O problema é que Calisto não resolve realmente o seu mal. Ele não se
sente feliz se não estiver a vender qualquer coisa, e até eu sou capaz de
entender que um homem que vende coisas que somente se podem vender
uma vez irá passar muito tempo desempregado. Conforme o próprio Jackson
confessa, a oferta de luas é ainda mais diminuta que a procura.
Nos últimos tempos tenho visto aquela expressão estranha nos seus
olhos e fico incomodado por o ver com aquele ar quando não há nada que ele
possa vender. Penso que talvez isto tenha alguma coisa que ver com o tempo
que passa a estudar um velho livro pelo qual pagou a um antiquário, lá em
baixo na Terra, uma pequena fortuna. O livro chama-se O Hipnotismo sem
Mestre.
4
O Dia do Juízo
(«Judgement Day»)
***
***
***
***
Aquela tarde era precisamente igual a qualquer outra tarde das semanas
anteriores, no sentido de que fazia um calor escaldante. O mais que se podia
dizer era que o facto fornecia matéria para conversação. Falava-se do calor e
do ar seco.
Jeff Flowers deslocava-se fatigado através de uma rua de residências.
Não pensava no trabalho. Na segunda-feira seguinte estava encarregado de
abrir uma sucursal em Seattle, local que ele próprio havia escolhido depois de
se certificar de que a cidade não era quente nem seca. Janet ficara na sede até
poder arranjar uma nova ajudante para o Sr. A. Vandenberg e só depois disso
se transferiria para o escritório de Seattle. Nessa altura casar-se-iam. O total
dos seus dois ordenados era suficientemente elevado para tranquilizar
Flowers quanto às suas apreensões sobre o futuro do negócio da troca do
novo pelo velho.
Entretanto não faltavam atacadores para trocar. Ao longo da rua ecoou
a notícia da sua chegada. As donas de casa abriram as portas de suas casas e
tinham pilhas de atacadores à espera dele. Se não fizesse um calor tão
infernal talvez pudesse bater um novo recorde. Mas o calor excessivo
impedia-o de andar depressa.
Limpou a testa com um lenço que já há muito havia alcançado o ponto
de saturação e deu uma olhadela para o céu. Sobre a cidade deslizavam
nuvens escuras. Na casa mais próxima recolheu quinze pares de atacadores
usados, e no momento em que a dona de casa acabava de fazer, deliciada, a
sua escolha, as janelas eram fustigadas por acidentais gotas de chuva.
A passos estugados, Flowers dirigiu-se para o carro. A passada
transformou-se em trote e depois em galope quando as pesadas nuvens
verteram subitamente torrentes de chuva sobre a cidade. Terminara a longa
seca.
A meio quarteirão de distância do carro, com as pernas em movimento
frenético, Flowers sacudiu do pé um sapato. Depois apanhou-o do chão e
continuou a correr sobre a peúga. Cinco passos adiante soltou-se o outro
sapato. Acabou por chegar ao carro completamente ensopado em água, com a
mala numa mão e o par de sapatos na outra, e logo se atirou para o banco da
frente. Fechou a porta com força, deu um suspiro profundo de alívio e
concentrou a atenção nos sapatos.
A razão do seu comportamento irresponsável saltou-lhe logo à vista.
Não tinham atacadores.
Ficou a olhar para eles durante bastante tempo enquanto a água
ressoava fragorosamente sobre o tejadilho do carro e pingava das suas calças
para o piso. Depois, com o coração a bater violentamente, tirou um atacador
de cor viva da mala de mão, abriu a janela e segurou-o com o braço
estendido, deixando-o à mercê da intempérie. A cor viva esvaiu-se e o
atacador transformou-se rapidamente numa mixórdia viscosa e pegajosa. De
súbito desapareceu. Até as pontas metálicas se dissolveram.
Flowers repetiu a experiência duas vezes e depois sentou-se corcovado
sobre o volante, perdido em pensamentos. A chuva desabava sobre o para-
brisas. Pôs o motor a trabalhar e ligou as escovas para o limpar. Estas quase
nem uma marca produziram na cascata de água que descia pelo vidro. As
luzes da rua estavam acesas, mas não eram mais que pálidos globos de luz
branca, que quase nada acrescentavam à visibilidade bastante próxima de
zero. Conduzir naquelas condições era impossível. Flowers respirou fundo e
afastou-se da curva.
Vinte minutos depois chegava a um drugstore com um guarda-lamas
amolgado. Correu para ele, deixando os sapatos no carro, e descobriu que não
estava sozinho no que se referia à proteção dos pés, pois havia pelo menos
uma dezena de pares de peúgas e meias ensopadas à vista e os seus donos
falavam e gesticulavam furiosamente. O que diziam era qualquer coisa sobre
atacadores.
Flowers correu para uma cabina telefónica e ligou para O Novo pelo
Velho, S. A. R. L.
— Janet — disse ele —, ouve com atenção. Tens de sair daí. Estes
malvados atacadores dissolvem-se na água e só Deus sabe quantos milhares
de pessoas foram apanhadas com eles nos pés debaixo desta chuva. Nem vale
a pena falar do que vai acontecer. Vai para o teu apartamento que eu vou lá
ter contigo. Penso que é melhor fugirmos da cidade.
— Não posso! — Lamentou-se Janet. — A polícia já aqui está e...
— Passe-me o telefone, menina — disparou uma voz masculina. —
Está? Quem fala?
Flowers desligou o telefone pousando o auscultador com força e fugiu.
De regresso ao carro procurou na mala de mão um par de atacadores
velhos e com eles conseguiu prender bem os sapatos aos pés. Fez figas
mentalmente e reiniciou a viagem.
A chuva havia diminuído quando chegou a O Novo pelo Velho, S. A.
R. L., A loja estava fechada. Dirigiu-se a pé resolutamente para a esquadra da
polícia, onde encontrou o Sr. A. Vandenberg, Janet, três colegas e um
sargento da polícia que prazenteiramente tomou nota do seu nome e o
convidou a juntar-se aos outros.
— A responsabilidade destes atacadores falsos é sua — disse Flowers a
Vandenberg. — Que é que vai fazer agora?
Vandenberg estava postado junto à janela, olhando fixamente para o
dilúvio.
— Chuva — murmurou. — Água. Chuva. Água.
— Pois! E cada par daqueles atacadores tem a garantia de durar o que
durarem dois pares de sapatos quaisquer.
— Vamos substituir os pares estragados — disse Vandenberg com ar
ausente. — Produziremos um atacador novo que não seja afetado pela chuva.
— Teremos sorte se alguém não nos linchar primeiro! Há milhares de
pessoas a andar por aí de peúgas esta tarde por causa da O Novo pelo Velho,
S. A. R. L. Quando vinha para aqui passei por uma loja de sapatos que estava
a abarrotar de pessoas a comprar atacadores.
— Substituiremos todos os pares — repetiu Vandenberg, inclinando-se
para a frente para observar fiozinhos de água que escorriam pela janela. —
Daremos a cada pessoa dois pares por cada par dos outros.
— Ele é incapaz de perceber — disse Janet lavada em lágrimas. — Está
metido num sarilho enorme... Como todos nós, aliás, não é tanto por causa
dos atacadores, embora isso também conte. Especialmente por todos os
polícias...
— Que é que há com os polícias? — Perguntou Flowers.
— Muitos deles comem naquele café que fica em frente da loja, do
outro lado da rua. Viram a tabuleta na montra e neste momento estou
convencida de que todos os agentes da polícia usam os nossos atacadores.
Usavam-nos, melhor dito! Alguns deles foram lá à loja logo depois de ter
começado a chover e fizeram uma grande algazarra. Depois vieram uns
homens do gabinete do promotor público...
— Mas que é que realmente se passa?
— Não sei. Estamos todos metidos num grande sarilho e ele não faz
nada para resolver o assunto.
— Vandenberg! — Chamou Flowers. — Que tal se contratasse um
advogado e nos tirasse daqui para fora?
— Um advogado? — Perguntou Vandenberg maquinalmente.
Foi Flowers quem acabou por chamar o advogado, um homem austero
e de ar taciturno, com uma cara comprida e fúnebre, óculos com armação de
chifre e ouro em tal quantidade nos dentes que justificaria uma expressão
menos fúnebre. O homem conferenciou com Flowers por breves momentos,
fez uma tentativa nobre mas falhada para entabular conversa com
Vandenberg e saiu para tentar a sorte junto da polícia e dos homens do
promotor público.
Quando voltou abanava a cabeça desalentadamente.
— Os atacadores não são o maior problema. Pode haver um certo
burburinho por causa deles, e na realidade já está a haver (esperem para ver
os jornais da noite), mas se o vosso patrão cumprir a promessa de substituir
cada atacador estragado por dois novos de boa qualidade, essa questão fica
resolvida. Não sei como é que ele vai fazer a troca, especialmente em relação
aos atacadores que se dissolveram com a chuva, mas o problema é dele. Não;
o grande sarilho não está nos atacadores. Está nos documentos e livros da
empresa.
— Que documentos? — Perguntou Flowers.
— É precisamente isso que o promotor público quer saber. Que
documentos! O vosso patrão foi intimado a semana passada a apresentar os
seus documentos e livros comerciais. Ora ele diz que não os tem. Assim não
se safa, percebem? Pode até não haver problema nenhum, isso depende do
que procura o promotor público e de ele encontrar a informação procurada,
mas o vosso patrão terá de apresentar os documentos de escrituração.
— Vamos falar com ele — sugeriu Flowers.
Vandenberg ouviu-os com indiferença. Documentos de escrituração?
Não os tinha. Nem um! Mas que interessava isso?
— Valha-me Deus! — Exclamou o advogado. — Que interessa isso?!
Tirou os óculos e desse modo conseguiu dar a impressão de que estava
a ver Vandenberg melhor.
— Meu caro senhor! O senhor está a dirigir um negócio sob a firma O
Novo pelo Velho, S. A. R. L. Tem ações próprias na empresa?
— Ações? — Disse Vandenberg, desinteressado. — Não há ações.
— Mas... Se a sua empresa é uma sociedade anónima, tem de haver
ações! Tem de haver acionistas! Onde está a sua lista de acionistas?
— Não há acionistas.
O advogado esboçou um sorriso e tentou de novo.
— Vejamos. A sua empresa é uma sociedade anónima. A sociedade
anónima foi constituída ao abrigo das leis do Estado do...
Fez uma pausa e ergueu as sobrancelhas finas, ficando na expetativa.
— Não compreendo — disse Vandenberg.
— Quer dizer: não se pode ter uma sociedade anónima sem ter
acionistas.
— São só palavras e nada mais — disse Vandenberg.
— Não são só palavras! Se se quiser fundar uma sociedade anónima,
tem de se ter acionistas.
Voltou a pôr os óculos e a sua visão pareceu diminuir notavelmente.
Aproximou-se mais de Vandenberg e prosseguiu:
— O senhor tem empregados e decerto tem registos deles.
— Doze empregados — disse Vandenberg. — E não tenho nenhum
registo.
O advogado tirou os óculos e distraidamente limpou a testa com eles.
— Não tem folhas de pagamentos de ordenados? — Sugeriu ele com
uma certa esperança.
— Não.
— Com certeza que tem deduzido os impostos nos ordenados dos seus
empregados e que os tem entregue ao Estado...
— Não.
Zomrigger procurou uma cadeira e sentou-se pesadamente.
— O senhor fez cada um dos seus empregados preencher o impresso
W4. Se um empregado não preencher esse impresso, deduz-se o imposto ao
seu ordenado, dado que não pediu isenção de impostos. O senhor deduziu
portanto o imposto ao ordenado de cada empregado e entregou-o ao...
— Não — disse Vandenberg. — Não deduzi nada aos ordenados.
Porque havia eu de tirar dinheiro aos meus empregados?
Zomrigger respirava ofegantemente, com uma expressão de horror na
face.
— Utilizou o impresso SS4 para requerer o número de identificação da
empresa, descontar os impostos de segurança social dos seus empregados e
contribuir com uma importância idêntica em dinheiro seu para...
— Não.
— E os impostos para o subsídio de desemprego federal e estadual?
— Não.
— Registou a sua empresa na Repartição do Imposto de Transações
estadual?
Pela primeira vez, Vandenberg pareceu interessado.
— Que é isso?
— Bem... Sem ver não posso dizer se a sua atividade exige isso.
Depende do valor de venda a retalho dos seus atacadores, e visto que o seu
negócio é trocar em vez de vender... Seja qual for deveria ter registado a
empresa na Repartição do Imposto de Transação. É que eles podem
apresentar-lhe uma enorme fatura se...
— Eu não vendo nada. Trata-se simplesmente de trocas. Ninguém tem
nada com isso — disse Vandenberg.
— Que disposições tomou sobre o imposto de venda de joias a retalho?
— Nenhumas. O que troco são atacadores, e não joias.
— Mas esses atacadores que o senhor vende, nalguns casos têm pontas
de ouro e de prata, não têm? E até joias artificiais. Penso que o Governo não
vai deixar de exigir uma correção aos impostos não cobrados. Nunca tive um
caso igual a este!
Limpou a testa de novo e prosseguiu:
— Os objetos feitos de metais preciosos ou imitação deles, ou
ornamentados, montados ou providos desses metais ou suas imitações, são
coletados de um imposto de dez por cento sobre o preço de venda.
Certamente...
Vandenberg abanou a cabeça lentamente.
— Certamente não deixou de preencher a sua declaração de imposto
profissional em Abril! No seu caso tratar-se-ia do impresso 1040 com o
anexo C, mais o imposto de emprego por conta própria e... Se o seu
rendimento bruto exceder seiscentos dólares por cada uma das suas isenções
acrescidas de quatrocentos dólares, de uma declaração de imposto presumível
para o ano corrente, com pagamento da primeira prestação trimestral.
Levantou os olhos cheio de esperança.
— Não tenho rendimentos — disse Vandenberg. — São só atacadores
usados. O Governo quer que eu pague um imposto sobre atacadores usados?
— Ah! Já me esquecia! — Disse o advogado apressadamente. — O
senhor é empregado de uma empresa. Mas há ainda o imposto complementar
das pessoas coletivas e... Não! A sua empresa não foi legalizada como
sociedade anónima. — Dobrou-se para a frente e enterrou a cara nas mãos. —
Oh, meu Deus! — Lamentou-se. — Ele não lhe descontou os impostos e a
taxa da segurança social? — Perguntou, voltando-se para Flowers?
— Nada — respondeu Flowers. — Nunca liguei importância a isso.
Sabe... Tratava-se de um negócio pouco usual.
— Sem dúvida!
Voltou-se para Vandenberg e perguntou-lhe:
— Apresentou a declaração do imposto complementar no ano passado?
Ou no ano anterior? Ou no ano...
— Nunca apresentei nada.
— Valha-me Nossa Senhora!
Os óculos do advogado caíram ao chão com um baque e ele apanhou-
os, examinando pesaroso a lente que se partira.
— É melhor que eu convoque alguns dos meus colegas. Isto vai ser
demasiado trabalho para um homem só.
Noite adentro foi decidido que os empregados de O Novo pelo Velho,
S.A.R.L., não eram culpados de má-fé, pelo que foram libertados.
Vandenberg desacatou teimosamente as sugestões dos seus conselheiros
jurídicos, recusou responder a perguntas e recusou pagar os impostos em
dívida. Foi para a cadeia sem protestar e na manhã seguinte a sua cela foi
encontrada inexplicavelmente vazia. O F.B.I. e as corporações da política
local e estadual foram alertadas, mas não se encontrou vestígio do fugitivo.
Jeff Flowers encontrou um emprego honesto no quiosque das apostas
de dois dólares da pista de corridas local e casou com Janet Star. O Governo
assumiu o ativo de O Novo pelo Velho, S.A.R.L., e quando deu por si estava
na posse de uma divisão cheia de atacadores usados e de vários milhares de
atacadores novos de luxo que misteriosamente se dissolviam em água. Nunca
foi tornado público o uso que foi dado a este material; a sugestão de um
jornal local, no sentido de que os atacadores novos fossem entregues às
forças armadas para serem usados em manobras no deserto, foi ignorada.
Durante alguns dias depois da grande chuvada, as lojas da terra fizeram
uma avalancha de negócios com atacadores. Durante várias semanas as
pessoas só falaram da fraude gigante dos atacadores e de pouco mais, e nos
anos que se seguiram, os sapatos com fecho de correr e correias tiveram
como que por encanto muito maior venda do que os sapatos com atacadores.
— O que me intriga quando penso nisto é que ninguém consegue
perceber porque fez ele isto. Você percebe? — Perguntava naquele mesmo
Verão um dos clientes de Flowers no quiosque das apostas.
Flowers abanou a cabeça e passou os dedos pelo bigode que havia
deixado crescer recentemente. Também deixara crescer o cabelo cortado à
escovinha.
— Eu cá penso que alguém andava a tramar-nos — disse ele
pensativamente.
***
Este conto foi publicado pela primeira vez em Março de 1965, sob o título
«Pariah Planet», na revista Worlds of Tomorrow.
© 1965, Galaxy Publishing Corporation
I
O Gabinete de Criminologia dalusiano era o único, em toda a galáxia,
que mantinha a sua própria esquadrilha espacial. Tinha em atividade duas
naves de carga obsoletas com umas escassas cinco mil toneladas de
capacidade. Ambas as naves estavam equipadas com um motor ultrapassado
e ineficaz de três reatores. A intervalos de quinze dias uma delas mergulhava
pesadamente na sua doca privativa, no canto mais remoto do principal porto
espacial de Daluse. Três dias depois descolava de novo, com os seus reatores
de ignição sequencial a causarem o desespero da Comissão para a Redução
dos Ruídos e o seu nariz arredondado e oscilante a provocar a preocupação
constante do engenheiro da segurança do porto, que nunca tinha a certeza de
aquela oscilação ser ou não uma ilusão de ótica.
Todos sabiam o que eram as naves, mas até no Bar do Cometa
Dourado, onde os boatos pululavam e se multiplicavam como bactérias
cuidadosamente cultivadas, ninguém tinha a menor ideia de qual era o seu
destino.
— É deveras estranho — disse o tenente John Mohrlock, agitando
pensativamente o líquido gasoso no seu copo. — É estranho como um raio!
Cumprem um horário apertado, mas certamente que não podem levar muito
longe aquelas velhas banheiras durante uma viagem de ida e volta de vinte e
sete dias. Destino desconhecido, hã?
— Não é propriamente desconhecido — chalaceou um barbudo
navegador do espaço. — Eles sabem para onde vão, mas é claro que não o
dizem publicamente. Porque é que pergunta?
— Porque amanhã serei eu quem vai viajar numa nave dessas.
As cabeças agitaram-se, as caras voltaram-se e os copos que subiam e
desciam pararam a meio do percurso. Até o empregado dalusiano do bar se
voltou lentamente com olhos perscrutadores.
Mohrlock falou, quebrando um súbito e sinistro silêncio:
— O que eu realmente gostaria de saber é se há alguém que regresse
daquelas viagens. Pode-se dizer que a resposta me interessa porque estou
envolvido pessoalmente no assunto.
— Claro, sem dúvida. Ouvi dizer...
— Não é o que ouviu dizer que interessa — persistiu Mohrlock. Fez
então a pergunta para os que se encontravam ao longo do balcão do bar. —
Algum de vós soube de alguém que tivesse voltado?
Ninguém sabia.
— Bebam à vontade. Ofereço eu... É a minha festa de despedida. Julgo
que o dinheiro não me será de muita utilidade a partir de amanhã.
***
Não podia dizer que não tivesse sido avisado. Mesmo em sítios tão
distantes quanto Vega falava-se de Daluse. Em Daluse mantenham-se na
linha, diziam. Não se metam com a lei em Daluse! Mohrlock recordava-se
com clareza da amargurada queixa de um navegador espacial cujo irmão
havia sido apanhado pela justiça dalusiana: «Eles não tentam fazer
corresponder a pena ao crime. O que eles tentam é fazer com que a pena
corresponda ao criminoso. Pensam que são os maiores criminologistas de
toda a galáxia e ninguém pode contestar isso, porque ninguém sabe ao certo o
que é que eles fazem. Em Daluse não se meta em sarilhos!»
Oficial superior da primeira nave terrena a aterrar em Daluse, com uma
carreira brilhante à sua frente, o tenente John Mohrlock tinha toda a intenção
de não se meter em sarilhos, fosse em Daluse ou em qualquer outro sítio.
Porém, fora atacado sem aviso prévio, sem haver qualquer provocação,
por um centauriano chamado Zaque. Se por uma análise posterior a sua
reação parecia desnecessariamente drástica, nem por isso deixara de ser
imprescindível. Se não se tivesse defendido vigorosamente, o tenente John
Mohrlock estaria hoje sob a pedra tumular, enquanto o centauriano ocupava o
Círculo de Justiça. O que se seguiu foi tão bizarro, tão gritantemente
fantástico, que lhe pareceu difícil reconhecer que ele era, mais do que um
mero espectador divertido com a história, um interveniente crucialmente
interessado nela.
— Escute... Tenente Jock Mohrlock... Essa arma cortante... Essa faca
com que diz ter sido ameaçado... Onde é que se encontrava no momento
exato em que agrediu o centauriano Zaque com a cadeira?
— No chão, penso. Arranquei-lha da mão com um pontapé.
— Isso já foi determinado. O que pergunto é qual era o sítio exato do
chão onde se encontrava.
O Círculo de Justiça constituía o único aspecto racional da audiência
judicial. Era mesmo um círculo, uma mesa circular grande com um orifício
no meio. Os nove juristas estavam sentados à roda da mesa, voltados para
dentro, isto é, voltados para Mohrlock. As suas vestimentas judiciais davam-
lhes um ar estranho e peculiar, mesmo para um dalusiano. As togas
acentuavam-lhes os longos pescoços dalusianos. Estes acentuavam a
pequenez desproporcionada das suas cabeças e a pequenez das cabeças
sugeria uma questão pertinente, ou mesmo duas, relacionada com a sua
reivindicação de possuírem os maiores cérebros da galáxia. Os Dalusianos
eram um povo misterioso e chauvinista e segregavam cuidadosamente os
estrangeiros em zonas restritas, fechando-se em si, exceto quando tinham de
administrar a sua justiça.
Mohrlock nunca negou que fosse culpado. Essa atitude teria sido
estúpida, não só devido à grande quantidade de testemunhas, mas também ao
teste da verdade com que abriu o julgamento.
— Confirma que aplicou o golpe que pôs fim a uma vida humana?
Se negasse, o detetor da verdade rebentaria a escala. Por outro lado,
uma confissão esclareceria logo à partida que ele era um homem em quem se
podia confiar, fosse qual fosse o valor que a isso atribuíssem em Daluse.
Portanto, àquela pergunta respondeu com um «Sim» firme. Um técnico
desligou os fios tentaculares do seu corpo e recolocou o detetor da verdade no
armário sob a mesa.
Ele não se sentira muito preocupado, mesmo quando o interrogatório
tomou um cariz absurdo. A justiça dalusiana, apesar de sinistra, assumia-se
apesar de tudo como justiça, e uma morte causada em legítima defesa era um
homicídio justificável em qualquer parte da galáxia. Pelo menos ele assim o
julgava.
— Tenente, o que gostaríamos de saber é o seguinte: porque é que se
defendeu tão convictamente contra uma arma que estava perfeitamente longe
do alcance do seu atacante?
— Eu não sabia que ela estava fora do seu alcance! Dei-lhe um
pontapé, mas não vi para onde foi. De qualquer modo, com um simples salto
ele facilmente a alcançaria. Além disso, também não sabia se ele tinha mais
armas nos bolsos.
— E não tem... Remorsos?
— Remorsos? Eu não tencionava matá-lo e não tenho satisfação
nenhuma em recordar o episódio. Só que não vejo que pudesse ter agido de
outro modo e escapar vivo, a não ser, talvez, não ter atirado a cadeira com
tanta força. Ele estava armado e eu não. Defendi-me com a única arma
disponível e não tive tempo de pensar que os Centaurianos têm cabeças
anormalmente moles, o que aliás desconhecia na altura.
O final do julgamento foi tão abrupto que Mohrlock se levantou
bruscamente em sinal de protesto. Os juristas levantaram-se sem terem feito
qualquer sinal inteligível e abandonaram a sala em fila. As testemunhas já se
tinham retirado quando Mohrlock olhou espantado para o estrado onde elas
estavam. A assistência, na maior parte constituída por oficiais e tripulantes da
nave de Mohrlock, permaneceu sentada, mantendo um pesado silêncio.
O Dr. Fyloid, o idoso dalusiano fardado que escoltara Mohrlock desde
que este havia sido preso, abriu uma portinhola e dirigiu-se a ele. A princípio,
Mohrlock tomara-o por um agente da polícia, mas mais tarde veio a saber que
o homem tinha o pomposo título de Doutor em Criminologia.
— Pode ir-se embora — gritou ele para Mohrlock.
— Então... Estou livre? Libertaram-me?
— Claro que não. Você foi destinado ao Departamento de
Criminologia. Fará o favor de se apresentar amanhã de manhã na Entrada
Portuária X-7, às oito horas. Até lá, pode arrumar os seus assuntos.
— Mas que espécie de idiotice...
— Em Daluse, a criminologia é uma ciência exata — disse com
severidade o doutor. — Esforçamo-nos porque continue a sê-lo. Por favor
não se esqueça disso. Idiotice! Ora uma destas!
Mohrlock respirou fundo.
— Está bem. Lá estarei.
— Agradecemos que seja pontual. A sua nave parte precisamente às
oito e trinta.
Era impossível fugir. Nenhuma nave ia partir de Daluse naquele dia,
nenhum dalusiano quereria ajudá-lo e nenhum estrangeiro ousaria fazê-lo.
O seu comandante prometeu apresentar o assunto a uma embaixada
amiga e explorar todos os meios de conseguir a sua libertação. Mohrlock não
tinha assuntos pessoais a tratar e por isso resolveu gozar a sua última grande
farra. Com uma violenta ressaca, apresentou-se depois como lhe haviam
ordenado, mas com sete minutos de atraso.
O Dr. Fyloid escoltou-o até um minúsculo camarote na ridícula nave de
carga e fez um pequeno discurso cheio de floreados, em que lhe exprimiu a
sua boa vontade e os seus melhores votos de felicidades, bem como os do
Gabinete de Criminologia e de todo o povo dalusiano. Mohrlock conteve-se
dificilmente para não o esmurrar. O doutor retirou-se e dez minutos depois a
nave estava no espaço.
Mohrlock só ficou amedrontado — e bem amedrontado — quando
soube que era o único passageiro.
II
O destino deles era o Inferno. Por qualquer lapso tinha ficado
assinalado nos mapas sob a designação de Bal.
— Antigamente era Baluse — disse o grumete do camarote, o único
membro da tripulação que Mohrlock viu durante toda a viagem. — As
pessoas costumavam confundir com Daluse e por isso encurtaram a palavra.
A nave dirigia-se diretamente para o sol dalusiano, e à medida que o
calor aumentava, o velho aparelho de ar condicionado não se mostrava à
altura de cumprir a sua missão. Funcionava aos solavancos e entre eles a
temperatura subia alarmantemente.
— Ficaremos em cinzas antes de lá chegarmos — queixou-se
Mohrlock.
O grumete sorriu.
— Não... Vai piorando, piorando, e depois para.
— Costumam voltar de Bal muitos passageiros?
O grumete olhou para o lado.
— Não muitos.
— Já voltaste com algum?
— Desde que estou nesta carreira, não.
— Como é aquilo por lá?
— Não sei. A base é toda subterrânea. Tenho visto pouca coisa.
O tom da sua voz dava a entender que não estava interessado em ver
muito.
Mohrlock deixou o grumete regressar ao seu jogo de cartas e aguardou
ofegante a próxima pausa do calor, que, enquanto durava, ia aumentando até
atingir um grau quase insuportável e depois estacionava.
No décimo segundo dia entraram no cone de sombra de Bal, com as
chapas sobreaquecidas da nave a estalarem devido ao frio do espaço exterior,
e acabaram por aterrar no lado não iluminado de um mundo tão estéril como
Mohrlock nunca antes havia visto.
Não havia atmosfera. Um fugitivo desta colónia penal ficaria
rapidamente congelado até à imobilização, ou cozido se o período de
revolução do planeta produzisse dias e noites. Os Dalusianos deviam ter
dificuldades em manter vivos os seus presos, mas certamente não receavam
que fugissem.
Um dalusiano em uniforme preto e com um nariz invulgarmente
proeminente veio a bordo, apresentou-se desinteressadamente como Dr.
Rudieb, administrador da base, e conduziu Mohrlock através de um tubo
flexível recoberto de gelo para uma escotilha de ar múltipla. A escotilha de
carga já estava aberta e um trator com um dalusiano de expressão aborrecida
aos comandos aguardava o sinal para pôr em posição o transportador de
carga.
Sacudiram o gelo das botas e entraram num túnel infindável e
brilhantemente iluminado. O Dr. Rudieb abriu uma porta para Mohrlock
passar e disse com indiferença:
— Bem-vindo a Bal.
— Tenho muito prazer em aqui estar — disse Mohrlock
arrastadamente. Gastar aquele sarcasmo com o Dr. Rudieb era inútil. Este
murmurou qualquer coisa que soou a «Muito prazer em tê-lo entre nós» e
conduziu Mohrlock para uma sala obviamente destinada ao interrogatório dos
presos.
Mohrlock sentou-se e olhou em volta indignado. A cadeira onde se
sentara estava rodeada de aparelhagem psicológica. De um armário saía um
tentáculo mal arrumado de um detetor da verdade. A secretária de Rudieb
situava-se num plano superior, e enquanto ele abria um sobrescrito e remexia
em papéis, ia lançando olhares condenatórios na direção de Mohrlock.
— Trata-se de um caso bem claro — acabou por afirmar. A maneira
como falou dava a entender que estava à espera de qualquer coisa mais
complicada. — Não há necessidade de testes — acrescentou.
— O que está a dizer é um cumprimento de felicitações? — Perguntou
Mohrlock.
Rudieb carregou o sobrolho, pondo uma carranca que provavelmente
pensava ser assustadora, mas o resultado foi ridículo.
— Temos poucos regulamentos, mas aqueles que temos têm de ser
cumpridos incondicionalmente. Não toleramos irregularidades de qualquer
espécie. Está a entender?
Mohrlock assentiu resignadamente.
— Vou destiná-lo ao piso três. O primeiro regulamento a cumprir é não
abandonar esse piso se eu não lho pedir ou autorizar. O segundo diz respeito
à sua roupa. Ser-lhe-á fornecida uma indumentária completa, preta, de
trabalho. Poderá comprar toda a roupa adicional que quiser, de qualquer
estilo, desde que seja preta. É-lhe proibido usar qualquer peça de roupa,
mesmo roupa interior, que não seja preta. Entendeu?
Mohrlock fez que sim com a cabeça.
— O terceiro regulamento a cumprir diz respeito ao dinheiro. O nosso
mês tem cinco semanas e trinta dias e você receberá um subsídio de trezentas
unidades monetárias por mês, pagas semanalmente. Este montante chegará
para as suas necessidades normais e permitir-lhe-á ainda ter algumas
extravagâncias. Se necessitar de mais dinheiro, poderá trabalhar mais para o
ganhar. No seu piso há uma agência de emprego no edifício da
administração. Se ganhar mais dinheiro do que aquele que consegue gastar,
será conveniente pô-lo no banco. O banco paga uma boa taxa de juro pelas
economias depositadas. Pode pedir emprestado ao banco se gastar mais do
que ganha ou se perder ao jogo o seu subsídio, mas a quantia que pedir
emprestada mais o juro ser-lhe-ão descontados automaticamente no subsídio
da semana imediatamente a seguir. Não interferimos nos seus assuntos
financeiros desde que trate deles com competência.
»O quarto regulamento diz respeito aos seus concidadãos. No seu piso
há dois tipos de cidadãos. Por razões de conveniência referenciamo-los por
tipo A e tipo B. Você é do tipo B, tal como todos os cidadãos vestidos de
preto. É-lhe absolutamente proibido cometer qualquer espécie de crime ou de
transgressão contra qualquer cidadão do tipo B. Os crimes contra os cidadãos
do tipo A são permitidos desde que os comunique segundo as regras.
»O quinto regulamento refere-se à sua quota. Amanhã receberá pelo
correio informações completas, juntamente com os impressos em que deverá
fazer aquelas comunicações. Peço-lhe o favor de não cometer nenhum crime
antes de receber os impressos. Isso criaria ao meu serviço complicações
desnecessárias. Tem algo a perguntar?
Mohrlock olhava para ele com espanto.
— Não percebi nada do que disse!
Irritado e de cenho carregado, o Dr. Rudieb fez uma breve pausa para
esfregar o nariz.
— Não é nada complicado! Nesse sobrescrito encontrará uma lista dos
regulamentos, o seu cartão de identidade e o seu subsídio. Como estamos no
último dia da segunda semana do quarto mês, pago-lhe dez unidades
correspondentes a esta semana e sessenta unidades pela próxima. Estude os
regulamentos, e se necessitar de esclarecimentos adicionais verá que os seus
concidadãos do tipo B saberão dar-lhos. É claro que sempre que quiser falar
comigo pode escrever-me a pedir uma entrevista. — Dito isto, levantou-se e
premiu um botão existente na secretária. — Boa sorte, tenente John
Mohrlock. Desejo-lhe uma boa estada na base Bal. Sr. Jones: mais uma
pessoa acabada de chegar. Entregue-lhe a roupa e leve-o ao piso três.
Um indivíduo não dalusiano e vestido de preto havia surgido
tranquilamente junto à porta. Levou um dedo ao boné em arremedo de
continência, chamou Mohrlock para que o acompanhasse e conduziu-o para
fora do gabinete.
O primeiro local onde pararam foi uma secção de abastecimentos.
— Despe os teus trapos — disse Jones. — Vamos ver se encontramos
qualquer coisa que te sirva.
— Você também está preso? — Perguntou Mohrlock, olhando-o com
curiosidade.
— Eles não gostam que usemos a palavra «preso». Eu sou um cidadão
do tipo B. Mas claro que estou. Conheces o Bar do Cometa Dourado na
Cidade Espacial?
— Estive lá na noite anterior à minha partida.
— Pois eu assaltei-o à mão armada e filei as receitas do dia. Quase dez
mil unidades de ouro dalusianas. Nunca executei um golpe tão proveitoso.
Quase consegui escapar com a massa. Olha, põe as tuas coisas aqui nesta
caixa. Podes ficar com a tua carteira... O Narigueta Azul não te pagou o
subsídio? Deixa o teu dinheiro estrangeiro aqui. Em Bal não serve para
comprar uma migalha.
Mohrlock enfiou na caixa a roupa que trazia e vestiu-se de preto. James
carimbou a caixa com a identificação de Mohrlock e perguntou:
— Está tudo pronto? Então vou levar-te ao piso três.
— Como é aquilo lá?
— Não é mau. Não é nada mau.
A mim parece-me que será uma prisão um tanto esquisita.
— Eu cá penso que estes dalusianos são chalados. Fiz um assalto
daqueles e tudo o que eles me fazem é... Vem comigo. Tenho de voltar antes
que o Narigueta Azul se lembre de que precisa de mim outra vez.
Entraram num enorme túnel inclinado e foram conduzidos por uma
rampa móvel a uma profundidade que parecia não ter fim. A rampa
ascendente era do outro lado e entre eles corria uma estrada larga.
James tagarelava alegremente.
— Não tenho nada contra isto, a sério! É quase como viver em
qualquer outro lado. Em cada piso há uma cidade agradável, bons
restaurantes e bares, armazéns que vendem quase tudo o que é preciso. O que
é importante é não se cometerem crimes contra cidadãos do tipo B e não se
deixar de cumprir a quota. Se se tiver um deslize em qualquer destas
matérias, arranja-se um sarilho.
— Mas que é isso da quota?
— Depende. Porque é que estás dentro?
— Matei um homem em legítima defesa.
— Nesse caso não sei. Suponho que consideraram isso como um
assassínio, senão não estarias aqui. Portanto, essa será a tua quota.
Provavelmente, um ou dois por semana.
— Um ou dois quê?
— Assassínios.
III
A rua principal podia ter sido transportada intacta de uma pequena
cidade qualquer das dezenas de mundos que Mohrlock conhecia. Os edifícios
comerciais eram estruturas escorreitas e práticas, alguns de pedra rebocada,
outros revestidos com placas onduladas de pedra moldada. Os passeios
pejavam de peões, homens e mulheres, do tipo A e do tipo B. As coloridas
indumentárias dalusianas misturavam-se com a sombria e monótona
tonalidade dos fatos pretos. Havia vários carros de superfície estacionados na
curva e por vezes um deles movia-se lentamente ao longo da rua, pilotado por
um cidadão do tipo B vestido de preto. Esta povoação subterrânea tão
desenvolvida exigira uma enorme caverna para a sua construção; o seu teto
distante estava completamente oculto pelo brilho da luz artificial.
Maravilhado, fascinado, Mohrlock foi andando lentamente até ao fim
do sector comercial, contornou um quarteirão, contornou outro quarteirão,
sentou-se finalmente numa cadeira de uma pequena esplanada e tratou de
mandar vir um copo de cerveja por uma bonita e jovem empregada, cidadã do
tipo A. Enquanto bebia a cerveja, observava os transeuntes, e estava tão
espantado que já não tinha cerveja no copo quando tomou consciência deste
facto interessante: quase todos os cidadãos do tipo A eram dalusianos e quase
todos os do tipo B eram estrangeiros.
A sua preocupação de momento era conseguir arranjar uma habitação.
Atravessou a rua em direção a um alto edifício onde uma tabuleta anunciava
HOTEL DO TERCEIRO PISO e o recepcionista dalusiano elevou ambas as mãos em
sinal de desalento quando ele lhe perguntou se tinha um quarto.
— Tenho muita pena, mas não temos nenhum vago. Creio que todos os
três hotéis estão completamente cheios. Eu sugeriria que tentasse uma casa de
hóspedes.
— Onde é que posso encontrá-la? — Perguntou Mohrlock.
— Quase todas as casas particulares aceitam hóspedes.
Mohrlock agradeceu e saiu lançando um olhar cobiçoso ao átrio
luxuosamente mobilado. Desceu a rua principal e logo que chegou ao sector
residencial deu com árvores frondosas, elegantes muros de pedra e casas de
diversa dimensão e com uma arquitetura admiravelmente variada. As casas
possuíam relvados bordejados por canteiros de flores e de quando em quando
viam-se hortas nas traseiras.
Ansiosamente procurou uma tabuleta que indicasse um quarto vago,
mas não viu nenhuma. As casas começavam a rarear à medida que se
aproximava da periferia da cidade e estavam separadas umas das outras por
relvados ou jardins semelhantes a grandes parques. Caminhou até ao último
cruzamento e depois voltou para trás aborrecido.
— Procura alguém? — Perguntou-lhe um cidadão do tipo B que viera
atrás dele. Era um homenzinho pequeno e magro com cabelo preto brilhante.
— Procuro uma pensão ou casa que alugue quartos.
— Todas estas casas alugam quartos.
— Estava à procura de ver uma tabuleta.
— É novo por aqui, não é? — Perguntou, estendendo-lhe a mão. —
Trate-me por Whitie.
Mohrlock apertou-lhe a mão:
— John Mohrlock.
— Esqueça esse nome. Aqui precisa de um nome só e você teria toda a
vantagem em escolher um que fosse só seu e pronunciá-lo sempre alto e bom
som quando lho perguntarem. Se assim não fizer, aparecerá alguém que lhe
ponha um nome qualquer de que você poderá não gostar. Um sujeito com
bom aspecto como você é, poderia vir a ser chamado «feio». Foi o que me
aconteceu: sou Whitie1 por ter o cabelo preto. John Mohrlock... É melhor
passar a chamar-se Morrie. Já cá temos Johnnies a mais. Quanto às casas com
quartos para alugar: todas estas casas têm quartos vagos. A maior parte dos
BB gostam de viver no centro da cidade, e por isso é difícil encontrar quarto
lá. Os hotéis têm listas de espera. Os quartos aqui são mais baratos e eu gosto
mais dos subúrbios sossegados. A escolha é sua. Porém, aconselho-o a
arranjar quarto antes de escurecer. As noites aqui são mesmo escuras como
breu.
Mohrlock olhou desconfiado para a luz intensa que se via sobre as suas
cabeças e Whitie deu uma risadinha.
— Eles diminuem-nas ao anoitecer e desligam-nas à noite. Temos
assim períodos regulares de dia e de noite, bonitos ocasos e lindas alvoradas.
Se acha que gostaria de viver aqui, pois bem, a minha senhoria tem muitos
quartos vagos.
— A mim agrada-me o sítio — disse Mohrlock.
A senhoria de Whitie, uma tal Sra. Lynez, era uma cidadã do tipo A,
uma dalusiana gorducha de meia-idade e garridamente vestida.
Cumprimentou Mohrlock com uma indiferença cortês e poucos minutos
depois já ele estava instalado num quarto situado na parte da frente da casa,
espaçoso, limpo, adequadamente mobilado e de preço módico. As dez
unidades por semana que tinha de pagar por ele incluíam pequeno-almoço.
No andar de cima havia quartos vagos por menos uma unidade por semana,
mas a casa não era mecanizada e Mohrlock não gostava de subir escadas.
Whitie deu-lhe um novo aperto de mão e desejou-lhe boa noite,
dizendo:
— Costumo vir cedo para casa porque também tenho de me levantar
cedo. Sou empregado na padaria. Como amanhã também é começo de
semana, tento despachar-me para conseguir alcançar a minha quota. Até à
vista!
Mohrlock ficou a olhar pela janela da frente da casa. Para além dos
limites da cidade havia um campo de cereais em maturação, vendo-se,
inflexíveis no ar imóvel, as altas e esguias hastes. No cume distante de uma
pequena colina recortavam-se edifícios de explorações agrícolas. O brilho lá
de cima tinha diminuído notavelmente e já se viam as primeiras riscas
vermelhas de um pôr-do-sol artificial. Mohrlock abanou a cabeça em sinal de
incredulidade.
Foi para a cama cedo, sem jantar, e dormiu profundamente pela
primeira vez desde que havia deixado Daluse. Quando acordou pela manhã
deixou-se ficar na cama desfrutando de uma abençoada descontração. A cama
era confortável e a ventilação do quarto fazia circular um ar de cheiro fresco
que contrastava com os jatos estéreis de ar reconstituído a que fora submetido
no espaço. O sítio, se se excetuasse um ou outro ressonar que se ouvia vindo
do quarto em frente, era deliciosamente sossegado.
Quando se levantou tinha um enorme pequeno-almoço à espera dele,
preparado pela Sra. Lynez, e que era constituído por uma bebida quente,
sumos gelados, uma empada de carne, bolos e melaço. A comida agradou-
lhe, mas a voz dela, monótona e inexpressiva, depressa o começou a enervar.
Era incrível o modo como ela se queixava do tempo, dizendo que a chuva
fazia imensa falta às suas flores e ao seu jardim. Mohrlock manteve uma
atitude de compreensiva simpatia face às suas queixas, mas pôs infimamente
em dúvida a sua sanidade mental.
Saiu depois do pequeno-almoço e no cruzamento da rua principal
voltou à esquerda e dirigiu-se para o campo. O que lhe parecera ser um
horizonte artificial recuava à medida que ele avançava, até que teve de parar
estupefacto com as inacreditáveis dimensões daquela cavidade — uma entre
várias — existente na rocha inóspita de um planeta meio congelado, meio
assado. Devia ter pelo menos duas milhas de largura e umas tantas milhas de
comprimento; quanto à altura, não era possível calculá-la, porque o brilho do
sol artificial impedia que se lhe visse o cume.
A estrada principal corria a direito para o centro da cavidade, lá em
baixo, sendo cruzada a espaços regulares por estradas laterais. A paisagem
era agradavelmente ondulada, as searas bem tratadas e havia saudáveis
animais de carne a pastar calmamente em campos de pastagem murados a
pedra. Solitários edifícios agrícolas pintalgavam a paisagem aqui e ali.
Era meio-dia quando chegou ao fim do percurso. A estrada terminava
em frente de um muro alto de pedra que atravessava a cavidade de um lado
ao outro. Sentou-se com as costas contra o muro e tentou descortinar algum
sentido naquilo que acabava de ver.
Pensou então que aquelas enormes cavernas deviam um dia ter sido
minas; talvez ainda o fossem lá pelas suas distantes extremidades. Todos os
mundos altamente civilizados substituíam a sua riqueza mineral esgotada
explorando os planetas inabitados do seu sistema solar, e era voz corrente que
exilavam os seus criminosos para as minas, onde iam trabalhar como
escravos. À medida que as minas dalusianas iam sendo automatizadas e que a
criminologia dalusiana ia evoluindo, teria podido formar-se aquela estranha
sociedade de cidadãos do tipo A e do tipo B. As minas já não precisavam de
escravos, mas a sociedade dalusiana havia continuado a exigir o castigo dos
seus criminosos, embora esse castigo fosse mais humano e científico. Era um
castigo perfeito.
Até aí tudo lhe parecia suficientemente claro, mas era incapaz de
prosseguir o raciocínio em direção a uma conclusão satisfatória. Qual era o
castigo? Uma quota de... Crime? Era possível que um criminoso fosse punido
obrigando-o a cometer crimes adicionais? Pensou demoradamente nisso e
quanto mais pensava mais convencido ficava de que estava a ser vítima de
uma brincadeira bizarra.
***
IV
Na manhã seguinte, Mohrlock explorou a cidade desde a pradaria, de
um lado, até ao grupo de pequenas fábricas, do outro. Por todo o lado a
atividade era febril. Havia carteiros apressados a fazer as suas voltas, todos
eles BB, porque o Dr. Rudieb não queria correr o risco de incluir o correio na
sua quota de roubos... Mohrlock sorriu ao recordar-se de que o próprio
Rudieb estava vestido com um uniforme preto. Havia pequenos camiões que
traziam produtos agrícolas das quintas e camiões grandes transportando
abastecimentos vindos de outros pisos e levando as sobras do piso três.
Quando as lojas abriram, Mohrlock juntou-se aos compradores da
manhã. Recheou em razoável proporção o seu guarda-roupa, fez-se freguês
de um barbeiro e de uma tabacaria, vagueou distraidamente através das lojas,
passou algum tempo num salão de exposição de carros de superfície e até lhe
deu para se interessar pelas montras de materiais de construção e de utensílios
agrícolas.
Sempre que um cidadão do tipo A se aproximava dele, voltava-se
incomodado. Quota semanal: um assassínio. Certamente não estavam à
espera de que ele os levasse a sério!
Num escritório de venda de propriedades estudou as listas das que se
encontravam à venda, as dos terrenos urbanos para construção, as das lojas
em trespasse e as dos escritórios em que um cidadão B que dispusesse de
algumas economias poderia desenvolver um negócio qualquer. Visitou o
edifício da administração, onde estavam instalados o banco e os correios —
ambos com pessoal do tipo B — e abriu lá uma conta bancária.
No pequeno gabinete estava inscrita a palavra ADMINISTRAÇÃO,
Mohrlock encontrou um cidadão do tipo B a ler um livro.
— Parece haver um erro qualquer sobre a minha quota — disse ele. —
Com quem devo falar sobre este assunto?
— Escreva ao Dr. Rudieb — respondeu o empregado prontamente. —
É sobre alguma revisão?
— Revisão? Eu sou novo por aqui e...
— Recebeu um cartão com a quota?
Mohrlock fez que sim com a cabeça e entregou-lhe o cartão. O outro
deu-lhe uma vista de olhos, voltou a olhar, mirou Mohrlock, mirou o cartão e
disse:
— Qual é o erro? Prenderam-no por um crime que não cometeu?
— Não. Quer dizer... Com certeza que não esperam...
— Ah! Estou a compreender.
Devolveu o cartão.
— É exatamente isso que esperam. Um crime por semana.
— Acha que eu ganharia alguma coisa em escrever ao Dr. Rudieb?
O empregado abanou a cabeça.
— Se foi um crime a causa da sua vinda para aqui, o que você terá de
fazer é cometer crimes. Um por semana, conforme diz o seu cartão.
— Que é que acontece se não cumprir isso? — Perguntou Mohrlock
tranquilamente.
O empregado olhou-o com curiosidade.
— Desde que estou aqui, e já lá vão onze anos, nunca conheci ninguém
que tivesse a coragem de não cumprir a sua quota e tivesse ganho alguma
coisa com isso. Você não me parece suficientemente corajoso para ser o
primeiro. Vai ver que vai gostar de cumprir a quota de um crime por semana.
E se está preocupado com os AA, deixe lá isso. Não há nenhum deles que não
esteja melhor morto.
Na esplanada, Mohrlock bebeu cerveja sobre cerveja e inspecionou
cada A que passava. No espaço de duas horas só viu dois que não eram
dalusianos. Seriam BB que não haviam cumprido a sua quota? E que teriam
feito os AA para merecer aquele castigo? Seriam prisioneiros políticos?
Quota semanal: um assassínio.
— Não contem comigo para isso! — Disse ele em voz alta, olhando de
súbito para a empregada do tipo A que limpava as mesas ao lado. Ela,
contudo, pareceu não o ter ouvido.
De repente sentiu-se muito melhor. Acabara de tomar uma decisão; não
contassem com ele. Passou o resto da tarde a beber cerveja e a gozar do belo
sol artificial.
Foi quando as lojas já estavam a fechar que acabou a refeição da noite.
Houve uma saída maciça dos AA que nelas trabalhavam e a certa altura deu
com ele a seguir um deles quando se dirigia para casa. Era um dalusiano
velhote e baixo, cuja mulher certamente seria senhoria de alguém. Mohrlock
ultrapassou-o precisamente quando ele dobrava uma esquina e chocaram os
dois.
— Desculpe — disse Mohrlock.
— Perdão — exclamou suavemente o dalusiano.
Afastou-se pela rua lateral e Mohrlock ficou a olhar para ele até o
homem chegar a casa. A mulher estava à porta, à espera dele. À espera de
Mohrlock, também à porta, estava Whitie, que disse:
— Então... Já matou algum?
Mohrlock abanou a cabeça.
— Não. Hoje não me apetecia matar.
— Quando se resolver a isso, é melhor que o faça onde houver alguma
luz. Ou então, se preferir os locais escuros, é melhor perguntar primeiro se se
trata de um A.
— Perguntar? — Repetiu Mohrlock espantado. — Quer dizer que eles
responderiam a tal pergunta?
— Claro. Os AA nunca resistem. A nós, os que fazemos assaltos à mão
armada, distribuem-nos armas, mas não munições. Quando chegamos ao
local do assalto dizemos: «Passem para cá o dinheiro!», e eles passam logo.
Se houver luz não se confunde um B com um A por causa das roupas. No
escuro isso pode acontecer. Se se tentar assaltar um B no escuro, ele diz logo
que é um B e desfaz-se logo o equívoco. Mas se a quota forem crimes, como
é o seu caso, se se confundir um B com um A, ele poderá não ter tempo de o
fazer saber e então temos sarilho pela certa. Por isso digo: se você não tiver a
certeza de que a vítima é um A, o melhor é perguntar. É só uma sugestão que
lhe estou a dar, já que você é novato aqui.
— Obrigadinho — disse Mohrlock.
Whitie estava noivo. A noiva dele, uma mulher descarnada e de meia-
idade cujas feições sugeriam uma estranha mistura de diversas origens
planetárias, trabalhava com ele na padaria. Estavam a fazer economias para
construir uma casa e Whitie tinha já dado entradas adiantadas para três lotes
de terreno em local privilegiado.
Mohrlock deu com eles num pequeno restaurante que ostentava o nome
de Salão de Chá Denebiano e que tinha um ambiente pretensioso, e eles
interromperam a discussão o tempo suficiente para o convidarem a juntar-se-
lhes.
— Eh, para lá de te queixares, Bella — disse Whitie. — E despacha-te.
Não é coisa que leve muito tempo. Pois não, Morrie?
— Que é que não leva tempo? — Perguntou Mohrlock.
— Bella deixa sempre o cumprimento da quota dela para o fim da
semana — explicou Whitie. — Estou sempre a dizer-lhe... Olha: está ali uma
A com os braços cheios de embrulhos. Fisga-a antes que ela se vá embora.
— Oh, está bem, pronto!
Bella afastou-se repentinamente, chocou com a mulher e, com um
movimento tão ágil que deixou Mohrlock a pestanejar perplexo, arrancou-lhe
a mala da mão. Depois voltou para trás e sentou-se, respirando com
dificuldade, para preencher um impresso de relatório.
— «Porque escolheu esta vítima?» Bah! Se pudesse deitar as mãos ao
Narigueta Azul, mostrar-lhe-ia para que servem as unhas. Porque aconteceu
ter-me cruzado com ela», responderei. — Meteu o relatório e o conteúdo da
mala da mulher num sobrescrito oficial, fechou-o e entregou-o a Whitie.
— Ainda faltam três — disse Whitie. — A empregada não tem
qualquer coisa no bolso do avental?
— É só um lenço. Teria vergonha de fazer um relatório só a comunicar
um roubo desses!
— Acaba então a sanduíche e depois vamos experimentar as
mercearias. E que tal, na próxima semana, começar a trabalhar logo no
primeiro dia, hã?
— Bah! No primeiro dia não se pode deitar a unha a nada sem
descobrir que antes dois outros BB já lá meteram a mão.
Whitie riu-se.
— Como vão as coisas consigo, Morrie?
— Nada de novo — respondeu Mohrlock.
— É melhor resolver-se. Só faltam quatro dias, contando com o dia de
hoje.
— O quê!? Ele ainda não preencheu a quota dele? — Perguntou Bella.
— Ele é novo aqui. Vá lá, come a tua sanduíche.
Afastaram-se apressados. Mohrlock seguiu a direção contrária e foi
andando lentamente, a olhar para as montras.
Subitamente viu uma cara familiar a olhar para ele. Era o dalusiano
com quem havia chocado na noite anterior, um empregado indefinido de uma
loja indefinida que vendia quinquilharia e parecia fazer muito pouco negócio.
Mohrlock entrou e comprou um cinzeiro para o quarto, embora já lá tivesse
três. Foi atendido delicadamente sem ter sido reconhecido.
Mais tarde não seria capaz de dizer o que impeliu a esperar o
empregado quando naquela noite se dirigia para casa. Seguiu-o discretamente
até que ele abandonou a rua principal e continuou depois apressadamente sem
um único olhar para trás.
Nessa noite teve o seu primeiro pesadelo. Sonhou que com as mãos
estrangulava o longo pescoço dalusiano do empregadito e que o apertava com
toda a sua força, asfixiando-o, asfixiando-o, asfixiando-o, enquanto os braços
dele se agitavam desesperadamente e as pernas esperneavam, fixando-se-lhe
na face uma máscara de terror mortal. Acabou por acordar empapado em suor
e deu com Whitie, ansioso, dobrado sobre ele.
— Julguei que alguém o tivesse confundido com algum A — disse
Whitie.
— Parece-me que tive um pesadelo. Desculpe-me — bocejou
Mohrlock. E, como tivesse medo de voltar a adormecer, ficou acordado até
de manhã.
Quota semanal: um assassínio. Mohrlock tentou afastar a palavra quota
da mente, mas ela regressava sempre. Regressava inevitavelmente. Ou porque
ouvisse por acaso os BB a conversarem uns com os outros: «Ainda não
preencheu a sua quota?», ou porque os olhos lhe caíssem sobre o bloco de
relatórios, ou porque a palavra se lhe esgueirava para a mente pela sua
própria sinistra persistência.
Ainda lhe restavam três dias para assassinar alguém. Intimaram-no a
que matasse e, se não cumprisse as ordens, as consequências seriam
horríveis. Talvez aquilo fosse justo, talvez fosse mesmo um castigo perfeito
ou o tivesse podido ser se ele fosse um assassino. Porém, obrigá-lo a eliminar
um ser humano intencionalmente porque o havia uma vez feito
acidentalmente, parecia-lhe uma deformação monstruosa da justiça.
E eliminar uma vida humana na próxima semana e na semana a seguir,
viver toda a sua vida neste ambiente ocioso e sem nexo, assassinando,
assassinando... Era-lhe uma ideia intolerável.
Não contassem com ele. Já decidira isso, o assunto estava encerrado...
Então porque era que a palavra «quota» o incomodava? Porque havia ele
seguido o empregadito até casa? Teria o seu subconsciente escolhido já a
primeira vítima?
Na noite seguinte acompanhou novamente o empregado até casa,
seguindo-o quase até à porta da rua, e ficou ali, no escuro, a olhar para a porta
durante muito tempo depois de ela se ter fechado.
V
— Finalmente choveu a noite passada — disse a Sra. Lynez ao
pequeno-almoço, com a mesma voz inexpressiva com que se queixara da
falta de chuva.
— Tenho muito gosto em ouvir isso — respondeu Mohrlock
afavelmente, interrogando-se se ela estaria a brincar ou se a sua mente teria
acabado por dar o passo fatal na direção da loucura. Porém, quando saiu
descobriu que os passeios estavam húmidos e que havia gotículas de água na
relva. Naquela tarde perguntou a Whitie como faziam aquilo.
— Têm um sistema de aspersão — explicou Whitie. — Não faz mesmo
chuva, mas apenas um orvalho grosso. Só o ligam de noite e serve para
limpar o ar e fazer depositar a poeira.
— Mas de onde vem a água? Certamente que não são aquelas velhas
naves de carga que a trazem!
— A base recupera provavelmente a água que usa, tal como acontece
numa nave espacial. Parece que há um grande reservatório no piso abaixo de
todos e além disso há muitas naves que aqui vêm carregar minério. Talvez
elas tragam água. Alguma coisa hão de trazer.
Mohrlock reconheceu a verdade desta asserção e reviu as suas ideias
sobre o valor da criminologia dalusiana. Se as coisas não se passassem assim,
as naves mineraleiras cruzariam os espaços vazias no seu curso económico
em direção ao sol e por isso os materiais descarregados em Bal podiam ser
considerados praticamente isentos de custos de transporte. A base produzia
alguns, senão a maior parte dos alimentos que consumia, havia abundância de
energia solar no outro lado do planeta e os presos forneciam o trabalho
necessário. Talvez as pequenas fábricas fabricassem mesmo os produtos para
exportação e a criminologia dalusiana exibisse um modesto lucro.
Quota semanal: um assassínio.
Mohrlock estava decidido a não se aproximar de novo do empregadito
e por isso comprou uma das caixas de almoços de Ida para o jantar e foi
passear até ao campo. Passou a tarde sentado sob uma árvore enfezada a
observar um camponês A mais a sua mulher a sachar as ervas daninhas da
sua horta. Os BB tinham máquinas agrícolas, mas os AA só conseguiam
economizar dinheiro para a compra de simples utensílios manuais. Todos os
seus lucros lhes eram arrancados por aquelas infindáveis quotas que os
ladrões e os carteiristas tinham de preencher. Mohrlock pôs-se a matutar no
sentido da vida de um A, interrogando-se sobre se se poderia autoconvencer
de que ó assassínio de um deles talvez pudesse ser considerado um ato de
piedade.
Mas não podia. Os AA tinham a liberdade de se suicidar, e no entanto
Whitie dissera que nunca ouvira falar do suicídio de um A. Possivelmente as
suas penas no purgatório da base Bal eram de duração limitada, e assim a sua
força derivava do conhecimento de que acabariam por ser libertados.
A camponesa regressou a casa quando começou a escurecer; o marido
ficou a trabalhar sozinho até a escuridão o impedir de ver. Finalmente entrou
em casa e Mohrlock voltou à cidade.
Whitie mal o viu perguntou-lhe:
— Então, já...
Mohrlock abanou a cabeça.
— Ó amigo! Olhe que amanhã é fim de semana!
— Que me importa isso? — Respondeu Mohrlock bruscamente.
— Desculpe. Pensei que devia lembrar-lho.
***
***
VI
Passou a semana, ele não conseguiu cumprir a quota e, apesar disso, a
vida no piso três prosseguia monotonamente. O carteiro, um B, trouxe-lhe um
sobrescrito oficial, que só continha o subsídio semanal: seis notas, novas em
folha, de dez unidades. Deu uma delas à Sra. Lynez para pagar a renda do
quarto e em troca recebeu um recibo.
Não sabia bem do que estava à espera, mas que absolutamente nada
acontecesse parecia-lhe absurdo. O tempo passou e a sua disposição
transformou-se gradualmente em euforia. Travara uma luta consigo próprio e
havia ganho. Nunca mais se perturbaria ao ouvir pronunciar a palavra
«quota», nem se poria mais a contar os dias da semana para calcular o tempo
que faltava para matar alguém. A ameaça de um castigo indefinido já não o
aterrorizava. E porque havia de o aterrorizar? O mais que lhe podiam fazer
seria torná-lo vítima do tipo A, o que ele considerava ser de longe preferível à
vida de um assassino B. Tinha vencido!
Esta súbita erupção de exuberância e euforia restituiu-lhe o apetite, pelo
que voltou a comer ao pequeno-almoço. Conversava com a Sra. Lynez e até
tentava de vez em quando arrancar-lhe um sorriso, no que não era bem-
sucedido. Saiu para ir dar um passeio pela cidade e para ter o prazer de se rir
dos carteiristas do primeiro dia da semana.
Quando ao fim do dia se encontrou com Whitie na rua, pôde responder
à habitual pergunta desta vez não formulada, com um abanar de cabeça e um
sorriso na face.
— Deixe-me oferecer-lhe uma bebida — disse Whitie.
— Não. Quem lhe oferece a bebida sou eu — ripostou Mohrlock.
— Mas, a sério que não... Está bem, pronto! Pague-me você a bebida.
Mas depois não diga que não o avisei!
Naquela noite chegou outro sobrescrito oficial, enviado por mensageiro
especial. Mohrlock abriu-o com os dedos a tremer e arrancou de lá uma carta.
Era uma carta-circular. Até a assinatura redonda do Dr. Rudieb era nela
reproduzida. Havia dois quadradinhos assinalados com um rabisco mal feito.
De acordo com as informações que possuo, a sua quota da
semana passada apresenta um défice de UM ASSASSÍNIO. Deste modo, a
sua quota para a semana que agora começa passa a ser de DOIS
ASSASSÍNIOS. Se houver discrepância entre as minhas informações e a
realidade, por favor comunique-me imediatamente.
A carta escorregou-lhe dos dedos. Whitie apanhou-a, deu-lhe uma
olhadela e comentou:
— O velho Narigueta Azul devia estar bem-disposto quando hoje
despachou esta carta.
— Julguei que tinha vencido, mas enganei-me — disse Mohrlock. —
Não se tratou de uma vitória, mas sim de um adiamento.
— Repita lá isso.
— Quero dizer que agora vai começar tudo de novo. Mais cinco dias
nisto.
— Certo. E se me deixar dar-lhe um conselho, trate desses crimes o
mais depressa possível... Que é que se passa? Está com mau aspecto.
— Não me sinto bem.
— Meta-se na cama. Você dormiu pouco a noite passada.
Mohrlock abanou a cabeça:
— Não. Vou até à cidade embebedar-me.
Naquela noite teve o segundo pesadelo. E na noite seguinte outro ainda,
uma ilusão tão real e horripilante que o deixou com medo mórbido de dormir.
Durante duas noites nem sequer voltou ao quarto. Quando Whitie finalmente
o conseguiu encontrar, estava alcoolizado, exausto, desmazelado,
subalimentado e com uma agressividade inspirada pelo terror de ver alguém
aproximar-se dele.
Apontou um dedo na direção de Whitie e disse:
— Não contem comigo! Não quero saber das malditas quotas para nada
e não me importo com o que me poderão fazer. Só não quero que me
chateiem!
— Ótimo — respondeu Whitie. — Você está a tremer como se sofresse
de um caso avançado de delirium tremens espacial. Se não vai matar
ninguém, não quer saber da quota para nada e não quer chatear-se, porque é
que está a tentar dar cabo de si?
— Porque suponho que acabarei por matar — respondeu Mohrlock a
chorar.
— O seu caso é de médico. Venha comigo.
Mohrlock, cambaleante, seguiu-o mansamente até ao primeiro
cruzamento e depois recusou-se a continuar.
— Não vou por esse quarteirão.
— Porquê?
— O tipo trabalha lá e eu não quero vê-lo.
— Está bem — disse Whitie pacientemente. — Vamos dar a volta.
Por fim lá chegaram à clínica, que era no edifício da administração, e
um médico B deu-lhe uma injeção. Na manhã seguinte acordou já na sua
cama, muito mais recomposto, mas desejando não o estar. Durante as poucas
horas em que esteve relativamente sóbrio conseguiu escrever uma carta ao
Dr. Rudieb, dizendo-lhe precisamente o que se passava com a quota. A
primeira vez que voltou a sair da inconsciência foi no primeiro dia da semana
seguinte. Whitie levara-o de novo à clínica e o Dr. Rudieb enviara outra
circular a dizer que a sua quota revista para a semana seguinte era de três
assassínios.
— Conheço um B — disse Whitie — que às vezes faz uns biscates
dando uma ajuda nas quotas. As tabelas que ele cobra para roubos são
razoáveis, mas não sei quanto cobraria ele por um assassínio, ou até se estaria
interessado em trabalhar nisso. Posso perguntar-lhe, se você quiser.
— Não.
— Você tem de arranjar um emprego. Tem de ter qualquer coisa em
que tenha o espírito ocupado.
— Boa ideia — disse Mohrlock. — Que espécie de emprego poderia eu
arranjar onde não visse nenhuns AA?
— Bom...
— Já estava à espera disso. Os AA não me fizeram mal nenhum e eu
também não quero fazer-lhes nenhum mal. Se não me embebedar, estou certo
de que irei matar um.
— Mas é mesmo isso que se espera que você faça!
— Alguma vez imaginou ver os seus dedos à volta de um daqueles
longos pescoços dalusianos? Se alguma vez lá puser os meus, estou perdido.
Um homem tem direito a um pouco de integridade moral, mesmo que seja
um criminoso condenado. A minha integridade moral exige que eu nunca
faça mal, desnecessariamente, a qualquer outro ser humano, seja roubando-
lhe a carteira, seja roubando-lhe a vida. Na primeira semana que aqui passei
estive assustadoramente próximo disso. Agora até tremo só de pensar em tal
coisa. Como nunca mais quero estar tão próximo do crime, vou embebedar-
me o mais que puder e deixar-me ficar assim. Para cometer um crime sem
arma é necessária muita coordenação de movimentos e eu julgo que se estiver
demasiado bêbedo para andar também o estarei para matar.
— O funeral é seu.
— É melhor que seja meu do que de algum dos AA. Whitie, será
possível que bem dentro de cada um de nós haja um impulso assassino?
— Eu nunca o senti — respondeu Whitie.
— Talvez seja porque ninguém lhe deu nunca uma quota de
assassínios.
Mesmo quando Mohrlock estava bêbedo, o pequeno dalusiano
continuou a obcecá-lo, e ele acabou por adquirir gradualmente a ideia de que
o empregado era responsável pelos seus males. Um dia sonhou que apanhou
uma pedra e a atirou á montra da loja. A montra não era de vidro e a pedra foi
devolvida. Voltou a atirá-la várias vezes e ela era sempre devolvida até que,
finalmente, alguém o imobilizou. Durante toda a cena o empregadito estava
postado na montra, olhando absorto os transeuntes e não reparando em
Mohrlock.
A quarta semana passou, com a sua quota revista de quatro assassínios.
Num impulso de fúria embriagada, Mohrlock devolveu pelo correio a circular
ao Dr. Rudieb. Nos dias que se seguiram, meteu no correio o cartão de
quotas, o bloco de impressos para relatórios e o bilhete de identidade.
Quando já nada mais tinha a enviar, selou os sobrescritos oficiais e meteu-os
no correio. Ao entregar ao postigo os sobrescritos vazios, dizia
orgulhosamente:
— É a minha quota deste dia!
Os outros BB pareciam ter dúvidas sobre se Mohrlock estava doido
devido à embriaguez ou se ele era um lunático que andava sempre
embriagado. Quando, muito raramente, ele era capaz de raciocinar sobre o
assunto, dizia que achava que ambas as hipóteses estavam certas. Mesmo
embriagado, tentava seguir o empregadito de noite até casa, mas os seus
passos eram tão incertos e ele caia tantas vezes que nunca conseguia
ultrapassá-lo.
Finalmente houve uma entrevista com o Dr. Rudieb em que Mohrlock
o via vagamente através de uma nuvem de álcool, como se estivesse longe. O
doutor abanou com mágoa o descomunal nariz e lamentou o facto de ter dado
a Mohrlock todas as oportunidades e de, em troca, não ter podido contar com
a sua colaboração. Mohrlock olhou-o de soslaio através da enorme distância
que os separava e pôs-se a insultá-lo aos gritos. Acabou por abandonar a sala
com uma simples expressão a ecoar-lhe repetidas vezes pelos corredores
enevoados de álcool da sua consciência já deformada: nova missão.
VII
— Homem, você estava realmente em órbita! — Disse o grumete do
camarote.
— Onde estou eu?
O rapaz riu-se.
— No espaço. Ainda não reparou no calor?
— Reparo agora — disse Mohrlock.
— E essa correia não é para segurar o seu pijama, se está interessado
em saber. É que você estava sempre a flutuar para fora do beliche. Olhe: beba
isto.
Mohrlock engoliu e estremeceu.
— Que é isto?
— Será possível? Tem estado a tomar isso de quatro em quatro horas
desde que o trouxeram para bordo e não se lembra?
— Não. E não acredito que me pudesse esquecer desse horrível gosto
assim tão depressa!
— Homem, você estava em tal estado que nem tinha paladar!
— Para onde vamos?
— Esta nave só tem dois destinos e você vem de um deles.
— Estou a ver. Julgo que ouvi falar de qualquer coisa como nova
missão.
— Se se lembra disso é porque está a recuperar bem. Quando o
trouxeram para aqui julguei que estaria morto!
— E estava — respondeu Mohrlock gravemente. — Era mesmo isso o
que eu estava: morto.
— Certo. Com um pouco de sorte estará completamente sóbrio quando
entrarmos no porto.
Em Daluse veio buscá-lo a bordo uma escolta do Gabinete de
Criminologia, que o levou para a sede local, onde teve de esperar numa
antecâmara por mais de uma hora. A cadeira onde estivera sentado, após doze
dias no espaço, parecia-lhe de uma dureza aflitiva.
Finalmente, o Dr. Fyloid chamou-o.
— Ah! Tenente Mohrlock! Sente-se, tenente — disse-lhe com ar
pacífico e olhando-o penetrantemente.
— Se não se importa, preferia ficar de pé.
O sorriso do doutor ampliou-se.
— O Dr. Rudieb enviou-me um relatório muito completo a seu
respeito. Tenho estado a estudá-lo.
— É generosidade da sua parte, estou certo — respondeu Mohrlock,
olhando para o sorriso dele pouco à vontade.
Tinha uma leve suspeita de que Fyloid era um sádico que havia
descoberto a profissão mais adequada à satisfação dos seus impulsos
grosseiros. A amplitude do seu sorriso indicava provavelmente a severidade
do castigo que estava prestes a aplicar-lhe. Quando mandava proceder a uma
execução devia ter muita dificuldade em conter a hilaridade.
— Parece que você não foi nada colaborante em Bal. Porquê?
— De vez em quando tenho ataques de teimosia — respondeu
Mohrlock absorto. Os medicamentos que lhe haviam ministrado a bordo da
nave tiveram um estranho efeito sobre ele: estava sempre a divagar. Ou então
ficava inesperadamente vazio e quando readquiria o contacto consigo mesmo
confundia desconcertantemente o tempo, os lugares e as pessoas. É claro que
se recordava do Dr. Fyloid, mas, de maneira um tanto estranha, ele fazia-lhe
lembrar alguém que... Ah, sim, fazia-lhe lembrar o empregadito de Bal! Este
facto pareceu-lhe uma coincidência impressionante porque, excetuando os
longos pescoços que ambos tinham, não havia entre eles a mais ligeira
parecença. A face do empregadito não exprimia absolutamente nada,
enquanto a do doutor era o modelo acabado da superioridade presunçosa.
— Este é um momento de triunfo para mim — dizia o Dr. Fyloid com
ar realmente triunfante. — Tenho o prazer de o informar que está curado.
— Curado?
— A natureza do seu crime, a violência invulgar com que o cometeu e
a sua confessada convicção de que essa violência tinha sido necessária,
fizeram-nos suspeitar de que você possuía impulsos homicidas latentes. Se
isso fosse verdade, havia o perigo de que pudesse de novo ceder perante eles.
O objetivo da sua detenção em Bal foi, é claro, dar-lhe a oportunidade de se
purgar desses impulsos. O Dr. Rudieb acha que o nosso diagnóstico estava
errado, mas eu sinto-me mais inclinado a concluir que você os possuía e que
aprendeu a controlá-los. Tenho aqui os papéis para a sua libertação e vou ter
muito prazer em assiná-los.
— Libertação? Vão libertar-me?
— Claro!
Mohrlock deu um passo na direção da secretária.
— Bal... Purguei-me... Controlei...
Fazia um esforço para se concentrar.
— Quer dizer que os carteiristas e ladrões de todos aqueles cidadãos do
tipo B que estão em Bal se encontram lá para se purgarem?
— Exato.
— E tencionam mantê-los lá até que eles se recusem a... A...
— Exato mais uma vez. Temos o dever de proceder assim, não só em
relação à nossa sociedade, mas também em relações a todas as outras
sociedades. Não podemos libertar esses criminosos e deixá-los andar por aí a
atacar os seus concidadãos. Temos de os manter detidos até estarmos aptos a
garantir que estão curados e não podemos fazê-lo antes de eles terem
aprendido a dominar os seus impulsos antissociais.
— Isso é monstruoso! — Exclamou Mohrlock. — Vocês dão-lhes uma
quota de crime a cumprir e ameaçam-nos com toda a espécie de horríveis
consequências se eles o não fizeram e quando eles obedecem às vossas
ordens dizem que não aprenderam a dominar os seus impulsos antissociais!
O Dr. Fyloid sorriu tranquilamente.
— Tenente, está a querer dar-me uma lição de criminologia?
Alinhou os papéis sobre a secretária e garatujou uma assinatura.
— Ora bem! Saia por essa porta, por favor. O Dr. Laime está à sua
espera para lhe aplicar o tratamento hipnótico. Não é nada de drástico; é só
uma pequena ação de desmemorização. É óbvio que não podemos consentir
que o público em geral venha a saber os pormenores da sua cura, pois se os
conhecesse a nossa técnica criminológica perderia a utilidade.
Mohrlock não fez caso dos papéis.
— E os AA? — Exclamou ele. — De que é que estão a querer curá-
los?
— Ah! É claro que você não sabe que Daluse é o centro mais avançado
em robótica de toda a galáxia. Não é um facto muito conhecido, mas devo
dizer-lhe que as nossas conquistas técnicas neste campo são tão notáveis
quanto o nosso trabalho em criminologia. Assim, é lógico que os nossos
criminologistas fizessem uso das técnicas robóticas dalusianas.
— Robots — murmurou Mohrlock.
— Precisamente. Com certeza que não ia imaginar que consentiríamos
que os nossos criminosos descarregassem os seus impulsos sobre seres
humanos! O nosso avançadíssimo laboratório criminológico em Bal não seria
viável sem a robótica. Quando o nosso trabalho estiver concluído, tenente,
esperamos ter banido o crime da sociedade civilizada. A contribuição que
você acaba de dar, por pequena que tenha sido, deveria proporcionar-lhe uma
enorme satisfação!
— Robots! — Murmurou Mohrlock de novo. — Passei semanas
infernais a abster-me de matar... Robots!
— Aqui tem os seus papéis, tenente. Por aquela porta, por favor.
O cérebro de Mohrlock estava outra vez a pregar-lhe partidas. A cara
que ria de esguelha para ele não era a do Dr. Fyloid, mas sim a do
empregadito — uma cara de robot. A sua expressão transformou-se em
espanto quando ele se inclinou sobre a secretária e tentou agarrar o tentador
pescoço dalusiano. Só quando o empregadito começou a esbracejar é que ele
realmente exerceu pressão.
Um robot.
Finalmente deu um passo atrás e a cara desapareceu por detrás da
secretária. Mohrlock apanhou mansamente os papéis e saiu pela porta que o
Dr. Fyloid havia indicado.
Outro robot de pescoço comprido adiantou-se para vir ao seu encontro
e pegou nos papéis.
— Sou o Dr. Laime — apresentou-se. — Se se sentar aqui, por favor...
Obrigado... E olhar para a luz...
Mohrlock obedeceu resignadamente. A cena seguinte de que ainda teve
consciência representava uma sala cheia de robots que discutiam uns com os
outros excitados.
— Mas eu já tinha principiado! — Gritou o que se intitulara de Dr.
Laime. — Ele não poderá recordar-se.
— Recordar-se de quê? — Perguntou Mohrlock.
***
***
***
Quando abriu os olhos viu as vigas nuas da sua cabana. Sobre a parede
mais afastada apoiava-se uma mancha alongada de luz solar. Do lado de fora
da janela cantavam alguns pássaros e lá em cima uma brisa suave acariciava
as árvores. Tentou mover os braços para se sentar.
De longe veio uma voz, profunda, suave e agradavelmente musical, que
disse:
— Calma! Calma! Você precisa de descansar. Durma... Durma...
Durma.
Cramer adormeceu.
Quando acordou viu um homem dobrado sobre ele. Tinha uma face
redonda e plácida, que Cramer observou por uns instantes, até reparar que ele
lhe aplicava uma ligadura ao peito, com dedos ágeis.
— Você é médico? — Sussurrou Cramer.
— Não — cantou a voz. — Não. Não sou médico.
— Então é enfermeiro.
Esta ideia parecia incompatível com aquela figura corpulenta e colossal
de homem, mas os dedos dele eram de uma delicadeza infinita.
— Eu estava a morrer — disse Cramer. — Eu morri e você... Foi
você...
— Silêncio! — Cantou a voz. — Foi você, amigo Cramer, quem salvou
a minha vida. Agora precisa de dormir... Dormir...
Quando Cramer voltou a acordar estava sozinho. Pouco a pouco e com
todo o cuidado sentou-se. O quarto estava precisamente como quando o havia
deixado precipitadamente para enfrentar a tempestade, e isso já fora... Pelo
menos há dois dias, pensou ele, apalpando a barba com a ponta dos dedos.
Mas sentiu-se bem. Sentia-se maravilhosamente até que moveu as pernas e a
artrite lhe fez lembrar dolorosamente que desde então não tomara os
medicamentos.
Cambaleou até ao armário dos medicamentos para ir buscar os
comprimidos e depois decidiu vestir-se. Intrigava-o o modo como tinha o
peito enfaixado em ligaduras. As tiras de pano cor-de-rosa eram macias como
a gaze mais suave, mas resistiam aos seus esticões. Deixou-as ficar onde
estavam e vestiu as roupas. Atirou-se para a cadeira em frente à porta, do lado
de fora da casa, e recostou-se com os olhos fechados para gozar o afago
quente do sol.
— Então levantou-se, amigo Cramer — cantou a voz. — É bom que
assim seja. É justo.
O enfermeiro de Cramer aproximou-se vindo por um caminho da
floresta, impressionante de altura e corpulência e andando de um modo
gingão que fez Cramer ter vontade de lhe perguntar se havia sido marinheiro.
Ali ficou a olhar para ele lá de cima, com a face redonda e inexpressiva, os
olhos de uma solenidade escura e um pequeno tufo de cabelo ridiculamente
isolado no topo da cabeça.
Mas a sua voz era calorosa e musical.
— Como se sente esta manhã, amigo Cramer?
— Sinto-me bem, obrigado. Só estou ainda um pouco fraco. Posso
perguntar-lhe quem é você?
— Quem? Gostaria de saber o meu nome? É justo — disse.
Pareceu estar a ponderar a pergunta.
— E se me tratasse por Joe?
— Decerto, Joe — respondeu Cramer.
— Pronto. Agora já se sente bem. Vamos tirar a ligadura.
Os longos dedos abriram rapidamente a camisa de Cramer e
desenrolaram com perícia as faixas envolventes de pano. Os dedos
imobilizaram-se quando a ligadura caiu. A face redonda de Joe assumiu uma
expressão absorta, que Cramer não sabia interpretar.
— Você não se curou tão depressa quanto eu esperava — declarou.
Cramer olhou espantado para a incisão aberta que tinha por baixo do
coração.
— Teve de me operar?
— Sim, operar. Vocês aqui chamar-lhe-iam isso.
— Oh! Você massajou o meu coração para o pôr a trabalhar de novo,
não foi?
— Não — disse Joe. — O seu coração não voltou a trabalhar. Era um
coração muito fraco.
— Não percebo.
— Eu explico-lhe. Mas, primeiro, a ligadura.
Joe atou a ligadura rapidamente e abalou bamboleando-se em direção
ao bosque. Passaram vinte minutos, meia hora, e lá veio ele de volta,
novamente a gingar. Trazia um objeto transparente, parecido com um frasco,
que pôs mesmo à frente da cara de Cramer e que depois segurou junto à luz.
— Vê? Era um coração muito fraco! — Disse ele com a sua voz
cantante.
Cramer olhou-o espantado e incrédulo. O frasco, porém, continha sem
dúvida um coração humano.
— Muito fraco — disse Joe outra vez.
— Quer dizer que... O meu coração...
— O seu coração... Claro!
Cramer começou a rir. Este Joe, pensou ele, era mesmo a personagem
que parecia ser.
— Que é que me mantém vivo? — Perguntou esfregando os olhos.
Carregou no peito com a mão, procurou sentir o pulso e parou de rir. Não
sentia as pancadas do coração e não tinha pulsação.
Joe disse então com gravidade:
— Mas eu pus-lhe outro coração.
— Você disse-me que era médico — protestou Cramer.
— O coração não é matéria para médicos! É mais para... Julgo que
vocês lhe chamariam engenharia.
— Penso que sim — disse Cramer. — Não é mais que uma bomba.
— Correto. Foi por isso que lhe pus outra bomba.
— Espero que me tenha posto uma bomba melhor! — Respondeu
Cramer, apalpando de novo o pulso, que foi incapaz de sentir.
— Muito melhor! Esta não se gasta.
— Muito bem. Fizesse o que fizesse, agradeço-lhe. Se isto é uma piada,
como julgo que tem de ser, agradeço-lhe à mesma. Quando ali estava na
água, não me preocupei muito em saber se viveria ou morreria, mas aqui
sentado, com o sol a brilhar-me na cara, penso que gostaria de andar por cá
mais um pouco. Portanto, agradeço-lhe.
— Eu também lhe agradeço, amigo Cramer. Há um laço entre nós
porque salvámos a vida um do outro, mas eu penso que a minha dívida é
maior do que a sua. Voltarei esta noite.
E lá se foi, gingando e levando o frasco consigo.
***
Cramer recuperou as forças lentamente. Ele sabia que o exercício o
teria ajudado, mas a artrite parecia piorar dia a dia. Os pequenos passos
cambaleantes que dava em volta da cabana eram um tormento lancinante.
Joe apareceu pontualmente ao lusco-fusco e perguntou cheio de
entoações musicais pela sua saúde, pedindo para lhe ver o peito, onde a
incisão estava a sarar, dando lugar a uma cicatriz bem delineada.
— Tenho de ir à cidade — disse-lhe Cramer uma noite.
— Mas claro, porque não? — Cantou Joe. — Você está quase bom.
Cramer levantou o pé inchado.
— Tenho muita dificuldade em andar. Se não tomar os meus
medicamentos rapidamente, ficarei impedido de andar de todo.
— Eu cá não gosto de ir a essa cidade, mas se houver outro modo de
poder ajudá-lo...
— Se pudesse levar-me até à quinta do Morton, o Ed ou a Ruth levar-
me-iam depois até lá.
— Quer ir agora?
— Não, amanhã. Amanhã à tarde. O médico não está no consultório de
manhã.
— Então, amanhã — concordou Joe.
***
Levou Cramer nos braços com a facilidade com que levaria uma
criança e depositou-o no pórtico da frente da casa de Morton. Ainda Cramer
não havia acabado de bater à porta, desapareceu. Ruth Morton transportou
Cramer de carro até à cidade e ajudou-o a subir os degraus que conduziam ao
consultório do médico.
O velho Dr. Franklin, dez anos mais novo que Cramer, examinou-lhe
os pés e os tornozelos inchados com uma expressão de desagrado e de
espanto e disse:
— Julguei que tínhamos isto controlado!
— Também eu — respondeu Cramer.
— Mas você insiste em viver metido lá naquele buraco húmido!
— Esgotaram-se-me os comprimidos.
— Deixe-me ver essas mãos outra vez. Há mais algum sítio onde lhe
doa?
— Sim, nos joelhos, um pouco nos pulsos e...
— Nos cotovelos e nos ombros — disse o Dr. Franklin. — Em resumo,
doem-lhe todas as articulações do corpo. Não seria por não tomar os
comprimidos por alguns dias que isto se ia espalhar tão rapidamente. Vamos
ver os joelhos.
Observou brevemente os joelhos e inclinou-se para trás, ficando a olhar
para o teto, pensativo.
— Vou dar-lhe um produto diferente. Veremos o que acontece. Preferia
utilizar as injeções só como último recurso, mas, da maneira como as coisas
vão, esse último recurso não andará longe. Ora vejamos. Está disposto a
mudar-se para a cidade, onde alguém o possa tratar?
Cramer abanou a cabeça.
— Agora não. Mais tarde, talvez.
— Se esperar muito mais tempo ficará totalmente inválido. E então só
terá de escolher entre ser empurrado numa cadeira de rodas por alguém e
morrer de fome. Isto se não morrer de fome primeiro, antes de alguém dar
pela sua falta. Para um homem inteligente como o senhor é, professor
universitário reformado, admita que é bastante teimoso...
Cramer ouviu-o com um sorriso. Já antes tinha ouvido este pequeno
sermão. A bem dizer, ouvia-o sempre que vinha à consulta.
— Deixe-se de sorrisos — disse o médico. — Gosta então de andar a
chapinhar na água. Quanto irá você chapinhar quando já não puder sair da
cama?
— Irei pensar no assunto.
O médico fungou e perguntou:
— Há mais alguma coisa de que se queixe?
Cramer falou sem pensar:
— E se me observasse o coração?
O médico voltou-se rapidamente.
— O coração também está a fazer das suas? Diabos me levem se você
não é um cadáver ambulante!
Pôs-se à procura do estetoscópio.
— Não se incomode — apressou-se Cramer a dizer, levantando-se
subitamente. — Não tenho nada no coração.
— Lá isso é que tem, e não é pouco. Desabotoe a camisa.
— Não. Nunca me senti melhor na vida... Exceto quanto a isto — disse,
exibindo a mão inchada.
— Oitenta por cento das vítimas de doenças coronárias dizem a mesma
coisa pouco antes de marcharem desta para melhor. Desabotoe lá a camisa.
Cramer pegou na receita e deu dois dolorosos passos em direção à
porta.
— Vou experimentar estes comprimidos. Muito obrigado, doutor.
— Você é mais teimoso do que qualquer dos imbecis que até hoje já vi,
e olhe que vi alguns bons espécimes. E não me falem de criancinhas
mimadas! Esta tarde vem cá a Sadie Brian com o fedelho dela para fazer uma
vacina de pólio, e olhe que depois de o ver a si até tenho prazer em atender o
pequeno. Você não precisa de comprimidos. Do que precisa é de um bom
pontapé no traseiro, e tenho a impressão...
Cramer saiu e fechou atrás de si a porta do consultório, ficando
encostado a ela, ofegante. Mais alguns segundos na cadeira do médico e ter-
se-ia visto a tentar explicar uma cicatriz no peito, que não estava lá da última
vez que o tinha visto, e um coração que não batia.
— Está pronto? — Perguntou Ruth Morton.
— Bem pronto! — Respondeu Cramer.
Ruth deixou-o num banco ao sol enquanto foi validar a receita e fazer-
lhe as compras. Regressaram à quinta e depois Ed encarregou-se de levar
Cramer e as suas compras à cabana.
Já era de noite quando Ed arrumou o último pacote. O crepúsculo
apontava longas sombras por sobre a água. Cramer acompanhou Ed à saída e
foi recostar-se na cadeira que tinha na doca, à espera de Joe.
Este emergiu da floresta balouçando, com a sua ampla e larga face
quase luminosa no meio da escuridão cada vez mais densa, e falando como
sempre com voz cantante.
— Então voltou, amigo Cramer. Já estava preocupado consigo.
Cramer fez que sim com a cabeça, pensando em como dizer o que tinha
para dizer. Apontou para o céu, onde uma estrela cintilava timidamente
através do maciço de nuvens, e disse:
— Você veio dali, não?
Joe hesitou antes de responder.
— Não dali — disse apontando depois para o horizonte —, mas sim
dali. Como sabia?
— Por muitos motivos. Por me ter dado um coração novo. Por ter
dedos a mais, o que notei há já alguns dias mas nem queria acreditar, e
porque...
Joe ergueu uma mão de sete dedos.
— Do meu ponto de vista, é você quem tem dedos a menos! — Disse
ele.
— Porque está aqui?
— Para estudar e recolher espécimes...
— Para se prepararem para uma invasão?
— Amigo Cramer! Porque quereria o meu povo o vosso mundo
distante? Há tantos mundos mais próximos e inabitados! Não; só vim estudar
e fazer colheitas de espécimes, e quando me for embora é possível que
ninguém do meu povo volte cá.
— Estou a ver. Quando me arranjou o coração fez mais alguma coisa?
— Mas eu não lhe arranjei o coração! Ele já nem tinha arranjo. Tive de
lhe pôr uma bomba nova e, além disso, acrescentar-lhe algumas coisas ao
sangue para que a nova bomba pudesse funcionar. O seu sangue era muito
suscetível àquilo a que vocês aqui chamam coagulação. Isso agora não
voltará a acontecer.
— Mas se o meu sangue não coagular, um pequeno golpe...
— Coagulará quando for necessário e coagulará melhor. Mas nas veias
e nas artérias, bem como na bomba, não voltará a coagular. Compreende?
— Não, mas acredito na sua palavra. Você sabe tanto, apesar de dizer
que não é médico...
— E não sou! O sangue... É química pura. De engenharia e química
percebo eu. De medicina nada sei.
— Devem ter sido essas coisas que me acrescentou ao sangue que me
puseram pior da artrite.
— Que é isso de artrite?
Cramer explicou e mostrou-lhe as mãos inchadas.
— Talvez o novo medicamento que lhe deram o vá ajudar — disse Joe.
Porém, os novos comprimidos nada ajudaram. A artrite tornou-se um
tormento incessante, que aumentava dia a dia. Cramer não saía da cama e
mexia-se o menos possível devido às dores que sentia. Joe aparecia com
frequência para saber dele. A sua expressão tranquila nunca se modificava,
mas as suas ações e perguntas traduziam uma receosa preocupação.
Estava a preparar-se para partir, disse ele a Cramer. Já estava neste
mundo há muito tempo. Há muitos anos, para utilizar o método de medir o
tempo que Cramer usava. Os estudos que tinha a fazer estavam completos e
só lhe faltavam alguns espécimes de animais grandes para completar a
coleção. Pediu a ajuda de Cramer, e este foi falar com Ed Morton, a quem
contou uma história ingénua sobre a iniciação de um novo negócio. Com a
ajuda de Ed começou a comprar gado, cavalos, carneiros, porcos, cabras e até
raças exóticas de cães e gatos. Joe fornecia-lhes todo o dinheiro de que
precisavam, o que levava Cramer a pensar onde o arranjaria ele, embora
achasse descortês perguntar-lho.
Joe ergueu um pequeno curral para os animais e ia-os levando um a um
ou dois a dois pelo caminho da floresta. Depois de Cramer ter visto a
vigésima vaca desaparecer naquela direção observou-lhe:
— Você deve ter uma grande nave!
— Nem por isso — respondeu Joe complacentemente.
— Então como consegue meter lá os animais todos juntos?
— É só um pequeno problema de embalagem — disse Joe, afastando-
se com o primeiro carneiro de um rebanho inteiro.
Joe abria as latas e preparava as refeições de Cramer, e como a artrite
piorava, começou também a ajudá-lo a comer. Enquanto ele trabalhava junto
ao canto da cabana a que Cramer chamava cozinha, iam conversando.
— Essa doença a que chamam «artrite» não é conhecida entre o meu
povo — disse Joe. — Não a encontro mencionada nos meus livros.
Cramer acenou com a cabeça e conseguiu encobrir o seu
desapontamento. De certa maneira esperara sempre — esperara
confiantemente — que Joe acabaria por fazer algo por ele. Um homem que
era capaz de colocar um coração sobresselente e modificar a composição
química do sangue de uma pessoa, também devia ser capaz de tratar de uma
coisa sem importância como a artrite.
— Lamento que as coisas que acrescentei ao seu sangue lhe tenham
provocado isto — disse Joe. — Mas não posso dar-lhe ajuda neste caso. Não
percebo o que se passa.
— Será que irá piorando?
— Não sei.
— Com esta nova bomba e os novos produtos químicos que tenho no
sangue, quanto tempo poderei esperar viver?
— Quem o poderá dizer? A vida é uma frágil chama que lampeja sob
os ventos do acaso. A minha própria vida teria findado no vosso rio se você
não ma tivesse salvo generosamente.
— Sim, pois — disse Cramer impacientemente. — Mas sem acidentes
quanto tempo viverei?
— Sem acidentes, nunca mais morrerá! Esta bomba não se gasta nem
para de funcionar.
Cramer ficou a olhar silenciosamente para o teto, refletindo sobre a
vida eterna acompanhada da dor eterna.
— Ser-lhe-ia possível retirar os produtos químicos do meu sangue? —
Perguntou ele por fim.
— Talvez, mas seria difícil e em breve a nova bomba deixaria de
funcionar. Depressa se formariam...
— Coágulos? — Sugeriu Cramer.
— Sim.
— Não teria possibilidades de me restituir o meu velho coração, pois
não?
— Para quê? Esse é que não funcionaria mesmo nada!
Cramer levantou a mão dilatada para o dobro do seu tamanho normal.
— Muito em breve — disse —, talvez já mesmo amanhã e com certeza
dentro dos próximos oito dias, a dor será tão intensa que não poderei mexer-
me. Não poderei fazer nada sozinho. Talvez nem sequer me possa sentar, e
então terei de ir para um asilo e ser lá assistido até morrer. Ora, para isso não
tenho eu dinheiro suficiente.
— Quanto ao dinheiro — respondeu Joe encolhendo os ombros —,
posso dar-lhe a quantidade que quiser.
— Mesmo com dinheiro suficiente, você já imaginou que espécie de
vida seria a minha? Deitado de costas e em agonia de cada vez que mexesse
um dedo! E isso eternamente! Nos asilos acontecem muito poucos acidentes.
Mas enfim; parece que não tenho outra alternativa.
Joe não disse nada.
— Na verdade, porém, tenho-a — continuou Cramer. — Posso pedir-
lhe para me repor o meu velho coração para que uma eventual autópsia não
levante problemas (poderiam pensar o que muito bem entendessem da
incisão) e para acabar assim com tudo imediatamente, tal como devia ter
acontecido naquela noite, no rio. Ou então posso aceitar-lhe todo o dinheiro
que queira dar-me e ir para um asilo, onde viveria indefinida mas
desesperadamente, no meio de um razoável e confortável tormento. Não é
uma grande alternativa, mas, seja como for, é uma alternativa.
Joe esperava tranquilamente, com uma expressão de calma enigmática
estampada no rosto.
— Terei de decidir antes de você partir — disse Cramer. — Quando
será?
— Tinha pensado em ir-me embora amanhã. Amanhã à noite. Porém,
como você tem uma escolha tão difícil a fazer, posso esperar mais um dia ou
dois.
— Se não for capaz de decidir amanhã, nunca mais o serei —
desabafou Cramer secamente.
De manhã, Joe levou-o para fora e ele ficou sentado sobre almofadas e
cobertores a olhar para o rio. O Verão não tardaria, trazendo consigo, pela
noite, a canção rouca das rãs, os saltos dos peixes e a taciturna tartaruga velha
que costumava apanhar sol sobre o grande tronco que havia a algumas jardas
dali, rio acima. Tudo aquilo ele amava e agora, fosse o que fosse que
decidisse, tudo estava perdido para si.
Se entrasse para um asilo, talvez a ciência médica um dia fosse capaz
de tratar aquela artrite artificialmente intensificada, ou talvez não. Seria um
jogo terrível, porque seria atormentado por dores infindáveis se perdesse. Em
desespero, vigiado de perto pelo pessoal do asilo, nem sequer teria a
liberdade de atentar contra a própria vida. Da primeira vez que um médico o
examinasse, teria de enfrentar perguntas embaraçosas sobre o seu coração.
Transformar-se-ia numa curiosidade médica.
Contudo, sentado ali e a olhar para o Sol refletido na água ondulante,
qualquer espécie de vida lhe parecia boa.
Até que tentou deslocar-se.
Joe veio preparar-lhe o almoço, mantendo um silêncio compreensivo.
Voltou ao crepúsculo para o alimentar pela última vez: feijões enlatados,
guisado enlatado, fruta enlatada, muito café quente. Comida simples, como
convinha que fosse a última refeição de um homem condenado, pensou
Cramer. Comeu devagar e saboreando cada garfada. Quando acabasse de
comer, Joe levá-lo-ia a casa dos Mortons juntamente com dinheiro suficiente
para lhe durar uma eternidade de vidas; ou então substituiria o coração novo
pelo velho e deixaria o seu corpo na cabana, para ser encontrado conforme o
acaso decidisse.
— Então, amigo Cramer? — Perguntou Joe, depois de o ter deixado
acabar de comer.
— Se fosse capaz de utilizar as mãos — disse Cramer —, deitaria uma
moeda ao ar.
— Admiro a sua coragem, amigo Cramer.
— Não é coragem, Joe. Lançar uma moeda ao ar pode ser a única
forma de obter uma resposta, porque ainda não decidi.
— Se quiser esperar mais um dia...
— Isso não resolveria nada. Se a questão fosse fazer ou não fazer uma
determinada coisa, julgo que me seria fácil decidir. Não tive problema
nenhum em decidir naquela noite no rio. Mas estar aqui sentado calmamente
numa cadeira e fazer uma escolha entre viver para sempre, apesar de em
agonia, e morrer, é coisa de que não sou capaz. Por isso vou deixar que seja
você a escolher.
— Eu?
Cramer acenou afirmativamente com a cabeça.
Pela primeira vez a cara redonda de Joe manifestou uma emoção
discernível: o choque. Recuou agitado e a sua voz musical adquiriu tons
estridentes.
— Amigo Cramer... Não posso tomar essa decisão por si! Não tem o
direito de mo pedir!
— Tenho todo o direito — disse Cramer calmamente. — Tudo isto é
culpa sua. Se eu não lhe tivesse salvo a vida e se depois você não tivesse
salvo a minha, não haveria problema. Por isso é você quem tem de decidir. Se
quiser lançar uma moeda ao ar, não me importo.
Joe fitava-o desesperado. A sua consternação foi sublinhada por um
gesto feito com a mão cheia de dedos. Tentou falar, mas só conseguiu
tartamudear.
— Estou à espera — disse Cramer.
— Muito bem — respondeu asperamente aquela voz normalmente
cantante. — Muito bem. Vou decidir por si... Agora mesmo.
Agarrou em Cramer à bruta, ignorando os seus gemidos de dor, e
correu com ele para a floresta.
***
O Prof. Zukoquol, presidente do Departamento de Zoologia Exótica da
Universidade de Gwarz, observa fascinado uma estátua de um carneiro, com
um pé de comprimento, que passava num transportador pelo reabilitador de
vida. Um carneiro de tamanho natural avançou a correr, vindo da outra
extremidade, balindo com cio. Seguiu-se uma vaca de vinte polegadas que se
transformou num monstro cornudo, largando baba pela boca e um cheiro
pestilento.
Os olhos do Prof. Zukoquol brilhavam de excitação.
— Que coleção assombrosa! — Exclamou. — Amigo Juroloq, você fez
um trabalho estupendo! Veio carregado ao máximo?
— Ao máximo da capacidade! — Respondeu Juroloq modestamente.
— Esplêndido. Merece congratulações calorosas. Exceto no que diz
respeito ao seu encontro com o humano, é claro. Aí está uma coisa que me
perturba.
— E a mim também — disse Juroloq.
— Ele pediu-lhe mesmo para você decidir o seu destino por ele?
— É verdade.
— Não é horroroso que uma criatura supostamente civilizada não
possua princípios éticos evoluídos? Eu não o teria criticado se o tivesse morto
imediatamente.
— Mas isso teria sido decidir por ele! — Protestou Joruloq.
— Ou se o tivesse abandonado.
— Isso também seria decidir por ele!
— Tem razão. É por isso que nós aconselhamos vivamente os nossos
exploradores a evitarem contactos com seres inteligentes. A sua moralidade é
tão imprevisível! Pode surgir toda a espécie de dilemas sórdidos.
— Concordo — disse Joruloq. — Infelizmente, não tinha escolha
porque estava em dívida para com ele.
— Estou quase inclinado a acreditar que teria sido melhor que ele não
lhe tivesse salvo a vida. Mas não falemos nisso. Visto que já se deixara
envolver, tenho de admitir que agiu com uma sensatez louvável. Já consultou
a Faculdade de Medicina?
— Já. Logo que cheguei.
— Que é que eles disseram?
— Prometeram resolver o mistério da artrite do humano na primeira
oportunidade. Não preveem ter quaisquer dificuldades. Ele tem de esperar a
sua vez, é claro, visto que eles têm tantos projetos prioritários entre mãos que
levará mil a dois mil anos dos dele até que eles possam debruçar-se sobre o
seu problema.
— São muito generosos em colocá-lo em lugar tão cimeiro do seu
calendário de trabalhos, considerando que o projeto não terá importância para
mais ninguém que não seja ele. Entretanto, que é que você fará com ele?
— Nada.
— Não tenciona reabilitá-lo?
— Claro que não — respondeu Juroloq, tirando George Cramer para
fora de uma dobra da sua capa, transformado numa figura de dezoito
polegadas, semiagachada, tendo erguidas as mãos inchadas e uma expressão
de enorme surpresa na face.
— Não. De facto não tenciono. Não gostaria de o obrigar a viver com
dores durante mil ou dois mil anos dos dele, enquanto esperava que a
Faculdade de Medicina arranjasse tempo para estudar o seu caso. Só o
reabilitarei quando eles estiverem prontos para se ocuparem dele.
— Então poderá emprestá-lo ao museu.
— Não. Prefiro mantê-lo perto de mim. Sabe, ele salvou-me a vida e eu
sinto-me grato e amigo dele. Além disso, dá um excelente pesa-papéis.
8
D. C. F.
(«D. F. C.»)
Este conto foi publicado pela primeira vez em Fevereiro de 1957, sob o título
«Cronus of the D. F. C.», na revista If Worlds of Science Fiction, e em
Setembro de 1966 na revista Ellery Queen’s Mystery Magazine, sob o título
«Department
of Future Crime»
© 1956, Quinn Publishing Company, Inc.
Um dia quente e luminoso de Maio e um novo emprego para mim.
Encontrei a sala na cave da sede da polícia; era uma grande sala, com as
letras D. C. F. decalcadas de fresco na porta e um horrível aglomerado de
transístores, bobinas e mostradores a monte num dos cantos.
Um jovem e inteligente cadete da polícia sentou-se numa secretária, ao
centro da sala. Estes rapazes pensam que um uniforme é uma licença para
brincar aos detetives.
— Você é Jim Forsdon — declarou ele antes de eu ter tido tempo de
me apresentar. — O Velho que vê-lo. — Fiz um aceno de assentimento com
a cabeça e enfiei as minhas coisas num armário vazio.
O Velho tinha o gabinete num cubículo da sala principal. Era mesmo
uma descida de categoria em comparação com as instalações que havia
ocupado lá em cima como chefe dos detetives. Mas ele agarrara-se àquele
emprego para além da idade da reforma! Estavam quase a correr com ele
quando apareceu o D. C. F. e ele logo se atirou ao lugar. O Velho não era
daqueles que se reformam.
— Sente-se, Forsdon. Seja bem-vindo ao Departamento do Crime do
Futuro.
Um olhar seu podia fazer um veterano de trinta anos sentir-se como um
calouro. Tinha uma face magra e dura, cabelo branco cortado curto e olhos
cinzentos de aço que viam através de um homem em vez de olharem para ele.
Pequeno, com um metro e setenta de altura e sessenta e quatro quilos de peso,
era surpreendente como ele alguma vez pudera ter entrado na polícia, mas a
surpresa desvanecia-se depois de se lhe verem os olhos. Nunca me sentira à
vontade na sua presença.
— Sabe o que temos aqui, Forsdon?
— Não sei bem — disse eu.
— Também não o sei exatamente. Os chefões lá de cima julgam que
isto é um brinquedo caro. Depende de nós fazermos disto uma coisa
importante.
Calcou o tabaco no cachimbo, acendeu-o, inclinou-se para trás e
deixou-o apagar-se. Segundo os boatos que corriam no departamento, ele
costumava roer duas boquilhas de cachimbo por dia e consumia meio quilo
de tabaco por ano.
— Temos aqui um novo invento — prosseguiu —, que não ouso dizer
que compreendo. Já o viu?
— Qualquer coisa que seja maior que um carro aéreo não me costuma
passar desapercebida.
Sorriu e disse:
— Walker chama-lhe Cronus, em homenagem ao deus grego do tempo.
Proporciona-nos imagens aleatórias da cidade numa espécie de tela grande de
TV. Imagens aleatórias do futuro!
Fez uma pausa à espera de um efeito dramático, mas devo tê-lo
desapontado. É que eu já conhecia aquilo.
— A imagem é esbatida e por vezes passamos maus bocados a tentar
adivinhar qual é o local para onde estamos a olhar. Também temos problemas
com a localização da época de um acontecimento. Esperamos que Walker
consiga afinar isto. Mesmo assim, tal como está, a máquina tem umas
potencialidades assombrosas. Desde há três semanas que está em
funcionamento e já detectámos meia dúzia de assaltos na tela... E detetámo-
los antes de eles se terem produzido!
— Deverá portanto ajudar-nos a atingir o ideal por que sempre nos
batemos, isto é, evitar o crime, em lugar de simplesmente prender os
criminosos — adiantei eu.
— Ah! — Respondeu ele manuseando o cachimbo outra vez. — Talvez
eu não tenha sido claro. A Cronus deu-nos imagens antecipadas de meia
dúzia de assaltos, mas nós não impedimos nenhum deles de ocorrer. O
máximo que conseguimos fazer foi apanhar os criminosos uns minutos
depois de terem cometido os crimes. O que levanta uma dúvida interessante:
será possível modificar o futuro?
— Porque não? — Perguntei.
O cachimbo tinha-se apagado, mas ele continua a aspirá-lo.
— Aí está uma pergunta interessante. O problema não é grave quando
se trata de roubos. O criminoso é imediatamente preso, o produto do roubo é
recuperado e a vítima vai à sua vida a pensar que a polícia é extremamente
eficiente. Mas no que diz respeito a assassínios? Prender o criminoso dez
minutos após o crime não vai ajudar a vítima.
Tirou o cachimbo da boca e franziu a testa enquanto olhava para ele.
— Pergunta interessante, de facto. Agora, que temos o nosso detetive
privativo, talvez descubramos a resposta. Quero apresentá-lo a Walker... E
também a Cronus.
Walker — o Dr. Howard F. Walker — estava debruçado sobre a sua
invenção. Não podia haver dúvidas sobre o facto de ele a considerar como
um filho seu. Podia ver-se isso pelo modo como acariciava os botões de
controlo. Era um homem com ar esgrouviado, com dois metros de altura e
talvez oitenta quilos de peso, de quarenta anos de idade. Tinha um pescoço
comprido com uma maçã-de-adão excessivamente pronunciada e já lhe
rareava o cabelo. A expressão do rosto era delicada e cheia de dignidade e,
por detrás dos seus óculos grossos, parecia um professor universitário
bastante cansado.
Não nos ouviu aproximar, pelo que o Velho esperou calmamente que
ele desse por nós.
— Apresento-lhe Forsdon, o nosso novo detetive — disse o Velho.
Walker quase não olhou para mim.
— Cronus tem qualquer coisa — disse ele. — Se eu pudesse
reencontrá-la...
E voltou-se para os botões.
— Aqui está um dos nossos problemas — disse o Velho. — Quando
focamos um crime, por vezes é difícil voltar a localizá-lo. O intervalo de
tempo entre o presente e a ocasião em que o crime é cometido vai
diminuindo, naturalmente. Para cada imagem é necessário fazer uma nova
sintonização.
A voz dele sumiu-se e eu pus-me a olhar para a tela quadrada com um
metro e oitenta de lado que se via acima da cabeça de Walker e por onde
perpassavam sombras. Uma sombra feminina passava agora por uma rua,
levando pela mão a sombra de uma criança. Sombras de carros aéreos
passavam flutuando aos safanões. Uma fila de sombras masculinas postadas
grotescamente ao longo do balcão de um bar e produzindo manchas
brilhantes com os copos. Uma sala e uma sombra feminina a movimentar-se
em volta de uma mesa.
Walker dobrou-se tensamente, com a face banhada de suor, e fez alguns
ajustes delicados.
A cena não era estável. Um parque com árvores, adultos recostados e
crianças a correr. Uma sala com pessoas sentadas à mesa, uma sala de leitura,
talvez uma biblioteca pública. Uma sala de estar confortável com uma lareira
à moda antiga e uma mancha brilhante que devia ser o fogo. Um quarto de
dormir e uma sombra feminina a vestir-se, ou talvez a despir-se. E repare:
Cronus não era brinquedo de bisbilhoteiro. As sombras eram tão sombrias
que só pelas roupas se sabia de que sexo eram.
— Aí está! — Exclamou Walker. Pôs uma câmara de cinema em
posição e carregou num botão. Enquanto observávamos, a máquina zumbia
suavemente.
Uma sala de estar indefinida. Uma sombra feminina abriu a porta e
entrou rapidamente. Levantou os braços e ficou imóvel durante um arrepiante
momento. Uma sombra masculina saltou para a imagem. Era uma enorme
sombra masculina. Quando ela se voltou para fugir ele apanhou-a por trás. A
mão dele moveu-se para cima e o punhal que segurava brilhou no momento
em que o enterrava nas costas dela. Quando o arrancou já não brilhava.
Desferiu um segundo golpe e depois largou-a. Enquanto ela se abatia sobre o
solo, ele rodopiou, correu na nossa direção e desapareceu na tela. A câmara
mergulhou em direção ao solo, registando a imagem daquela sombra imóvel
ali estendida.
De repente a cena mudou. Um restaurante com mesas apinhadas de
gente e empregados robots de movimentos lentos. Walker pronunciou umas
pragas inofensivas e desligou a câmara.
— Até agora, foi o que consegui apanhar — disse ele. — Se pudesse
focá-la de outro ângulo talvez pudéssemos determinar o local da ação.
— E o tempo? — Perguntou o Velho.
— Dentro de sete a doze dias.
A revelação, naquela ocasião, atingiu-me como um murro violento nos
queixos. Estivera a ver um crime que ainda não havia acontecido.
***
***
Este conto foi publicado pela primeira vez em Novembro de 1963 na revista
The Magazine of Fantasy and Science Fiction
© 1963, Mercury Press, Inc.
Karl Brandon viu a tabuleta por acaso. Um carro aéreo passou por
debaixo deles e ele seguiu-o com a vista porque se tratava de um Smires do
último modelo, e foi assim que viu uma pequena tabuleta colocada entre uma
fila de outras pequenas tabuletas dispostas sobre os telhados do atravancado e
exíguo centro comercial.
ANTIGUIDADES, anunciava ela. Brandon olhou para o relógio e
calculou que só lhe restavam vinte e cinco minutos. Cotovelou o motorista e
apontou-lhe a tabuleta.
Dois minutos depois estava dentro da loja. Passou em revista o seu
interior juncado de lixo e coberto de poeira, com um rápido relance de olhos,
e voltou-se para sair. Tinha o instinto pacientemente desenvolvido de um
crítico entendido na matéria e esse instinto dizia-lhe que não valia a pena
passar a pente fino aquela miserável coleção de sucata.
O proprietário da loja fazia mesuras à sua volta. Era um homem de
baixa estatura e calvo, que meneava a cabeça, sorria e esfregava as mãos uma
na outra.
— Faz favor de dizer.
— Têm isqueiros? — Disse Brandon.
— Temos, sim senhor. Temos uma ótima coleção. Não se importa de
chegar aqui...
Brandon deslocou a sua pesada figura atrás do proprietário, seguindo na
peugada do homenzinho com passos pesados e sonoros, no meio de uma certa
excitação. Podia sempre apaziguar-se com o seu instinto mais tarde, e se este
inauspicioso local tivesse realmente uma ótima coleção de isqueiros isso seria
o golpe da sua vida! Aqui, em Pala City, precisamente nas barbas de Harry
Morrison! Morrison faria um banzé que se ouviria até na estrela Arcturo, e
Brandon exultaria com cada um dos seus decibéis.
O proprietário colocou um mostruário à sua frente e Brandon respirou
fundo e inspecionou lentamente o seu conteúdo, tomando o gosto ao
desapontamento que sentia. Aqueles isqueiros não eram mais que fragmentos
corroídos e ferrugentos sem classificação possível. Não havia em todo o lote
um único espécime aproveitável.
— Não! Não estou interessado — exclamou Brandon, voltando-se e
afastando-se.
— Temos um que ainda funciona — disse o proprietário. Apanhou um
pedaço de metal disforme, acendeu-o com o polegar e ergueu-lhe a chama
hesitante.
Brandon resfolegou.
— Meu caro senhor: eu tenho setecentos e sessenta e um isqueiros na
minha coleção e todos eles funcionam!
O proprietário assentiu com a cabeça, rendendo-se ao inevitável.
— Deseja mais alguma coisa?
Brandon abanou a cabeça impacientemente. Ao dirigir-se para a porta
pela segunda vez, deu uma última olhadela pela sala e hesitou. A sua atenção
foi desperta por um estranho objeto que estava ao cimo de um montículo de
objetos estranhos. Sob a poeira espessa que lhe cobria a superfície, os
penetrantes olhos de Brandon surpreenderam qualquer coisa que sugeria
lustro e uma textura peculiar.
Agarrou nele. Parecia ser uma espécie de recipiente com uma pega
comprida, mas não tinha aberturas, a não ser duas ranhuras de forma esquisita
no alto e um orifício irregular no fundo, que, obviamente, havia sido causado
por uma pancada. Brandon passou os dedos pelo orifício, olhou-o
detidamente e aproximou o objeto da luz.
— Que diabo é isto? — Murmurou.
Rondando perto dele, o omnipresente proprietário emitiu um grito
triunfante.
— Vi logo que não reconheceria isso — disse ele. — É madeira.
— Madeira?
Brandon inclinou-se mais, para ver melhor.
— Já alguma vez tinha visto madeira? — Perguntou o proprietário.
— Não sei. Penso que uma vez vi uma mesa de madeira num museu.
— É possível. É possível. Mas é raro. E este objeto é uma antiguidade
genuína. Veja.
Segurou o objeto por baixo da luz e apontou. No interior, dificilmente
visível através de uma das ranhuras, estava um rótulo desvanecido: «Jacob
Raymann, da casa Bell. Southmark, Londres, 1688.»
— Genuíno — disse o proprietário. — Já tem quase mil anos.
— Não me diga. E é feito de madeira?
— É verdade. De madeira obtida de uma árvore.
O proprietário puxou de um pano e limpou o pó à superfície lisa do
objeto.
— De uma árvore — repetiu ele, expondo-o à luz. — Alguma vez viu
uma árvore? Claro que não. Havia uma enorme quantidade de árvores na Mãe
Terra, mas não se davam em mais nenhuma parte. Agora, na Mãe Terra não
há nada. O custo da guerra, meu amigo, não se mede em dinheiro, mas sim
em coisas que se perderam para sempre, tais como as árvores.
— Mas afinal que é isto?
— É um violino.
Brandon esfregou o dedo na sua superfície. Por debaixo do polimento
havia uma textura delicada e ondulada, diferente de tudo o que ele vira até aí.
— Que é um violino?
— É um instrumento musical.
— Não me diga! Como é que funciona?
Pela primeira vez o proprietário pareceu inseguro de si.
— Bem... Não sei exatamente como funciona.
— Não há lá dentro muito espaço para o mecanismo — disse Brandon,
espreitando pelo buraco.
— Meu caro senhor! — Exclamou o proprietário. — Naqueles dias não
havia mecanismos!
— Então, como raio produzia ele música?
O proprietário abanou a cabeça.
Brandon recolocou-o na mesa e disse:
— Para que serve atualmente?
— Pense, meu amigo. Alguns séculos antes da última grande guerra
houve uma árvore na Terra, uma entre milhões, talvez, e este pedaço de
madeira era uma parcela do seu tecido vivo. Um mestre artífice construiu-o
com as suas próprias mãos, pois que naqueles tempos não havia máquinas. É
feito de madeira, o material mais raro em toda a galáxia, e é um soberbo
ornamento. Lindo. Para a parede, talvez, ou para uma mesa...
— Diabos para o ornamento! Se eu comprar um instrumento musical,
quero que ele dê música! Já fiz funcionar setecentos e sessenta e um isqueiros
e devo ser capaz de arrancar música de uma antiguidade... Como é que lhe
chama?
— Violino.
— Isso. Deve haver livros que digam como ele funciona.
O proprietário fez que sim com a cabeça.
— Com certeza a biblioteca da Universidade terá qualquer coisa.
— Quanto custa?
— Dez mil.
Brandon arregalou os olhos.
— É ridículo! Está quebrado, não funciona e com certeza que lhe
faltam muitas peças. No fundo, não passa de uma caixa.
— Mas é uma antiguidade genuína — sussurrou o proprietário. —
Madeira genuína. Tem quase mil...
— Bom dia!
Brandon deixou a pesada porta bater com força atrás dele. O motorista
saltou para fora do veículo e postou-se à sua espera. Parou um instante,
perdido em pensamentos. Já era tempo de se entregar a outro passatempo.
Estava a perder o interesse que sentira pelos isqueiros, de que já não havia
espécimes de qualidade, mesmo a bom preço. E agora aparecia-lhe a madeira.
Harry Morrison não tinha nem uma lasca de madeira em qualquer das suas
coleções.
Brandon voltou-se e tornou a entrar na loja.
***
Pode ser que continuasse, mas o livro era velho e faltam-lhe páginas.
Morrison olhou cheio de dúvidas para a fotografia e abanou a cabeça.
— É evidente que faltam peças, e a descrição não dá nenhuma
indicação sobre o mais importante de tudo que é: como se toca esta coisa?
— Isso é que eu não sei — disse Brandon. — Até o Prof. Weltz não
fazia a mínima ideia. Diz que vai estudá-lo. Já tirou fotografias e fez
medições e vai mandar fazer uma cópia do instrumento.
— De madeira? — Perguntou Morrison.
Brandon riu-se.
— De metal ou de plástico. O professor pensa que vai poder responder
a uma série de questões sobre a música antiga quando descobrir como se toca
o violino.
— E que é que você vai fazer com ele?
— Vou mandar arranjá-lo — disse Brandon com confiança. — E vou
aprender a tocá-lo.
— Pode ser mais difícil do que pensa. É pena que não haja uma
fotografia de um a ser tocado.
— Ora, havemos de descobrir. O que lhe queria perguntar, contudo...
Voltou o violino ao contrário e passou os dedos pelo orifício do fundo,
— O primeiro problema vai ser reparar isto. Quem é que sabe reparar
um buraco em madeira?
Morrison ficou silencioso um bom pedaço. Finalmente disse:
— Terei de fazer consultas sobre esse assunto. Provavelmente,
ninguém!
O secretário particular de Brandon era um homem zeloso e trabalhador
que tinha a feliz capacidade de transformar entusiasticamente em seus
projetos mais queridos de Brandon. Brandon apreciava esta sua maneira de
ser e pagava-lhe em conformidade.
Porém, nesta ocasião, enquanto colocava cuidadosamente a caixa de
plástico na secretária de Brandon, não parecia entusiasmado e disse mal-
humorado:
— Isto vai ser mais difícil do que eu pensava.
Brandon abriu a caixa para olhar embevecido para o violino.
— Qual é o problema, Parker?
— Falei ao diretor do Museu do Congresso. Eles têm lá um objeto de
madeira. Uma mesa.
— Eu lembro-me — disse Brandon.
— Ele disse que a mesa precisava de ser reparada quando a adquiriram,
mas faltava-lhes encontrar uma cola que colasse madeira. Tinham todas as
peças e só lhes faltava juntá-las. Consegui a fórmula da cola.
Brandon acenou com a cabeça em sinal de aprovação.
— Mas ele nunca teve o problema da falta de peças de madeira, como
nós temos. Não fazia a mínima ideia de como resolvê-lo ou de quem o
poderia resolver. Descobri um técnico na nossa Divisão Polivar que pensa
adaptar uma peça de plástico no buraco...
— Que disparate! — Disparou Brandon.
— Exatamente. Julga que também seria capaz de o reparar com
madeira, mas é claro que não tem nenhuma. No entanto, está disposto a
tentar, se lha fornecermos.
— Então veja se lhe arranja alguma.
— Mas aí é que está o problema. Não há madeira. Já perguntei em toda
a parte.
— Tem de haver alguma em qualquer parte. Pois se eu encontrei esta,
mesmo sem tentar!
— Deve ter tido um golpe de sorte, porque por toda a parte onde eu
pergunto...
— Sim. O truque está em saber onde perguntar. Passe-me o Morrison.
Esperou impacientemente até que o semblante tranquilo de Morrison
apareceu na tela da parede. Morrison ergueu uma mão em sinal de
cumprimento — neste dia tinha as unhas pintadas de vermelho-escuro — e
disse:
— Vem falar-me no seu violino, suponho.
Brandon confirmou.
— Harry, tenho a certeza de que conhece todos os antiquários que vale
a pena conhecer. Não se importa de lhes ir dizendo que necessito de um
pedaço de madeira?
— Já fiz algumas consultas — respondeu Morrison. — Se alguma delas
resultar, logo lhe darei a conhecer.
— Obrigadinho.
— A menos que aconteça tratar-se de alguma coisa que valha a pena
conservar. Não faz sentido destruir um objeto valioso só para reparar outro
estragado.
Brandon resistiu à vontade de sorrir. O facto de ter encontrado o violino
havia picado Morrison mais do que ele suspeitara. Não vale a pena referir que
quaisquer objetos valiosos que apareciam à luz do dia se destinavam à
coleção de Morrison.
— Não, isso não seria necessário — disse Brandon. — Só necessito de
pequenos bocados.
— Certo. Se eu descobrir alguma coisa apropriada, não deixarei de o
avisar.
Morrison ergueu uma mão languidamente e a sua imagem desapareceu.
Brandon girava os polegares em torno um do outro, impacientemente. Depois
levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro. Sentou-se novamente e
premiu um botão que havia sobre a sua secretária.
— Parker! — Vociferou ele. — Arranje-me madeira!
Parker desapareceu de circulação durante uma semana inteira.
Quando voltou vinha pálido e cansado e Brandon, após um rápido
relance de olhos pela cara dele, disse:
— Teve algum azar? Por onde é que andou?
— Estive na Biblioteca de Livros de Referência do Congresso.
— E esperava encontrar madeira lá?
— Esperava encontrar informações sobre a madeira. São quase tão
raras como a própria madeira, mas descobri uma coisa. Há cerca de cem anos,
no planeta Beloman (fica no Sector Partu), houve um homem que declarou
que a sua profissão era entalhador.
— Duvido de que ainda possamos contar com ele para o consultarmos
— disse Brandon secamente.
— Certo. Mas se a profissão dele era entalhador, deve ter andado a
fazer algo com madeira, o que significa que deve ter havido alguma. Se
trabalhou naquela atividade muito tempo, deve ter tido muita madeira e pode
ser que tenha sobrado lá alguma.
— Entalhador — murmurou Brandon. — Uma pessoa que grava em
madeira. Uma pessoa que faz coisas a partir da madeira. Mas isso é
impossível! Mesmo há cem anos não havia já madeira em quantidade
suficiente para que alguém pudesse fazer profissão do seu uso. Onde obteve
essa informação?
— De um pequeno livro intitulado Profissões Estranhas. Tudo o que lá
dizia era que «no último censo da população em Beloman, houve um homem
que declarou ter a profissão de entalhador». O Sector Partu é bastante
afastado daqui e pode acontecer que as consultas que o Sr. Morrison está a
fazer não atinjam aquele sector. Penso que vale a pena investigar.
— Beloman. O nome não me é estranho. Tenho lá alguns interesses?
— Tem, sim. O senhor controla algumas minas. Se o pedisse ao seu
inspetor que lá reside, tenho a certeza de que ele descobriria facilmente se
ainda por lá há alguma madeira.
— É uma ideia. Pode ser até uma ideia muito boa. Já alguma vez estive
em Beloman, Parker?
— Que eu saiba, não. Pelo menos desde que trabalho para si, não.
— Julgo que nunca estive no Sector Partu. Parker: faça-se um
inventário das minhas participações financeiras em Partu e vizinhanças. É
tempo de eu ir fazer uma visita de inspeção.
***
***