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LLOYD BIGGLE, JR.

O CÉU SILENCIOSO
Título original: The Silent Sky
Tradução de Mário de Abreu
NOTA DO EDITOR SOBRE LLOYD
BIGGLE, JR.
Escritor e musicólogo, Lloyd Biggle, Jr., é doutorado em Musicologia
pela Universidade de Michigão. O seu interesse pela música e outras
manifestações artísticas reflete-se nas suas obras de ficção científica, tendo a
música como tema no primeiro conto que publicou, «Gypped» (1956), na
revista Galaxy.
Bastante conhecido do público português, Lloyd Biggle não é um autor
prolífero, tal como acontece com os demais escritores americanos da sua
geração. Nascido em 1923, publicou o primeiro livro relativamente tarde, em
1959, intitulado The Angry Espers. Outras obras em que se manifesta o seu
interesse pela música associada a histórias épicas são: All the Colors of
Darkness (1963), Watchers of the Dark (1966), The World Menders (1971),
This Darkening Universe (1975) e Silence is Deadly (1977).
Tendo escrito algumas space opera, Lloyd Biggle não apresenta a
característica geral deste género, que é o puro entretenimento,
aprofundando, pelo contrário, questões mais complexas.
Em 1965, então secretário da poderosa Associação Americana dos
Escritores de Ficção Científica (que atribui anualmente os famosos prémios
Nebula), Lloyd Bigle, Jr., propôs que todos os anos um escritor-associado
organizasse e prefaciasse uma antologia dos contos e novelas premiados no
ano anterior com o Nebula, além de incluir uma seleção de outros trabalhos
concorrentes ao cobiçado e prestigiado prémio. É a conhecida coleção de
antologias intitulada «Nebula Award Stories». A primeira foi organizada,
nesse mesmo ano, por Damon Knight. O próprio Lloyd Biggle encarregou-se
da sétima antologia, respeitante ao ano de 1972. Paul Andersen, Clifford D.
Simak, Isaac Asimov, Roger Zelazny e Ursula K. Le Guin são alguns dos
conhecidos escritores de ficção científica que desempenharam a mesma
tarefa de editores do «Nebula Award Stories».
ÍNDICE
1 — A Regra da Porta
2 — Uma Pequena Vigarice
3— A Capitulação
4 — O Dia do Juízo
5 — Arma Secreta
6 — O Castigo Perfeito
7 — Uma Breve Passagem pelo Limbo
8 — D. C. F.
9 — Asas da Canção
INTRODUÇÃO DO AUTOR
Logo na aurora da sua existência consciente, o homem começou a
maravilhar-se e a interrogar-se sobre o seu destino.
O pequeno mundo por ele habitado estava cercado de profundas
incógnitas: os montes na linha do horizonte, as agourentas formas das
florestas primitivas e essa inexprimível fonte de todos os mistérios que é o
mar. Receosamente, perguntava a si próprio o que estaria para além do que
via e o que lhe aconteceria se se aventurasse até lá — ou se o que nesse além
se encontrava viesse até junto dele.
Quando acabou por se lançar nessa aventura, não quis crer no que
descobriu, porque até uma fase avançada da sua história os seus sonhos foram
sempre muito mais grandiosos do que as realidades que lhes corresponderam.
Além disso, sempre que o homem ultrapassava uma barreira, logo outra se
erguia no horizonte para lhe avivar a imaginação.
Com o desabrochar da sua consciência começou a exploração de outras
barreiras: que estará para além do amanhã? Ou para além das estrelas? Ou
para além da vida?
Tal como acontece com a maioria dos empreendimentos humanos,
surgiram homens que se especializaram no sonho e na imaginação e se
tornaram profissionais. Atualmente, alguns deles escrevem ficção científica.
Esta expressão foi examinada semanticamente e acabou por concluir-se
que era incongruente, pois associa uma palavra que tem que ver com a
objetividade, com o conhecimento sistematizado, com factos e, em última
análise, com a verdade, a uma outra que significa o oposto, isto é, algo que é
forjado ou imaginado; porém, a ciência destituída de imaginação tem
promovido mais doutrinas falsas do que todas as ficções intencionais até hoje
urdidas. A ficção científica combina a literatura mais venerável que o homem
já produziu com a sua literatura mais moderna; o seu temor reverente e
hereditário do desconhecido e a sua irresistível tendência para se maravilhar
com ele, com as especulações acerca do temível poder que a ciência pôs à sua
disposição para construir o seu próprio destino... Ou destruí-lo.
O homem primitivo habitava um mundo aterrorizado, onde até uma
simples brisa despertava uma interrogação e o faiscar de um relâmpago
constituía uma ameaça de infelicidade ou de condenação. Ele não reconhecia
as suas fantasias como se fossem ficção científica, mas elas eram-no. O
homem especula inevitavelmente sobre o desconhecido com base do que dele
é conhecido e a palavra «ciência» significava originalmente «conhecimento».
Ao longo de toda a história da humanidade, cada idade produziu uma
«ficção científica» que refletia a tecnologia e o pensamento científico dessa
mesma idade.
O homem primitivo povoava as suas fantasias de espíritos; os gregos da
Antiguidade Clássica povoavam-nas de deuses. Os auditórios de Homero
aceitavam as suas poesias épicas como se elas fossem história e, em grande e
surpreendente medida, eram-no de facto. Porém, eram também a «ficção
científica» daquela época, a realização das fantasias humanas em termos de
compreensão do seu ambiente, cerca de oitocentos anos antes de Cristo.
Alguns dos temas mais importantes da atual ficção científica têm a sua
raiz longínqua e ininterrupta nas fantasias primitivas do homem, inserindo-se
profundamente no seu Folclore e nos seus mitos mais arcaicos. A viagem
fantástica deve ter fascinado o homem muito antes do périplo épico de
Ulisses pelas maravilhas do Mediterrâneo. Ela ainda o fascina, seja através do
espaço deserto ou da recente Viagem Fantástica através de um corpo
humano. As assombrosas criaturas descritas em narrativas de viagens do
passado são, a seu modo, tão extraordinárias como os monstros de olhos
desorbitados que habitam os remotos mundos da atual ficção científica.
Tribos, raças, civilizações, continentes e mundos têm ocupado as fantasias do
homem desde que, pela primeira vez, ele projetou a sua imaginação para além
do horizonte. A utopia arquetípica foi sem dúvida sonhada durante um
período de excesso de população e de carência de cavernas no Plistocénico, o
romance interplanetário não é mais moderno do que o século II d. C. e os
visitantes do espaço exterior têm já uma história veneranda. O homem
artificial, ou robot, já fazia parte dos mitos sobre a antiga Creta.
Existem diferenças significativas entre a atual ficção científica e a
«ficção científica» da Antiguidade. Duas delas são patentes pelo uso das
palavras «ficção» e «ciência». As modificações ocorridas na ciência e na
tecnologia forjaram transformações nas fantasias humanas e as modificações
experimentadas pela literatura afetaram as formas por que elas se exprimem.
O florescimento gradual da ficção como uma forma literária respeitável
libertou os escritores da necessidade de apresentarem a literatura imaginária
como se de experiências verdadeiras ela tratasse (embora esta prática venha a
subsistir certamente enquanto houver um público crédulo e simples suscetível
de ser enganado por divertimento ou pela procura de lucros). As fantasias do
homem foram contudo moldadas sob a forma de ficção pelo menos já desde
os tempos de Aristófanes. Uma literatura de ficção científica orientada na sua
moderna acepção só foi, porém, possível após os enormes progressos
científicos e tecnológicos do século XIX e, dado que eles transformaram o
meio ambiente no decurso normal de uma vida humana, pressagiando assim,
com toda a evidência, um progresso contínuo e acelerado, possibilitaram
novas dimensões para a fantasia. Os profetas de outras épocas pesquisavam o
futuro nas estrelas ou através de práticas divinatórias acompanhadas de
sacrifícios ou ainda por meio de sonhos provocados por drogas; o profeta
moderno consulta revistas técnicas e a sua régua de cálculo. Pela primeira vez
na história da humanidade, revelou-se possível calcular o futuro.
Finalmente, a ficção científica dos nossos dias reflete a abertura dos
horizontes do homem moderno. O mundo mediterrânico de Homero podia
exceder as maravilhas de dois poemas épicos, mas os homens alcançaram os
horizontes cantados pelo poeta e ultrapassaram-nos, ocupando assim
gradualmente os espaços em branco dos mapas terrestres. Mesmo neste
planeta de dimensões encurtadas ainda há espaço suficiente onde encontrar
motivos de maravilha, e os escritores que assim procedem continuam a
descobrir mundos desconhecidos: o Mundo Perdido, sul-americano, de A.
Conan Doyle, e o Horizonte Perdido, himalaio, de James Hilton, para nomear
somente dois exemplos do século XX. Outros mundos têm sido entrevistos
em lugares tão improváveis como o fundo da toca de um coelho, como
acontece em Alice no País das Maravilhas.
O homem tem contudo prestado cada vez mais atenção para fora de si e
para dentro de si. Por um lado, as ciências espaciais e, por outro, ciências em
fase de crescimento, como por exemplo a psiquiatria, a psicologia e a
sociologia, sondam as últimas barreiras que se lhe erguem: o espaço exterior
e o próprio homem. Nos últimos três mil anos, o homem explorou um mundo
e descobriu dois universos — um no céu e o outro na sua própria mente. Hoje
ele fantasia; amanhã, mais milénio menos milénio, adquirirá o conhecimento.
Mas muito antes desse tempo terá avistado novos horizontes.
Para se maravilhar com eles.
Loyd Biggle, Jr.
1
A Regra da Porta
(«The Rule of the Door»)

Este conto foi publicado pela primeira vez em Fevereiro


de 1958 na revista Galaxy Science Fiction
© 1957, Galaxy Publishing Corporation
O Prof. Skarn Skukarn voltou-se abruptamente sobre o acrescento
ondulado da sua cama e levantou-se. Um olhar de soslaio na direção do
indicador cor-de-rosa informou-o de que apenas passara metade do tempo de
sono. Espreguiçou-se, abandonou-se a um bocejo vagaroso e esfregou os
olhos.
— Mas que estranho — murmurou. — Talvez tenha sido daquele sliff
que comi ao jantar.
Contudo, imediatamente rejeitou esta ideia por a considerar uma
suposição imprópria de um psicólogo distinto e arrastou-se suavemente para
o seu laboratório. Os apontamentos da sua lição estavam empilhados
ordenadamente sobre a secretaria. Folheou as folhas metálicas, ligeiramente
surpreendido de não sentir qualquer vestígio de fadiga. Tinha a mente bem
desperta, pois sentia as ideias fluírem com uma clareza cristalina. Hesitou por
um breve momento, olhando atentamente para as notas, e logo se enfiou na
sua toga professoral esvoaçante, subindo para o estrado absurdamente
ornamentado que estava a um canto do laboratório. Com um sorriso
desmaiado, carregou num botão e esperou.
De norte a sul e de leste a oeste da grande cidade universitária de Kuln,
pragas e gritos de consternação deveriam estar naquele momento a fermentar-
lhe o ar, à medida que centenas de estudantes iam sendo arrancados das
camas pelo tilintar das pulseiras. Precipitavam-se então para os visores,
interrogando-se: «Que quererá agora o raio do velho?»
Pensar nisto dava-lhe prazer. Não era cruel como alguns dos seus
colegas, que sentiam um perverso gozo em atormentar os alunos durante o
tempo de sono, mas — dizia para consigo — seria uma experiência
psicológica interessante averiguar a quantidade de conhecimento que uma
mente turvada pelo sono seria capaz de absorver. Daria uma das suas lições
mais difíceis e a seguir faria imediatamente um exame.
Aguardou o tempo mínimo que os hábitos lhe consentiam e começou:
— Lição novecentos e setenta e dois. O efeito dos impulsos de radiação
sobre os condutores motrizes do subconsciente.
Teve uma hesitação. A sua pulseira tilintou com uma aguda sonoridade
quase dolorosa. Com uma súbita sensação de pânico compreendeu o que o
tinha despertado. Afastou-se dando um salto, mas regressou precipitadamente
ao estrado para anunciar:
— Esta lição continuará oportunamente. — Premiu então o botão de
cancelamento e correu para o seu próprio visor.
A face do primeiro-ministro fitava-o lá de dentro, assustadoramente
pálida, perturbada, com as pestanas retorcidas de fadiga. Skarn adivinhou
facilmente quem havia perturbado o seu sono. O primeiro-ministro carregou
o sobrolho e disse despeitadamente:
— Está com bom aspecto, Skarn.
— O senhor também — murmurou Skarn delicadamente.
— Eu não. Estou com um aspecto miserável. Sinto-me cansado.
— É natural — concordou Skarn.
— Tenho uma missão imperial para si. Começará a desempenhá-la
imediatamente.
Skarn fez uns estalidos com a língua, enlevado. Uma honra daquelas
não acontecia mais do que duas ou três vezes na vida, mesmo a um professor
catedrático da Universidade Real.
— Cumpri-la-ei com todo o prazer — respondeu. — Posso saber...
— Pode. Uma nave-patrulha descobriu outro planeta habitado. Sua
Majestade Imperial deseja um espécime da forma de vida dominante para a
coleção real.
Skarn agitou-se como quem não se sente à vontade e uma onda azulada
de irritação corou-lhe a carne branca e lisa da face.
— Eu não sou nenhum preparador de lagartos — resmungou.
— Lá isso não — reconheceu o primeiro-ministro.
Posso saber...
— Pode. A forma de vida dominante no planeta é inteligente.
— Mesmo assim, não compreendo porque é necessário um psicólogo.
— Porque se aplica ao caso a Regra da Porta.
Skarn coçou a cabeça calva pensativamente e preferiu admitir que ele
não estava a fazer pouco de si.
— Não me lembro dessa regra — confessou. — Posso saber...
— Pode. A Regra da Porta foi proposta pelo Grande Kom quando um
antepassado imperial de Sua Majestade Imperial mostrou o desejo de possuir
um espécime de uma forma de vida inteligente.
Skarn fez uma profunda vénia ao ouvir mencionar o nome do venerável
psicólogo dos psicólogos.
— É sem dúvida uma regra excelente.
— Sim. Foi sancionada juntamente com as outras regras magníficas
propostas pelo Grande Kom. Contudo, sendo esta somente a segunda vez,
desde tempos imemoriais, que uma majestade imperial pediu um espécime
inteligente, a Regra não tem sido muito utilizada.
— É natural — admitiu Skarn.
— De facto, a Regra já não está incluída no Código das Regras. Se não
fosse a magnífica memória do primeiro-ministro de Sua Majestade Imperial,
a Regra não teria sido invocada nesta altura de crise.
— Devo felicitá-lo por isso.
— Sua Majestade Imperial já o fez.
— A Regra da Porta — repetiu Skarn, meditativo. — Posso saber...
— Pode. Já não se sabe qual era o conteúdo da Regra.
— Na minha modestíssima opinião, a Regra só pode portanto ser
cumprida com extrema dificuldade.
— Sua Majestade Imperial não minimiza essa dificuldade. Foi este
problema que o fez convocar um psicólogo tão distinto como você. Por
sugestão minha, é claro. A sua missão consiste em redescobrir o conteúdo da
Regra da Porta, cumpri-la rigorosamente e obter para Sua Majestade Imperial
o espécime desejado.
Skarn fez uma vénia.
— Utilizarei todo o meu imerecido talento no desempenho dessa
missão — disse.
— Naturalmente — retorquiu o primeiro-ministro. — É claro que será
posta à sua disposição uma verba ilimitada para despesas.
— Naturalmente. Também terei necessidade de um prazo ilimitado.
— Naturalmente.
— Preciso também — disse Skarn, com uma pausa para estralejar com
a língua em sinal de antecipado prazer — de permissão imperial para
pesquisar os arquivos sagrados.
— Naturalmente. Aguardo a sua presença no Palácio Imperial
imediatamente.
O visor escureceu. Skarn manipulou os controlos, viu a luz de
aquiescência acender-se e dirigiu-se a pé para o Palácio Imperial.

***

Durante três ciclos completos de sono e vigília, Skarn deambulou


incansavelmente através dos arquivos sagrados, explorando pilhas e pilhas de
folhas metálicas, até ficar com os dedos embotados de insensibilidade e com
os olhos tão saturados de fadiga que quase ia passando sem dar por isso as
folhas que continham os Teoremas de Wukim, perdidos há muito. Tão
cansado estava quando se lhe depararam as lendárias Teorias de Kakang que
até lacrimejava; já não era capaz de compreender o que lia. Só quando acabou
por descobrir, num canto húmido, a pilha de folhas com a sua altura que
constituíam os cadernos de apontamentos de Grande Kom é que cumpriu um
tempo de sono.
Regressou depois aos apontamentos, sentindo-se retemperado,
enquanto o dever e a curiosidade travavam no seu íntimo uma luta renhida até
ele ter feito um hábil compromisso psicológico. Leu de ponta a ponta os
cadernos de apontamentos com um cuidado reverente, mas só até ter
encontrado a Regra da Porta. Daí não passou. Levou consigo duas das folhas
para as mandar imprimir, devolveu com tristeza os originais aos arquivos
sagrados e foi procurar o primeiro-ministro.
— Encontrei o texto da Regra da Porta — declarou.
— Ótimo! Na próxima lista de grandes feitos o seu nome aparecerá em
lugar de relevo. Qual é o conteúdo do texto?
Skarn fez uma vénia.
— Não o compreendo inteiramente, mas uma coisa é já evidente: a
Regra da Porta consiste... Numa porta. Veja: tenho comigo cópias dos
apontamentos do Grande Kom.
O primeiro-ministro olhou de relance para os velhos textos, sem os
compreender.
— O facto de a Regra da Porta consistir numa porta é uma adequada
homenagem à lógica do Grande Kom. Você é capaz de ler isto?
— Consigo ler quase tudo — confessou Skarn cautelosamente.
— Bem... E o desenho? Parece representar um velho modelo de
transmissor de matéria.
— Naturalmente. E aqui, como vê, é a porta. O espécime pretendido
passa pela porta e é imediatamente transmitido... Talvez para dentro de um
frasco autovedante para espécimes.
— A porta parece ser extremamente complicada.
— Naturalmente. Bem vê, ela inclui um analisador de ondas de
pensamento e uma sonda de subconsciente. Este aparelho parece ser um
modelo antigo de computador de personalidade. Os outros componentes são-
me estranhos, mas suponho que este é um analisador de dados que tomará as
decisões finais.
— É espantoso!
— Com a sua incalculável sabedoria, o Grande Kom apercebeu-se de
que a destruição do processo vital de um ser inteligente não era projeto para
ser realizado impulsivamente. Por isso estabeleceu uma série de princípios:
«Poupa o simples, porque a sua natureza é sublime. Poupa o sábio, porque a
sua natureza é rara. Poupa o que ama os outros mais do que a ele próprio,
porque o amor é o supremo sentido da vida. Poupa o chefe de uma família,
porque a sua perda prejudicaria muitos. Poupa o fraco, porque a sua fraqueza
torna-o inofensivo. Poupa o generoso, porque os seus atos merecem
generosidade.» Há muitos outros princípios ainda, mas alguns deles não os
compreendo.
— A Regra da Porta deve ser extremamente difícil de aplicar —
comentou o primeiro-ministro meditativamente.
— Graças ao Grande Kom, não temos de a aplicar. Só temos de montar
a porta e ela se encarregará de escolher um espécime adequado para Sua
Majestade Imperial.
O primeiro-ministro bateu com os pés em sinal de contentamento.
— Ótimo! Dirija-se imediatamente para esse planeta e ponha a porta
em funcionamento.

***

Os cidadãos de Centertown, Indiana, estavam frenéticos de excitação.


Um reformado milionário texano do petróleo estava a construir nos arredores
da sua acolhedora comunidade uma fabulosa mansão. Ou talvez se tratasse de
um marajá que houvesse escapado aos seus irados súbditos com uma fortuna
e algumas escassas dezenas de concubinas e que estivesse a instalar-se em
Indiana. Ou ainda de um rico industrial que se preparava para transformar
Centertown numa metrópole em expansão.
De qualquer modo, alguém estava a construí-la, sem preocupações de
custo, e estava com pressa. Centertown estava a ser fortemente posta à prova
para fornecer a mão-de-obra necessária. Importavam-se homens de Terre
Haute e um empreiteiro de Indianápolis construiu um sinuoso caminho de
asfalto através das árvores até ao topo da colina arborizada onde a casa ia
ganhando forma. Aos domingos à tarde, os cidadãos de Centertown
apresentavam-se em massa para inspecionar e para tecer comentários sobre a
evolução dos trabalhos na semana finda.
Ao aproximar-se o final das obras de construção do edifício, a reação
final foi de decepção. Dizia-se que a sua arquitetura era conservadora. Alguns
dos habitantes medianamente abastados de Centertown gabavam-se de
possuir habitações mais requintadas. A misteriosa mansão acabou por
revelar-se, infelizmente sem margem para dúvidas, meramente mais uma casa
de grandes dimensões.
Mas, quanto ao seu interior... Ah, aí havia matéria de interesse sobre
que falar! Os bons cidadãos de Centertown escutavam atentamente as
palavras dos carpinteiros que o descreviam. Não havia cave e, com exceção
de uma casa de banho e de um pequeno quarto de arrumações, a maior parte
do rés-do-chão consistia numa grande sala de estar.
Além disso, o proprietário tinha uma verdadeira mania dos armários e
das portas. Ao longo de toda uma parede daquela espaçosa sala de estar só
havia armários, grandes armários sem vitrinas. As suas portas eram
monstruosamente estruturais com sessenta centímetros de espessura que
funcionavam de modo estranho e estavam presas por meio de um tipo
esquisito de dobradiça que nenhum dos carpinteiros antes vira.
Além disso, as portas abriam-se para dentro. Quem já ouvira falar de
armários cujas portas se abriam para dentro? Havia onze ao todo, e o armário
central estava inacabado e não tinha porta.
Este novo habitante de Centertown era sem dúvida uma pessoa muito
excêntrica. A crer no que diziam os operários, ele próprio tinha um certo ar
estranho. Os pintores, depois de terem dado uns retoques na sala de estar,
acrescentaram um outro pormenor ao mistério: durante a noite alguém havia
colocado uma porta no armário central. E a porta tinha fechadura.

***

Skarn Skukarn, conhecido por Jonathan Skarn pelos cidadãos de


Centertown, instalou-se na nova casa num dia fresco de Outono e conduziu
um recém-chegado ajudante trémulo de frio numa visita de inspeção. O
prazer que Skarn sentia com a nova casa apenas era ultrapassado pelo
desprazer que experimentava perante o ajudante. Dork Diffack era um
homem atarracado, mal-humorado, rezingão, insultuoso e globalmente
antipático. Skarn esperava confiadamente que, na primeira oportunidade, ele
haveria de acrescentar a deslealdade a esta lista de qualidades genuínas e que
ficaria mesmo bastante satisfeito se pudesse provocar o seu fracasso, visto
que toda a desgraça desabaria sobre ele, Skarn.
Skarn também sabia que, graças ao Grande Kom, não iria falhar.
Dork bufou desdenhosamente quando acabaram a volta pelas
instalações.
— Que abominável clima — resmungou. — E estes bárbaros... Admito
que possuem inteligência, visto que têm uma espécie de civilização, mas não
deve ser uma grande inteligência.
— Contudo — respondeu Skarn —, eles são inteligentes e por isso a
Regra da Porta é-lhes aplicável.
— Isto é um disparate intolerável. Porque se há de ter esta maçada e
esta despesa toda para colher um espécime? Porque não se despacha
rapidamente um e se acaba com o assunto? Não faltam criaturas destas aqui
em volta. — E Dork deitou um olhar na direção da estrada, onde vários
carros estavam estacionados com os respectivos ocupantes a mirarem a casa.
— O comandante da patrulha poderia ter feito isso — continuou. — Deveria
mesmo tê-lo feito. É uma trapalhada quando homens da nossa categoria têm
de andar à caça por essa galáxia fora, só para satisfazer os caprichos do velho
Kegor por causa do seu museu biológico.
— Sua Majestade Imperial não tem caprichos! — Disse Skarn com
dureza.
Sendo Dork natural de Huzz, um dos mundos mais distantes do
império, tinha por hábito exteriorizar um desrespeito grosseiro e provinciano
por Sua Majestade Imperial. Revelava também desprezo por Skarn, mas isso
era devido aos ciúmes que sentia devido ao facto de o cargo de professor na
Universidade Real que Skarn ocupava ser muito mais elevado do que aquele
que ele próprio ocupava em Huzz. Contudo, Dork era suficientemente
competente e, graças ao Grande Kom, a nomeação não devia tardar.
— Nunca ouvi falar desta Regra da Porta em Huzz — disse Dork.
— Faltaram durante tanto tempo as razões para a sua aplicação que
quase a esqueceram no planeta-mãe — respondeu Skarn. — Parece que só foi
invocada uma vez, e isso ainda em vida do Grande Kom.
Penetraram na casa e atravessaram toda a sala de estar. Dork deu um
pontapé enfastiado na porta.
— Suponho que foi construída exatamente de acordo com as
especificações exigidas pelo Grande Kom, não?
— Exatamente.
Bem, você disse que os criados estarão aqui amanhã. Talvez um deles
se deixe apanhar nela e então poderemos regressar a casa.
Skarn sorriu.
— Não será assim tão simples. As prescrições são bastante estritas.
— Eu li o conteúdo da Regra — disse Dork altivamente. — Você
admite, mesmo de passagem, que estes bárbaros possuem qualidades tais
como o amor, a sabedoria e a generosidade?
— Sim — disse Skarn. — Acredito.
— De qualquer modo, não é problema nosso. A porta é que decidirá.
— Talvez. O Grande Kom concebeu a porta para os habitantes de um
mundo que desconhecemos. Estes... bárbaros... Podem ter uma estrutura
mental completamente diferente. Isto significaria que teríamos de adaptar a
porta a eles, e devo confessar que não sei como fazê-lo. Alguns dos
instrumentos são extremamente estranhos.
— Como é que você sabe que o Grande Kom não concebeu a porta
para os habitantes deste mundo?
— Admito que o tenha feito — disse Skarn dubiamente. — Não tinha
pensado nessa hipótese.
— Tudo o resto está preparado?
— Totalmente preparado. Só temos de ligar o interruptor ativador do
mecanismo. As estações repetidoras estão montadas e a funcionar. Logo que
a porta aceite um espécime, este é imediatamente transmitido para o Museu
Real. Fica encerrado hermeticamente num frasco para espécimes antes de
perceber o que aconteceu e acaba-se tudo.
Então o nosso único problema será adaptar a porta ao espécime.
Manuseando desajeitadamente um isqueiro, Skarn pegou num maço de
cigarros e acendeu um. Inalou profundamente, o que lhe provocou um ataque
paroxístico de tosse. Dork mirou-o com desdém, mas Skarn não lhe ligou
nenhuma. Achou abominável o sabor do cigarro e aflitivo o efeito causado na
garganta, mas a ideia de lançar fumaça pela boca e pelo nariz fascinava-o.
Vira um carpinteiro fazer anéis de fumo e havia decidido aprender a fazer o
mesmo. Tinha de aprender, mesmo que tivesse de levar uma certa quantidade
daqueles estranhos objetos para a Universidade Real e passar o resto da sua
vida a praticar.
— Eu não sei se a porta terá de ser adaptada — disse. — Só admiti essa
possibilidade. Temos de a expor a um grande número destas criaturas e
estudar as reações dos instrumentos. Se as reações forem normais, podemos
continuar. Se o não forem, talvez nos ocorra quais terão de ser as adaptações
necessárias.
Dork sorriu com desdém.
— E estas criaturas vão-se-nos apresentar voluntariamente para serem
estudadas! Basta enviar-lhes um convite para elas aí aparecerem e formarem
uma fila junto à porta!
— Sim, é isso mais ou menos — concordou Skarn. — Basta-nos
anunciar a realização de uma estranha cerimónia a que estes indígenas daqui
chamam «casa aberta». Parece tratar-se de um costume bem enraizado.
Suponho que uma grande quantidade de indígenas responderá ao convite
entusiasticamente.
— Penso que não custa nada tentar — disse Dork relutantemente.
Toda a população de Centertown e dos campos em redor compareceu à
casa aberta de Jonathan Skarn. A colina arborizada estava repleta de carros, a
estrada pejada de carros estacionados e a polícia estadual foi obrigada a pedir
reforços para manter a fluidez do tráfego.
Jonathan Skarn, como velho cavalheiro excêntrico que era, postou-se
no pátio da frente, onde cumprimentou afetuosamente todos os visitantes,
dizendo-lhes que entrassem e se pusessem à vontade. Estes assim o fizeram e,
após um assalto voraz às mesas carregadas de refrescos, espalharam-se pela
casa.
Embora a função tivesse de ser classificada como um estrondoso êxito
social, os hóspedes, sem exceção, partiram decepcionados. A porta para o
andar de cima estava fechada à chave. O quarto das arrumações e a casa de
banho não eram mais, bem-feitas as contas, do que um simples quarto de
arrumações e do que uma simples casa de banho. A sala de estar, apesar da
sua dimensão inabitual e das mobílias caras, não era nada que merecesse
qualquer comentário especial, como bem notara um brilhante aluno do liceu.
Dado que o exótico Skarn permanecia lá fora, e visto que os criados
estavam muito ocupados no abastecimento das mesas de refrescos — sem
contudo se esquecerem de manter fechada à chave a porta do andar de cima
—, os hóspedes bisbilhotavam todos os pormenores daqueles estranhos e
vazios armários, mostravam-se maravilhados com as espessas portas e
apinhavam-se em torno da porta do centro, que se parecia exatamente com as
outras, mas que se recusava a abrir-se.
Lá em cima, no laboratório, Dork observava com enfado as suas
momices num visor e mirava atentamente os instrumentos; no final do dia
anunciou a Skarn que já tinham recolhido dados suficientes.
O último convidado havia já partido, os criados tinham reposto uma
certa ordem na casa e regressavam fatigados às suas próprias casas. Skarn e
Dork descansavam em tamboretes no laboratório e estudavam as informações
que passavam lentamente por um vídeo instalado na parede.
— Estas criaturas pouco mais são que animais — desabafou Dork. —
Mas era isto precisamente o que eu esperava encontrar. Repare nas suas
horríveis manchas de cabelo, nos seus cheiros e no facto de eles se matarem
por vezes uns aos outros, individual ou coletivamente. Eles odeiam, são
dominados pela ganância e pelo ciúme, e eu diria mesmo que lhes falta por
completo a sabedoria. Acima de tudo, são lascivos e sensuais. Enojam-me,
todos, sem exceção! Não encontrei uma única criatura de valor em todo o lote
que examinei.
Skarn estava a tentar fumar um cigarro. A sua natural coloração
azulada passara a violeta-escura e sentia-se doente. Tossiu, expelindo uma
nuvem de fumo, e olhou o cigarro cautelosamente.
— Então a nossa tarefa deveria ser simples — observou.
— Você é tão repugnante como estes indígenas — exclamou Dork. —
Porque está a fazer isso?
— É importante que compreendamos os hábitos destas criaturas —
disse Skarn complacentemente.
— Podemos sem dúvida compreendê-los sem nos degradarmos a nós
próprios!
Skarn colocou a ponta do cigarro num cinzeiro. Carregou num botão e
ela desapareceu. A engenhosidade evidente do dispositivo e a sua
simplicidade básica encantavam-no.
— Estas criaturas podem ser tudo menos simples — disse. E pegou
noutro cigarro.
— Esta manhã ensaiei a porta com os criados — afirmou Dork.
Skarn virou-se incrédulo, deixando cair o cigarro.
— Sem me consultar?
— Ela rejeitou-os. Reparei como eles tentam abri-la, uma vez por
outra, talvez pensando que a tivéssemos deixado aberta. Por isso, enquanto
eles estavam a cozinhar, ativei a porta. Ambos a experimentaram.
— Claro! — Respondeu Skarn, trocista. — Porque pensa que mandei
construir esta casa? Já lhe disse, estas criaturas são inteligentes. Isso quer
dizer que são curiosas. Nenhum deles, novo ou velho, deixaria de tentar abrir
a minha porta misteriosa se lhe fosse dada uma oportunidade. Mas quero que
isto fique bem claro: quem conduz esta missão sou eu. A porta não deve ser
ativada sem ordens minhas.
Os olhos de Dork brilharam de ódio, mas ele fez um gesto de
indiferença.
— Quanto tempo vamos ter de esperar até que se decida?
— Temos de avançar cautelosamente. Se a porta tivesse aceitado um
dos criados com o outro presente...
— Que é que isso importa? Poderemos ir-nos embora logo que
tenhamos encontrado um espécime! Não deixaremos nada que revele a nossa
origem!
— Não — replicou Skarn. — Não devemos atrair qualquer suspeita
para nós próprios. Não deve haver nenhuma testemunha quando a porta
aceitar um espécime. E depois disso teremos de aguardar um certo tempo
para que a nossa partida não seja relacionada com a desaparição. Estas
criaturas poderão um dia aprender a transmitir-se. Não devemos deixar-lhes a
impressão de que têm inimigos noutros mundos. Trata-se de ordens rigorosas
de Sua Alteza Imperial.
— Então que é que propõe que se faça?
Skarn abriu a secretária e retirou uma enorme pilha de papéis. Atirou-a
para o chão, empilhou-a de novo quando ela se desmoronou e voltou a sentar-
se, olhando-a com ar de cansado.
— Descobri uma organização que funciona de uma maneira muito
peculiar e que se chama agência de detetives. Está a fornecer-me relatórios
pormenorizados sobre estas criaturas. Só precisamos de estudar os relatórios
um por um e perguntarmo-nos se o indivíduo de que ele se ocupa é humilde,
se é prudente e sábio, se é chefe de família, etc. Escolheremos os que nos
parecerem mais adequados e convidá-los-emos, um a um, a visitar-nos. A sua
curiosidade impeli-los-á a experimentarem a porta. Esta aceitará sem dúvida
um deles. Depois de um conveniente período de espera para afastar de nós as
suspeitas, poderemos abandonar esta moradia e partir.
— Está bem arquitetado — condescendeu Dork com um certo despeito.
— E acrescentou: — Mas que tremenda chatice que é ter de capturar um
espécime para o velho Kegor!

***

Os instrumentos de controlo da porta com os quais Skarn e Dork


estavam familiarizados reagiram normalmente aos hóspedes da cerimónia da
casa aberta. Aqueles com os quais eles não estavam familiarizados reagiram
também, mas eles não sabiam se a reação era normal ou não. Ensaiaram a
rede de repetidores de transmissão enviando através dela um cão vadio, um
gato e uma variedade de criaturas vivas que Skarn obteve de um agricultor
vizinho.
O diretor do Museu Real respondeu imediatamente: «Todos os
espécimes recebidos em estado impecável e já em exposição. Sua Majestade
Imperial muito satisfeita. Mas... Que é feito do espécime da criatura
inteligente?»
Skarn informou o diretor de que não teria de esperar muito por ele.
Fechou a porta e ligou uma pequena placa de metal onde se lia «Empurrar».
Ativou-a e postou-se nas imediações, escutando o ronronar quase
imperceptível dos instrumentos. Testou ele próprio a porta com cautela e
verificou que ela não abria. Tudo estava a postos.
Passou horas a fio ao lado de Dork investigando minuciosamente a
pilha de relatórios. Três quartos dos cidadãos foram eliminados
imediatamente, proporção que, na opinião de Skarn, era muito abonatória
para os indígenas. A quarta parte restante foi por eles estudada, comparada e
sujeita a debate. Acabaram por reduzir a lista a cem nomes, depois a
cinquenta e finalmente a dez. Confrontaram conscienciosamente cada um dos
dez com os princípios do Grande Kom e por fim ficaram com quatro nomes.
— Não considero que isto tivesse sido necessário — comentou Dork.
— Mas — acrescentou — talvez tenha razão. Talvez seja este o método mais
eficiente. Não duvido de que a porta aceite qualquer destes espécimes.
Skarn acenou afirmativamente com a cabeça e baralhou os relatórios
entre si. Estava a aprender a fumar cachimbo e o esforço já lhe havia custado
a perda de cinco dentes. Os dentes novos ainda não tinham tido tempo de
crescer, pelo que as gengivas lhe doíam ao embocar penosamente o
cachimbo. Sempre que usava a mão para segurar o fornilho, queimava-se.
Mordeu o tubo com força, estremeceu de dor e retirou-o da boca. O anel de
fumo que tentava fazer desde há tempos brotou por entre uma turbulenta
nuvem de fumo.
Voltou a ler os quatro relatórios. O digníssimo presidente da Câmara de
Centertown, Ernest Schwartz. Casado. Ele e a mulher odiavam-se com
devoção... Não tinha filhos nem família dele dependente. Corriam muitos
rumores a seu respeito em Centertown e arredores. Dizia-se que era
mentiroso e ladrão. Para enriquecer traíra repetidamente a confiança que o
patrão nele depositava. Traíra também os amigos. Era ganancioso e perverso
e não sentia afeição por ninguém. No dizer impregnado de rusticidade dos
indígenas, tivera várias ligações amorosas com as mulheres dos seus amigos
e empurrara a própria mulher para uma ligação dessas para obter vantagens
políticas. Parecia enfeitiçar os eleitores no período de eleições.
Skarn franziu o sobrolho. Período de eleições? Tinha de investigar o
que significava aquilo. Fosse o que fosse, enfeitiçar os eleitores parecia-lhe
ser uma coisa imoral.
Passou ao relatório seguinte. Sam White, chefe da polícia de
Centertown. Solteiro, sem parentes conhecidos. Conseguia conservar o seu
cargo, dizia-se, por cooperar nos esquemas desonestos do presidente da
Câmara. Alguns dos polícias sob as suas ordens consideravam-no um
mesquinho tirano. Era perito em obter confissões e fora acusado, já por várias
vezes, de brutalidade contra os presos.
Jim Adams, o bêbedo de Centertown. Nunca trabalhara, vivia à custa
dos magros proventos da mulher e batia nela e na família sem piedade,
estivesse bêbedo ou sóbrio. Tecnicamente era chefe de família, mas na
realidade aquela família passaria muito melhor sem ele.
Elmer Harley, um mecânico trapaceiro. Bom mecânico, dizia-se, mas
só quando lhe apetecia. Havia sido condenado e preso devido à prática de
vários crimes. A polícia de Terre Haute emitira contra ele uma ordem de
expulsão permanente. Centertown tolerava-o com dificuldade. Não tinha
família nem amigos. Trabalhava quando podia, se lhe dava para isso, em
qualquer das duas garagens da cidade. Um dos garagistas, dizia-se, gostava
dele devido ao seu jeito para sobrecarregar as faturas das reparações. Este
garagista teria ficado em lugar cimeiro na lista de Skarn, não fosse o facto
comprovado de ele amar a mulher e os filhos.
— Quando começamos? — Perguntou Dork.
Skarn tirou o cachimbo dos lábios e fez outra tentativa frustrada para
fazer um anel de fumo.
— Amanhã. Vou convidar este tal presidente Schwartz para jantar
comigo.

***

O digníssimo Ernest Schwartz entrou na enorme sala de estar de Skarn


com o ar de quem se sente perfeitamente integrado. Homem de grande
estatura, caloroso, robusto, com cabelos de um preto brilhante apesar dos
seus sessenta anos, a sua voz e a sua risada estridentes pareciam conjurar
ecos artificiais como se algumas reminiscências da cerimónia da casa aberta
ali tivessem ficado inertes por trás dos móveis esperando apenas a invocação
de um clarim. O presidente tinha voz para isso. Enquanto Skarn depositava o
seu casaco, chapéu e bengala num dos armários, os elogios que Schwartz
fazia à casa enchiam a sala de estar e despertavam aos safanões cada um dos
sonolentos ecos.
Skarn voltou-se, esfregando com ar ausente as orelhas, e olhou para o
presidente de modo estranho. Estava a vê-lo, não como o digníssimo
presidente da Câmara de Centertown, mas como um espécime encerrado em
plástico hermético no Museu Real. Estava a vê-lo como uma de entre uma
longa série de monstruosidades metidas em frascos que as naves de patrulha
de Sua Majestade Imperial tinham enviado para lá a partir de uma multidão
de planetas. Estava a ver Sua Majestade Imperial em pessoa tagarelando com
prazer e a conduzir por entre as vitrinas um grupo de barulhentos dignitários
de visita ao Museu, parando para apontar para o ridículo cabelo preto do
presidente Schwartz, para o seu presunçoso bigodinho, para a sua roupa
garrida, para os rutilantes botões de punho e para a corrente de ouro que
pendia dos bolsos do seu colete.
Aquilo não lhe soava bem. Embora fosse um alienígena, Skarn
apercebia-se do encanto pessoal do homem. Apercebia-se de que ele era
amistoso e obviamente inteligente.
Skarn encolheu os ombros. Não lhe competia a si decidir, mas sim à
porta.
— Desculpe-me — disse. — Não gosto de receber visitas com os
criados aqui à volta. Eu próprio trarei a comida. Esteja à sua vontade...
— Muito bem — proferiu Schwartz em voz bem-soante. — Posso fazer
alguma coisa para o ajudar?
— Não, muito obrigado. Eu cá me arranjo.
Skarn foi ter com Dork ao laboratório e os dois puseram-se a observar
Schwartz através do visor. Dork rejubilava.
— Mas que espécime ele vai dar! — Disse, exultante. — É um grande
espécime. Acha que o frasco de espécimes chegará para o conter?
— Para aquela coisa a que eles chamam vitelas, chegou — respondeu
Skarn.
Schwartz tinha-se sentado, mas a luz refletida a partir da chapa que
havia na porta chamou a sua atenção. Pôs-se calmamente de pé, atravessou a
sala e leu o que ali estava escrito. A chapa explicava como se devia empurrar.
Ele assim fez, mas a porta resistiu firmemente.
Dork explodiu numa série de pragas huzzianas.
— Porquê? Porquê isto? Não há nos nossos arquivos nenhuma criatura
melhor adequada do que esta!
Skarn comentou pensativamente:
— Pelo menos assim parecia. Se calhar cometemos algum erro.
Talvez eu possa descobrir o que foi. Se você não se importar de tomar
algumas notas...
— Importo-me, pois! Ele berra quando fala! Mesmo com o volume no
mínimo, faz-me dores de cabeça. Vou mas é para a cama...
Skarn empurrou um carrinho de chá até à sala de estar. O presidente
pôs-se apressadamente de pé e ajudou-o a colocar os pratos na mesa. Depois,
ocuparam ambos os seus lugares e Skarn serviu os cocktails.
O presidente elevou a sua taça e disse muito seriamente:
— Faço votos por que a sua estada em Centertown seja prolongada e
feliz!
— Muito obrigado — disse Skarn, sentindo-se estranhamente
comovido.
O presidente cheirou a comida com ar esfomeado quando Skarn
destapou os pratos e, com um sorriso malicioso, declarou:
— Tenho uma confissão a fazer. A razão por que acedi imediatamente
a este convite foi o ter sabido que o senhor havia contratado Lucy Morgan
para sua cozinheira.
Mostrando indiferença, Skarn respondeu:
— Bem, ela parece de facto uma pessoa capaz.
A gastronomia indígena parecia-lhe tão estranha que tinha de medir a
competência da cozinheira em termos de maior ou menor indigestão.
— Mas ela é maravilhosa! — Exclamou o presidente. — Em tempos
trabalhou para mim.
— Ah, sim? Mas se gosta da comida que ela faz porque não a
conservou ao seu serviço?
O presidente pôs um cenho carregado.
— As mulheres às vezes aparecem com manias. Isso já se passou há
alguns anos. Lucy tinha pouco mais de vinte anos e a minha mulher não
acreditava que o que me interessava eram só os seus cozinhados. O senhor é
casado?
— Neste momento não — respondeu Skarn cautelosamente.
O presidente meneou a cabeça e serviu-se de bife. Entre as garfadas
concentrava-se na comida e falava pouco. Quando o fazia era para dizer
qualquer coisa sobre Centertown. Skarn comia pouco e tentava mostrar-se
interessado na conversa.
— Estou a gostar de estar aqui — disse o presidente de súbito. — É
raro ter uma noite tranquila. O tempo do presidente da Câmara pertence a
todos os munícipes, seja de dia ou de noite. Tenho de ouvir queixas sobre os
impostos ou sobre o serviço de recolha de lixo ou acerca de um buraco nas
ruas ou acerca de qualquer outra coisa. De cada vez que sou eleito juro que
será a última. Mas aqui estou eu, ao serviço da Câmara dez vezes
consecutivas e provavelmente disposto a fazê-lo até morrer. A menos que os
eleitores decidam pôr-me na rua!
— Pô-lo na... — Skarn fez uma pausa. — Estou a ver. Estava a
exprimir-se simbolicamente. Eu não entendo essas vossas eleições. Na minha
terra não temos disso.
— Eu já suspeitava de que o senhor fosse um desses refugiados a que
nos vamos acostumando. Bem; para nós é simples, mas admito que na
realidade o não seja. Dois ou três homens candidatam-se ao cargo de
presidente da Câmara e as pessoas fazem a sua escolha votando. Aquele que
reunir mais votos é o eleito e permanece no cargo durante dois anos. Ao fim
deste período há novas eleições e os candidatos derrotados fazem nova
tentativa. Também podem aparecer novos candidatos. Em resumo, o que
acontece é que o povo decide quem vai conduzir as coisas. Pelo menos
aquela parte do povo que se deu ao trabalho de ir votar.
— O voto não é obrigatório?
— Não. É completamente voluntário. Por vezes há muitas abstenções.
Skarn reagiu a esta informação franzindo o sobrolho.
— Não seria mais simples que o vosso... Diretor de Missões
Vocacionais designasse um presidente? — Interrogou ele após uma breve
hesitação para procurar a expressão mais adequada.
— Está a pensar numa espécie de gestor da cidade... — Disse o
presidente. — Nalgumas localidades têm um funcionário desses, mas
geralmente é o conselho citadino que o nomeia. Normalmente, nessas terras
há também presidentes.
Skarn torceu-se desconfortavelmente e tentou de novo.
— O vosso diretor de Missões Vocacionais...
— Não temos nenhum cargo desse género.
— Então quem é que decide as vocações das pessoas?
— Ninguém. As pessoas trabalham naquilo que querem, se puderem, e
se não puderem, trabalham naquilo que aparecer. Não é como nos países da
Cortina de Ferro. Se um homem não gosta do seu emprego ou do seu patrão
ou se puder arranjar qualquer coisa melhor, vai-se embora. As pessoas aqui é
que governam. Às vezes atiram-lhes poeira para os olhos, mas não por muito
tempo.
— E... O senhor vai ser presidente até morrer?
— Penso que é isso que vai acontecer, a menos que o povo me ponha
na rua.
— E quando é que vai morrer?
O presidente estremeceu.
— Por amor de Deus!
Desfez-se em gargalhadas, emitindo grandes e ecoantes ondas sonoras,
até que teve de fazer um esforço para respirar.
— Como posso eu saber? Posso ser atingido por um carro no meu
trajeto para casa ou cair morto por comer de mais. Ou então posso viver até
aos cem anos! Mas que pergunta!
Skarn inclinou-se para trás para fitar o presidente. As ideias
tumultuavam-lhe o cérebro tão intensamente que tinha dificuldade em
apanhá-las e os pensamentos atordoavam-no.
— Eu subi na vida pelo caminho mais difícil — disse o presidente. —
Ganhei dinheiro honestamente e honestamente entrei na política. Tenho
mantido as minhas mãos tão limpas quanto isso é possível a um político. A
maior parte das pessoas sabe isso, e é por essa razão que elas votam em mim.
Trata-se de pequena política. Não sou mais do que um sapo grande num
pequeno charco, mas gosto das coisas como elas se apresentam. Conheço
toda a gente pessoalmente e toda a gente me conhece. De cada vez que nasce
um bebé fico com um novo patrão. Fico tão feliz como os seus orgulhosos
pais. Não aceitaria que as coisas se passassem de outra maneira. Mas a
política é um negócio sujo. Algumas pessoas tinham tudo a seu jeito nesta
cidade antes de eu ser eleito e agora gostariam que tudo voltasse a ser como
era. Aprenderam todos os truques pelos livros e alguns deles tão baixos que
nenhum livro por mau que fosse os incluiria nas suas páginas. Espalharam as
mais caluniosas mentiras a meu respeito, e a minha mulher recusa-se a aceitar
esse facto. Éramos um casal feliz antes de eu ser eleito para presidente, mas
agora... Penso que tudo o que um homem conquista tem o seu preço.
Contudo, se tivesse de passar por tudo outra vez, não sei o que faria.
Subitamente, Skarn sorriu.
— Vou dizer-lhe uma coisa. Tenho um livro sobre o sistema americano
de governo que mandarei entregar-lhe. Esse livro explica as coisas muito
melhor do que eu o poderia jamais fazer.
— Teria muito gosto nisso, teria mesmo muito gosto nisso —
respondeu Skarn.

***

O chefe da polícia, Sam White, chegou a pé para almoçar com Skarn.


Alto, esguio e com uma certa dignidade de porte. Sam White falava com voz
suave e, se bem que os seus olhos tivessem uma expressão dura e inquisitiva,
não deixavam de ser amistosos. Com base no relatório a seu respeito, Skarn
havia-o imaginado metido numa horrível masmorra a chicotear furiosamente
os seus presos. O chefe da polícia, porém, não aparentava enquadrar-se bem
naquela imagem dele. Uma cabeleira grisalho-prateada coroava uma face
enrugada e simpática. Havia amabilidade no seu aperto de mão, nos seus
modos, na sua voz. Skarn começou a imaginá-lo noutro contexto — num
frasco hermético para espécimes — e sentiu-se incomodado.
Deixou-o sozinho na sala de estar e juntou-se a Dork para o observar
ansiosamente a partir do laboratório.
O chefe da polícia chocou-os profundamente. Com efeito, sentou-se e
esperou tranquilamente, sem sequer dar uma olhadela na direção da
misteriosa porta. Mais tarde, Skarn induziu-o a fazer a tentativa ao pedir-lhe
ajuda para a abrir. A porta ignorou-o.
Após o almoço sentaram-se no sofá a conversar e a fumar, o chefe a
descrever os seus vários passatempos com um humor seco e Skarn a escutar
com toda a atenção. Alguma vez Skarn tinha pescado ou caçado? Perguntou a
certa altura Sam White.
— Da próxima vez que sair da cidade levá-lo-ei comigo — disse o
chefe. — Se estiver interessado, é claro! — Skarn respondeu que sim, que
estava interessado. — Alguma vez jogou xadrez? — Skarn disse que não
conhecia esse jogo. — Apareça quando for à cidade! Geralmente o ambiente
é muito calmo à volta da esquadra da polícia de uma cidade como esta. Tenho
muito gosto em ensiná-lo a jogar!
O chefe fez um anel de fumo atravessar a sala e Skarn seguiu-o com a
vista cobiçosamente. O seu próprio esforço para conseguir aquela habilidade
não passava de uma estrondosa catástrofe.
Quando Skarn parou de tossir, o chefe disse delicadamente:
— O senhor faz isso mal. Não se consegue fazer um anel de fumo
soprando. Tem de o fazer com a boca. Veja!
Skarn observou atentamente, fez um esforço, mas falhou
redondamente.
— Tente outra vez — sugeriu o chefe.
Skarn tentou. A sua décima tentativa produziu um bem explícito anel
de fumo, o qual, embora vacilante, oblíquo e de curta duração, era, apesar de
tudo, um anel. Skarn olhou-o com prazer.
— Continue a praticar — disse o chefe. — Com um pouco de prática
tornar-se-á um perito.
— É o que vou fazer — prometeu Skarn fervorosamente, sentindo-se
para sempre devedor de um favor perante ele.
Algum tempo depois, Dork investiu irritado pelo laboratório dentro,
enquanto Skarn estudava de novo os relatórios.
— A agência de detetives está errada — declarou Skarn. — Os homens
que aqui estiveram não são más pessoas.
— São más — disse Dork —, mas são importantes. Têm posições de
responsabilidade. A porta pode estar a levar isso em conta.
— Certo.
— Os outros dois não têm qualquer importância.
— Certo.
— Então continuemos. Só precisamos de um espécime.
Jim Adams chegou cedo naquela noite. Vestia o seu melhor — ou o seu
único— fato de cerimónia, uma vestimenta andrajosa e coçada que assentava
à larga sobre a sua figura esguia, mas tinha-se esquecido de fazer a barba.
Estendeu a mão trémula a Skarn e depois, fixando nele um olhar de pessoa
desesperadamente condenada, lamuriou-se:
— Preciso de uma bebida. Ainda hoje não bebi. Oferece-me uma
bebida?
Skarn deu-lhe umas pancadinhas suaves nas costas.
— Claro. Pode tomar todas as bebidas que quiser!
Dizendo isto acompanhou aquela figura franzina e cambaleante através
da sala de estar.
— Eu costumo guardá-las aqui, neste armário central. Sirva-se
enquanto vou buscar a comida.
Adams empurrou a porta, bateu nela, arremessou o seu escasso peso
contra ela, guinchou, pontapeou e esgatanhou até que finalmente se atirou
para o chão a soluçar desalmadamente. A repugnância de Skarn e de Dork
transformou-se repentinamente em incredulidade. A porta rejeitava-o!
Skarn regressou com a comida e uma variedade de bebidas alcoólicas e
Adams comeu pouco e bebeu muito. Bebeu até tresandar a álcool e caiu de
bêbedo. Skarn examinou hesitantemente o seu corpo inconsciente e acabou
por ficar suficientemente alarmado para chamar Sam White.
— Tenho aqui comigo o Jim Adams para jantar — disse — e...
O chefe riu-se entre dentes.
— Não diga mais! Vou mandar aí alguém recolhê-lo.
Um agente da polícia arrastou o corpo inerte de Adams para fora de
casa e Skarn ficou simultaneamente aliviado e intrigado.
— E como é que agora explica o facto de a porta não ter aceite este
homem? — Perguntou Dork.
— Não sei explicar — ripostou Skarn. — Não consigo encontrar
qualquer explicação.

***

Elmer Harley chegou com uma disposição conflituosa, batendo


indelicadamente à porta, não correspondendo à mão estendida de Skarn e
fazendo ouvidos de mercador ao seu convite para entrar.
— Não se importa de me dizer porque me convidou a vir cá?
— Estou a travar conhecimento com alguns dos habitantes de
Centertown — respondeu Skarn pouco à vontade. — Espero que o convite
não o tenha ofendido.
Harley encolheu os ombros e apertou-lhe a mão.
— Estava só admirado. Ouvi dizer que teve aqui consigo Jim Adams e
que o deixou emborcar até ficar bêbedo que nem um cacho!
— Sim, mas...
— E antes disso recebeu o presidente da Câmara e Sam White?
— Sim.
— E agora eu. Não faz muito sentido...
— Que é que na vida faz sentido?
Harley pôs um sorriso amarelo.
— Agora é que disse toda a verdade! — Comentou amargamente.
Seguiu Skarn até à sala de estar.
— Vou buscar a comida — anunciou Skarn. — As bebidas estão no
armário do meio. Tome a que lhe agradar mais.
Um momento depois, observando do laboratório, Skarn e Dork viram-
no empurrar uma vez a porta com força e dirigir-se a seguir para um sofá,
onde se sentou.
Dork saltou disparado em direção ao seu quarto e Skarn voltou para a
sala de estar com o carrinho de chá.
— A porta está fechada — disse Harley.
— Ela não tem fechadura, mas deve estar perra — respondeu Skarn. —
Ultimamente tem-me dado problemas.
Harley pôs-se de pé num salto.
— Ah, sim? Vou passar uma vista de olhos por ela.
Tentou então forçar a porta com o ombro. Momentos depois recuou,
com a face vermelha e respirando com dificuldade.
— Está mesmo perra! Se tiver aí alguma ferramenta verei o que posso
fazer.
— Não é assim tão importante! — Disse Skarn.
Harley passou ao armário seguinte. Empurrou a grossa porta para
dentro e espreitou com admiração as dobradiças.
— É realmente engenhoso. Deixa correr a porta para trás e depois é que
abre. Nunca vi nada assim. A outra também está segura como esta?
— Está, sim — exclamou Skarn.
Harley moveu a porta lentamente, observando a ação das dobradiças.
— É realmente engenhoso — repetiu. — Não vejo como é que se
poderia ter avariado. Foi o senhor quem fez isto?
Skarn manteve um silêncio de atrapalhação.
— Devia registar a patente. Podem vir a dar-lhe dinheiro!
— A nossa comida está a arrefecer — disse Skarn.
— Não estou a brincar. Os cofres e os frigoríficos, bem como outras
coisas assim, com portas grossas, podiam usar dobradiças destas. Se eu fosse
a si patenteava-as.
— Obrigado pela sugestão. Levá-la-ei em conta.
Harley comeu com apetite, aceitando servir-se duas e até três vezes.
Depois sossegou e começou a falar de automóveis. Skarn escutava
atentamente e conseguiu fazer um ou outro anel de fumo.
Harley sabia de automóveis e discorria sobre eles em conjunto e um a
um, sabia quais eram os seus pontos fortes e fracos, os seus valores de troca,
a sua economia ou falta dela e onde se avariavam mais facilmente e porquê.
— Quando quiser comprar um carro pergunte-me. Posso evitar que faça
má escolha com um carro novo ou, se se tratar de um carro usado, dizer-lhe
se a compra vale o dinheiro.
— Não me esquecerei disso — prometeu Skarn. — Ouvi dizer que
você é um excelente mecânico.
— Cá me arranjo.
— Com tantos automóveis para consertar, um bom mecânico devia
viver bem.
— Em Centertown, não — disse Harley amargamente. — A menos que
estejamos dispostos a entrar no jogo dos vigaristas que mandam nas
garagens.
Skarn estudava-o perplexo. Estava perante um homem musculoso, de
altura mediana. O fato que vestia estava gasto, mas tinha sido passado a ferro
havia pouco tempo. O cabelo era preto e apresentava-se bem aparado. A fina
cicatriz que lhe sulcava em curva a bochecha esquerda era bem visível, mas
não o desfigurava. Estava bem barbeado e tinha um aspecto respeitável.
Skarn tinha dificuldade em ver nele o homem que o relatório descrevia.
Nem conseguia vê-lo num frasco de espécimes.
— Se lhe fosse permitido recomeçar a sua vida — perguntou — havia
alguma coisa que desejasse fazer de modo diferente?
Harley sorriu, pensativo.
— Poucas coisas eu não faria de modo diferente.
— Por exemplo?
— Eu roubei alguns patrões com quem trabalhei, quando era rapaz.
Pouca massa, mas ainda roubei durante algum tempo. Agora, quando
qualquer coisa acontece, a polícia vem logo prender-me. Ex-condenado,
percebe? Não consigo arranjar um emprego decente. Não devia ter voltado
para Centertown, mas a minha mãe estava aqui e como eu acabara de sair da
penitenciária não conseguia arranjar-lhe casa noutro lado. Ela morreu há
quatro anos e eu ainda para aqui estou, levando uma vida rotineira.

***

Dork tinha voltado para o laboratório. Skarn encontrou-o lá, depois de


Harley se ter ido embora, olhando com ar sombrio o panorama que se
avistava da sala de estar obscurecida.
— Eu ouvi — disse Dork.
— Ele tinha amor pela mãe, e estas criaturas consideram isso uma
virtude inexcedível.
— Talvez assim seja — ripostou Skarn.
— Convide um deles de novo — recomendou Dork fervorosamente. —
Qualquer deles. Podemos pôr a porta a funcionar no sistema manual e
empurrá-lo lá para dentro, resolvendo assim o assunto. Este planeta ficará um
lugar melhor para se habitar e no museu do velho Kegor ele terá pelo menos
algum valor ornamental, por escasso que seja. Quanto a nós, poderemos
finalmente voltar para casa.
— Não! — Disse Skarn asperamente. — Não devemos desafiar a
sabedoria do Grande Kom.
— Então que é que vamos fazer?
— Não sei. Tenho de pensar cuidadosamente no assunto. Talvez não
haja más pessoas em Centertown e tenhamos de as procurar noutro lado.
Dork levantou-se e pôs-se a passear de um lado para o outro, com o
corpo atarracado inclinado para a frente sob tensão, os olhos fuzilantes de
raiva e a face ensombrada por um tom azul violento.
— Está bem — disse ele finalmente. — Você é quem dirige isto. Mas
eu vou convidar mais criaturas destas para experimentar a porta. Não me
pode negar esse direito.
— Pois não — concordou Skarn. — Não ponho qualquer objeção a
isso, desde que convide um de cada vez. Pode servir-se dos relatórios e
convidar quem quiser.
De manhã havia uma mensagem confidencial para Skarn. Dork Diffack
havia remetido para o planeta-mãe uma queixa alarmante contra o modo
como Skarn dirigia a missão, alegando nela que Skarn estava a atrasar
deliberadamente a seleção de um espécime adequado e revelando uma
inclinação suspeita pelos costumes indígenas. O primeiro-ministro exigia
uma explicação.
Skarn respondeu com um relatório sobre a sugestão — que podia ser
classificada de traição— que Dork havia feito para que se obtivesse um
espécime mesmo sem a aprovação da porta. Depois instalou uma fechadura
mental no controlo principal, para que Dork não pudesse pôr a porta a
funcionar no sistema manual sem o seu consentimento. De momento a sua
posição era sólida, mas tinha a sensação desagradável de que o tempo jogava
contra ele. Sua Majestade Imperial não era lá muito paciente.

***

Skarn dirigiu-se a pé para Centertown e vagueou pelas lojas, fazendo


uma ou outra compra e tentando meter conversa com os empregados de
balcão. Intrigava-o que eles estivessem todos, sem exceção, obcecados com o
tempo. Era capaz de compreender que uma civilização relativamente
primitiva como aquela, que ainda não sabia controlar o clima, pudesse
encarar as condições atmosféricas com temor e frustração, mas era incapaz de
compreender por que razão cada indivíduo parecia assumir uma
responsabilidade pessoal pelo tempo que fazia dia a dia.
«Que lindo dia», costumavam eles dizer. Ou então: «Faz mesmo bom
tempo lá fora!» Ou ainda: «Que dia maravilhoso, não acha?»
Quando Skarn tentava encaminhar a conversação para outros campos
era, delicada mas firmemente, mal acolhido. Então, comprava o que tinha a
comprar e costumava perguntar:
«Conhece Jim Adams?»
«Quem não o conhece?», respondia invariavelmente o empregado,
afastando-se para atender o cliente seguinte.
«Se conheço o chefe White?», disse uma vez um engraxador. «Você
julga que sou algum criminoso?»
«Que penso do presidente da Câmara?», respondeu uma empregada de
mesa. «Tenciono votar nele. Quer outra chávena de café?»
«Porquê... Ah... Sim», disse Skarn, que o bebeu embora lhe soubesse
mal, a ponto de o enjoar.
Os indígenas que havia convidado para sua casa tinham tagarelado
entusiasmados com ele. Os que ia encontrando pela cidade eram bastante
amistosos se Skarn se lhes dirigisse- primeiro, mas quando assim não era a
sua reserva desconcertava-o. Que estaria por trás de uma diferença tão
fundamental no seu comportamento? Tratava-se sem dúvida de matéria para
profunda especulação psicológica.
Skarn comeu um almoço repugnante no drugstore e desceu depois
cautelosamente os desgastados degraus que conduziam à cave da raquítica
Câmara Municipal, onde estava localizada a esquadra da polícia. Sam White
estava sozinho na pequena sala da esquadra, com a cadeira inclinada para trás
e os pés em confortável descanso sobre o tampo da secretária.
Fez um breve aceno com a cabeça e indicou uma cadeira.
— Que é que o traz perante a lei? — Perguntou.
— Uma simples visita de carácter social — disse Skarn cortesmente.
— Esteja à sua vontade. Poucas pessoas vêm aqui sem ser para se
queixarem de alguma coisa.
— Você deve estar farto de contactar com pessoas de mau carácter,
não? — Perguntou Skarn.
— Eu não diria isso. Na realidade, não creio que haja pessoas de mau
carácter. De vez em quando damos com tipos transviados, mas nenhum deles
tão mau que não pudesse ter sido corrigido se alguém lhe tivesse dado a mão
antes que fosse tarde de mais.
— Está mesmo convicto disso?
O chefe sorriu.
— «Há tanto de bom no pior de nós e tanto de mau no melhor, que é
difícil que alguém tenha a competência necessária para falar acerca dos
outros.» Este pensamento poderia ter sido escrito por mim se o seu autor não
me tivesse ultrapassado.
— Está realmente convicto disso? — Insistiu Skarn.
— Claro que estou! Por vezes é a única coisa que me faz continuar
nesta vida.
— Apesar disso, você por vezes acha necessário usar de violência sobre
os seus presos.
O chefe White tirou os pés da secretária e bateu com eles no chão com
toda a força.
— Ninguém nesta esquadra usa de violência sobre quem quer que seja!
— Mas eu ouvi...
— Claro que ouviu. Ouvem-se coisas dessas sobre a polícia em
qualquer parte do Mundo. É o último reduto defensivo a que os vigaristas se
agarram. Apanham-se em flagrante e a única escapadela que lhes resta é
culparem a polícia de qualquer coisa. Temos de ser extremamente cuidadosos
para impedir que eles levem a sua avante por esse processo.
— Estou a ver — disse Skarn mansamente.
O chefe voltou a pôr os pés na secretária e Skarn acendeu um cigarro,
logo soprando um anel de fumo que esvoaçou através da sala. O chefe
assobiou em sinal de aprovação.
— Acertou mesmo em cheio! Que é que eu lhe disse?
— A sua previsão saiu mesmo certa!
— Vou fazer outra previsão. Penso que você vai gostar do xadrez. Quer
aprender?
Enquanto o chefe tirava para fora o tabuleiro e nele arrumava as peças
de formato esquisito, Skarn observava tudo com curiosidade.
— Isto é um bispo — disse o chefe, segurando numa peça preta.
Skarn procurou uma peça branca de formato igual e disse:
— Então este deve ser o papa, não?
O chefe abriu os braços e soltou uma gargalhada. Skarn riu com ele,
sem saber por que ambos se riam.
Já era lusco-fusco quando Skarn tomou a pé o caminho de casa,
subindo a colina lentamente. Dork estava a conversar com uma convidada
quando ele chegou. Conseguiu subir as escadas sem se tornar notado e ativou
o visor da sala de estar. Durante os seus próprios testes evitara
cuidadosamente as mulheres indígenas. A sua psicologia parecia-lhe
extremamente mais complexa que a dos homens e as suas motivações
estavam envoltas numa obscuridade misteriosa.
Após um breve diálogo, Dork deu dinheiro ao seu espécime feminino,
que então caminhou resolutamente para a porta, dando-lhe um encontrão.
Não conseguiu abri-la. Seguiu-se uma discussão violenta, tendo ela atirado
com o dinheiro para cima de Dork e saído pela porta fora.
Dork não falou no incidente e Skarn também não lhe fez qualquer
pergunta sobre ele.

***

Na manhã seguinte, quando Skarn chegou a Centertown, as lojas ainda


não estavam abertas. Deu uma volta pela principal rua comercial da cidade e
estava surpreendido com o elevado número de caras conhecidas que ia
encontrando. Jim Adams jazia estendido defronte do Bar Central, e quando
Skarn passou por ele pela segunda vez olhou-o hesitantemente e passou uma
mão trémula pelos olhos.
— Oh, é o senhor — balbuciou ele.
— Está uma linda manhã, não está? — Skarn achou que ele entrava no
estilo local de conversação com uma facilidade desconcertante. — Isto vai
abrir dentro de minutos. Posso oferecer-lhe uma bebida?
Adams não respondeu. Eles os dois eram os primeiros clientes e Skarn
entrou atrás de Adams, pagou a bebida que encomendou e ficou a observar o
outro enquanto ele bebia sofregamente.
— Quer outra? — Sugeriu Skarn.
Adams limpou a boca com as costas da mão e fitou-o impassível. Skarn
acenou para o empregado do bar, que veio encher o copo novamente.
Curvado sobre o balcão, Adams olhou para o copo com humildade. De súbito
agarrou nele com raiva e atirou o conteúdo contra a cara de Skarn.
— Já me estou a matar com rapidez de sobra — disse amargamente. —
Não preciso da sua ajuda.
Skarn aceitou um guardanapo de papel que o empregado do bar lhe
estendeu e limpou a cara
— Vamo-nos sentar — disse. — Gostaria de outra coisa? Talvez
comida?
Levou Adams para um recanto reservado e este disse, incrédulo:
— Você não está zangado comigo?
— Eu penso que você é um homem muito doente — ripostou Skarn.
Adams enterrou a cara nos braços e pôs-se a soluçar.
— Quando não estou bêbedo, sou um ser desprezível porque só penso
em embebedar-me. E quando estou bêbedo sou uma peste.
— Não há nada que você possa fazer para sair disso?
— Nesta cidade de saloios? Nas grandes cidades há as ligas dos
alcoólicos anónimos e coisas assim, mas aqui não há nada. O Dr. Winslow
diz-me para ir para o hospital para me curar, mas isso custa dinheiro e eu não
o tenho. Nunca o terei enquanto não me curar e não me poderei curar
enquanto não o tiver. Por isso me embebedo até cair de morto. Quem é que se
importa com isso?
Skarn pôs-se de pé e agarrou firmemente no braço de Adams.
— Vamos falar com esse Dr. Winslow — disse ele.
O Dr. Winslow fez uma série de chamadas telefónicas interurbanas e
esforçou-se arduamente por explicar as despesas hospitalares em termos que
Skarn pudesse compreender. Deu umas palmadinhas nas costas de Adams e
despediu-se de Skarn com um aperto de mão. Ao meio-dia Skarn estava na
estação de caminho-de-ferro cuidando de que Adams, um tanto perplexo,
embarcasse no comboio que o havia de levar a um hospital.
Lá estava também a Sra. Adams, uma mulher franzina de tez pálida,
acompanhada pelos sete filhos do casal. A pobre senhora pôs-se de joelhos
perante Skarn e agarrou-se às suas pernas banhada em lágrimas. Skarn
levantou-a delicadamente.
— Pronto — disse Skarn. — Jim vai voltar curado, não é, Jim?
— É, pois — prometeu Adams.
— Ele tem sido um doente, mas vai ficar bom. E nessa altura
acabaram-se as preocupações.
— Deus o abençoe — soluçou a Sra. Adams.
Skarn deu-lhe umas pancadinhas desajeitadas num ombro.
— Se precisar de alguma coisa entretanto, não hesite em telefonar-me
— disse espontaneamente.
Logo que o comboio partiu, Skarn dirigiu-se ao banco de Centertown e
deu instruções para que fosse pago um subsídio semanal à família Adams. Ao
sair do banco deu com o chefe da polícia, Sam White.
White apertou a mão de Skarn com tanta força que lhe causou uma
certa dor.
— Já me contaram o que você acaba de fazer — disse.
Desceram lado a lado a rua principal. O presidente do banco encontrou-
os e parou para cumprimentar Skarn. Caras conhecidas e desconhecidas
passavam sorrindo e fazendo comentários agradáveis. Num dos quarteirões
por que passaram foram oferecer a Skarn cinco cervejas, três jantares e a
filiação numa sociedade fraterna.
— Que é que aconteceu? — Perguntou ele um tanto confuso.
White sorriu ironicamente.
— Numa cidade deste tamanho as notícias sabem-se depressa. Jim
Adams tem sido uma espécie de problema citadino desde há anos. Todos se
sentiam responsáveis por ele, mas ninguém sabia o que fazer. Você resolveu
o problema de uma assentada. Foi isso o que aconteceu.
Pararam em frente da Câmara Municipal e White deu um novo aperto
de mão a Skarn.
— Estas pequenas cidades são lugares curiosos — disse. — Uma
pessoa pode vir de fora e viver aqui anos a fio sem nunca passar no exame.
Às vezes, porém... Bom, quer você goste ou não disso, já é um de nós.
O presidente Schwartz, respirando com dificuldade, acercou-se deles
penosamente.
— Venho a ver se vos apanho desde há um quarteirão — exclamou
ofegante. — Não me ouviram chamar?
— Não, não ouvi — respondeu Skarn. — Peço desculpa se...
— Falaram-me do que você fez por Jim Adams! Estou cá a pensar
porque é que não nos lembrámos de fazer o mesmo há anos atrás. Escute:
temos uma vaga na comissão de planeamento e penso que você é justamente
a pessoa indicada. Já falei com os vereadores, e se você estiver de acordo
oficializaremos o assunto na reunião desta noite.
— Desculpe, mas não estou a perceber — confessou Skarn.
— Não é nada complicado. A comissão reúne-se uma vez por mês e
pouco mais faz do que simplesmente falar. Você, porém, é um recém-
chegado e pode ver coisas que a nós nos têm escapado desde há anos, como é
o caso de Jim Adams, por exemplo. Porque não experimenta? Tem sempre a
possibilidade de renunciar ao cargo, se achar que se está a tornar uma
obrigação penosa.
Skarn olhou para o chefe White. White acenou com a cabeça com um
ar solene.
— Pois sim — assentiu Skarn. — Sentir-me-ei honrado com a escolha.
Mais tarde encontrou Elmer Harley a trabalhar na garagem de Merrel.
Harley deixou cair com estrondo uma chave-inglesa e afastou-se para se lavar
antes de apertar a mão a Skarn.
— Certo, ninguém se importará se eu for tomar uma cerveja consigo —
disse ele respondendo a um tímido convite de Skarn.
Atravessaram a rua em direção ao Bar Central. O empregado levou as
cervejas ao compartimento onde eles se sentaram e Skarn sorveu um pouco,
fazendo uma careta.
— Ouvi contar o que você fez por Jim Adams — disse Harley. — E...
Cos diabos, acho que você fez uma bela ação.
— Você pensa que ele é capaz de recuperar? — Perguntou Skarn.
— Com um pouco de sorte, estou certo de que recuperará.
— Então já era tempo de que alguém fizesse alguma coisa!
Harley fez que sim com a cabeça e tomou mais um gole de cerveja.
— Jim não era mau rapaz — disse. — O que ele era era um fraco e por
isso deixou-se apanhar. Você está a pensar em recuperar-me?
— Tinha pensado nisso — confessou Skarn.
— Julgo que também já era tempo de que alguém se ocupasse do meu
caso — disse Harley.
— Estava a pensar em abrir uma oficina de automóveis. Uma oficina
honesta. Pensa que há cabimento para uma oficina dessas aqui?
— Há sempre cabimento para uma oficina honesta em qualquer parte
do Mundo.
— Você crê que seria capaz de a dirigir por minha conta?
— Experimente!
— Veja se encontra um local adequado para ela e diga-me do que
precisa.
— É para já! — Exclamou Harley. — É só o tempo de dizer a Merrel
que vá para o Inferno.

***

A casa estava escura quando Skarn regressou, escura no andar de cima


e escura no andar de baixo. Atravessou com facilidade a escuridão, em
direção ao laboratório, ouviu a respiração acelerada de Dork e sentou-se num
tamborete perto dele. Dork preferia a escuridão. Não lhe agradava a
alternância confusa dos dias e das noites. No seu planeta ou era sempre
escuro ou sempre claro, o que levava Dork a pensar que as rotações deste
planeta primitivo lhe davam cabo da saúde.
Skarn acendeu um cigarro e Dork estremeceu perante a chama do
isqueiro.
— Já tem um espécime pronto? — Perguntou.
— Não — disse Skarn. — E você, tem?
— Contaram-me o que tem andado a fazer. Fiz um relatório completo e
tenho aqui a resposta. Você foi desligado da missão e deve apresentar-se no
planeta-mãe imediatamente.
Skarn sorriu.
— E quem vai acabar a missão é você, adivinho.
— Por ordens diretas de Sua Majestade Imperial.
— Seguindo à risca a Regra da Porta, creio...
Dork soltou uma gargalhada revoltante.
— O Grande Kom não se importa. Quanto a Sua Majestade Imperial,
quando quer um espécime quere-o mesmo. Sua Majestade não quer que se
cumpram as regras; só quer que se lhe diga que elas foram cumpridas. A sua
estúpida forma de se ocupar desta missão foi uma desgraça, Skarn Skukarn.
Duvido muito que lhe consintam chegar ao fim do seu tempo normal de vida.
— Importa-se de me dizer como tenciona obter o espécime?
Vou convidar os espécimes que você já selecionou. Pelo menos três
deles, visto que mandou embora o outro.
— A porta não os vai aceitar. Duvido que aceite qualquer dos
habitantes de Centertown.
A porta vai aceitá-los porque eu vou pô-la a funcionar no sistema
manual e despachar os três espécimes através dela para depois me pôr a
mexer deste amaldiçoado planeta.
Fique sabendo que fechei o controlo mestre com uma fechadura mental
e que não lha vou revelar.
— Você há de revelá-la — disse Dork em tom ameaçador. — Há penas
piores que a morte, como sabe.
— Pois há — murmurou Skarn. — A vida.
Na sua vida houvera uma jovem e encantadora mulher com quem
casara por amor e que veio a ser-lhe roubada por um clérigo muito venerado.
Depois disso fora o vazio. Desgosto atrás de desgosto, foi ficando repleto de
uma poeira de trivialidades sem nexo. Não tendo mais nada a que dedicar a
sua vida, vivia para o seu trabalho e ascendera ao topo da sua profissão
porque era incansável no seu joeirar constante, sem perder tempo com
distrações, excetuando as memórias que andava a escrever. Tivera sempre
medo da vida e não da morte. Por isso tentava imaginar como se sentiriam
aqueles indígenas, visto que eles deixavam ao acaso a duração da sua vida em
vez de fazerem disso uma questão de lei.
Condenado a uma vida sem sentido, havia pelo menos mantido a sua
integridade.
— Os indígenas são meus amigos — disse. — Skarn Skukarn não trai
um amigo.
— Mandarei vir novo equipamento — replicou Dork.
— Quando eu lhes disser qual é a razão do seu pedido, certamente que
o recusarão.
Dork soltou um riso cruel.
— Como é que lhes dirá? Sua Majestade Imperial não o mandou
chamar para ouvir a sua opinião!
Subitamente pôs-se de pé.
— Que foi aquilo? — Exclamou, segurando com força o braço de
Skarn. — Você ouviu? Anda alguém lá em baixo.
Skarn ativou o visor e inundou a sala de estar com luz invisível.
— Temos uma visita — ciciou Dork. — Skarn, estamos a ser roubados!
Um vulto andrajoso vagueava desajeitadamente através da escuridão,
apalpando o caminho à toa em redor da mobília. Por baixo dos olhos trazia
um lenço a cobrir-lhe a face.
— Devem ter-lhe falado da nossa porta — disse Skarn. — Se calhar
julga que por detrás dela guardamos riquezas.
Dork soltou uma gargalhadinha de contentamento.
— A nossa tarefa está terminada. Com certeza que a porta vai aceitar
um espécime que se aproxima dela para praticar uma má ação.
— A sua má ação pode ter um objetivo nobre — disse Skarn.
O intruso tropeçou repetidamente ao atravessar a sala, enfiou-se num
dos armários, saiu pouco depois e orientou-se na direção da porta, apalpando
a parede. Dork respirou, sorvendo o ar ruidosamente e expirando-o num
acesso de imprecações quando a porta mais uma vez se recusou a abrir.
— Ponha a porta no sistema manual — bradou asperamente. — Vou
empurrá-lo. Ninguém sabe que ele está aqui e ninguém dará pela falta dele.
Poderemos raspar-nos deste mundo maldito imediatamente.
— A Regra da Porta...
— Raios para a Regra! Você conhece este indígena? Considera-o um
amigo?
— Não — admitiu Skarn. — Não o conheço.
— Ponha a porta no sistema manual — repetiu Dork em tom de
comando.
O timbre escarnecedor e autoritário da sua voz fez Skarn encolher-se.
Dork afastou-se emproado e Skarn deixou-se cair exausto na cadeira.
Na verdade, o Grande Kom agira com uma precaução espantosa
quando concebera aquela porta que talvez se destinasse a nunca ser aberta.
Quem poderia afirmar, apesar de tudo, que a Majestade Imperial desses
tempos recuados havia de facto obtido um espécime inteligente? Talvez na
sua sabedoria imortal o Grande Kom tivesse deliberadamente concebido um
plano para evitar precisamente isso. E agora esta... Esta astúcia para enganar
a Porta! Era uma coisa terrível.
Que Dork fizesse todo o mal que quisesse! Skarn nunca lhe revelaria a
fechadura mental da porta. Era-lhe impossível fazê-lo.
Na sala em baixo, o intruso investia contra a porta usando para isso os
ombros. As luzes acenderam-se de repente; Dork entrou na sala com as mãos
erguidas, fingindo ter medo da tosca arma do ladrão.
— Sossegue, vou eu mesmo abrir-lhe a porta — disse. — Venha
ajudar-me a empurrá-la.
Dork dirigiu-se para a porta, parou e deu meia volta para dizer qualquer
coisa.
De súbito, a porta escancarou-se. Dork foi sugado para ela num
instante, e, quando o perplexo ladrão saltava para correr atrás dele, fechou-se
impetuosamente, deixando o ladrão a bater nela enfurecido.
Skarn pôs-se de pé bruscamente com os punhos cerrados e o cérebro
paralisado pelo choque. Tentou imaginar o que estava a acontecer, sabendo
que enquanto pensava no assunto, o acidente já tinha acontecido: o corpo de
Dork Diffack, varrido a uma velocidade muitas vezes superior à da luz, de
repetidor para repetidor, através do espaço, e encerrado hermeticamente num
frasco para espécimes do Museu Real, para enorme consternação dos
assistentes. É claro que o reconheceriam imediatamente, mas já seria tarde de
mais.
Skarn, humildemente, fez uma vénia à memória do Grande Kom.
Talvez a porta tivesse sido afinada só para as características de um
determinado povo, precisamente os habitantes de Huzz, planeta que havia
sido descoberto em tempos remotos, quando as naves do império iniciavam
as suas excursões para longe do planeta-mãe. Ou talvez não. Era porém
manifesto que a porta fora concebida de modo que só fosse aceite uma
criatura como Dork, ou seja, uma criatura destituída de amor, de amistosidade
e de generosidade, uma criatura perversa que havia sido surpreendida a
praticar uma sinistra conspiração contra outro ser inteligente. A sabedoria do
Grande Kom era absoluta.
Skarn agiu rapidamente. Não ousava regressar ao planeta-mãe; de
quem ele gostava era daqueles indígenas. Admirava a liberdade de que eles
desfrutavam, bem como a curiosa mistura de bons e de maus sentimentos que
havia no seu carácter. Segundo o modo como eles mediam o tempo, tinha
muitos anos para viver. Tinha também consigo os fundos em metais
preciosos que haviam sido postos à sua disposição para cumprir a missão.
Tinha a casa onde habitava. E tinha... Claro, em Centertown tinha sobretudo
amigos.
Abriu então um painel na parede e atuou o interruptor, que fez disparar
o emissor a grande velocidade através do espaço. As estações repetidoras
dobrar-se-iam a partir daí umas sobre as outras sucessivamente e
regressariam todas ao planeta-mãe. Encolerizada, a Majestade Imperial
poderia enviar uma expedição contra Skarn, mas isso não importava. Só Dork
sabia onde Skarn se fixara neste planeta, e o que ele sabia estava agora seguro
para toda a eternidade. Seguro estava também Skarn, por consequência.
Skarn dirigiu-se ao telefone e ligou para Sam White.
— Tenho estado a pensar nesse jogo a que chamam xadrez. Penso que
na próxima vez que nos encontrarmos já o poderei vencer. Já é tarde, esta
noite, para experimentarmos?
— Não, que diabo! — Disse Sam. — Apareça.
— Estarei aí em breve, mas antes tenho um pequeno assunto a resolver
aqui — respondeu Skarn.
A remoção do mecanismo abrira a fechadura da porta e o ladrão estava
a olhar perplexamente para o armário central. Skarn paralisou-o com uma
arma de nervos, apoderou-se do ameaçador revólver e só então libertou a
criatura. Os olhos jovens que o fixavam por cima do lenço tinham uma
expressão aterrorizada.
— Que é que aconteceu àquele tipo? Aquele armário ali... Está vazio!
— Claro que está vazio — disse Skarn. — Foi por isso que a porta se
abriu tão facilmente. E agora diga-me, meu amigo: porque é que precisa de
dinheiro?
2
Uma Pequena Vigarice
(«Petty Larceny»)

Este conto foi publicado pela primeira vez em Agosto


de 1958 na revista Satellite Science Fiction
© 1958, Lloyd Biggle, Jr.
Querida Edna.
Escrevo-te para te dizer que as coisas estão a correr bem, que estarei
de volta muito em breve e que podes começar a comprar aquele enxoval de
noiva com que tens andado a sonhar. Boas notícias, hã? Temos de nos casar
em segredo e gozar uma lua-de-mel prolongada por razões que te hei de
explicar. Blackie e eu teremos de ficar escondidos por algum tempo e por
isso não te posso dar uma data certa, também não quero que a cidade
inteirinha me apareça quando me virem à luz do dia. É ter as coisas
aprontadas mas estritamente em segredo. Percebeste?
Finalmente demos o nosso golpe, que é tão grande que desde então
temos andado muito caladinhos sobre ele, mas o que é certo é que teve
alguns resultados engraçados. Poderemos ter de passar o mais
despercebidos possível no México durante alguns meses depois de nos
casarmos, mas julgo que não te importarás quando souberes o que
aconteceu.
Estávamos a atravessar o Wisconsin e a usar aquele velho truque em
que Blackie tropeça em qualquer coisa numa loja e parte o braço. Muitos
destes pequenos lojistas não fazem seguros e querem logo resolver o assunto
rapidamente. O negócio corria-nos bem e, por isso, quando chegámos a uma
pequena cidade de veraneio decidimos gozar umas pequenas férias e depois
atacar o lojista local no dia da nossa partida.
Do outro lado da rua, em frente do nosso motel, havia um grande café
com esplanada, mesmo sobre o lago. Estava uma noite de calor, e quando
nos aproximámos para tomar uma bebida não havia mesa vaga. Muitas
pessoas estavam por ali de pé, à espera de lugar e, por isso, quando Blackie
topou dois lugares vazios, corremos para eles. Quando nos estávamos a
sentar, perguntei:
— Estas cadeiras estão ocupadas?
Então o tipo que ali estava e que tinha a mesa toda para ele,
respondeu:
— Não ssstá, não. Podem sssentar-ssse.
Macacos me mordam se ele não tinha voz de extraterrestre, com esses
sibilantes e tudo. Já observara muitos deles à distância, mas nunca tivera a
oportunidade de falar com um deles. Blackie e eu sentámo-nos e olhámo-lo
de alto a baixo, mas ele não se importou porque também estava a olhar para
nós da mesma maneira.
Não viria grande mal ao mundo se eles não tivessem a mania de
parecer humanos. Até mesmo um fato de alta classe talhado à mão tende a
parecer desajeitado se tiver cinco medidas acima e esconder um par de
braços a mais. As perucas ajudam um pouco se as pessoas olharem para eles
de trás, mas vistos pela frente não há nada que os salve. Ouvi dizer que
alguns deles usam narizes falsos. Este não usava. Só havia aquela fila de
olhos atravessada no sítio onde devia estar a testa e um bico lá em baixo
onde devia ser o lugar do queixo, e tudo o mais entre as duas partes era uma
grande porção escamuda e gorda.
Pensei cá para mim que éramos tão estranhos para ele quanto ele para
nós, e após algumas bebidas comecei a achá-lo quase normal. Foi portanto
assim que Blackie e eu principiámos a tagarelar com um extraterrestre.
Pouco tempo depois apareceu a Lua, e o seu reflexo no lago era lindo,
mas não vou fingir que estava a pensar em ti. Como poderia, com aquele
extraterrestre sentado a meu lado? De qualquer modo, não creio que
apreciasses isso.
Também... Era só meia Lua. O extraterrestre olhou para ela e disse:
— Que forma esssquisssita.
— Se calhar, vocês têm cinco luas à volta do vosso mundo — disse
Blackie.
— Não — respondeu o extraterrestre. — Não temosss nenhuma. O
fenómeno é completamente novo para mim — respondeu. Sentado na
cadeira, olhava para a Lua como que distraidamente. — Teve sssempre
aquela forma esssquisssita?
Blackie piscou-me o olho.
— Claro que não. Só desde que começámos a vendê-la. O que está a
ver é a parte que ainda não foi vendida.
Sabes como é o Blackie. Mesmo a dormir é capaz de planear um
negócio.
— Importa-se de fazer um pequeno investimento? — Perguntou ele a
certa altura.
— Na Lua? É caro?
— Não muito. Qual seria o tamanho da fatia que gostaria de comprar?
O extraterrestre continuava sentado a olhar para a Lua com um ar
muito sério. Não sei como, mas consegui não me rir.
— Terei de dissscutir essste asssunto com o meu irmão — respondeu.
Mais tarde descobrimos que todos os extraterrestres se tratam por irmãos.
— Está bem — concordou Blackie. — Onde posso contactá-lo?
— Contactar-me? Refere-ssse a... Bom, nós resssidimosss em Balmy
Beach.
— Telefonar-lhe-ei pela manhã, do nosso escritório de Madison —
disse Blackie. — Por quem pergunto?
— O meu nome é Sssim.
Apresentámo-nos — sem dar os nossos nomes verdadeiros — e o
extraterrestre fez uma vénia como se fosse um tenor da ópera e afastou-se
andando, se é que se pode chamar andar ao modo como eles se deslocam,
sempre na brecha.
— Sim como em simples — comentou Blackie.
— Não acredito que estejas a pensar a sério em vender-lhe uma
propriedade na Lua — disse-lhe eu. — Ele não é assim tão simples.
Blackie esboçou um sorriso irónico.
— Há tempos li um artigo sobre os extraterrestres, escrito por um
médico ou psicanalista ou lá o que era, e ele diz que eles são uma raça de
atrasados mentais que descobriu as viagens espaciais por acidente. Diz que
são tão estúpidos que ninguém sabe como é que eles conseguem tripular
aquelas naves.
— Mas repara que eles as tripulam mesmo — disse eu. — Porque
haveriam de nos comprar propriedades na Lua? Podem lá ir e ocupar tudo o
que quiserem e nós nada podemos fazer.
— Sim como em simples — ripostou Blackie. — O máximo que nos
pode custar é uma viagem a Madison e uma chamada telefónica. Reparaste
que ele era tão estúpido que nem sabia nada das fases da Lua?
Quando ele pôs a questão daquela maneira não fui capaz de reagir.
Quem não arrisca não petisca. Seguimos de carro para Madison pela manhã
e comprámos uma opção de arrendamento de um escritório por meio de um
depósito bancário de cinco dólares. A seguir, Blackie telefonou ao
extraterrestre.
Quando saiu da cabina telefónica vinha com um grande sorriso.
— Ele está interessado — disse. — Amanhã de manhã, às dez, estará
no nosso escritório. E agora vamos ao trabalho!
Foi um dia exaustivo. Tivemos de contratar um pintor de tabuletas
para pintar na nossa porta: UNIDADE DE VENDA DE PROPRIEDADES EXCEDENTÁRIAS
N.º 437. Aluguei mobiliário de escritório e descobri uma mulher disposta a
fingir de secretário durante três dias se lhe pagássemos uma semana de
vencimento adiantado. Blackie foi procurar um tipógrafo que trabalhasse
rapidamente e fosse capaz de manter segredo em troca de luvas. Nessa noite
voltou tarde para casa, com um punhado de escrituras, contratos de compra
e recibos falsos. Ele tem uma certa inclinação para este tipo de coisas.
Passei a maior parte do dia a tentar descobrir alguns mapas da Lua, o
que, se é que não sabes, não é coisa que se arranje na bomba de gasolina da
esquina. Acabei por conseguir que a biblioteca me fizesse algumas cópias a
partir de fotografias.
Os extraterrestres chegaram mesmo à hora na manhã seguinte. Não
tínhamos falado em extraterrestres à secretária, pelo que ela estava com a
cabeça à roda quando os introduziu no gabinete interior. A propósito, ela
era uma senhora com cerca de cinquenta anos de idade e por isso não tens de
ter ciúmes.
Os extraterrestres andavam preocupados com alguns pormenores.
Durante a noite tinham ido até à Lua para ver a propriedade. Ficaram
perturbados ao descobrir que a Lua estava lá toda inteira. Devido à forma
esquisita que tinha visto da Terra. Sim julgara que as pessoas estavam a
comprar parcelas e a levá-las dali. Blackie torneara a questão explicando
que estávamos a iluminar somente a parte que ainda não havia sido vendida.
Finalmente veio a saber-se que o verdadeiro problema consistia em
que eles não queriam comprar só uma parte da Lua. O que eles queriam era
a Lua toda!
— Isso talvez seja possível — disse Blackie pensativamente. — É claro
que teriam de comprar as parcelas já vendidas, mas, se é isso que querem...
Era isso o que eles queriam.
— Sair-vos-á caro — adiantou Blackie.
Sim respondeu que não se preocupasse com as despesas.
— Será um bocado difícil — acrescentou Blackie. — Mas a Unidade de
Venda de Propriedades Excedentárias n.º 437 é famosa pela forma como
vence as dificuldades. Podem estar de volta pela uma hora com o dinheiro?
Responderam que sim. Trocámos cerca de uma dúzia de vénias e os
extraterrestres foram-se embora. O preço? Não o vou revelar; somente direi
que quando Blackie começou a citar números quase desmaiei.
— Não podemos escapar desta — disse eu a Blackie. — É dinheiro de
mais. Eles pintarão o diabo quando souberem que foram enganados.
— Lérias! — Exclamou Blackie. — Eles fizeram uma fortuna com os
metais raros que têm andado a vender por aí. Este dinheiro todo, para eles
não é mais do que um pequeno furto. Podem dar-se ao luxo de o levarem
para a brincadeira. E, além disso, este golpe será uma boa lição para eles.
Boa e barata!
Os extraterrestres entraram no escritório à uma hora em ponto e
Blackie lá lhes vendeu a Lua. Toda inteirinha! Blackie preencheu um
punhado de papéis com aspecto impressionante e trocou-os por uma mala de
mão cheia de dinheiro. Combinou que o negócio vigoraria a partir da meia-
noite de dezasseis, para que assim tivéssemos tempo de sobra para
chegarmos ao destino que escolhêssemos.
Felicitámo-los pela compra que haviam feito e eles agradeceram-nos
pela delicadeza com que prestáramos os nossos serviços. Blackie puxou de
uma garrafa e fizemos brindes uns aos outros. Eu estava para ali sentado,
com as mãos húmidas de transpiração, à espera que eles se fossem embora,
mas parecia que não tinham pressa nenhuma. Puxaram mesmo por uma
garrafa deles e propuseram mais uma rodada de brindes.
Finalmente, Sim disse:
— Que é que sssignifica isssto de Unidade de Venda de Propriedadesss
Excedentáriasss?
Os olhos de Blackie iluminaram-se.
— Nem mais nem menos do que aí está escrito — respondeu. —
Vendemos todos os tipos de propriedades. Estão interessados em qualquer
outra coisa?
— É muito posssível que queiramosss outra coisa — respondeu Sim.
Blackie estava sentado atrás da secretária a desenhar cifrões num
bloco de papel enquanto os extraterrestres esperavam que ele dissesse
alguma coisa. Eu estava demasiado nervoso para abrir a boca. Ninguém
naquele momento poderia adivinhar no que pensavam os extraterrestres. As
caras deles são mesmo o que há de mais inexpressivo que se possa imaginar.
— Lamento dizer-lhes que as propriedades que temos para venda estão
muito afastadas umas das outras — disse Blackie. — Levaria muito tempo
mostrar-lhas. — Ao dizer isto, ele pensava na data que tinha sido combinada
como data de entrada em vigor do negócio da Lua.
— Teríamos muito prazer em fornecer osss meiosss de transssporte —
disse Sim.
Foi assim que Blackie e eu demos uma passeata na nave espacial deles.
Não vou aqui gabar-me disto. Enjoei desde o momento da descolagem.
Blackie não se sentiu nada afetado e passou a viagem a inspecionar a nave.
Depois disse-me que não compreendera nada daquilo.
A nossa primeira paragem foi em Nova Iorque e Blackie principiou
logo por lhes vender a ponte de Brooklyn, o que exigiu uma notável
capacidade de venda, e Blackie não estava nos seus melhores dias, por não
poder usar ambas as mãos enquanto falava. É que, debaixo de um dos
braços, trazia a mala de mão cheia de dinheiro.
A princípio, os extraterrestres pareciam não perceber para que servia
a ponte. Fizeram tal burburinho ao inspecioná-la que atraíram uma pequena
multidão e até um carro da polícia parou para ver o que se passava. Eu
estava pronto para me raspar, mas Blackie fez um aceno com a mão livre e
explicou que os extraterrestres estavam só a admirar a ponte. Então, os
polícias até nos montaram uma escolta para manter a multidão afastada.
Os extraterrestres entretanto acabaram por fazer-nos compreender que
o que os intrigava era o rio. Naquela ocasião julguei que eles tinham receio
de que o rio secasse, tornando assim a ponte inútil. Neste momento já não sei
o que na realidade eles pensavam. Blackie resolveu o problema num ápice,
acrescentando dez mil dólares ao preço de venda e incluindo na transação o
East River, e eles aceitaram imediatamente a proposta. Compraram também
o edifício do Empire State. Depois seguimos para Washington e vendemos-
lhes o monumento a George Washington. Blackie tentou interessá-los no
edifício do Capitólio, mas eles não queriam aquilo para nada.
Blackie ainda queria levá-los a dar a volta ao Mundo para lhes vender
o Palácio de Buckingham e a Torre Eiffel e o Taj Mahal e ainda uma série de
outras coisas famosas, mas eu disse que não e ele acabou por concordar
comigo. Aquilo que já tínhamos vendido representava dinheiro suficiente
para durar até ao fim das nossas vidas. Se lhes vendêssemos demasiado
podíamos ultrapassar o limite do que se considera uma pequena vigarice e
metermo-nos em grandes sarilhos.
Assim, dissemos-lhes que era tempo de nos despedirmos e que lhes
mostraríamos mais material na manhã seguinte. Já era noite avançada
quando regressámos ao nosso escritório. Blackie deu-lhes mais uma pilha de
papéis com aparência oficial e os extraterrestres deram-nos mais uma mala
de mão cheia de dinheiro.
E lá ficaram eles preparados para tomar posse legal da Lua e da ponte
de Brooklyn, juntamente com o East River e com o edifício do Empire State,
mais o monumento a Washington, à meia-noite de dezasseis, tempo oficial da
zona oriental da América. Ou, pelo menos, assim o pensavam.
— Tivemosss muito gosssto — disse Sim.
— O prazer foi todo nosso — respondeu-lhe Blackie.
Tomámos outra bebida juntos e trocámos outra série de vénias e eles lá
se foram, prometendo estar de volta às dez da manhã para continuar a
voltinha de compras. Pusemo-nos ao fresco logo a seguir a eles terem saído.
Blackie ainda deixou uma boa gratificação à nossa secretária, com uma nota
em que lhe dizia para se livrar dos extraterrestres e fechar o escritório, e
depois abandonámos a cidade a toda a velocidade. Vendemos o nosso carro
em Mineápolis e comprámos um outro, e a dezasseis — ontem — escondemo-
nos aqui no Colorado.
Pelo que me diz respeito, ainda não compreendo como é que os
extraterrestres podiam ser tão estúpidos. Blackie disse que eles eram tão
imbecis que nem sabiam como voar nas suas naves, visto que nos tinham
levado para Nova Iorque passando pela Cidade do México. Eu respondi-lhe
que o importante era eles terem-nos levado lá numa nave bem evoluída, e
para isso tinham de ser espertos. Blackie replicou-me que eles ficariam
muito mais espertos um minuto depois da meia-noite de dezasseis, e ficámos
por ali.
Estávamos mesmo a levantar-nos esta manhã quando ouvimos o
noticiário das oito em que se dizia que a ponte de Brooklyn e o edifício do
Empire State, mais o monumento a Washington tinham todos desaparecido a
noite passada, entre a meia-noite e a uma da madrugada. As pessoas que se
encontravam perto daqueles lugares tinham algumas histórias insólitas para
contar, mas eu ainda não compreendo como é que os extraterrestres
conseguiram fazer aquilo. As pessoas que na ocasião estavam a utilizar a
ponte abandonaram-na e as que queriam utilizá-la não conseguiram
alcançá-la e então ela desapareceu como que por encanto. O mesmo se
passou com os edifícios. No East River não falaram, pelo que julgo que ele
ainda lá está. Talvez os extraterrestres achassem que era água de mais para
eles ou talvez lhes bastasse a que estava debaixo da ponte na altura.
Também nada ouvimos dizer sobre a Lua. A noite passada estava o
tempo enevoado por aqui, mas certamente não o estava em toda a parte, e se
a Lua tivesse desaparecido, alguém teria dado pela sua falta. Temos andado
chateados com isto. Blackie espera que eles tenham decidido deixá-la onde
ela está. O meu palpite é que eles acharam que a ponte, o edifício do Empire
State e o monumento a Washington já eram trabalho de mais para uma noite
e que virão mais tarde buscar o resto. Gostaríamos de tirar dúvidas a esse
respeito, mas calculamos que seja perigoso começar a telefonar para os
jornais e para os observatórios para lhes perguntar se a Lua ainda está no
seu sítio.
Neste momento ainda são quatro da tarde e Blackie já está lá fora à
espera que a Lua apareça. Espero sinceramente que ele não fique
desapontado.
Mais tarde ou mais cedo alguém irá pela certa culpar os
extraterrestres pelo que aconteceu. Espero que não te importes de passar
uma lua-de-mel prolongada no México, e depois disso poderemos mesmo ter
de ir até ao Brasil.
Por agora podes alargar os cordões à bolsa e comprar esse enxoval.
Até à vista.
Montes de amor do
Spike
3
A Capitulação
(«On the Dotted Line»)

Este conto foi publicado pela primeira vez em Junho


de 1957 na revista If Worlds of Science Fiction
© 1957, Quinn Publishing Company, Inc.
1. ERF ZEDDEN
Tenho estado a dormir para me esquecer das contrariedades da vida,
estendido confortavelmente entre os arbustos numa elevação de terreno de
onde se vê o rio Detroit. Foi uma noite calma e acordei com uma sensação de
bem-estar geral. Fiquei por aqui estendido, olhando em volta, quando de
repente... Zás! Aparece-me aquele tipo aos trambolhões vindo não sei donde
e poisa em cima de mim.
Vindo não sei donde, disse eu. Estou a olhar para ele e daí a um
segundo ele já lá não está, mas volta a estar um segundo depois. Escapo-me
debaixo dele e recupero a respiração olhando para cima, para ver se por acaso
ele caiu de algum carro aéreo. Não vejo carros aéreos e digo para mim
próprio que esta será a última vez que misturarei gim marciano com vinho
venusiano.
Então ele senta-se e olha para mim, esfregando os olhos ao mesmo
tempo que move o maxilar duas ou três vezes antes de ser capaz de
pronunciar qualquer palavra. Quando finalmente consegue dizer: «Onde
estou eu?», fala como se tivesse a boca cosida.
— Essa é fácil de responder — digo. — O que eu gostaria de saber é
como é que veio aqui parar!
Levanta-se e dá alguns passos, esticando o pescoço e espreitando em
todas as direções.
— Onde estou eu? — Repete ele a pergunta.
— Em Nova Detroit — respondo. — Junto ao rio, como talvez já tenha
notado.
Dá outra olhadela em volta e fica fora de si.
— Ouça — diz ele. — Conheço Detroit como a palma da minha mão e
não há nenhum parque que se pareça com isto. Onde está o Centro Cívico? E
como se explica que eu não veja daqui o edifício Penobscot? Aqui onde
estamos devia ser Belle Isle e, sendo assim, eu devia poder ver daqui o centro
da cidade.
Olho-o de alto a baixo, tentando não me rir da maneira como fala e das
exóticas roupas que traz vestidas. Não tem má aparência, é jovem e bem
constituído, mas tem o cabelo cortado de través no alto da cabeça, do modo
mais esquisito que até hoje já vi. Começo a pensar que talvez seja um
refugiado que se escapou a alguma equipa de tratamentos psiquiátricos da
polícia.
— Nunca ouvi falar desses lugares e você está a cerca de vinte milhas
do centro da cidade.
Senta-se novamente, olhando com um ar tão perplexo que começo a ter
pena dele.
— Isto é Detroit, no Michigão, E. U. A.?
Digo-lhe que é Nova Detroit e que ouvi dizer que Nova Detroit é na
província de Michigão, embora não possa garantir isso. Quanto às letras que
ele citou não significam nada para mim.
Reage então como uma criança que tenta esclarecer qualquer coisa.
— Isto aqui é Detroit...
— Nova Detroit.
— No Michigão...
— Na província do Michigão, sim... Talvez.
— E estamos a 15 de Julho...
— Pouco mais ou menos — respondo. — Não tenho andado muito a
par do calendário.
Decido que talvez seja melhor afastá-lo da vista até resolver o que hei
de fazer com ele. Pego-lhe no braço e começo a andar. Ele segue- me sem
dizer nada.
Continua porém a olhar em volta, como se nunca tivesse visto Nova
Detroit. E se assim é, como posso eu censurá-lo por olhar? As cidades que
foram varridas do mapa durante a grande guerra passaram um mau bocado,
mas tiveram a vantagem de começar tudo de novo. Nova Detroit é um lugar
magnífico: toda a cidade é um grande parque, com todas as zonas comerciais,
transportes terrestres e muitas habitações no subsolo. Só os blocos de
apartamento é que se estendem em direção ao céu a intervalos regulares.
Ele olha para trás, para o rio e pergunta:
— Estamos longe do lago Erie?
— Não. Se subir a bastante altura num carro aéreo poderá vê-lo.
— E do lago St. Clair?
— Você refere-se ao lago Clair? Estamos pertíssimo.
— E aquele ali é o rio Detroit?
— Nunca ouvi chamar-lhe outra coisa.
— E aqui é Detroit?
— Nova Detroit.
Respira fundo.
— Em que ano estamos?
— Em 2337.
Acudam-me que o homem desmaiou...
Faço sinal para um táxi aéreo e o tipo recupera os sentidos pouco
depois. Levo-o para o quarto do hotel no sétimo piso sem qualquer problema.
Meto uma moeda no visiscópio e deixo-o em frente da tela a ver o programa
enquanto saio para lhe arranjar roupas apresentáveis. Quando regresso ainda
lá está sentado, mas parece pronto a explodir.
— Não há publicidade! — Diz ele.
Pergunto-lhe o que significa isso, pois não entendo.
— Essa agora! Publicidade! Sabe... Falam sobre um determinado
produto ou cantam canções acerca dele para instigar as pessoas a comprá-lo.
Que coisa estúpida! Nunca ouvi falar de nada que se assemelhe a isso.
Nem acredito que isso desse resultado. Não seria com uma canção que me
levariam a querer comprar fosse o que fosse.
— Mas olhe que funciona — insiste ele. — Veja...
— Estou a mirá-lo com atenção, tentando adivinhar se está a falar a
sério ou se está a gozar-me. Não chego a conclusão nenhuma.
— Bom, deixe lá isso!
Pouco depois volta à carga:
— Isto é Detroit?
— Nova Detroit.
— E não há publicidade?
— Nunca ouvi tal coisa na minha vida.
— Então como é que conseguem vender as coisas?
— Ora! Há vendedores por toda a parte. A mim não me incomodam
nada, porque eu sou um técnico espacial. O nosso crédito não tem grande
valor. Quando quero qualquer coisa vou a um centro mercantil e pago em
dinheiro. Ora bem! Vamos lá a vestir estas roupas.
Consigo convencê-lo a libertar-se daquela ridícula indumentária que
traz vestida e depois tenho de travar uma batalha para lhe vestir as novas
roupas. Não se opõe aos calções, mas faz um grande banzé por causa da capa.
— Que sentido faz vestir uma capa transparente? — Pergunta.
— Toda a gente as veste aqui na Terra. Eu cá não simpatizo muito com
elas, mas aqui é assim. No espaço vestimos coisas práticas.
— Quando você diz toda a gente... Quer dizer que as mulheres também
as vestem?
— Claro! — Respondo piscando-lhe um olho. — Algumas vestem
capas mais transparentes que outras.
— O meu nome é Mark Jackson — diz ele lentamente. — Sou
vendedor de automóveis... Um bom vendedor de automóveis. Vivo em
Detroit, estamos em 1957 e quero voltar para casa.
— Eu chamo-me Erf Zedden. Sou técnico espacial, mas provavelmente
não sou um grande técnico. Trabalho numa nave de carga que faz serviço de
transporte de minério entre Marte e Calisto, mas agora estou a gozar uma
licença de seis meses. É a primeira vez que estou na Terra em mais de cinco
anos e estamos no ano de 2337. E, já agora, que raio é um automóvel?
Não responde, pelo que lhe dou uma pancadinha nas costas e lhe digo
que estou autorizado a usar uma bebida. Parece que ele está autorizado a usar
mais que uma, e por isso subimos dois pisos até um bar cujo dono é um ex-
técnico espacial.
Este Jackson tem umas atitudes mesmo esquisitas. Não tira os olhos das
mulheres, e embora eu reconheça que naquele bar as capas delas eram mais
transparentes que noutros sítios, começo a pensar se ele nunca viu mulheres
na vida dele.
— Estamos em 2337? — Pergunta ele finalmente.
— Até Janeiro do ano que vem — respondo.
— Tenho estado a tentar saber o que terá causado isto. Houve aquela
precipitação de poeira radioativa depois dos ensaios com a bomba... Todos os
jornais faziam um grande alarido sobre o assunto, mas os cientistas diziam
que não havia perigo, e por isso eu não deveria ter sido mais afetado do que a
generalidade das pessoas. E depois houve aquela malvada máquina de raios
X...
Faz uma pausa para tomar um longo esguicho de gim marciano
enquanto eu espero silenciosamente, pensando que se não o interromper
talvez ele comece a dizer coisas com sentido.
— Fui vender um carro a um médico — continua — e enquanto
esperava por ele inclinei-me para a máquina de raios X e, sem saber como, o
raio da máquina pôs-se em funcionamento. O médico disse-me que eu havia
ficado exposto só uns segundos e que não tinha nada que me preocupar.
Provavelmente houve ainda outras coisas, já que foi daqueles dias em que
tudo nos acontece. E depois deu-se o acidente de automóvel para compor o
ramalhete. Estava eu a conduzir o carro, vindo do consultório do médico,
quando aquele rapazito se estampou mesmo à minha frente. O meu
descapotável virou-se de rodas para o ar. Quando me desviei choquei contra
um poste, o que fez com que fosse atirado por sobre uma vedação contra um
transformador da Companhia Edison, de Detroit. Só tive tempo de pensar:
«Agora é que é, meu caro!», e depois dei comigo aqui. Diz você que estamos
em 2337?
— Até Janeiro próximo.
Toma outro copo graúdo de gim.
— Não acredito — diz ele.
Digo-lhe que ele esquecerá todas as suas preocupações se arranjarmos
duas raparigas, mas ele diz que não e quer pensar no que há de fazer. Assim,
voltamos para o meu quarto no hotel e encontramo-lo cheio de polícias.
Alguém me tinha visto a trazê-lo comigo e havia feito uma participação às
autoridades. Levaram-nos aos dois, mais todas aquelas esquisitas roupas dele,
para a Central da Polícia, e gasto dois dias a convencê-los de que nada sei
acerca dele. Quando saio não me dizem o que lhe fizeram, o que me leva a
pensar que o mantêm preso para o submeterem a reeducação psíquica.
Bem! Sei que fiz o melhor que podia por ele. Ainda tenho quatro meses
de férias e algum dinheiro, pelo que vou apanhar o próximo foguetão para
Nova Iorque.

2. PROF. JOHN PARKINS


Estávamos no princípio de Agosto de 2337 quando recebi um
telememorando do meu velho amigo Bran Crustin, comissário da polícia da
província do Michigão. O caso que ele me descrevia era, do ponto de vista
psicológico, rotineiro, mas tinha os seus aspectos intrigantes. Pela minha
parte é claro que me sentia feliz por poder ajudar. Naquela época não havia
qualquer serviço de ligação por foguetão entre Boston e Nova Detroit, pelo
que tive de tomar o vaivém para Nova Iorque, onde apanhei o foguetão para
Nova Detroit.
Passei três dias a estudar os diversos artefactos que o chamado homem-
do-passado asseverava ter trazido consigo e a ouvir gravações das várias
entrevistas que lhe tinham feito. Discuti igualmente o seu caso, em pormenor,
com os médicos que dele se ocupavam, antes de ter pedido para o ver.
Quatro ajudantes corpulentos trouxeram-no para a sala. Era óbvio que o
consideravam violento, embora me parecesse bastante racional. Tinha uma
cara jovem e bem-parecida, apesar de taciturno. O seu físico era
impressionante. Parecia ser um chefe, um homem habituado a dominar.
— Não o reconheço — disse ele irritado. — Qual é a sua
especialidade? Testes com o detetor de mentiras? Testes de sanidade mental?
Deu um passo em frente e os ajudantes deram um salto para o conter.
Fiz-lhes um aceno para que o largassem e mandei-os embora. Já tinha então
concluído que este tal Mark Jackson podia ser tudo menos louco. Tinha a
certeza de que não seria violento se eu o tratasse com civilidade.
— Sente-se, por favor.
Sentámo-nos em frente um do outro com uma mesa de permeio onde
haviam sido espalhados os objetos pessoais e as exóticas roupas de Jackson.
— O meu nome é John Parkins, professor de História Americana na
Universidade de Harvard. Tenho estado a estudar os seus objetos e a escutar
gravações das entrevistas que lhe fizeram.
— E, como todos os outros, pensa que sou chalado — disparou.
Olhei-o fixamente.
— Que forma singular de pôr a questão! Mas não; eu não duvido das
suas faculdades mentais. E mais: estou absolutamente convencido da
veracidade dos objetos de sua propriedade. Não há dúvida de que se trata de
objetos do século XX. O seu valor não será muito grande, mas determinados
museus ficariam encantados por os possuírem. Além disso, no que se refere
às passagens que pudemos confirmar, os seus conhecimentos do século XX
são completamente exatos. Até o seu sotaque e forma de se expressar são
autênticos, pelo menos de acordo com as teorias correntes.
Pôs-se de pé bruscamente e andou para trás e para diante por breves
momentos.
— Já é um passo em frente que alguém acredite em mim. Quererá isso
dizer que posso sair daqui?
— Passo em... — Murmurei eu. Tudo o que o homem dizia era
convincente, mas eu não podia deixar-me convencer facilmente. Um
historiador lida com confiança com gravações, com documentos, com
objetos, mas não pode ser precipitado quanto a emitir um juízo sobre a
autenticidade de um ser humano vivo! — Não — respondi. — Isto não
significa que você vai poder ser libertado.
— É boa! Você acredita em mim e afinal está aqui tão preso como eu, é
isso?
Sorri.
— Não. Pedi para o ver para lhe dar alguns conselhos. Os médicos
estão decididos a curá-lo das suas ilusões. Deixe que eles o curem.
— Como?
— Eles pensam que você é um estudante de História que sofre de um
tipo especial de amnésia traumática e que mistura a matéria dos estudos com
a realidade. Concorde com eles, que eles provavelmente acabarão por o
deixar ir-se embora.
— Como posso eu concordar com eles se sei que estão errados?
— Concorde com eles — disse eu com firmeza. — Você já perturbou
demasiado a autoridade. O mero facto de as suas impressões digitais não
estarem arquivadas em lado nenhum causou pânico em quatro departamentos
governamentais. Por isso não os perturbe mais. Faça o que lhe mandam fazer
e verá que acabará por ser libertado.
— Você acredita em mim?
— Acredito que você tem conhecimentos assombrosos sobre o século
XX, mas que os adquiriu pelo estudo. É coisa que não deve ser desperdiçada.
Venha ter comigo quando for libertado e arranjar-lhe-ei um lugar de
professor. Você deve dar um excelente historiador.
— Não, obrigado. Eu sou um vendedor, e um bom vendedor. O ensino
não me interessa.
— Pelo menos pense com atenção no assunto. E lembre-se de que
quanto mais cedo cooperar mais cedo será libertado.
Depois de ter regressado a Boston continuei a pensar bastante neste
Mark Jackson, visto que ao longo de toda a minha vida de investigador
académico nunca me havia surgido um problema tão intrigante como aquele.
Finalmente escrevi a Arnold Stephens, um primo da minha mulher que é
gestor de pessoal na Empresa de Vendas Terra. Comuniquei-lhe o que
pensava serem os factos principais do caso Jackson e perguntei-lhe se ele
seria capaz de dar qualquer ajuda àquele homem, por sinal ainda jovem, a fim
de ele se estabelecer por conta própria.
Respondeu-me que gostaria de o entrevistar, mas que não podia
prometer dar-lhe tratamento mais favorável do que a qualquer outro
candidato a um posto de vendedor. Contactei imediatamente a polícia de
Nova Detroit e soube que Jackson já havia sido libertado por ter sido
considerado curado da sua doença e que não sabiam para onde tinha ido.
Deduzi que estavam muito satisfeitos por se terem liberto dele.

3. ARNOLD STEPHENS
Mark Jackson veio aos escritórios da Empresa de Vendas Terra.
Apenas alguns dias depois de eu ter recebido a carta do Prof. Parkins a seu
respeito. Reconheci-lhe o nome imediatamente e presumi que o professor o
havia mandado falar comigo.
Durante muitos anos entrevistei eu próprio todos os candidatos a
vendedor, dado que me consideram a pessoa mais indicada para esta tarefa.
Dei instruções para que Jackson fosse trazido prontamente à minha presença
e depois de ter lido o que Parkins havia escrito fiquei bastante surpreendido
ao verificar que não havia nada de obviamente diferente que distinguisse
aquele homem. As invulgares inflexões da sua maneira de falar poderiam
facilmente passar desapercebidas e, quanto ao resto, parecia uma pessoa
perfeitamente normal. Se eu não conhecesse Parkins tão bem, tanto
pessoalmente quanto profissionalmente, poderia considerar-me vítima de
uma brincadeira. Jackson era um indivíduo ainda jovem, de boa aparência,
bastante mais solene do que a maioria das pessoas, e a única coisa que o
distinguia dos outros candidatos que eu tinha entrevistado naquela manhã era
a sua atitude de uma determinação serena.
— Julgo que sabe que o Prof. Parkins me escreveu a seu respeito —
disse eu.
Pareceu surpreendido.
— Não, não sabia. Falei com uma pessoa com esse nome há três ou
quatro semanas, mas estivemos a falar de... Outras coisas.
— Compreendo. Porque quer ser vendedor?
Pôs-se de pé.
— Eu já sou vendedor! — Disse com firmeza. E começou a
desbobinar. Nunca assisti a uma demonstração tão assombrosa. Portou-se
com a perícia de um orador profissional e foi mais do que eloquente, foi
brilhantemente persuasivo. Se não fosse o seu sotaque e o frequente uso de
palavras estranhas, ter-me-ia empolgado. A maior parte da sua exposição
tratou da sua perícia e da experiência que possuía a vender automóveis, que
mais tarde vim a saber tratar-se de um obsoleto meio de transporte.
Foi notável, mas também foi lamentável. Ouvi-o até ao fim e abanei a
cabeça com tristeza, dizendo-lhe:
— Lamento, mas não posso oferecer-lhe emprego.
— Porque não?
As habilitações e aptidões de um vendedor eram então o segredo mais
guardado do mundo dos negócios. Embora não pudesse dar-lhe uma resposta
direta, achei que a sua demonstração lhe dava direito a merecer mais do que
uma breve despedida.
— Diga-me, candidatou-se a outra empresa de vendas? — Perguntei.
— Claro que sim! Esta é a vigésima terceira e ainda tenho de bater à
porta de mais dezasseis. Comecei pela indústria. Nada a fazer. Nenhuma
dessas empresas tem vendedores. A Companhia de Carros Aéreos Cadrovet,
de Nova Detroit, ofereceu-me cinco empregos diferentes, mas não me quis
empregar como vendedor. Disseram-me que já haviam passado cento e
cinquenta anos desde a última vez que tiveram um vendedor próprio. Todas
as vendas são feitas por empresas especializadas. Assim, vim para Nova
Iorque para tentar as empresas de vendas, e todos me deram a mesma
resposta: «Meu rapaz, para ser vendedor é preciso aprender primeiro a
vender-se a si próprio.» Acho que é uma posição sensata, pelo que aluguei
um gravador. A noite passada estive a pé quase toda a noite a trabalhar numa
argumentação de vendas para me poder vender. O senhor acaba de a ouvir.
Penso que é boa. Raios, tenho mesmo a certeza de que é boa! Mas a reação é
sempre a mesma. Aprenda a vender-se. Na minha última entrevista, um
velhote gordo olhou-me de soslaio e disse: «Deixe-me contratá-lo a prazo!
Desafio-o a fazer a experiência!»
Contive o riso e disse:
— Esse devia ser o Barlow, das Vendas Ilimitadas.
— Ouça. Eu sei que sou capaz de vender. Só quero que me deem uma
oportunidade. Pode empregar-me à base de comissões, e isso não lhe custará
nada se eu não vender. Que mal há nisso? Eu sou algum peçonhento?
— O Prof. Parkins contou-me que você está convencido de ter sido
transferido do século XX para este século por qualquer processo que
desconhece. Ele parece mais ou menos inclinado a acreditar em si.
Jackson fez um gesto de desagrado.
— Não vou confirmar nada disso. Já passei tempo de mais naquele
hospital.
— Compreendo. Mas, mesmo que você fosse um bom vendedor no...
Bom, fosse onde fosse, julgo que vai ter de encontrar outro modo de ganhar a
vida. Eu aconselhá-lo-ia a aceitar um daqueles empregos que lhe foram
oferecidos na Cadrovet.
— Só quero uma oportunidade — suplicou. — Sei o que sou capaz de
fazer. Sou capaz de vender seja o que for.
— A quem quer que seja?
— Que é que quer dizer com isso?
Pensei um breve instante.
— Devido à sua experiência invulgar, vou abrir uma exceção e revelar-
lhe o que se exige dos nossos vendedores. Siga-me, por favor.
Levei-o à sala de arquivos e abri uma gaveta de ficheiro ao acaso.
— Aqui está o registo da atividade da semana passada de um dos
nossos vendedores. Este não é mais que um trabalhador marginal, mas está a
melhorar. Como vê, fez cento e sete contactos de venda, ou seja, uma média
de vinte e um por dia. Destes contactos resultaram duzentas e quarenta
vendas, das quais vinte e duas foram vendas importantes, isto é, vendas que
montaram a dois mil dólares ou mais.
— Ninguém se negou a comprar? — Exclamou Jackson.
— Claro que não. Não temos lugar para vendedores a quem os clientes
se negam a comprar. Não faço ideia de qual terá sido o seu currículo lá no...
Fosse onde fosse, mas, a menos que possa conseguir um palmares deste
género, não há empresa de vendas que possa perder tempo consigo. E você
também não se pode dar ao luxo de perder o seu tempo. Este vendedor ganha
a sua vida, mas o padrão que atingiu não é famoso. Se não apresentar uma
melhoria substancial lá para o fim do ano, teremos de o demitir ou de o
transferir.
— Estou a ver — disse Jackson. De súbito pareceu terrivelmente
cansado.
— É melhor voltar à Cadrovet — aconselhei-o eu. — Trata-se de uma
boa empresa e julgo que eles estão convictos de você ser competente, pois de
contrário não lhe teriam oferecido cinco empregos à escolha.
— Fizeram-me testes de aptidão durante dois dias! Mas o que eu sou é
vendedor. Não me sentiria feliz sentado atrás de uma secretária ou aldrabando
o patrão numa linha de montagem. Estou-lhe grato por ter sido amável
comigo, mas não posso seguir o seu conselho.
— Deduzo que esteja mal de finanças. Você terá de trabalhar em
qualquer coisa!
— Eu sei. Bem... Esta manhã vou ter com um tipo que conheci em
Nova Detroit. Chama-se Erf Zedden. É técnico espacial e pensa poder
arranjar-me um emprego numa nave mineraleira que faz serviço de carga
entre Marte e Calisto. Neste momento é uma solução que me está a agradar.
— Isso não é lugar para um homem competente.
— Também penso assim, mas sinto necessidade de me afastar por uns
tempos. Preciso de tempo para pensar.
Falei com ele por mais alguns minutos tentando dar-lhe alento, mas
sem grande êxito. Ele agradeceu-me e retirou-se. Só dois anos depois o voltei
a ver.

4. ERF ZEDDEN
Encontrei o Mark Jackson novamente em Nova Iorque e achei-o com
um aspecto tão miserável que parecia estar em vias de se deitar a afogar no
rio. O meu dinheiro é escasso e ele diz-me que o dinheiro que conseguiu pela
venda de algumas das suas coisas a um museu se está a esgotar. Nisto,
exclamo:
— Raios! Vou voltar para Marte dentro de alguns dias. Venha comigo
aos escritórios da Companhia Mineira Jupiteriana, que eu arranjo-lhe um
emprego. A carreira Marte-Calisto é boa e fácil, o ordenado é bom e quando
se está demasiado velho para se carregar com o minério eles reformam-nos e
dão-nos uma boa pensão. Que é que você perde com isso?
Ele diz-me que vai pensar no assunto, mas que quer encontrar-se com
mais algumas pessoas. Ao fim do dia vem ao meu hotel.
— Quando é que partimos? — Perguntou.
E foi assim que lá fomos, a caminho de Marte.
Acreditem-me. Este Jackson é bom homem. Ao fim de dois meses
neste emprego já é meu chefe. No fim do ano é ele quem dirige toda a
organização em Calisto e a Companhia Mineira Jupiteriana gratifica-me por
eu o ter recrutado. Nunca vi um tipo subir tão depressa, mas, não sei porquê,
ele não parece feliz. Contudo, apesar da altura a que subiu, continuamos a ser
bons amigos, e sempre que vou a Calisto fico em casa dele.
Por isso é natural que quando começo a falar de umas férias na Terra
ele pense logo que poderia também tirar férias, e assim começamos a
combinar ir juntos e gozar um pouco a vida no velho planeta.
Afinal sigo eu à frente, porque ele insiste em fazer uma paragem na
Lua para uma visita turística. Ainda lhe digo:
— Que é que há assim de tão especial na lua da Terra quando você tem
estado a viver numa das luas de Júpiter desde há quase dois anos?
Não me dá ouvidos, e por isso dirijo-me à Cidade Estelar com um dia
de avanço sobre ele. Encontro um quarto para ambos numa hospedaria
espacial e na manhã seguinte deixo-lhe uma nota pedindo-lhe para se
encontrar comigo no Clube dos Foguetões e saio para me juntar a duas
raparigas. Foi neste dia que as coisas começaram a aquecer na Terra.
As raparigas que me acompanham não são qualquer coisa; são altas e
robustas, com capas tão transparentes que bem podiam não usar nada que
nenhuma diferença faria. Usam os cabelos apanhados para cima, num
daqueles estilos que desafiam a gravidade, e parece que são movidas a
energia nuclear. Estou a pensar que estas férias vão ser daquelas que vale a
pena recordar.
Sentamo-nos no Clube dos Foguetões a tomar umas bebidas e pouco
depois aparece Jackson, pelo que voltamos para a hospedaria, subindo a
Avenida Plutão. De repente surge-nos uma turba de gente, que corre na nossa
direção.
Como disse atrás, este foi o dia em que as coisas começaram a aquecer
na Terra. Encostamo-nos a um edifício enquanto a turbamulta passa e
conseguimos ter uma rápida visão da cara lívida do homem que eles
perseguem. Está a fugir para salvar a pele e os seus perseguidores são o
magote de assassinos mais odioso que até hoje já vi.
— Livrámo-nos de boa! — Diz uma das raparigas. — Vamos vê-los a
acabar com ele!
Jackson não ouviu as notícias que correm e brada:
— Eh! Que é que se passa?
Não há tempo para lhe explicar. A turbamulta passa a galope e eu
consigo mandar parar um táxi aéreo para onde subimos, ficando por ali a
flutuar juntamente com o resto da frota que observa o espetáculo.
— Porque estão eles a persegui-lo? — Pergunta Jackson.
— Ele é um hipno — digo-lhe.
De facto é um hipnotizador bastante bom e está a dar um ótimo
espetáculo. De vez em quando olha para trás sobre o ombro e imobiliza dois
ou três membros da turbamulta. Os outros derrubam-nos sem cerimónia e
passam por cima deles, continuando a correr. À distância consigo ver
algumas patrulhas aéreas a aproximar-se a grande velocidade e penso cá para
mim se elas chegarão a tempo.
É claro que não chegam. O hipno corre tanto quanto pode até que se
volta para enfrentar a multidão. Mesmo um hipno de grau I, como ele era,
não teria qualquer hipótese. Basta à turbamulta evitar-lhe os olhos. Logo o
derrubam e espezinham, com as facas em riste e quando as patrulhas aterram
já a pequena multidão se espalhou, não lhes restando mais nada que fazer
senão limpar toda aquela confusão de despojos.
O táxi deixa-nos na hospedaria. As raparigas ainda estão a dar gritinhos
de excitação e Jackson parece enjoado. Seguimos para o nosso quarto, ele
deixa-se cair numa cadeira e toma um bom gole de gim marciano.
— Mas porquê? — Pergunta.
— Porquê o quê? — Diz uma das raparigas.
— Porque é que mataram o homem?
A rapariga fica a olhar para ele espantada.
— Não ouviu dizer?
— Não ouvi nada. Acabo de chegar da Lua há apenas algumas horas...
Lembra-se?
Vou até ao visiscópio e pomo-nos a olhar para ele. Paris: seiscentos
hipnotizadores assassinados, e o número continua a subir. Imagens de
multidões a perseguirem hipnotizadores. Aplausos e risadinhas das raparigas.
Londres: mais de duzentos hipnos assassinados. Multidões incontroladas
perseguindo-os pelas ruas. O Instituto Internacional de Hipnologia em
chamas. Nova Iorque: declarada a lei marcial. Não existe uma estimativa do
número de mortos. E por aí fora...
— O Comité do Congresso publicou um relatório esta manhã — diz
uma das raparigas. — Há milhões de hipnotizadores na Terra e oitenta e
cinco por cento deles são vendedores. Cada vez que alguém se volta, logo um
deles lhe vende qualquer coisa, deixando o comprador a pensar porque é que
comprou aquilo, até que vem outro e lhe vende outra coisa. Cheguei aqui
vinda de Vénus há três meses. Sabe quantos carros aéreos tenho? Três. Nem
sei como usar um, mas tenho três. O último comprei-o há uma semana,
juntamente com o aluguer de uma garagem a uma milha e meia de distância
do meu apartamento. Troquei o novo por um dos que já tinha? Não. Por isso
não deixo de me perguntar: «Porquê? Porquê fazer uma coisa tão estúpida?»
Então, esta manhã tive conhecimento deste relatório e fiquei a saber. Foram
os hipnos que me venderam tudo. Tenho dois sintetizadores de alimentos no
meu apartamento. Um deles dá para alimentar dez pessoas, e eu vivo sozinha
a maior parte do tempo. Miseráveis hipnos! Tenho roupa que me chega para
dez anos! Tenho um visiscópio em cada divisão da minha casa. Há tanto lixo
por toda a parte que nem me posso mexer à vontade. Vim para a Terra com
bastante dinheiro e passados três meses já não tenho nada e vou ter de pagar
toda esta sucata durante vinte anos. Os hipnos! — E dizendo isto sibila como
uma daquelas cobras que vi no Zoo da última vez que estive na Terra.
— A minha irmã tem três alcatifas a forrarem o chão da casa dela —
diz a outra rapariga. — Alcatifas caras, umas sobre as outras. Teria passado
um mau bocado com o marido se não fosse o facto de ele próprio ter
comprado quatro carros aéreos.
O visiscópio continua a mostrar imagens das várias cidades. A crise é
planetária e, de Moscovo a Honolulu, os hipnos são perseguidos através das
ruas ou expulsos das suas casas à força.
— Deixe-me dizer-lhe uma coisa — sentencia uma das raparigas. —
Quando isto tiver acabado, os hipnos, se alguns restarem, não venderão mais
nada. Se não for o Governo a pôr cobro à situação, nós próprios nomearemos
um novo governo.
Jackson bate palmas, beija ambas as raparigas e dá-me uma palmada
nas costas. Reparo que há uma expressão galhofeira nos seus olhos que nunca
antes havia visto.
— E eu arranjarei um emprego como vendedor — diz ele. — Alguém
bebe?
Na manhã seguinte corremos com as raparigas e tomámos um foguetão
para Nova Iorque. Elas não ficam muito satisfeitas com a brincadeira, pois
estavam a contar talvez com um mês passado na companhia de homens do
espaço endinheirados e de boa posição e afinal acabaram por ser corridas.
Jackson abastece-se de notícias em banda antes de tomarmos o foguetão e
não tira os olhos delas durante todo o percurso até Nova Iorque, a ler o que
dizem sobre os tumultos.
Também leio alguma coisa, só para passar o tempo, e não vejo nada
que seja muito emocionante sobre o relatório do Congresso. Somente se diz
que os hipnos constituem um estrato da população maior do que se supunha e
apresenta-se uma análise das suas ocupações por ramos: dois por cento são
políticos, oito por cento trabalham nalguma especialidade médica, três por
cento são criminosos, dois por cento distribuem-se por várias atividades e
oitenta e cinco por cento são vendedores.
Isto não significa grande coisa para nós, técnicos espaciais. Os
vendedores nunca nos incomodaram porque nós não temos cartões de crédito.
O resto da população, porém, tem dividas até à ponta dos cabelos, por
comprar, comprar até mais não, coisas que não pode pagar. Quando o
relatório é publicado, as pessoas começam a somar dois com dois e não
gostam da resposta que obtêm.
Em Nova Iorque, Jackson arrasta-me com ele para um elegante edifício
de escritórios. A tabuleta que se encontra por cima da porta diz EMPRESA DE
VENDAS TERRA e lá dentro tudo está num pandemónio. Há polícias de guarda,
há homens a substituir vidros partidos e a varrer lixo do grande átrio e todos
os empregados estão com cara de quem acaba de perder um tio rico que não
deixou testamento.
Jackson parece verdadeiramente satisfeito com tudo e consegue
convencer os guardas e as secretárias a deixarem-no passar. Acabamos por ir
ter ao gabinete de um homem chamado Stephens.
Este cumprimenta-nos muito cortesmente, embora seja óbvio que não
está com disposição para falar seja com quem for.
— Lembro-me de si — diz ele a Jackson. — Você é o homem do...
Como tem passado?
Jackson puxa duas cadeiras para nos sentarmos e inclina-se sobre a
secretária, como se ela lhe pertencesse a ele e não a Stephens. Depois de o ter
visto a trabalhar em Calisto pergunto a mim próprio se ele não irá talvez
apoderar-se do lugar do outro.
— Compreendo agora porque é que você não quis empregar-me — diz
Jackson. — Todos os seus vendedores são hipnotizadores.
Stephens acena que sim.
— É claro que são!
— E se um homem fosse incapaz de o hipnotizar convencendo-o a
empregá-lo, você recusava-o.
Stephens acena que sim novamente.
— A minha resistência à hipnotização é maior que o normal, e se um
homem for capaz de me hipnotizar é porque é bom. É claro que não
empregávamos qualquer hipnotizador.
— De acordo com as notícias em banda de hoje, o Governo irá atuar
antes do fim do dia para vos impedir de voltar a empregar hipnotizadores.
Portanto, quero um emprego.
— A resposta ainda é negativa — diz Stephens.
— Se você vai ficar impedido de empregar hipnotizadores, terá de dar
os lugares a outras pessoas ou então desistir do negócio.
— Tivemos esta manhã uma reunião para definição da política a seguir
— diz Stephens. — O conselho geral das empresas de vendas também se
reuniu e decidimos todos suspender as nossas atividades se a situação chegar
a tal ponto que a isso nos obrigue. — Sorri para nós, mas vê-se que o seu
sorriso não significa felicidade.
— Quaisquer restrições que o Governo imponha não poderão durar
mais de um mês. Será o tempo suficiente para provocar a pior crise
económica da história. A nossa economia não pode de modo nenhum
funcionar sem os hipnotizadores. Não há outro meio de fazer a população
comprar as enormes quantidades de bens materiais produzidos. Lamento, mas
a recomendação que lhe fiz há dois anos ainda é válida.
— Penso que você ainda não compreendeu a situação — diz Jackson.
— Estas restrições não vão ser temporárias, mas como já esperei mais de dois
anos, sou capaz de esperar um pouco mais.
Stephens diz-lhe amigavelmente que é tempo perdido e despedimo-nos
dele.
— Que é que vai acontecer agora? — Pergunto.
— Vamos pedir à Companhia Mineira Jupiteriana uma licença
ilimitada — responde Jackson. — Depois arranjamos empregos como
funcionários públicos, onde a crise de que ele falou não nos afetará, e
esperaremos. Tenho a certeza de que vou conseguir um emprego como
vendedor. Talvez até consiga fazer de si um vendedor!
Não me agrada muito aquela ideia, mas como simpatizo com este tipo
vou atrás dele. Não temos qualquer dificuldade em obter as licenças
ilimitadas. Já trabalho na Companhia há dezoito anos e tenho bastantes
licenças acumuladas para gozar. Por outro lado, Jackson é um funcionário tão
bom que eles o querem de volta. Arranjamos assim empregos no Serviço
Postal e aguardamos a ver o que acontece.

5. ARNOLD STEPHENS
Na ocasião em que Mark Jackson me veio ver, pensávamos realmente
que poderíamos aguentar o tempo suficiente para que os nossos
hipnotizadores regressassem ao trabalho. A crise desenvolveu-se
rapidamente. Da noite para o dia, a nossa economia passou de uma situação
em que todos compravam tudo para outra em que ninguém comprava nada.
Milhões de trabalhadores ficaram desempregados ao fim da segunda semana
e este número aumentava diariamente. Os desempregados nada compravam;
os seus fundos de reserva foram desviados para as reformas sociais, exceto os
dez por cento reservados ao subsídio de alojamento, que foram absorvidos
pelos arrendamentos. Pareciam no entanto perfeitamente satisfeitos ao
passarem sem luxos, tais como alimentos frescos, e bastava-lhes o usufruto
das compras antigas. A família média possuía um sintetizador de alimentos
por pessoa e poderia ter subsistido à base de comida sintetizada durante um
ano ou mais sem necessidade de reabastecimento. Os que tiveram a sorte de
não perder os empregos pagaram relutantemente as coisas que já haviam
adquirido e tentaram economizar algum dinheiro.
Todas as nossas previsões se confirmaram, com exceção de uma:
mesmo com a economia em situação de catástrofe, o Congresso recusava-se
ainda a revogar as suas leis antihipnos. Só três meses depois conseguimos
persuadir um congressista a apresentar nova legislação, o que ele fez, para
logo no dia seguinte a retirar, quando os seus eleitores principiaram a fazer
circular uma petição nesse sentido.
Foi então que aceitámos o inevitável e começámos a empregar não
hipnotizadores para os lugares de vendedores. Fiz então um esforço para
localizar Jackson, mas ele não deixara endereço e a companhia mineira para a
qual trabalhara não sabia nada dele, exceto que estava de licença.
Um mês depois apareceu-me.
— Então você está finalmente a empregar não hipnotizadores! — Disse
ele.
— Pois estou — confessei.
— Um deles tentou hoje vender-me um carro aéreo. Nunca assisti a
uma atuação tão miserável! Fez-me parar na rua e pôs-se a gaguejar
desajeitadamente durante pelo menos cinco minutos, até que finalmente
disse: «Não está interessado em comprar um novo carro aéreo, pois não?»
Respondi que não, e ele agradeceu-me muito atencioso, afastando-se.
Depois de me relatar isto riu-se a bandeiras despregadas e eu tive de me
calar, pois pouco poderia acrescentar.
— E agora olhe para isto — disse ele, desdobrando-me sob os olhos um
noticiário em banda.
Numa pequena caixa ao centro da página, um título mandava-me olhar
para os meus sapatos, o que eu não fiz, continuando porém a ler a notícia.
«Está com aspecto andrajoso e miserável? Compre um novo e cintilante par
de EXCONS!»
— Que diabo é isto? — Exclamei.
— É um anúncio. O primeiro anúncio do século XXIV que vejo. Não
está mau, para uma profissão que agora nasce. É trabalho muito mais perfeito
do que o que vi fazer àquele vendedor! — Respondeu.
Puxei para fora o mapa de vendas das últimas quatro semanas e
estendi-o sobre a secretária. Jackson ficou a olhar para ele abismado.
— Não tem vendido nada?
— Nada. Nem uma venda. Pusemos um milhar de vendedores não
hipnotizadores em campo e até agora nem uma só venda fizeram. As pessoas
estão tão encantadas por serem agora capazes de dizer não às suas propostas
que não querem comprar nada. Você pensa que seria capaz de dar um jeito?
— É claro que seria, cos diabos!
Apesar de a nossa situação ser desesperada, hesitei. Ele era uma pessoa
tão agradável que me custava vê-lo falhar!
— Estou certo de que numa sociedade onde não existem vendas
hipnóticas os vendedores desenvolvem faculdades e técnicas altamente
especializadas e eficientes, mas tenho muitas dúvidas sobre se essas técnicas
terão êxito numa sociedade onde todas as vendas se têm baseado no
hipnotismo — disse eu. — Dar-lhe-ei uma oportunidade e toda a ajuda de
que necessitar. Só espero que não fique muito desapontado com os
resultados. Vou levá-lo ao armazém e pode lá escolher o que quiser vender.
Jackson sorriu.
— Há muito tempo que esperava por isto. Vamos lá então!
A sua escolha recaiu sobre um belíssimo ornamento doméstico: uma
fonte em miniatura portátil, que incluía a sua própria fonte de energia e que
produzia uma fascinante cascata de cores ao premir-se um botão. Expliquei-
lhe como utilizar os nossos boletins de encomenda e ele por sua vez pediu-me
um gravador de bolso para levar consigo.
— Importa-se que eu o observe enquanto trabalha? — Perguntei.
Julgo que a ideia lhe agradou. Passou algum tempo a escolher um
edifício de apartamentos e quando finalmente tomou uma decisão perguntei-
lhe a razão da escolha.
— Escolhi estes por serem funcionários públicos — esclareceu. —
Ainda estão empregados mas não pertencem a uma classe de rendimentos
suficientemente elevada para que as suas portas tenham telas de
visionamento. Se se quiser vender a uma dona de casa, tem de se poder pôr o
pé na porta.
Começou logo a sua primeira visita, antes mesmo de eu ter tido tempo
de lhe pedir para me explicar melhor aquilo. Assim que a porta se abriu fez
uma grande vénia e disse:
— Estamos a fazer um inquérito ao consumo. Importa-se que
entremos?
Não sei qual de nós dois estava mais espantado, se eu ou se aquela
gorducha dona de casa que recuou serenamente e nos mandou entrar.
Fiquei à porta enquanto ele dava uma volta pela sala de estar
inspecionando os móveis. A dona de casa seguia-o parecendo a cada passo
mais perplexa.
— Os móveis estão em razoáveis condições — observou ele. — Mas a
senhora está com bastante falta de espaço, não está?
A senhora gaguejou:
— Bem, não...
Este esquema de cores não joga muito bem. Foi a senhora quem o
escolheu?
— Eu...
— E a disposição da sala também deixa a desejar. Lamento, mas não
pode concorrer.
— Concorrer a quê? — Perguntou ela.
Jackson tirou a fonte do saco, pô-la sobre a mesa e carregou no botão.
A sala ficou inundada de cores. Olhei para a satisfação infantil expressa na
cara daquela dona de casa e pensei que ele ia mesmo conseguir vender
aquilo. No instante seguinte, porém, o que Jackson fez emudeceu-me por
completo.
— Fui autorizado a colocar um número limitado destas maravilhosas
fontes nas casas que o merecessem — disse ele. — Contudo, conforme lhe
disse, a sua está impossibilitada de concorrer. Lamento-o.
Desligou a fonte, meteu-a no saco e encaminhou-se para a porta.
Poucas vezes vi uma mulher tão furiosa. Com a face congestionada e
agitando os braços, postou-se à entrada da porta e recusou-se a deixá-lo sair.
Os dois discutiram durante alguns minutos e ele acabou por ceder e deixá-la
assinar um boletim de encomenda.
Havia sessenta e dois apartamentos naquele edifício. Jackson vendeu
sessenta e duas fontes sem modificar uma vírgula à sua técnica. Depois
entregou-me os boletins de encomenda e disse num tom de quem pede
desculpa:
— Estou um pouco em baixo de forma e cansado. Para mim foi um dia
fatigante.
Eu estava exausto só de o ver em ação e custava-me a acreditar no que
havia visto. Não parava de perguntar a mim próprio se era assim que se
vendia no século XX. Insultando os clientes e tentando impedi-los de
comprar. Fui para casa e deitei-me cedo.
Um telefonema de Jackson acordou-me pouco depois da meia-noite.
— É melhor vir aqui à Central da Polícia — disse. — Estou preso.
— Preso? — Exclamei. — Como... O que é que... — Gaguejei.
— Estou preso por ser acusado de venda hipnótica. Estão aqui vinte e
um maridos a queixar-se de que eu lhes hipnotizei as mulheres para que
comprassem aquelas fontes. Dizem-me que a pena máxima é a prisão
perpétua. Admira-me que não seja condenado à morte!
Naquele momento tive uma ligeira dúvida, pois pensei na sua estranha
atuação e nas invulgares reações daquelas mulheres.
— Jackson, você por acaso não as hipnotizou, pois não? — Perguntei.
— Claro que não! — Berrou ele.
— Vou já para aí!
Contactei o consultor jurídico da empresa e combinámos ir juntos. A
Central da Polícia estava agitadíssima. Havia mais de quarenta maridos
queixosos quando lá chegámos e o número ia aumentando. Alguns traziam
consigo as mulheres e argumentavam encolerizados. As mulheres
confessavam que Jackson não lhes vendera nada. Na realidade, havia mesmo
tentado recusar-se a vender o que quer que fosse. Elas é que tinham insistido
porque queriam a fonte. E ainda a queriam. Um grupo de juízes convocados à
pressa escutava as declarações, ouvia uma gravação das várias entrevistas
com as donas de casa feitas por Jackson no seu gravador de bolso e emitiu
cautelosamente a opinião de que, se bem que um hipnotizador pudesse ter
fascinado daquele modo os seus potenciais clientes, não compreendiam
porque se daria ao trabalho de o fazer assim. Um psiquiatra declarou que
Jackson não era hipnotizador, mas sim um psicólogo extremamente hábil e
talvez muito mais perigoso. Os jornalistas tomavam notas alegremente e
fotografavam e entrevistavam as mulheres. Jackson acabou por ser libertado.
Na manhã seguinte a sua fotografia apareceu nos visiscópios e ao alto
de todos os noticiários em banda. As legendas chamavam-lhe MESTRE DOS
VENDEDORES. Jackson irrompeu no meu escritório e disse furioso:
— Temos de acabar com isto!
— Você é a notícia — respondi eu. — É a primeira vez, desde há
longos meses, que alguém, em todo o planeta, compra alguma coisa sem ser
por absoluta necessidade! Não podemos impedir que os meios de
comunicação falem disso!
— Mas eu é que não estou a gostar da brincadeira — disse ele
encolhendo os ombros. — Vem hoje comigo de novo?
Foi ao armazém e tirou fotografias a cores dos últimos modelos de
carros aéreos. A seguir precipitámo-nos na direção do parque de
estacionamento governamental. Vinha a entrar um veículo um tanto ou
quanto estafado e Jackson aproximou-se do condutor, que era um corpulento
funcionário do governo com ar importante.
— O senhor é o dono desta sucata? — Perguntou.
O homem estremeceu.
— Ouça lá, donde é que eu o conheço?
Jackson ignorou a pergunta.
— Estou surpreendido por ver um homem com a sua posição a voar
numa cafeteira destas! Olhe só para aquele carro que ali está.
Dizendo isto, apontava para um modelo faiscante que obviamente fora
comprado antes de os tumultos terem ocorrido.
— As pessoas avaliam um homem pelo carro que conduz. Aposto que
os vizinhos do dono daquele carro pensam que ele é alguém na vida.
A cara do homem passou por diversos estádios de perplexidade.
— Nunca pensei nisso — confessou. — As crianças realmente
desgastam um carro num instante. Tenho cinco carros aéreos e todos estão
neste estado.
— Isso resolve-se facilmente — respondeu Jackson. — Compre um
carro novo e reserve-o só para si. É bonito, não é? — Perguntou exibindo
uma das fotografias que havia tirado.
— Sem dúvida! — Admitiu o homem.
Subitamente apareceu uma nota de encomenda nas mãos de Jackson.
— Assine aqui e farei com que lho entreguem esta tarde.
O homem assinou. E foi assim que vi Jackson vender sete carros aéreos
antes do meu regresso ao escritório. Quando ele me apareceu ao princípio da
tarde trazia consigo trinta e nove notas de encomenda assinadas.
Trinta e nove vendas importantes! Nenhum vendedor hipnotizador
conseguira jamais controlar tantos clientes de categoria num só dia!
— É assombroso! — Exclamei. — Você tem a certeza de que não tem
qualquer espécie de capacidade hipnótica latente?
— Se a tivesse não seria vendedor. Onde está o prazer de vender se o
cliente não pode dizer não?
— Seja o que for que você tem, estou convencido. Nunca fui
convencido tão eficazmente na minha vida. Vou pedir ao conselho de
administração para o nomearem vice-presidente, encarregado da formação do
pessoal de vendas. Se você souber ensinar os outros a fazer o que vem
fazendo...
— Ainda não. Preciso de experimentar um pouco mais. Há nisto uma
coisa que me aborrece: é que as pessoas são demasiado ingénuas. Com os
métodos infantis que estou a utilizar devia estar a enfrentar muitas negativas,
e isso não está a acontecer. Amanhã vou tentar vender fontes novamente.
Jackson foi outra vez foco de notícias na manhã seguinte, bem como os
homens a quem ele vendera os carros. Alguns deles estavam vexados, outros
revoltados e só um ou dois pensavam que realmente precisavam de um carro
novo.
— Gostava que eles deixassem de falar no assunto — desabafou
Jackson.
— Mas não deixam — disse-lhe eu. — Já lhe disse que você é notícia e
que as pessoas que lhe fazem compras também o são. Você acaba por se
habituar, verá.
Pegou numa fonte no armazém e começou a fazer a sua volta. A
primeira dona de casa recebeu-nos à porta olhando-nos demoradamente e
dando depois um gritinho de satisfação.
— Ah! Você é o tal vendedor! Eu vi a sua fotografia. Entre, por favor.
Jackson fitou-me, encolheu os ombros com enfado e pôs depois um
sorriso para uso exclusivo da dona de casa. Seguimo-la até à sala de estar e
ela não o largava, excitada.
— Li tudo o que se tem publicado sobre isto — disse efusivamente. —
Repita comigo exatamente como fez com todas as outras mulheres!
Jackson mantinha o sorriso com dificuldade. Deu uma vista de olhos
pela sala e disse:
— Não, desculpe-me. A senhora não pode concorrer...
Ela estremeceu de tanto rir.
— É mesmo assim! É exatamente assim! Não me escapou relato
nenhum! Faça mais um bocadinho!
— A sua sala de estar é demasiado pequena.
Outra gargalhada.
— É assim, é!
— A combinação de cores é péssima.
— Isso mesmo!
Jackson pôs a fonte sobre a mesa.
— É um lindo ornamento, mas lamento que a senhora não possa
concorrer.
— Está bem — disse ela. — O meu marido também não me deixaria
comprá-la. Mas de qualquer modo agradeço-lhe muito por me ter feito a
demonstração.
Vimo-nos de novo no vestíbulo e ambos estávamos tremendamente
enervados. Passámos por mais dez sessões com donas de casa fascinadas e
galhofeiras, até que Jackson desistiu e foi para casa. Não vendeu nenhuma
fonte.
Na manhã seguinte dedicou-se de novo aos carros aéreos, mas
regressou antes do meio-dia sem encomendas.
— Dão-me pancadinhas nas costas e convidam-me a ir tomar uma
bebida. Tomei esta manhã mais bebidas à borla do que em qualquer semestre
de que me lembre. Dão umas voltas comigo e apresentam-me aos amigos, e
quando tento encaminhá-los para o assunto que ali me leva, que é vender,
riem-se na minha cara e dizem: «Ah! Você é então o tal vendedor!
Experimente vender-me qualquer coisa.»
— É a publicidade — lembrei eu.
— Pois. Vou ter de pensar em qualquer coisa de novo.
E pensou. No dia seguinte foi sensacional. Mas no outro dia não
conseguiu vender nada. À medida que os dias passavam repetiu-se aquele
esquema inúmeras vezes. Ele tentava um novo método e obtinha um êxito
fenomenal. Invariavelmente um exército de jornalistas recolhia o nome dos
seus clientes na Central de Crédito, entrevistava-os e na manhã seguinte
todos os pormenores eram revelados espetacularmente ao público leitor e
ouvinte. E assim, aquele método nunca mais resultava.
— Julgo que percebo o que se passa — disse Jackson finalmente. — Se
apanho este tipo de cliente do século XXIV distraído, ele é incrivelmente
ingénuo. É incapaz de dizer que não. Mas se é avisado previamente, tem uma
resistência terrível à venda. Se ao menos nos pudéssemos livrar desta
publicidade...
— Isso é que não podemos — insisti eu. — A questão que se põe é se
você seria capaz de ensinar outros vendedores a inventar novos métodos
diariamente.
— Não. Com o tempo, alguns deles seriam capazes disso, mas é
necessário ter capacidades inatas para lá chegar e muita experiência de venda.
O máximo que eu poderia fazer a princípio seria ensinar-lhes um método que
eu próprio tivesse ensaiado.
— Mas uma vez que você o tivesse ensaiado ele já não daria resultado.
— Parece não haver dúvidas quanto a isso.
— Então receio que tenhamos sido derrotados — disse eu. — Você está
a fazer um sucesso notável, mas um só homem não pode travar uma crise
económica.
Jackson levantou-se com ar aborrecido.
— Deve haver qualquer maneira de resolver o problema. E se a houver,
descubro-a.
Porém, não a descobriu. Trabalhou incansavelmente, adquiriu uma
expressão de obcecado e tornou-se cada vez mais irritável. Parecia estar a
esgotar-se de dia para dia, até que finalmente o obriguei a descansar uma
semana.
Durante essa semana o Congresso encheu-se de coragem e agiu.
Elaborou então um código minucioso do que poderia ser vendido e a quem,
quanto poderia vender-se de cada mercadoria e autorizou os hipnos a
voltarem ao trabalho. Quando Jackson regressou de férias já a crise
económica dava sinais de recuar. Por muito que eu lamentasse isso, tive de
despedi-lo.
— Você pode voltar ao seu antigo emprego e continuar a fazer a sua
vida como quiser — disse-lhe eu. — Dei o devido valor ao que tentou fazer e
ninguém pode negar que a sua atuação foi notável. Contudo, competir com
hipnos é uma tarefa muito difícil.
Ele reagiu à decisão surpreendentemente bem.
— Eu sei — disse impassível. — Mas ainda penso que posso resolver
este problema. Continuarei a pensar nele. E prometo-lhe voltar. Nunca
esperei voltar a vê-lo.

6. ERF ZEDDEN
Jackson faz-me passar maus bocados enquanto exerce a profissão de
vendedor e a coisa piora dia a dia. Descarrega para cima de mim se a mais
pequena coisa corre mal no apartamento e passa a maior parte da noite de pé
a imaginar a melhor maneira de vender diversas coisas. Penso que o tipo se
está a matar e fico bastante satisfeito quando o chefe dele o faz gozar uma
semana se férias. Vamos passar toda a semana num daqueles hotéis de luxo
que há na Lua, e embora eu odeie o local, não digo nada porque sei que ele
precisa de descanso.
No dia seguinte ao nosso regresso à Terra vai ao trabalho como é hábito
e volta para casa um pouco mais tarde, dizendo-me então que tudo acabou.
Considero que isto é a primeira notícia agradável desde os tumultos. Partimos
para Marte no mesmo dia e a Companhia Mineira Jupiteriana está toda feliz
por nos ter de volta. Por o ter de volta a ele, pelo menos. Fazem-no aceitar
uma despromoção por ter estado ausente tanto tempo, mas não tarda a
reocupar o lugar que antes ocupava e continua a ascender. Em apenas cinco
anos sobe a hierarquia toda até ao lugar de presidente.
Vamos viver em Marte e eu levo uma promoção e um aumento de
vencimento, passando a ser aquilo a que ele chama o seu braço-direito,
função que consiste essencialmente em cuidar que ele se mantenha saudável e
em ocupar-me de pequenas tarefas. Continuo preocupado com ele, porque
vejo que não é feliz, seja qual for a altura a que suba. Já é talvez a décima
milésima vez que me diz: «Quando se é vendedor uma vez, é-se vendedor
para toda a vida.» É vendedor que ele quer ser e convenceu-se de que vai
voltar à profissão qualquer dia e mostrar a todos aqueles hipnos como é que
se trabalha.
Calcorria o apartamento de um lado para o outro com aquela expressão
estranha nos olhos e por vezes mantém-se levantado até altas horas a pensar
nos modos de vender as mais diversas coisas e a ensaiar discursos de vendas,
que pratica em mim. Passo a vida a dizer-lhe que são bons, embora ao fim de
ouvir um ou dois me pareçam todos iguais.
As coisas passam-se deste modo durante um par de anos, comigo cada
vez mais preocupado com a saúde de Jackson, e então dá-se de súbito um
acontecimento na indústria mineira que o faz ter algo mais em que pensar. É
o facto de as minas de Calisto começarem a tornar-se um encargo financeiro
não compensador.
O importante disto é que a Companhia Mineira Jupiteriana está à espera
deste acontecimento desde há cinquenta anos e que em Ganimedes, Europa e
Io estão em curso novas explorações desde muito antes de eu ter iniciado a
minha vida no espaço, tendo a Companhia entretanto feito talvez dez milhões
por cento de lucros sobre o investimento inicial em Calisto e não estando
ninguém desgostoso por abandonar aquela lua.
Ninguém, exceto Jackson. É que ele pensa que se está perante uma
crise, e então arrasta-me para uma reunião de diretores para operar um
projetor de imagens.
— Trata-se de um desperdício escandaloso — diz ele. — Temos seis
cidades de certa dimensão em Calisto e o custo de recuperar todo aquele
plástico fundido seria maior do que o seu próprio valor.
— Nem pense nisso! Se a recuperação custa demasiado, esqueça-a pura
e simplesmente!
— É mau negócio inativar um investimento daquela dimensão.
— Meu caro amigo — dizem eles. — O nosso investimento em Calisto
já foi amortizado há cem anos. A nossa Companhia nunca pensou que as
minas produzissem durante tantos anos. Por isso achamos que é realmente
um bom negócio inativá-lo.
Jackson abana a cabeça e reparo que os seus olhos exibem aquela
estranha expressão a que me vem habituando.
— Calisto é propriedade exclusiva da Companhia Mineira Jupiteriana
— diz ele. — Visto que já não tem qualquer utilidade para nós, peço ao
conselho de diretores licença para a vender.
Faz-se um silêncio de cerca de dois minutos, seguido do riso mais
espontâneo e incontrolado que já ouvi desde os tempos dos tumultos
antihipnos. Aqueles velhotes encostam-se às cadeiras e põem-se, pura e
simplesmente, a rir de maneira estúpida. Vender Calisto? E porque não
vender Marte? Ou a Terra?
Jackson aguarda calmamente que eles sosseguem e apresenta depois
uma moção com a proposta de venda de Calisto, retendo a Companhia todos
os direitos sobre os minérios. Os diretores não veem nada de mal na ideia em
si, a não ser que a acham impraticável, e Jackson consegue uma aprovação
unânime para a sua moção. Na manhã seguinte partimos para a Terra.
Jackson aluga um terminal de dados e passa alguns dias a encher um
livro de apontamentos com notas estatísticas e mais alguns dias a organizá-
las. Vamos então visitar um tal Sr. Whaley, que é presidente de uma grande
agência de viagens.
— Julgo saber que os senhores passaram por um mau período desde
que entrou em vigor aquela legislação sobre a venda hipnótica — diz
Jackson.
Este tal Whaley fica todo satisfeito por encontrar alguém com quem
possa lamuriar-se e expõe-nos os seus problemas. Ficamos a saber que antes
dos tumultos antihipnos ele tem em campo uma equipa de vendedores
hipnotizadores a vender excursões a pessoas que não sentem necessidade
delas. Muitas dessas pessoas nem sequer as querem depois de as terem
comprado e portanto não chegam a utilizar os bilhetes, o que acrescenta uma
bonita fatia aos lucros puros da agência de viagens. Depois dos tumultos, o
Governo põe um travão no negócio.
— Desde então tem andado à procura de atrações invulgares para
induzir as pessoas a viajarem, não é assim? — Pergunta Jackson.
— É assim mesmo — confessa Whaley.
— E neste preciso momento estão a pensar construir um hotel de luxo
na Lua, para noivos em viagem de núpcias.
— Pensámos nisso, mas já desistimos — diz Whaley. — Os hotéis que
já lá existem far-nos-iam uma enorme concorrência e os custos de construção
têm subido tão depressa que teríamos de cobrar tarifas que os casais jovens
não poderiam suportar.
— Mas eu tenho uma resposta para o seu problema. Leve os seus
noivos para Calisto, onde já existem instalações ótimas. Só teriam de fazer
algumas alterações, mas as despesas seriam mínimas.
— Calisto fica demasiado longe. A maior parte da lua-de-mel já teria
passado quando os noivos lá chegassem.
— Estou certo de ter na minha posse factos que lhe interessarão — diz
Jackson abrindo o livro de apontamentos.
Durante vinte minutos submerge Whaley com dados estatísticos.
Assim, informa-o de que noventa por cento dos que emigraram para Marte
são jovens e solteiros e de qual é a percentagem de casamentos naquele
planeta. Mostra-lhe ainda dados sobre o montante que o Governo está a
despender para interessar os cidadãos da Terra a fixarem-se em outros locais
do sistema solar e diz-lhe que o Governo concederia com satisfação subsídios
para a constituição de uma frota equipada com motores militares rápidos,
destinada a servir as viagens de núpcias.
— A elevada percentagem de casamentos em Marte assegura-lhe um
negócio estável logo desde o início, o qual dará receitas que excederão os
custos de exploração — diz ele. — Poderá controlar o negócio das viagens de
luxo na Terra e no resto do sistema solar. E, o que é mais ainda, terá algo
para vender. Algo que interessará e excitará as pessoas. Pense nas frases
publicitárias que poderá usar: «Lua-de-mel por entre as luas», «As dezasseis
luas de Júpiter», «Lua-de-mel sob Júpiter, a maior lua do Universo.» Não é
um êxito certo?
Whaley sacode dos olhos a expressão sonhadora com que está e diz:
— Diga-me só o que está a querer vender-me!
— Calisto — responde Jackson.
— Não temos dimensão suficiente para isso. Nenhuma agência de
viagens tem a dimensão suficiente para um empreendimento desses.
— Se as agências se juntarem já têm a dimensão suficiente. Todos
lucram. O meu plano destina-se a criar oportunidades de negócio.
— Não tenho autoridade para tal. Teria de resolver o assunto com o
conselho.
É claro que o episódio termina com Jackson a vender-lhes Calisto. Pelo
menos vende-lhes os direitos de superfície da Companhia Mineira Jupiteriana
em Calisto, mas para as agências noticiosas isso vem a dar na mesma.
Durante alguns dias somos esmagados pelos jornalistas e Jackson salta para
as primeiras páginas dos jornais com títulos como «O MESTRE DOS
VENDEDORES VENDE UMA LUA». Os diretores da Companhia Mineira
Jupiteriana enviam-lhe uma gratificação e decidem por votação atribuir-lhe
uma parte das ações da Companhia. Dizem-lhe ainda para gozar umas férias,
aproveitando o facto de se encontrar na Terra. Está-me a parecer que ele vai
começar de novo a pensar no regresso à profissão de vendedor, mas afinal
isso não acontece. Só tira umas férias.
Então, um dia, o tal Stephens, da Empresa de Vendas Terra, convida-
nos para jantar. Penso que talvez ele queira que Jackson volte a trabalhar com
ele, mas não, somente comemos um belo jantar enquanto Jackson é
apresentado à sua filha. Pelo modo como ambos reagem, penso que Jackson
será um dos próximos clientes das viagens de núpcias a Calisto.
— Vejo que você acabou por resolver o seu problema — diz Stephens.
— É verdade. Se as minhas atuações de venda não dão resultado mais
que uma vez, só me resta vender qualquer coisa que só se venda uma vez.
Na ocasião não entendo a frase, mas neste momento estou a pensar no
seu real significado. Jackson casa-se com a filha de Stephens e leva-a para
Marte, onde se instala para criar uma grande família e aumentar os lucros da
Companhia Mineira Jupiteriana. Está a um passo de ser o próximo presidente
do conselho de administração, o que é um triunfo notável para um indivíduo
jovem como ele, mas vejo que ainda não está satisfeito consigo próprio.
O problema é que Calisto não resolve realmente o seu mal. Ele não se
sente feliz se não estiver a vender qualquer coisa, e até eu sou capaz de
entender que um homem que vende coisas que somente se podem vender
uma vez irá passar muito tempo desempregado. Conforme o próprio Jackson
confessa, a oferta de luas é ainda mais diminuta que a procura.
Nos últimos tempos tenho visto aquela expressão estranha nos seus
olhos e fico incomodado por o ver com aquele ar quando não há nada que ele
possa vender. Penso que talvez isto tenha alguma coisa que ver com o tempo
que passa a estudar um velho livro pelo qual pagou a um antiquário, lá em
baixo na Terra, uma pequena fortuna. O livro chama-se O Hipnotismo sem
Mestre.
4
O Dia do Juízo
(«Judgement Day»)

Este conto foi publicado pela primeira vez em Abril de 1958


na revista Fantastic Universe Science Fiction
© King-Size Publications, Inc.
Lem Dyer estava habituado a que falassem dele. Durante anos a fio as
pessoas pensaram que ele ou era um pouco apatetado ou um inofensivo
sonhador ou talvez uma espécie de profetizador, e em Glenn Center, quando
as pessoas pensavam alguma coisa, costumavam dizê-lo. Lem nunca se
importou com isso.
Naquela noite os comentários que sobre ele se faziam eram outros;
eram comentários infamantes e falsos. Lem ouviu alguns deles, que eram
bolsados pela multidão reunida por baixo da janela da sua cela. Encostou
contra a parede de cimento a velha e estafada cadeira e sentou-se ali no
escuro, fumando lentamente o seu cachimbo de carolo de milho e prestando
pouca atenção às discussões, à gritaria grosseira e aos escárnios que sobre ele
lançavam. «Parvoíces!», pensou. «A bem dizer, não significam nada.»
Pouco depois ouviu a voz troante do xerife a dirigir-se à multidão,
dizendo aos homens que regressassem a suas casas, que não havia motivos
para se preocuparem e que deviam deixar Lem Dyer a sós com a sua
consciência.
— Ele será enforcado ao nascer do Sol, e isto é tão certo quanto o Sol ir
nascer amanhã — disse o xerife Harbson. — Agora vão para casa e metam-se
na cama. Não querem dormir de mais e deixar passar a hora, pois não?
Houve mais comentários e depois os homens começaram a retirar-se e
as coisas a acalmar-se. O xerife regressou à cadeia e trancou a porta da frente.
Lem ouviu-o falar com os ajudantes, admitindo que ele podia ser ou não o
que as pessoas diziam que era, mas que sem dúvida era um tipo estranho.
— Vai ser enforcado pela manhã — dizia o xerife —, mas está ali
sentado na cela a fumar cachimbo tal como costumava fazer de noite, lá na
sua cabana. Olhando para ele pensar-se-ia que nada havia acontecido... Ou
iria acontecer.
Lem ria-se de mansinho consigo mesmo. O xerife era bom homem;
dera-se ao trabalho de ver se Lem estava confortavelmente instalado e de lhe
trazer pequenas coisas como tabaco e até um uísque de vez em quando.
Quando Lem lhe havia agradecido a atenção, ele respondera: «Que diabo! Já
não é castigo suficiente ter de o enforcar?»
Lem fumava com satisfação o seu cachimbo e resolveu fazer alguma
coisa pelo xerife. Porém, só o faria mais tarde, quando tudo tivesse passado.
Ele queria dizer ao xerife que não ia haver nenhum enforcamento e que
estava a gastar dinheiro escusado a construir aquela forca e a aprontar tudo,
mas não o podia fazer sem lhe falar das imagens, da sua observação e
escolha, e disso nunca ele falara a ninguém. Talvez tivesse mesmo sido
melhor não ter falado, visto que a forca aparecia nas imagens.
Vira tantas imagens que já lhe doía a cabeça, e a forca estava em todas
elas, com o povo em redor e Lem Dyer balouçando pendurado pelo pescoço.
Depois havia uma imagem em que um ajudante do xerife saía da cadeia a
correr e a gritar que parassem porque o governador acabara de telefonar
concedendo a Lem Dyer um indulto temporário e em que o povo, rindo para
Lem ali pendurado, respondia, aos gritos, que lhe cortassem a corda e o
indultassem.
Fora simpático da parte do governador, pensou Lem, interessar-se por
ele, pelo que continuou a olhar para as imagens, tentando descobrir uma em
que o governador telefonasse a tempo. Havia uma em que o xerife Harbson
se sentia doente precisamente quando levava Lem para a forca e se deitava ali
mesmo no chão com um aspecto terrível. Lem não gostara dessa imagem,
apesar de ela poder suspender o decurso dos acontecimentos até o governador
telefonar. Havia outra imagem em que se via um incêndio no Hotel Glenn,
mas algumas pessoas ficavam feridas e Lem não queria que isso acontecesse.
Continuara a olhar até que finalmente descobriu uma em que a corda se partia
ou se desatava e em que ele caía pelo alçapão diretamente para o solo.
Levava algum tempo até que tudo estivesse pronto de novo e o ajudante
saísse a gritar que parassem, antes de içarem Lem de novo para cima do
estrado da forca. Então o xerife levava-o para a cadeia com todo o povo a
segui-los. Lem gostava daquela imagem, pelo que foi a que escolheu.
Sabia que ela não o arrancaria da prisão e que teria de ter mais visões,
mas não estava com pressa. A observação das imagens cansava-o imenso,
agora que estava a envelhecer. Não gostava portanto de olhar para elas, a
menos que a isso fosse forçado.
Fora por isso que se metera em sarilhos. Se tivesse olhado para as
imagens não teria saltado para o rio para salvar a pequena Olmstead e não a
teria levado a casa do Dr. Beasley, pensando que ele poderia ajudá-la a
escapar à morte. Ou teria resolvido o assunto de qualquer outra maneira. Mas
não; não havia olhado para as imagens e as pessoas depois começaram a falar
da possibilidade de ser ele o autor da morte da rapariguinha, até que
finalmente o levaram ao tribunal para ser julgado.
Mesmo então Lem não olhara para as imagens. Não fizera nada de
errado e pensava que portanto não devia preocupar-se. O júri, porém,
considerou-o culpado e o juiz Wilson condenou-o à morte pela forca. Ted
Emmons que havia sido educado para vir a ser advogado e que se ocupava
dos assuntos de Lem, parou de sorrir quando chegou junto dele.
Por isso Lem voltou a olhar para as imagens, e agora que havia feito a
sua escolha, tudo iria correr bem.
Levantou-se e deambulou na escuridão à procura da sua lata de tabaco.
De súbito, as luzes acenderam-se no corredor e ouviram-se passos a
encaminharem-se na sua direção.
— Visitas para si, Lem — disse o xerife surgindo à luz das lâmpadas,
chocalhando as chaves e abrindo a porta da cela.
O Rev. Meyers, da Primeira igreja Baptista de Glenn Center,
pronunciou um «Boa noite, Lem», em tom grave, apertou-lhe a mão e depois
refugiou-se num canto e pôs-se a manipular nervosamente o chapéu. O
promotor público Whaley abanou a cabeça com brusquidão e tentou sorrir.
Era um homem de meia-idade, já um pouco gordo e calvo, mas Lem
recordava-se dele como garoto endiabrado, a atirar pedras às ratazanas no
vazadouro de lixo da cidade. Pensou então que talvez ele se estivesse a sentir
um pouco orgulhoso pelo modo como, com o seu discurso, levara o júri a
considerá-lo culpado, mas essa era a sua missão, e o povo havia-o eleito
justamente para isso.
O sorriso do Sr. Whaley esvaiu-se e foi substituído por uma expressão
em que os lábios se cerraram firmemente. Pigarreou depois ruidosamente e
disse:
— Bem, Lem, sendo esta a sua última noite, pensámos... Isto é, pensei
eu, se você não teria alguma coisa para desabafar.
Lem sentou-se de novo e inclinou-se na cadeira. Acendeu o cachimbo e
fumou por uns momentos, antes de responder lentamente:
— Mas... Claro que não. Não sinto nada que me incomode o suficiente
para ter de desabafar. Nunca fui muito à igreja, exceto na véspera de Natal, e
mesmo assim porque gostava de ver os garotos, e não tanto por causa da
religião. O reverendo, ao ouvir isto, poderia dizer que não sou religioso, mas
não creio que isso o levasse a considerar-me mau tipo. Confesso ter talvez
morto um ou dois veados e pescado alguns peixes fora da época própria
porque precisava da carne deles, bem como ter feito algumas apostas nas
corridas da feira distrital, mas há muita gente que faz isso. Não penso ter
violado quaisquer outras leis e nunca ofendi ninguém. Penso, sim, que talvez
tenha ajudado muita gente.
— Creio que ninguém o considera má pessoa, Lem — disse Whaley.
— Mas até as boas pessoas cometem erros, e todos nos sentiríamos melhor, e
você também, se nos contasse o que fez.
— Já lhes disse tudo o que sei, Sr. Whaley. Vi a miudinha a flutuar no
rio e pensei que estava a afogar-se. Não sabia que alguém a estrangulara.
Saltei para o rio e puxei-a para fora, lembrando-me de que por vezes as
pessoas afogadas são ressuscitadas, mas eu é que não sabia como o fazer, e
por isso corri para casa do Dr. Beasley com ela. Nada mais lhes posso dizer.
Whaley parou de andar de um lado para o outro para procurar um
cigarro. O xerife deu-lhe um dos dele e acendeu um fósforo.
— Você não sente uma dor de consciência, Lem? — Perguntou
Whaley. — Você vai ser enforcado pela manhã e não quer certamente morrer
com esse peso na consciência, ou quer?
— Não estou nada preocupado com isso — respondeu Lem. — Não se
matam homens inocentes, pois não?
— Não, mas...
— Então não tenho nada com que me preocupar. Não serei enforcado.
— Fez um aceno com a cabeça grisalha e sorriu calmamente.
Whaley fitou-o por um momento. Depois voltou-se bruscamente e disse
já sobre o ombro:
— Boa sorte, Lem.
— Obrigado, Sr. Whaley.
O xerife seguiu Whaley e fechou a porta da cela.
— É só chamar quando estiver pronto, reverendo — disse ele.
Enquanto o eco dos passos do xerife e de Whaley se extinguia corredor
afora, um sorriso melancólico perpassou pela face descarnada do Rev.
Meyers. Inclinando a sua figura esguia desajeitadamente sobre o catre de
Lem, disse-lhe:
— Eles estão um tanto preocupados, Lem. Sentir-se-iam muito melhor
se você lhes confessasse ser o autor do crime. Neste momento começam a
pensar que talvez amanhã enforquem um homem inocente.
— Não lhes posso dizer que fui eu o criminoso se não o fui, reverendo.
— Claro que não, Lem. Eu sei bem que não foi você quem matou a
pequena! Algumas outras pessoas também o sabem. Temos estado a trabalhar
arduamente para resolver o assunto, Lem. Ted Emmons, eu e outros. Não lhe
quisemos dizer nada porque isso poderia fazer-lhe nascer esperanças e não
sabíamos na realidade se a nossa ação o poderia ajudar. Finalmente tivemos
alguma sorte e pensamos que sabemos quem matou a criança. Ted Emmons
está neste preciso momento a tentar obter um indulto do governador. Só
precisamos de um pouco mais de tempo.
Lem fez um aceno com a cabeça. O que acabava de ouvir explicava a
chamada telefónica da parte do governador, que teria chegado demasiado
tarde se ele não tivesse olhado para as imagens e feito a sua escolha. Agora,
porém, tudo iria correr bem. Ele seria indultado e eles acabariam por
descobrir o verdadeiro criminoso. Uma vez liberto da cadeia, não precisaria
mais de voltar a olhar para as imagens. Sentia-se feliz por isso, porque olhar
para as imagens era uma coisa que o cansava muito.
— Ted estava com dificuldades em conseguir contactar com o
governador, mas irá continuar a tentar fazê-lo toda a noite, se necessário.
Confie em Deus, Lem, e tudo correrá bem.
— Não estou preocupado, reverendo.
— Tenha fé em Deus, Lem. Importa-se que eu reze por si?
— Força, reverendo.
O Rev. Meyers inclinou a cabeça e começou a falar suavemente. Lem
não escutava o que ele dizia, mas olhava-o pouco à vontade. Não tinha
nenhuma fé em Deus. Tinha fé, sim, mas nas suas imagens e na sua
observação e escolha, e perturbava-o pensar que talvez fosse Deus quem lhas
mostrava e quem deixava que ele as escolhesse. Nunca antes havia pensado
nisso. As imagens tinham-no sempre acompanhado, como se nasce com
orelhas para ouvir, uma boca para comer e olhos, mãos e pernas. Mas como é
Deus quem também dá estas coisas — pelo menos o Rev. Meyers assim o diz
—, talvez fosse Deus quem lhe mostrava as imagens.
O reverendo entoou um suave «Ámen» e Lem disse-lhe:
— Tenho de meditar um pouco, reverendo.
— Sobre quê, Lem?
— Sobre o que o senhor disse da fé em Deus e coisas assim. Tenho de
meditar um pouco.
— Ainda bem! Ouça, Lem: pode ser que o Ted não consiga falar com o
governador ou que este não lhe conceda o indulto. Se isso acontecer, não se
esqueça de que o xerife, o promotor público e o júri somente cumpriram o
seu dever, tal como o entendem. Seja caridoso para com todos os homens,
Lem. Pense no Senhor Jesus Cristo na cruz a dizer: «Pai, perdoa-lhes que não
sabem o que fazem.»
— Claro, reverendo. Não me esquecerei.
— Estarei consigo pela manhã, Lem. O xerife comunicar-lhe-á logo as
boas notícias, se as houver.
O xerife veio buscar o reverendo e pouco depois apagaram-se as luzes.
Lem permaneceu sentado no escuro a fumar o seu cachimbo e a pensar.
Não se lembrava de quando começara a ver imagens e a escolhê-las.
Nunca tinha exagerado a prática disso, mesmo quando era jovem, porque
ficava estonteado e como que agoniado e por vezes sentia-se tão fraco a
seguir que tinha medo. Mas quando queria mesmo muito que qualquer coisa
acontecesse, sentava-se em qualquer lado, fechava os olhos e pensava nessa
coisa. As imagens apareciam encadeadas. Era como se se repassasse
lentamente um baralho de cartas, olhando demoradamente e com atenção
para cada uma delas. Quando encontrava a imagem que pretendia, escolhia
essa e as coisas aconteceriam de acordo com ela.
Os outros garotos invejavam-no. Diziam que Lem Dyer era o miúdo
mais feliz dos três distritos contíguos. Estava sempre a conseguir
oportunidades de fazer pequenos trabalhos e recados às pessoas, ganhando
assim dinheiro para despesas, mas não se tratava de sorte. O que lhe
acontecia devia-se às imagens que via. Se queria um chupa-chupa bastava-lhe
descobrir uma imagem em que uma senhora qualquer estivesse a sair dos
Armazéns Crib com as mãos carregadas de compras e à procura de alguém
que a ajudasse. Ele escolhia essa imagem e corria para aqueles Armazéns e,
fosse quem fosse, havia de aparecer e dar-lhe uma moeda por ter carregado
com as compras. Estava sempre presente quando o Sr. Jones queria o passeio
varrido em frente da sua barbearia ou quando o banqueiro Goldman queria a
toda a pressa expedir qualquer coisa pelo correio e não havia ninguém
disponível no banco. Nessa altura ainda ele não tinha consciência de que era
a sua escolha que fazia com que as pessoas quisessem as coisas feitas.
O que ele não percebia era por que razão os outros miúdos não olhavam
para as imagens como ele quando queriam qualquer coisa. Tinha talvez nove
ou dez anos quando uma vez ele e alguns dos seus amigos estavam
estendidos na margem do rio a conversar e Stubby Smith não se calava que
queria uma bicicleta. Então Lem disse-lhe:
— Se tens tanta vontade de ter uma bicicleta, porque é que não a
arranjas?
Os miúdos fizeram troça dele e perguntaram-lhe porque não arranjava
ele uma. Lem nunca havia pensado em arranjar uma coisa assim tão grande
como uma bicicleta, mas fechou os olhos e pôs-se a ver as imagens, até que
descobriu uma em que a pequenita Lydia Morrow se dirigia a passos
vacilantes para a rua, ao encontro de um grupo de pessoas que fugia a correr
e em que ele saltava de onde estava para a puxar para si. Então aparecia o Sr.
Morrow que levava Lem direitinho para o seu armazém de ferragens e
maquinaria e lhe oferecia a bicicleta que tinha na montra.
Lem escolheu aquela imagem. Correu para a cidade e dirigiu-se ao
Armazém, chegando lá precisamente na ocasião em que Lydia começava a
correr para a rua, e, uma hora depois, já estava de volta ao rio com a sua nova
bicicleta.
Durante muito tempo Lem pensou que as imagens que via não eram
mais que visões de coisas que iriam acontecer. Foi pouco antes de atingir a
maioridade que compreendeu que as coisas aconteciam porque ele as
escolhia. Antes de uma corrida de cavalos na feira distrital via imagens em
que todos os cavalos que participavam na corrida saíam vencedores. Se
escolhesse um deles podia apostar nele, pois a vitória era certa. Depressa
aprendeu que não era sensato ganhar constantemente, pelo que costumava
apostar sem olhar para as imagens. Porém, sempre ganhou na feira dinheiro
suficiente para lhe durar todo o Inverno.
Lem tinha doze anos quando o seu pai caiu do celeiro abaixo, o que o
levou a abandonar a escola e a trabalhar na quinta. Aos vinte anos, viu-se
obrigado a alugá-la, quando sua mãe morreu. Construiu então uma cabana no
bosque, junto ao rio, e fez dela o seu lar. Gostava de caçar e de pescar, bem
como da vida ao ar livre. Quando já era mais velho, muitas pessoas diziam
que era uma vergonha que um homem saudável como ele não trabalhasse e
não se casasse para constituir família. Porém, gostava de viver sozinho e
tinha toda a companhia de que necessitava, porque todos os miúdos iam
brincar para junto do rio, fosse Verão ou Inverno. Nunca lhe havia custado
muito viver, e se necessitasse de alguma coisa bastava-lhe olhar para as
imagens para a conseguir ter. Se lhe apetecesse trabalhar durante uma semana
ou duas, dava uma olhadela às imagens e depois ia até à cidade, onde
descobria o emprego que esperava por ele.
Tivera uma vida feliz. Podia escolher um dia bonito se queria ir pescar,
um dia de neve se queria ir dar uma volta de esqui ou um dia de chuva se os
agricultores andassem com problemas por causa das colheitas. Quando a
época da caça abria, Lem Dyer caçava sempre o primeiro e o maior espécime.
Nunca ia pescar sem que voltasse com uma linda fiada de peixes. E se algum
homem necessitasse de ajuda, era muito provável que ele a pudesse dar.
Nunca havia falado a ninguém acerca das imagens, e agora que tinha
sessenta e um anos estava a incomodá-lo a ideia de que talvez fosse Deus
quem lhas mostrava. Interrogava-se sobre se Deus não teria querido que ele
fizesse algo de importante com elas, qualquer coisa de grande, como
interromper as guerras, conseguir que fosse eleito para presidente o candidato
mais competente ou descobrir o paradeiro de criminosos. Sabia que poderia
ter feito todas essas coisas se tivesse pensado nelas. Nada havia que ele não
pudesse fazer, desde que visse as imagens e escolhesse uma.
Como, porém, nunca lia jornais, nunca se preocupara muito com o
mundo para além de Glenn Center. Agora já era velho de mais para começar,
mas iria pensar um pouco mais no assunto depois de sair da cadeia. Talvez
pudesse fazer alguma coisa a respeito dos tais Russos com que tanta gente
andava preocupada.
Quando Lem acabou por ir para a cama, o relógio da igreja metodista
estava a dar as duas horas.
O xerife trouxe-lhe o pequeno-almoço às quatro horas: um grande prato
de ovos com presunto, torradas e abundante café a ferver. Lem já ouvia
chegar os homens à parte de trás da cadeia, onde se encontrava a forca.
O Rev. Meyers entrou na cela com uma face pálida e triste antes de ele
ter acabado de comer.
— Ted ainda está a tentar — disse.
Lem fez que sim com a cabeça. Queria dizer ao reverendo que tudo iria
correr pelo melhor e que portanto não se devia preocupar, mas se o fizesse
teria de lhe contar tudo acerca das imagens. O reverendo era boa pessoa e
Lem tinha a certeza de que podia confiar nele.
Quando acabou de comer o pequeno-almoço estava ainda a pensar
naquilo. Ajoelhou-se para rezar quando o reverendo lho pediu e nisto entrou
o xerife, pelo que já não houve tempo para isso. Lem foi levado para a forca
pelo xerife e por dois ajudantes, enquanto atrás deles seguia o reverendo.
Nunca pensara que tinha tantos amigos. A multidão enchia o campo
todo e extravasava para a 1.a Avenida. Não havia mulheres nem crianças,
claro, mas parecia que todos os homens de Glenn Center e de umas boas
milhas em redor tinham comparecido. Lem pensou que era simpático da sua
parte terem-se levantado tão cedo só por causa dele. Tranquilamente,
esperavam, falando pouco e olhando para o lado quando Lem olhou lá de
cima para eles.
O reverendo estava a falar com o xerife junto ao bordo do estrado da
forca, e o seu falar era agitado e acompanhado por gestos reveladores de uma
qualquer urgência. O xerife só encolhia os ombros e voltava para cima as
palmas das mãos, olhando para o relógio. Um dos ajudantes empurrou Lem
para cima do alçapão e colocou-lhe a corda em volta do pescoço. Lem olhou
para cima e esboçou um sorriso quando viu que a corda era velha.
Quando o xerife deu um passo em frente, as mãos tremiam-lhe. Deu
umas palmadinhas nas costas dele e o reverendo disse uma pequena oração e
murmurou: «Deus o abençoe, Lem.» Lá ao longe, por entre a multidão, Lem
viu o promotor público Whaley virar-se lentamente e olhar para o campanário
da igreja metodista. De súbito faltou-lhe o apoio debaixo dos pés caiu por ali
abaixo.
O safanão selvagem toldou-lhe a vista de dor, mas ele continuou a cair
até que ficou ajoelhado no chão, debaixo do estrado da forca. Os ares
vibraram com o alarido que irrompeu quando todos começaram a falar e a
gritar. O xerife Harbson desceu da forca e ajudou
Lem a sair de lá de baixo, Ficando ali de pé com a cara lívida, de olhar
fixo e incapaz de proferir uma palavra.
— Arranjem uma corda nova! — Gritou alguém, levando a multidão a
cantar: «Corda nova! Corda nova!»
— Não se pode enforcar um homem duas vezes no mesmo dia —
gritava o reverendo, enquanto o xerife, que havia recuperado a voz,
respondia:
— Ele tem de ser enforcado até morrer! É assim que manda a lei!
De repente todos se voltaram na direção da cadeia, onde um ajudante
do xerife pretendia dizer algo, gritando e esforçando-se por avançar por entre
a multidão.
O xerife, os ajudantes e o Rev. Meyers agarraram em Lem e levaram-
no de volta para a cadeia. O percurso foi demorado porque ninguém parecia
ter pressa de ceder passagem. Lem supusera que as pessoas ficariam
satisfeitas ao ouvir dizer que o governador lhe havia concedido o indulto
temporário, mas afinal isso não aconteceu. O alarido crescia cada vez mais e
os impropérios eram semelhantes aos que ele ouvira na cela, na noite anterior.
O pescoço doía-lhe bem como o tornozelo, devido à queda, mas sentia-se
satisfeito por estar livre daquilo.
Tinham dobrado a esquina da cadeia e começavam á dirigir-se para a
entrada, na rua principal, quando a fúria ululante da multidão os apanhou e os
submergiu. O xerife abaixou-se para tentar sacar o revólver e foi
espezinhado. Um ajudante correu para a cadeia e trancou a porta, podendo ser
visto do lado de fora, pela janela, freneticamente dobrado sobre o telefone. A
multidão ergueu um homem junto à parede lateral do edifício para que ele
desligasse os fios. As pedras quebravam os vidros das janelas e choviam
dentro da cadeia.
Lem foi arrastado de novo para a forca, e quando um ajudante do xerife
espreitou por trás dela e disparou para o ar, a multidão agarrou-o e arrastou-o
para a rua principal.
— Arranjem uma corda! — Gritou alguém.
— Alguém tem um cavalo? Antigamente usavam-se cavalos!
— Não é preciso nenhum cavalo! Podemos usar o camião do Jake
Arnson. Jake, recua o teu camião para debaixo daquele ulmeiro!
Jake Arnson correu rua abaixo para o seu camião. O motor tossiu e
cuspiu, até que finalmente pegou com grande ruído e o veículo recuou aos
solavancos. Jake estacionou debaixo do ulmeiro, desligou o motor e saltou
para fora. Alguém lançou uma corda por cima do ramo de uma árvore. Lem
ficara demasiado atordoado e aterrorizado para sentir os pontapés e os socos
que choviam sobre ele. Içaram-no para o camião e ali ficou de pé, com as
mãos e os pés atados, tremendo cheio de frustração enquanto a corda lhe era
passada pelo pescoço.
Pensou então que deveria ter esperado para ver todas as imagens.
Deveria ter olhado para maior número de imagens! Mas como podia ele
adivinhar que aqueles homens que ele conhecia tão bem lhe fariam uma coisa
daquelas? Agora teria de olhar de novo para as imagens. Assim fez. Fechou
os olhos e fez um esforço para se concentrar.
As imagens perpassavam na sua frente, uma após outra, e em cada uma
delas o camião dava um safanão para a frente e Lem Dyer ficava pendurado
pelo pescoço.
Jake regressara ao camião, tentando pôr o motor a funcionar. O motor
de arranque gemeu, rabugento. Alguém gritou:
— Precisas de um empurrão, Jake?
Lem continuava a olhar para as imagens, mas finalmente compreendeu,
afundado na certeza mais desesperada, que as imagens não o poderiam
ajudar. Em todas elas o camião avançava e ele ficava pendurado. Nunca isso
havia acontecido antes! Imagens sem alternativas!
Sacudiu a transpiração dos olhos e olhou à volta. O xerife estava
prostrado no passeio em frente da cadeia, sobre uma poça de sangue. O Rev.
Meyers jazia próximo, movendo os braços debilmente e tendo uma perna
dobrada num triângulo estranho. Os homens atiravam pedras na direção da
forca, onde se havia refugiado o ajudante do xerife.
Olhou com tristeza para as caras contorcidas de ódio dos homens que
ele julgara serem seus amigos e lembrou-se do que o Rev. Meyers lhe havia
dito. Jesus enfrentara-um ódio igual àquele quando o haviam pregado à cruz e
dissera: «Pai, perdoa-lhes que não sabem o que fazem.» Lem repetiu
mansamente aquelas palavras para si próprio e pensou que talvez a sua vida
não tivesse assim tanto valor para ninguém quanto para ele mesmo, mas
aquilo era muito triste.
O motor de arranque gemeu outra vez e alguém gritou: «Fala! O
assassino pode falar? Vamos fazer com que confesse!»
A proposta encontrou centenas de ecos entusiásticos: «Confissão!
Confissão!»
Lem lançou sobre a multidão a sua voz trémula:
— Vocês são todos uns perversos! Perversos! Ajoelhem-se e rezem
para que Deus vos não castigue!
Vagas de risadas escarninhas abateram-se sobre Lem como resposta:
— Porco assassino! Não é a nós que Deus vai castigar!
O reverendo arrastou-se para a frente aos tropeções, caindo imóvel. O
Dr. Beasley tinha finalmente conseguido forçar passagem por entre a
multidão e estava ajoelhado ao lado do xerife. Lá de cima, Lem via as caras
da multidão contorcidas e como que por entre uma neblina. Uma ira mortal
apoderara-se dele.
— Se Deus não vos castiga — bradou ele —, serei eu a castigarmos!
Fechou os olhos e invocou as imagens. Elas eram mais reais que a
própria vida, mas passavam tão devagar e ele tinha tão pouco tempo!
Um ciclone, um ciclone a arrastar o seu funil em turbilhão ao longo da
rua principal, esmagando implacavelmente os edifícios e os seus ocupantes,
fazendo desabar o campanário da igreja metodista sobre a cadeia...
— Não basta — sussurrou Lem.
Um incêndio na pradaria lançado aos céus por ventos ciclónicos,
descendo por entre um fragor irado sobre Glenn Center e empurrando a
populaça na sua frente...
— Não basta!
Esquadrilhas de aviões inimigos, esquadrilhas tão densas que
obscureciam o céu e derramavam à sua passagem o fogo da morte, mesmo
sobre lugares tão insignificantes como Glenn Center...
— Não basta!
Um sol de Verão, alto e brilhante, um sol de meio-dia que subitamente
começava a dilatar-se incontroladamente, rasgava o céu, inundava os
campos com uma incandescência de cegar, calcinava os vermes humanos,
evaporava os rios, esboroava o cimento armado, punha o próprio pó em
ebulição debaixo dos pés...
Lem escolheu esta última precisamente na altura em que Jake Arnson
pôs o motor a funcionar.
5
Arma Secreta
(«Secret Weapon»)

Este conto foi publicado pela primeira vez em Maio de 1958,


sob o titulo «Bridle Shower», na revista Galaxy Science
Fiction
© 1958, Galaxy Publishing Corporation
Era um jovem alto, de ombros largos, com aspecto de estudante
universitário, cabelo cortado à escovinha, vestindo uma extravagante camisa
desportiva, e, apesar do seu evidente ar fatigado, tinha um sorriso pronto e
espontâneo. Trazia consigo uma pequena mala de mão e parou por uns
momentos à sombra para fazer um incrédulo reconhecimento daquela rua
residencial, antes de se dirigir lentamente passeio acima, para a primeira casa.
Tocou à campainha e deu um passo atrás, assobiando alegremente. A
porta abriu-se e, por entre a nesga, uma voz de mulher respingou secamente:
«Não quero nada!» E deu-lhe com a porta na cara.
Fez uma vénia solene defronte da porta fechada e voltou as costas. Um
rapazito saltou de trás de um arbusto e fitou-o com a cara sardenta e tensa de
curiosidade.
— Que é que anda a vender?
— Nada, pá. Ando a oferecer coisas.
Tocou à campainha da casa ao lado, não obteve resposta e afastou-se
contristado. O rapaz reapareceu, mas desta vez por detrás de uma sebe.
— Que é que anda a oferecer?
— Atacadores para sapatos.
A porta da terceira casa foi aberta por uma loura vermelhusca e
mamalhuda, que olhou para ele consternada.
— Oh! Meu Deus! — Exclamou ela. — Mais assinaturas de revistas.
Durante uma semana atendemos em média três de vocês!
— Chamo-me Jeff Flowers — respondeu ele, entregando-lhe um
cartão-de-visita gravado artisticamente. — Represento a empresa O Novo
pelo Velho, S. A. R. L. Tem alguns atacadores velhos de que já não precise?
A loura inspecionou o cartão pormenorizadamente com uma expressão
de espanto cómico e, de súbito, desatou a rir à gargalhada. Havia um ligeiro
vestígio de álcool no seu hálito. Flowers inspirou o aroma cobiçosamente.
— Repita lá isso! — Arfou ela.
— Tem alguns atacadores velhos de que já não precise?
Ela deixou escapar uma risadinha sardónica.
— Não me diga, sim... Não me diga! Deixe-me adivinhar. Se eu
comprar seis pares de sapatos, você pespega-me com os atacadores grátis?
— Não, senhora...
— Se comprar mil pares de atacadores, tenho direito a um par de
sapatos de graça?
Abrindo a mala, Flowers puxou um tabuleiro a abarrotar de atacadores.
Havia nele atacadores vermelhos, cor de laranja, amarelos, verdes, azuis,
roxos, castanhos, pretos e brancos, de todos os tamanhos e em todos os tons.
Havia atacadores axadrezados e às bolinhas. Com ponta dourada, com ponta
prateada e com ponta de plástico. Também os havia ornados de joias.
— Estes atacadores — disse Flowers — são de qualidade excelente e
da última moda. Garantimos que duram tanto quanto durarem dois pares de
sapatos em que os queira usar. Por cada par de atacadores velhos de que já
não precise, ofereço-lhe, à escolha, um par de atacadores novos.
Ela inclinou-se sobre o tabuleiro.
— São bonitos. Quanto custam?
— Não são para vender, minha senhora. São só para trocar. Um par
novo por um par velho.
Então, a loura escolheu um par axadrezado, de cor verde e castanha,
com pontas douradas.
— Estes ficariam bem com um fato novo de Verão que tenho. Quanto
é?
— Um par de atacadores velhos.
Ela atirou os atacadores para o tabuleiro e disse:
— Acabe lá com a comédia! Qual é o preço?
— Um par de atacadores velhos.
— Quer realmente convencer-me de que recebe um par de atacadores
velhos...
— Absolutamente! Por qualquer par velho, receberá em troca um par
novo à sua escolha — respondeu sorrindo. — Sem qualquer outro
compromisso!
— Um momento — disse ela.
Quando voltou, um instante depois, entregou-lhe dois atacadores
castanhos, sujos e em estado miserável. Ele atou-os um ao outro e enfiou-os
na mala.
— Posso escolher? — Perguntou ela.
— Pode, pois!
Escolheu o par axadrezado de pontas douradas.
— Então é tudo? Não é preciso mais nada?
— É tudo!
Ela examinou os novos atacadores inquisitivamente, esticou-os,
sujeitou-os a puxões bruscos e amarrotou-os.
— Tem de haver uma armadilha qualquer. Há algum limite de troca?
— Não há limite nenhum! Um par ou mil pares, não interessa.
Receberá sempre um par novo por cada par velho que me entregar.
— Entre — convidou ela.
Flowers entrou e sentou-se na fria sala de estar, ficando à espera. Ela
voltou cinco minutos depois, respirando com dificuldade.
— Juntei todos os atacadores que havia cá em casa — disse,
despejando-os no sofá, ao lado dele. — Doze pares!
Flowers reconstituiu os pares a que cada atacador pertencia, atou-os e
contou-os.
— São doze — concordou. — Escolha à sua vontade!
Ela pôs-se a escolher, remexendo exigentemente o mostruário dos
atacadores e comentando para si cada escolha que fazia.
— Pronto, estão aqui doze — contou-os ela por fim.
— Muito obrigado — disse Flowers.
— Ouça. Tem de haver uma armadilha qualquer neste negócio.
— Não há armadilha nenhuma! Deixe-me mostrar-lhe.
Tirou da mala uma bugiganga brilhante.
— Vamos pôr aqui um dos atacadores velhos... Assim; vê como ele
encaixa? Rode a manivela e veja se o consegue partir.
Ela deu uma volta rápida à manivela e o atacador partiu-se.
— Agora vamos experimentar um dos novos.
Encaixou-o no lugar e ela fez tanta força na manivela que o braço até
inchou. Nada aconteceu, porém.
— Não se parte nenhum — disse ele. — E não se desgastam.
Garantimos que duram tanto como dois pares de sapatos, mas na realidade
duram a vida inteira.
Arrumou a bugiganga e o tabuleiro que servia de mostruário, fechou a
mala de mão e levantou-se.
— Não se esqueça do nome da minha empresa: o NOVO PELO VELHO, S.
A. R. L. Ouvirá falar mais vezes dela.
— Espero que não esteja a pensar ganhar a vida desta maneira!
Flowers exibiu um sorriso.
— Felizmente não recebo comissões pelos atacadores velhos. Tenho
um ordenado certo.
O rapazito estava à espera dele no passeio.
— Está mesmo a oferecer atacadores?
— Não é bem assim — respondeu Flowers. — Estou a trocá-los.
Deixa-me ver os teus. Oh! É pena. Tens fitas em vez de atacadores. Desculpa,
mas não podemos fazer negócio.
Deixando o rapaz espantado a olhar para ele, dirigiu-se para a porta ao
lado.
Algumas dezenas de casas e um par de horas depois, Flowers regressou
fatigado ao carro e começou a procurar um restaurante. Levando a maleta de
mão consigo, sentou-se ao balcão de um pequeno café, pediu uma bica e dois
hamburgers e depois voltou-se para fazer uma apreciação profissional de
quaisquer atacadores que estivessem em evidência.
A três bancos de distância dele, outro cliente pousou a chávena de café,
espreguiçou os musculosos braços com ar ausente e perguntou:
— Acha que vamos ter chuva?
— Mais tarde ou mais cedo tem de ser! — Respondeu Flowers
simpaticamente.
— Era bom que chovesse. Há mais de um mês que não chove e a rádio
disse esta manhã que os agricultores estão aflitos. Diz-se que vão trazer cá
um tipo qualquer que afirma que é capaz de provocar a chuva. É um daqueles
negócios em que eles atiram um produto qualquer lá de cima, de um avião.
— E assim fica cheio de poder — disse Flowers. — Será que nos vão
dizer quando fazem a operação ou teremos de começar a andar com os
impermeáveis constantemente?
— Boa, boa! Ora, provavelmente a coisa não dá nada.
Dizendo isto, olhou para a maleta de mão e perguntou:
— Qual é a sua linha de produtos?
— Atacadores — respondeu Flowers. Abriu a maleta e pôs o
mostruário em cima do balcão.
A empregada parou, com uma chávena de café em cada mão e
comentou:
— Ena, que bonitos!
— São, não são? — Aquiesceu Flowers.
Ela serviu os cafés e voltou a correr.
— Quanto custam?
— Não são para vender, mas posso fazer uma troca consigo.
— Ah! Não faz não! Compro-os a dinheiro ou nada feito.
— Troco-os por um par de atacadores velhos — disse Flowers
rapidamente.
A empregada virou as costas rabujando e afastou-se com ar altivo.
Regressou um momento depois com o que Flowers havia pedido, afastou
com um safanão o mostruário dos atacadores e atirou para defronte dele a
bica e os hamburgers, retirando-se sem proferir palavra.
— Devia dedicar-se a uma linha melhor do que essa — observou o
vizinho de Flowers.
— Também acho, mas infelizmente não tenho outra alternativa. O meu
patrão não me deixa vendê-los. Ou se troca um par velho por um novo ou
então não se faz negócio.
— Mas isso é mesmo assim? Está a falar verdade?
— Absolutamente.
— Quer dizer que fica com estes velhos atacadores que eu trago e me
dá um par de atacadores novos?
— Experimente e verá.
O homem curvou-se e começou a puxar os atacadores dos próprios
sapatos.
— Será melhor que diga a verdade — resmungou —, senão terá de
voltar a colocá-los!
Entregou-os a Flowers, negros de sujidade. Flowers passou-lhe o
mostruário e ele escolheu em troca um par novo de atacadores pretos. A
empregada, observando incredulamente a transação, levou a mão à boca e
abaixou-se por detrás do balcão. Depois trocou um par branco-sujo por um
outro branco com bolinhas azuis. Flowers deu cartões-de-visita a cada um
deles.
— Que é que ganha com isto? — Perguntou o homem.
— O sobrescrito com o ordenado no fim do mês.
— Sim, mas que ganha o seu patrão?
— Um monte de atacadores usados.
— E para que servem eles? Quer dizer: trata-se de algum produto novo
que vão apresentar, ou qualquer coisa assim?
— Bom, eu digo-lhe: já reparou que os seus atacadores ficam sempre
com um pouco de pomada quando engraxa os sapatos?
— Sim, suponho que sim, quando se não tiram para fora.
— O meu patrão inventou um processo novo, que consiste em extrair
essa pomada dos atacadores, enlatá-la e vendê-la.
O homem ficou de olhos espantados durante talvez uns trinta e cinco
segundos; depois pagou a despesa e foi-se embora. A empregada afastou-se
de novo, empertigada. Flowers encolheu os ombros e mordiscou um dos
hamburgers.
Um cliente acabado de chegar esgueirou-se para o banco ao lado do
dele, esticou o braço para a ementa e disse:
— Pensa que acabará por chover?
— E se falássemos de atacadores? — Ripostou Flowers.

***

A empresa O Novo pelo Velho, S. A. R. L., tinha a sede localizada


numa pequena loja de uma rede secundária do bairro comercial. Na montra
havia uma variedade deslumbrante de atacadores e uma tabuleta que dizia:
procuram-se atacadores usados, entre e troque CONNOSCO. UM PAR
NOVO POR CADA PAR USADO QUE NOS ENTREGAR.
Quando Flowers entrou soou uma campainha. Piscou familiarmente o
olho à jovem que ocupava uma secretaria ao canto da sala, certificou-se de
que não havia clientes à volta dos balcões e das mesas pejadas de atacadores
e deu-lhe um abraço vigoroso.
— Estás atrasado — murmurou ela. — O dia foi bom?
— Não são sempre bons os meus dias?
Fez uma careta ao olhar para a enorme quantidade de atacadores que os
rodeava e disse:
— Depois de deixar este emprego só calçarei sapatos sem atacadores
para o resto da minha vida. Que tal foi o seu dia, Menina Star?
Ela sorriu provocantemente.
— Menos mau!
— Quer vir dançar esta noite?
A pergunta não era mais que uma formalidade. Ela sorriu de novo e
disse:
— O patrão quer ver-te.
— Tem piada. Que teria eu feito de mal?
— Nada. Ele vai viajar por uns dias e quer dizer-te que quem fica a
mandar nisto enquanto estiver fora sou eu.
— Mas que bela ideia! Sabes, tenho trabalhado imenso e um chefe que
tivesse consideração pelos seus empregados mandar-me-ia descansar uma
tarde. Portanto, já que agora és tu quem manda, também podes tirar uma
folga uma destas tardes para irmos fazer um piquenique.
— Tu não és capaz de levar isto a sério?
— Não — respondeu Flowers. — Sei que o ordenado é magnífico e
que o Sr. Vandenberg dá todos os sinais de ser mais próspero do que uma
casa de cunhagem de moeda dos Estados Unidos, mas não vejo nenhum
futuro neste negócio de trocar atacadores. O que quero é arranjar um emprego
decente para que possamos casar.
— Que é que há de mal em casar tendo este emprego?
Flowers abanou a cabeça.
— O que há de mal é que acabaremos por encher o mercado com estes
atacadores indestrutíveis e depois onde é que isso nos leva?
— Mas nós vamos dedicar-nos a outros ramos de negócio dentro em
pouco! O Sr. Vandenberg diz...
— Eu bem sei o que ele diz. Também sei que não pode haver lucros
muito grandes... Se é que há alguns, a trocar coisas novas por velhas. Não é
necessário ser nenhum génio dos negócios para saber que é assim.
— Mesmo assim, ainda penso que isto, como promoção de vendas, é
um êxito.
Flowers suspirou.
— Quem é que já ouviu falar de uma promoção sem publicidade? As
únicas pessoas que falam em tal coisa são uns ingénuos que andam a vender
de porta em porta e tu aqui na loja.
Dito isto, despejou a colheita de atacadores usados sobre a secretária
dela. Ela suspirou e pôs-se a contá-los, dizendo:
— É melhor ires ter com o Sr. Vandenberg.
Flowers desceu por uma estreita passagem, bateu à porta e abriu-a
depois de a isso autorizado por uma voz profunda e anasalada. O Sr. A.
Vandenberg — se tinha qualquer primeiro nome, esse nome havia sempre
ficado envolto num segredo envergonhado — levantou os olhos da pilha de
jornais que estava a ler. Os jornais eram uma das muitas excentricidades do
Sr. A. Vandenberg. O seu atafulhado escritório parecia um armazém de
sobras de jornais. Havia jornais empilhados dentro, por baixo e por cima de
tudo o que tivesse a mínima possibilidade de servir para guardar jornais.
Eram jornais de todo o mundo e numa grande variedade de línguas. Um
observador casual tomaria o Sr. A. Vandenberg mais por diretor de um
serviço universal de recortes de imprensa do que por um magnate do negócio
de atacadores usados.
Uma outra das peculiaridades de Vandenberg era a cara. A sua pele
oleosa e da cor do cabedal pendia em dobras flácidas sobre um semblante
anormalmente amplo e desprovido de qualquer expressão. Para ser justo,
Flowers tinha de admitir que naquele negócio de atacadores usados era raro
haver acontecimentos que exigissem uma reação emocional extrema. Quando
porventura ocorriam, a face de Vandenberg não acusava nem desagrado nem
aprovação, mas os seus olhos esverdeados estudavam os empregados com
uma intensidade inquisitiva que fazia lembrar uma coruja a fixar uma
ratazana. Flowers não gostava do Sr. Vandenberg.
— Então o dia foi bom? — Perguntou Vandenberg.
— Bastante bom — disse Flowers, contemplando com ar ausente o
cabelo desgrenhado e crespo do patrão. No primeiro dia em que ali começara
a trabalhar havia decidido que aquela cabeleira bem nutrida era uma peruca e
desde então vinha conjeturando sobre o assunto. Até àquele momento tinha
resistido à tentação de resolver o problema com um sacão firme e definitivo.
— Um pouco mais de trezentos — acrescentou.
A expressão de Vandenberg não se alterou.
— Ótimo — comentou monocordicamente. — É um novo recorde, não
é? Já foi buscar os substitutos?
— Janet está neste momento a contar as entregas.
O aceno de Vandenberg parecia ter por ponto de origem a área que
correspondia ao seu estômago saliente.
— Tenho necessidade de me ausentar por alguns dias. A Menina Star
ocupar-se-á dos assuntos territoriais. Creio que não surgirão complicações.
— Isso nunca aconteceu — respondeu Flowers.
Vandenberg fez-lhe o seu habitual aceno brusco indicativo de que
podia ir-se embora. Flowers permaneceu teimosamente grudado ao chão.
Durante um breve momento aqueles olhos verdes examinaram-no
atentamente.
— Há mais alguma coisa?
— Não, senhor. A não ser que queria despedir-me. Não tenho nenhuma
pressa especial. Logo que possa substituir-me.
Vandenberg recostou-se lentamente na cadeira com os olhos fixos em
Flowers sem pestanejarem.
— Não quer trabalhar para mim? Porquê? Você é melhor que qualquer
dos outros.
— Não é o trabalho que me preocupa. O que se passa é que me parece
que não percebo bem este tipo de negócio. Não vejo muito futuro nele.
Vandenberg inclinou-se para a frente numa postura rígida.
— O futuro deste negócio é maravilhoso, especialmente para si. Logo
que esta área territorial esteja suficientemente desenvolvida, abriremos
sucursais. Estou a pensar em colocá-lo à frente de uma delas e mais tarde
quero que você coordene as sucursais de vários estados.
Pôs-se bruscamente de pé e continuou:
— Claro que isso é para o futuro. Para já, aumentar-lhe-ei o ordenado
de vinte dólares por semana e pagar-lhe-ei o dobro quando for chefiar a
sucursal. Satisfaz-lhe?
— Bem...
A voz impassível de Vandenberg ressoou no gabinete enquanto dava
umas palmadinhas delicadas nas costas de Flowers com um ar o mais
paternal possível. Flowers retirou-se um pouco atordoado.
— Pedi a demissão — disse ele a Janet.
— Não acredito! — Exclamou ela.
— Ele não a aceitou e aumentou-me vinte dólares por semana. Quando
esta área territorial estiver completamente desenvolvida (não sei bem o que
isto quer dizer) vou chefiar uma sucursal e ganhar o dobro do que estou a
ganhar agora.
— Jeff! — Guinchou ela. — Então...
— Sim. Mas continuo a dizer que há qualquer coisa neste negócio que
me escapa. Queres marcar uma data?

***

O Sr. A. Vandenberg deixou o seu gabinete uns minutos depois. O


espetáculo que encontrou na sala da frente repugnou-o tanto que voltou para
trás e saiu pela porta das traseiras.
Meteu-se no carro e foi para fora da cidade, tendo chegado à noite a
uma quinta abandonada que ficava a umas quarenta milhas de distância. O
seu estado de abandono já tinha dado azo a falatório entre os agricultores da
vizinhança. Era uma vergonha, diziam eles, desperdiçar terra tão boa. O novo
proprietário, Sr. A. Vandenberg, não mostrava interesse fosse pela
agricultura, fosse pelas opiniões dos seus vizinhos.
Percorreu uma estradita coberta de mato, arrumou o carro sob um
telheiro abarracado e atravessou um pasto ondulado e ressequido pelo sol.
Precisamente às vinte e duas horas desceu do céu um objeto escuro e
gigantesco. Vandenberg subiu para bordo, onde foi recebido com bastante
cerimónia, e os tripulantes dirigiram-se-lhe numa língua não terrena,
chamando-lhe general Vrooz. O escuro objeto subiu então rapidamente, tão
rapidamente que os instrumentos de radar de uma base aérea próxima só
tiveram tempo de assinalar a sua presença com um lampejo incerto.
À medida que o objeto se afastava da Terra, o Sr. A. Vandenberg ia-se
transformando. Desfez-se do cabelo desgrenhado, da face papuda, do
estômago saliente e de tudo o mais. Mas de tudo mesmo! Jeff Flowers não
teria tido maior surpresa se viesse a saber por hipótese, que a peruca de que
suspeitava lhe chegava à sola dos pés. O general Vrooz emergiu do
Vandenberg crisálida, esfregou-se usando os esforços conjugados dos seus
seis braços de aracnídeo, compôs a sua carapaça escamuda cuidadosamente e
ocupou o seu lugar frente a uma vigia de onde podia observar com desdém,
por meio de um trio de olhos multifacetados, o disco da Terra afastando-se
rapidamente.
Alunou numa caverna do lado não iluminado do satélite solitário da
Terra. As dezenas de quilos de recortes dos jornais do planeta alvo da missão
de que estavam incumbidos ficaram a cargo de um ajudante. Vrooz pôs-se a
trabalhar febrilmente num relatório, até que o comandante de sector o
chamou.
Foi numa sala de conferências enorme e cristalina que ele se apresentou
ao seu superior hierárquico.
— O nosso método de lidar com o problema é um método económico
— declarou.
O comandante de sector acenou com três dos seis braços em sinal de
aprovação.
— Com base no relatório preliminar já suspeitava de que assim fosse
— respondeu.
— Estamos a iniciar as nossas operações numa das áreas políticas e
económicas mais destacadas. O complexo económico está equilibrado
delicadamente entre a produção, a distribuição e o consumo. Tencionamos
eliminar o consumo deste ciclo. Calculo que um grau de vinte e cinco por
cento de desmantelamento produziria o colapso em todo o sistema.
— Como espera proceder?
— Trocaremos simplesmente artigos novos por velhos. Os habitantes
satisfarão as suas necessidades fazendo trocas connosco, e sem consumo as
fases de produção e de distribuição não funcionam. O que resultará disso é o
caos. O principal meio de transporte, por exemplo, emprega uma máquina a
que chamam automóvel. Trata-se do produto final de uma indústria muito
grande e para o seu funcionamento utiliza um combustível chamado gasolina,
o qual é, por sua vez, o produto final de outra grande indústria. Vamos
oferecer um sucedâneo, trocando o novo pelo velho. O nosso sucedâneo será
enormemente superior à máquina deles e extrairá o combustível diretamente
da atmosfera. Assim eliminaremos o consumo dos automóveis e da gasolina e
com uma cajadada teremos demolido duas indústrias vitais.
— É um plano engenhoso, sim, senhor. Como estão a correr as
experiências iniciais?
— Satisfatoriamente. Os nativos possuem uma desconfiança inata que
eu não previra, mas uma vez vencida essa desconfiança caem com uma
rapidez compensadora.
O comandante de sector estudou friamente um enorme globo do planeta
Terra.
— Teremos de avisar a esquadrilha com uma antecipação adequada. Há
queixas de que andámos depressa de mais quando foi da conquista de
Hanolff.
— Aí tratou-se de uma operação completamente diferente — disse o
general Vrooz. — Ainda não posso fixar uma data, mas os militares serão
avisados com a antecedência suficiente.
— Que produto está a usar nas suas experiências?
— Atacadores de sapatos.
— Atacadores... De sapatos? Que é isso?
— É intraduzível. O calçado dos nativos...
Deu uma explicação atabalhoada e acabou por ter de mandar vir os
sapatos de A. Vandenberg.
— Atacadores — murmurou o comandante de sector. — A tecnologia
deles é realmente muito primitiva.
— Nem todo o calçado que eles usam precisa de atacadores — disse o
general Vrooz. — Mas a maioria precisa. Trata-se de um artigo vulgar, e
como é barato permite-nos explorar a ganância deles sem levantar demasiado
as suspeitas. Está a corresponder muito bem aos nossos objetivos.
— Excelente. Como é que chegou a esta decisão?
As escamas laterais do general Vrooz sacudiram-se convulsivamente.
— Vai-me perdoar a frivolidade, mas respondo-lhe com um provérbio
que os nativos usam. É qualquer coisa como: «Com pequenas bagatelas se
fazem grandes negócios.»

***

O general Vrooz regressou à Terra e recobriu-se relutantemente com a


pele de A. Vandenberg. Jeff Flowers e dez outros empregados continuavam a
trocar atacadores com donas de casa receptivas. Um número crescente de
transeuntes parava para mirar a tabuleta da montra, e era tamanha a
quantidade dos que correspondiam ao apelo que Janet Star teve de instalar
uma fila de cadeiras para uso dos clientes que tiravam e punham os
atacadores.
Inicialmente restrita a um pequeno número de pessoas, a história da
troca dos atacadores começou a espalhar-se a grande velocidade depois.
Donas de casa espantadas corriam para os telefones para avisar as irmãs, as
primas, as tias, os vizinhos e conhecidos de ocasião. «Queres ouvir?», diziam
elas. «Esta tarde apareceu-me um indivíduo novo à porta e sabes o que é que
ele fez? Não vais acreditar! Deu-me oito pares de atacadores novos em troca
de oito velhos. E são lindos!»
Um homem de negócios que achara graça à inovação e que fora levado
à loja O Novo pelo Velho, S. A. R. L., pela curiosidade, voltou lá no sábado
com a mulher e os filhos a fim de eles escolherem os atacadores de que
gostassem. Dezenas de inocentes vendedores porta-a-porta viram-se
acolhidos com um entusiasmo desbordante na suposição de que viessem
oferecer qualquer coisa nova em troca de uma velha. Jeff Flowers bateu um
recorde de setecentas trocas num só dia. O Sr. A. Vandenberg somava
estoicamente os totais diários e começava a escolher locais para instalar as
sucursais. A empresa O Novo pelo Velho, S. A. R. L., estava pronta a
começar a expandir-se.

***

Aquela tarde era precisamente igual a qualquer outra tarde das semanas
anteriores, no sentido de que fazia um calor escaldante. O mais que se podia
dizer era que o facto fornecia matéria para conversação. Falava-se do calor e
do ar seco.
Jeff Flowers deslocava-se fatigado através de uma rua de residências.
Não pensava no trabalho. Na segunda-feira seguinte estava encarregado de
abrir uma sucursal em Seattle, local que ele próprio havia escolhido depois de
se certificar de que a cidade não era quente nem seca. Janet ficara na sede até
poder arranjar uma nova ajudante para o Sr. A. Vandenberg e só depois disso
se transferiria para o escritório de Seattle. Nessa altura casar-se-iam. O total
dos seus dois ordenados era suficientemente elevado para tranquilizar
Flowers quanto às suas apreensões sobre o futuro do negócio da troca do
novo pelo velho.
Entretanto não faltavam atacadores para trocar. Ao longo da rua ecoou
a notícia da sua chegada. As donas de casa abriram as portas de suas casas e
tinham pilhas de atacadores à espera dele. Se não fizesse um calor tão
infernal talvez pudesse bater um novo recorde. Mas o calor excessivo
impedia-o de andar depressa.
Limpou a testa com um lenço que já há muito havia alcançado o ponto
de saturação e deu uma olhadela para o céu. Sobre a cidade deslizavam
nuvens escuras. Na casa mais próxima recolheu quinze pares de atacadores
usados, e no momento em que a dona de casa acabava de fazer, deliciada, a
sua escolha, as janelas eram fustigadas por acidentais gotas de chuva.
A passos estugados, Flowers dirigiu-se para o carro. A passada
transformou-se em trote e depois em galope quando as pesadas nuvens
verteram subitamente torrentes de chuva sobre a cidade. Terminara a longa
seca.
A meio quarteirão de distância do carro, com as pernas em movimento
frenético, Flowers sacudiu do pé um sapato. Depois apanhou-o do chão e
continuou a correr sobre a peúga. Cinco passos adiante soltou-se o outro
sapato. Acabou por chegar ao carro completamente ensopado em água, com a
mala numa mão e o par de sapatos na outra, e logo se atirou para o banco da
frente. Fechou a porta com força, deu um suspiro profundo de alívio e
concentrou a atenção nos sapatos.
A razão do seu comportamento irresponsável saltou-lhe logo à vista.
Não tinham atacadores.
Ficou a olhar para eles durante bastante tempo enquanto a água
ressoava fragorosamente sobre o tejadilho do carro e pingava das suas calças
para o piso. Depois, com o coração a bater violentamente, tirou um atacador
de cor viva da mala de mão, abriu a janela e segurou-o com o braço
estendido, deixando-o à mercê da intempérie. A cor viva esvaiu-se e o
atacador transformou-se rapidamente numa mixórdia viscosa e pegajosa. De
súbito desapareceu. Até as pontas metálicas se dissolveram.
Flowers repetiu a experiência duas vezes e depois sentou-se corcovado
sobre o volante, perdido em pensamentos. A chuva desabava sobre o para-
brisas. Pôs o motor a trabalhar e ligou as escovas para o limpar. Estas quase
nem uma marca produziram na cascata de água que descia pelo vidro. As
luzes da rua estavam acesas, mas não eram mais que pálidos globos de luz
branca, que quase nada acrescentavam à visibilidade bastante próxima de
zero. Conduzir naquelas condições era impossível. Flowers respirou fundo e
afastou-se da curva.
Vinte minutos depois chegava a um drugstore com um guarda-lamas
amolgado. Correu para ele, deixando os sapatos no carro, e descobriu que não
estava sozinho no que se referia à proteção dos pés, pois havia pelo menos
uma dezena de pares de peúgas e meias ensopadas à vista e os seus donos
falavam e gesticulavam furiosamente. O que diziam era qualquer coisa sobre
atacadores.
Flowers correu para uma cabina telefónica e ligou para O Novo pelo
Velho, S. A. R. L.
— Janet — disse ele —, ouve com atenção. Tens de sair daí. Estes
malvados atacadores dissolvem-se na água e só Deus sabe quantos milhares
de pessoas foram apanhadas com eles nos pés debaixo desta chuva. Nem vale
a pena falar do que vai acontecer. Vai para o teu apartamento que eu vou lá
ter contigo. Penso que é melhor fugirmos da cidade.
— Não posso! — Lamentou-se Janet. — A polícia já aqui está e...
— Passe-me o telefone, menina — disparou uma voz masculina. —
Está? Quem fala?
Flowers desligou o telefone pousando o auscultador com força e fugiu.
De regresso ao carro procurou na mala de mão um par de atacadores
velhos e com eles conseguiu prender bem os sapatos aos pés. Fez figas
mentalmente e reiniciou a viagem.
A chuva havia diminuído quando chegou a O Novo pelo Velho, S. A.
R. L., A loja estava fechada. Dirigiu-se a pé resolutamente para a esquadra da
polícia, onde encontrou o Sr. A. Vandenberg, Janet, três colegas e um
sargento da polícia que prazenteiramente tomou nota do seu nome e o
convidou a juntar-se aos outros.
— A responsabilidade destes atacadores falsos é sua — disse Flowers a
Vandenberg. — Que é que vai fazer agora?
Vandenberg estava postado junto à janela, olhando fixamente para o
dilúvio.
— Chuva — murmurou. — Água. Chuva. Água.
— Pois! E cada par daqueles atacadores tem a garantia de durar o que
durarem dois pares de sapatos quaisquer.
— Vamos substituir os pares estragados — disse Vandenberg com ar
ausente. — Produziremos um atacador novo que não seja afetado pela chuva.
— Teremos sorte se alguém não nos linchar primeiro! Há milhares de
pessoas a andar por aí de peúgas esta tarde por causa da O Novo pelo Velho,
S. A. R. L. Quando vinha para aqui passei por uma loja de sapatos que estava
a abarrotar de pessoas a comprar atacadores.
— Substituiremos todos os pares — repetiu Vandenberg, inclinando-se
para a frente para observar fiozinhos de água que escorriam pela janela. —
Daremos a cada pessoa dois pares por cada par dos outros.
— Ele é incapaz de perceber — disse Janet lavada em lágrimas. — Está
metido num sarilho enorme... Como todos nós, aliás, não é tanto por causa
dos atacadores, embora isso também conte. Especialmente por todos os
polícias...
— Que é que há com os polícias? — Perguntou Flowers.
— Muitos deles comem naquele café que fica em frente da loja, do
outro lado da rua. Viram a tabuleta na montra e neste momento estou
convencida de que todos os agentes da polícia usam os nossos atacadores.
Usavam-nos, melhor dito! Alguns deles foram lá à loja logo depois de ter
começado a chover e fizeram uma grande algazarra. Depois vieram uns
homens do gabinete do promotor público...
— Mas que é que realmente se passa?
— Não sei. Estamos todos metidos num grande sarilho e ele não faz
nada para resolver o assunto.
— Vandenberg! — Chamou Flowers. — Que tal se contratasse um
advogado e nos tirasse daqui para fora?
— Um advogado? — Perguntou Vandenberg maquinalmente.
Foi Flowers quem acabou por chamar o advogado, um homem austero
e de ar taciturno, com uma cara comprida e fúnebre, óculos com armação de
chifre e ouro em tal quantidade nos dentes que justificaria uma expressão
menos fúnebre. O homem conferenciou com Flowers por breves momentos,
fez uma tentativa nobre mas falhada para entabular conversa com
Vandenberg e saiu para tentar a sorte junto da polícia e dos homens do
promotor público.
Quando voltou abanava a cabeça desalentadamente.
— Os atacadores não são o maior problema. Pode haver um certo
burburinho por causa deles, e na realidade já está a haver (esperem para ver
os jornais da noite), mas se o vosso patrão cumprir a promessa de substituir
cada atacador estragado por dois novos de boa qualidade, essa questão fica
resolvida. Não sei como é que ele vai fazer a troca, especialmente em relação
aos atacadores que se dissolveram com a chuva, mas o problema é dele. Não;
o grande sarilho não está nos atacadores. Está nos documentos e livros da
empresa.
— Que documentos? — Perguntou Flowers.
— É precisamente isso que o promotor público quer saber. Que
documentos! O vosso patrão foi intimado a semana passada a apresentar os
seus documentos e livros comerciais. Ora ele diz que não os tem. Assim não
se safa, percebem? Pode até não haver problema nenhum, isso depende do
que procura o promotor público e de ele encontrar a informação procurada,
mas o vosso patrão terá de apresentar os documentos de escrituração.
— Vamos falar com ele — sugeriu Flowers.
Vandenberg ouviu-os com indiferença. Documentos de escrituração?
Não os tinha. Nem um! Mas que interessava isso?
— Valha-me Deus! — Exclamou o advogado. — Que interessa isso?!
Tirou os óculos e desse modo conseguiu dar a impressão de que estava
a ver Vandenberg melhor.
— Meu caro senhor! O senhor está a dirigir um negócio sob a firma O
Novo pelo Velho, S. A. R. L. Tem ações próprias na empresa?
— Ações? — Disse Vandenberg, desinteressado. — Não há ações.
— Mas... Se a sua empresa é uma sociedade anónima, tem de haver
ações! Tem de haver acionistas! Onde está a sua lista de acionistas?
— Não há acionistas.
O advogado esboçou um sorriso e tentou de novo.
— Vejamos. A sua empresa é uma sociedade anónima. A sociedade
anónima foi constituída ao abrigo das leis do Estado do...
Fez uma pausa e ergueu as sobrancelhas finas, ficando na expetativa.
— Não compreendo — disse Vandenberg.
— Quer dizer: não se pode ter uma sociedade anónima sem ter
acionistas.
— São só palavras e nada mais — disse Vandenberg.
— Não são só palavras! Se se quiser fundar uma sociedade anónima,
tem de se ter acionistas.
Voltou a pôr os óculos e a sua visão pareceu diminuir notavelmente.
Aproximou-se mais de Vandenberg e prosseguiu:
— O senhor tem empregados e decerto tem registos deles.
— Doze empregados — disse Vandenberg. — E não tenho nenhum
registo.
O advogado tirou os óculos e distraidamente limpou a testa com eles.
— Não tem folhas de pagamentos de ordenados? — Sugeriu ele com
uma certa esperança.
— Não.
— Com certeza que tem deduzido os impostos nos ordenados dos seus
empregados e que os tem entregue ao Estado...
— Não.
Zomrigger procurou uma cadeira e sentou-se pesadamente.
— O senhor fez cada um dos seus empregados preencher o impresso
W4. Se um empregado não preencher esse impresso, deduz-se o imposto ao
seu ordenado, dado que não pediu isenção de impostos. O senhor deduziu
portanto o imposto ao ordenado de cada empregado e entregou-o ao...
— Não — disse Vandenberg. — Não deduzi nada aos ordenados.
Porque havia eu de tirar dinheiro aos meus empregados?
Zomrigger respirava ofegantemente, com uma expressão de horror na
face.
— Utilizou o impresso SS4 para requerer o número de identificação da
empresa, descontar os impostos de segurança social dos seus empregados e
contribuir com uma importância idêntica em dinheiro seu para...
— Não.
— E os impostos para o subsídio de desemprego federal e estadual?
— Não.
— Registou a sua empresa na Repartição do Imposto de Transações
estadual?
Pela primeira vez, Vandenberg pareceu interessado.
— Que é isso?
— Bem... Sem ver não posso dizer se a sua atividade exige isso.
Depende do valor de venda a retalho dos seus atacadores, e visto que o seu
negócio é trocar em vez de vender... Seja qual for deveria ter registado a
empresa na Repartição do Imposto de Transação. É que eles podem
apresentar-lhe uma enorme fatura se...
— Eu não vendo nada. Trata-se simplesmente de trocas. Ninguém tem
nada com isso — disse Vandenberg.
— Que disposições tomou sobre o imposto de venda de joias a retalho?
— Nenhumas. O que troco são atacadores, e não joias.
— Mas esses atacadores que o senhor vende, nalguns casos têm pontas
de ouro e de prata, não têm? E até joias artificiais. Penso que o Governo não
vai deixar de exigir uma correção aos impostos não cobrados. Nunca tive um
caso igual a este!
Limpou a testa de novo e prosseguiu:
— Os objetos feitos de metais preciosos ou imitação deles, ou
ornamentados, montados ou providos desses metais ou suas imitações, são
coletados de um imposto de dez por cento sobre o preço de venda.
Certamente...
Vandenberg abanou a cabeça lentamente.
— Certamente não deixou de preencher a sua declaração de imposto
profissional em Abril! No seu caso tratar-se-ia do impresso 1040 com o
anexo C, mais o imposto de emprego por conta própria e... Se o seu
rendimento bruto exceder seiscentos dólares por cada uma das suas isenções
acrescidas de quatrocentos dólares, de uma declaração de imposto presumível
para o ano corrente, com pagamento da primeira prestação trimestral.
Levantou os olhos cheio de esperança.
— Não tenho rendimentos — disse Vandenberg. — São só atacadores
usados. O Governo quer que eu pague um imposto sobre atacadores usados?
— Ah! Já me esquecia! — Disse o advogado apressadamente. — O
senhor é empregado de uma empresa. Mas há ainda o imposto complementar
das pessoas coletivas e... Não! A sua empresa não foi legalizada como
sociedade anónima. — Dobrou-se para a frente e enterrou a cara nas mãos. —
Oh, meu Deus! — Lamentou-se. — Ele não lhe descontou os impostos e a
taxa da segurança social? — Perguntou, voltando-se para Flowers?
— Nada — respondeu Flowers. — Nunca liguei importância a isso.
Sabe... Tratava-se de um negócio pouco usual.
— Sem dúvida!
Voltou-se para Vandenberg e perguntou-lhe:
— Apresentou a declaração do imposto complementar no ano passado?
Ou no ano anterior? Ou no ano...
— Nunca apresentei nada.
— Valha-me Nossa Senhora!
Os óculos do advogado caíram ao chão com um baque e ele apanhou-
os, examinando pesaroso a lente que se partira.
— É melhor que eu convoque alguns dos meus colegas. Isto vai ser
demasiado trabalho para um homem só.
Noite adentro foi decidido que os empregados de O Novo pelo Velho,
S.A.R.L., não eram culpados de má-fé, pelo que foram libertados.
Vandenberg desacatou teimosamente as sugestões dos seus conselheiros
jurídicos, recusou responder a perguntas e recusou pagar os impostos em
dívida. Foi para a cadeia sem protestar e na manhã seguinte a sua cela foi
encontrada inexplicavelmente vazia. O F.B.I. e as corporações da política
local e estadual foram alertadas, mas não se encontrou vestígio do fugitivo.
Jeff Flowers encontrou um emprego honesto no quiosque das apostas
de dois dólares da pista de corridas local e casou com Janet Star. O Governo
assumiu o ativo de O Novo pelo Velho, S.A.R.L., e quando deu por si estava
na posse de uma divisão cheia de atacadores usados e de vários milhares de
atacadores novos de luxo que misteriosamente se dissolviam em água. Nunca
foi tornado público o uso que foi dado a este material; a sugestão de um
jornal local, no sentido de que os atacadores novos fossem entregues às
forças armadas para serem usados em manobras no deserto, foi ignorada.
Durante alguns dias depois da grande chuvada, as lojas da terra fizeram
uma avalancha de negócios com atacadores. Durante várias semanas as
pessoas só falaram da fraude gigante dos atacadores e de pouco mais, e nos
anos que se seguiram, os sapatos com fecho de correr e correias tiveram
como que por encanto muito maior venda do que os sapatos com atacadores.
— O que me intriga quando penso nisto é que ninguém consegue
perceber porque fez ele isto. Você percebe? — Perguntava naquele mesmo
Verão um dos clientes de Flowers no quiosque das apostas.
Flowers abanou a cabeça e passou os dedos pelo bigode que havia
deixado crescer recentemente. Também deixara crescer o cabelo cortado à
escovinha.
— Eu cá penso que alguém andava a tramar-nos — disse ele
pensativamente.

***

O general Vrooz, aliás A. Vandenberg, abandonou a Terra, a I.ua e o


próprio sistema solar. Conforme disse ao seu comandante de sector, havia
outros mundos a conquistar. Mundos onde os seus esforços seriam mais bem
recompensados. É claro que ele não vai esquecer-se da Terra. Ele voltará —
sem dúvida que voltará! — E na próxima viagem não trocará atacadores de
sapatos.
Contudo, de acordo com o que dizia no seu relatório final, não via a
vantagem de investir tempo, materiais e energia na sabotagem de uma
economia que continha em si mesma uma arma de autodestruição. Em duas
ou três flibes, escrevia o general — uma flibe é a unidade de medida do
tempo da sua raça — a economia da Terra morreria de morte natural pelo
estrangulamento provocado pela burocracia governamental, e então a
conquista seria muito fácil.
O general Vrooz pensava que não faltaria muito tempo para que isso
acontecesse.
6
O Castigo Perfeito
(«The Perfect Punishment»)

Este conto foi publicado pela primeira vez em Março de 1965, sob o título
«Pariah Planet», na revista Worlds of Tomorrow.
© 1965, Galaxy Publishing Corporation
I
O Gabinete de Criminologia dalusiano era o único, em toda a galáxia,
que mantinha a sua própria esquadrilha espacial. Tinha em atividade duas
naves de carga obsoletas com umas escassas cinco mil toneladas de
capacidade. Ambas as naves estavam equipadas com um motor ultrapassado
e ineficaz de três reatores. A intervalos de quinze dias uma delas mergulhava
pesadamente na sua doca privativa, no canto mais remoto do principal porto
espacial de Daluse. Três dias depois descolava de novo, com os seus reatores
de ignição sequencial a causarem o desespero da Comissão para a Redução
dos Ruídos e o seu nariz arredondado e oscilante a provocar a preocupação
constante do engenheiro da segurança do porto, que nunca tinha a certeza de
aquela oscilação ser ou não uma ilusão de ótica.
Todos sabiam o que eram as naves, mas até no Bar do Cometa
Dourado, onde os boatos pululavam e se multiplicavam como bactérias
cuidadosamente cultivadas, ninguém tinha a menor ideia de qual era o seu
destino.
— É deveras estranho — disse o tenente John Mohrlock, agitando
pensativamente o líquido gasoso no seu copo. — É estranho como um raio!
Cumprem um horário apertado, mas certamente que não podem levar muito
longe aquelas velhas banheiras durante uma viagem de ida e volta de vinte e
sete dias. Destino desconhecido, hã?
— Não é propriamente desconhecido — chalaceou um barbudo
navegador do espaço. — Eles sabem para onde vão, mas é claro que não o
dizem publicamente. Porque é que pergunta?
— Porque amanhã serei eu quem vai viajar numa nave dessas.
As cabeças agitaram-se, as caras voltaram-se e os copos que subiam e
desciam pararam a meio do percurso. Até o empregado dalusiano do bar se
voltou lentamente com olhos perscrutadores.
Mohrlock falou, quebrando um súbito e sinistro silêncio:
— O que eu realmente gostaria de saber é se há alguém que regresse
daquelas viagens. Pode-se dizer que a resposta me interessa porque estou
envolvido pessoalmente no assunto.
— Claro, sem dúvida. Ouvi dizer...
— Não é o que ouviu dizer que interessa — persistiu Mohrlock. Fez
então a pergunta para os que se encontravam ao longo do balcão do bar. —
Algum de vós soube de alguém que tivesse voltado?
Ninguém sabia.
— Bebam à vontade. Ofereço eu... É a minha festa de despedida. Julgo
que o dinheiro não me será de muita utilidade a partir de amanhã.

***

Não podia dizer que não tivesse sido avisado. Mesmo em sítios tão
distantes quanto Vega falava-se de Daluse. Em Daluse mantenham-se na
linha, diziam. Não se metam com a lei em Daluse! Mohrlock recordava-se
com clareza da amargurada queixa de um navegador espacial cujo irmão
havia sido apanhado pela justiça dalusiana: «Eles não tentam fazer
corresponder a pena ao crime. O que eles tentam é fazer com que a pena
corresponda ao criminoso. Pensam que são os maiores criminologistas de
toda a galáxia e ninguém pode contestar isso, porque ninguém sabe ao certo o
que é que eles fazem. Em Daluse não se meta em sarilhos!»
Oficial superior da primeira nave terrena a aterrar em Daluse, com uma
carreira brilhante à sua frente, o tenente John Mohrlock tinha toda a intenção
de não se meter em sarilhos, fosse em Daluse ou em qualquer outro sítio.
Porém, fora atacado sem aviso prévio, sem haver qualquer provocação,
por um centauriano chamado Zaque. Se por uma análise posterior a sua
reação parecia desnecessariamente drástica, nem por isso deixara de ser
imprescindível. Se não se tivesse defendido vigorosamente, o tenente John
Mohrlock estaria hoje sob a pedra tumular, enquanto o centauriano ocupava o
Círculo de Justiça. O que se seguiu foi tão bizarro, tão gritantemente
fantástico, que lhe pareceu difícil reconhecer que ele era, mais do que um
mero espectador divertido com a história, um interveniente crucialmente
interessado nela.
— Escute... Tenente Jock Mohrlock... Essa arma cortante... Essa faca
com que diz ter sido ameaçado... Onde é que se encontrava no momento
exato em que agrediu o centauriano Zaque com a cadeira?
— No chão, penso. Arranquei-lha da mão com um pontapé.
— Isso já foi determinado. O que pergunto é qual era o sítio exato do
chão onde se encontrava.
O Círculo de Justiça constituía o único aspecto racional da audiência
judicial. Era mesmo um círculo, uma mesa circular grande com um orifício
no meio. Os nove juristas estavam sentados à roda da mesa, voltados para
dentro, isto é, voltados para Mohrlock. As suas vestimentas judiciais davam-
lhes um ar estranho e peculiar, mesmo para um dalusiano. As togas
acentuavam-lhes os longos pescoços dalusianos. Estes acentuavam a
pequenez desproporcionada das suas cabeças e a pequenez das cabeças
sugeria uma questão pertinente, ou mesmo duas, relacionada com a sua
reivindicação de possuírem os maiores cérebros da galáxia. Os Dalusianos
eram um povo misterioso e chauvinista e segregavam cuidadosamente os
estrangeiros em zonas restritas, fechando-se em si, exceto quando tinham de
administrar a sua justiça.
Mohrlock nunca negou que fosse culpado. Essa atitude teria sido
estúpida, não só devido à grande quantidade de testemunhas, mas também ao
teste da verdade com que abriu o julgamento.
— Confirma que aplicou o golpe que pôs fim a uma vida humana?
Se negasse, o detetor da verdade rebentaria a escala. Por outro lado,
uma confissão esclareceria logo à partida que ele era um homem em quem se
podia confiar, fosse qual fosse o valor que a isso atribuíssem em Daluse.
Portanto, àquela pergunta respondeu com um «Sim» firme. Um técnico
desligou os fios tentaculares do seu corpo e recolocou o detetor da verdade no
armário sob a mesa.
Ele não se sentira muito preocupado, mesmo quando o interrogatório
tomou um cariz absurdo. A justiça dalusiana, apesar de sinistra, assumia-se
apesar de tudo como justiça, e uma morte causada em legítima defesa era um
homicídio justificável em qualquer parte da galáxia. Pelo menos ele assim o
julgava.
— Tenente, o que gostaríamos de saber é o seguinte: porque é que se
defendeu tão convictamente contra uma arma que estava perfeitamente longe
do alcance do seu atacante?
— Eu não sabia que ela estava fora do seu alcance! Dei-lhe um
pontapé, mas não vi para onde foi. De qualquer modo, com um simples salto
ele facilmente a alcançaria. Além disso, também não sabia se ele tinha mais
armas nos bolsos.
— E não tem... Remorsos?
— Remorsos? Eu não tencionava matá-lo e não tenho satisfação
nenhuma em recordar o episódio. Só que não vejo que pudesse ter agido de
outro modo e escapar vivo, a não ser, talvez, não ter atirado a cadeira com
tanta força. Ele estava armado e eu não. Defendi-me com a única arma
disponível e não tive tempo de pensar que os Centaurianos têm cabeças
anormalmente moles, o que aliás desconhecia na altura.
O final do julgamento foi tão abrupto que Mohrlock se levantou
bruscamente em sinal de protesto. Os juristas levantaram-se sem terem feito
qualquer sinal inteligível e abandonaram a sala em fila. As testemunhas já se
tinham retirado quando Mohrlock olhou espantado para o estrado onde elas
estavam. A assistência, na maior parte constituída por oficiais e tripulantes da
nave de Mohrlock, permaneceu sentada, mantendo um pesado silêncio.
O Dr. Fyloid, o idoso dalusiano fardado que escoltara Mohrlock desde
que este havia sido preso, abriu uma portinhola e dirigiu-se a ele. A princípio,
Mohrlock tomara-o por um agente da polícia, mas mais tarde veio a saber que
o homem tinha o pomposo título de Doutor em Criminologia.
— Pode ir-se embora — gritou ele para Mohrlock.
— Então... Estou livre? Libertaram-me?
— Claro que não. Você foi destinado ao Departamento de
Criminologia. Fará o favor de se apresentar amanhã de manhã na Entrada
Portuária X-7, às oito horas. Até lá, pode arrumar os seus assuntos.
— Mas que espécie de idiotice...
— Em Daluse, a criminologia é uma ciência exata — disse com
severidade o doutor. — Esforçamo-nos porque continue a sê-lo. Por favor
não se esqueça disso. Idiotice! Ora uma destas!
Mohrlock respirou fundo.
— Está bem. Lá estarei.
— Agradecemos que seja pontual. A sua nave parte precisamente às
oito e trinta.
Era impossível fugir. Nenhuma nave ia partir de Daluse naquele dia,
nenhum dalusiano quereria ajudá-lo e nenhum estrangeiro ousaria fazê-lo.
O seu comandante prometeu apresentar o assunto a uma embaixada
amiga e explorar todos os meios de conseguir a sua libertação. Mohrlock não
tinha assuntos pessoais a tratar e por isso resolveu gozar a sua última grande
farra. Com uma violenta ressaca, apresentou-se depois como lhe haviam
ordenado, mas com sete minutos de atraso.
O Dr. Fyloid escoltou-o até um minúsculo camarote na ridícula nave de
carga e fez um pequeno discurso cheio de floreados, em que lhe exprimiu a
sua boa vontade e os seus melhores votos de felicidades, bem como os do
Gabinete de Criminologia e de todo o povo dalusiano. Mohrlock conteve-se
dificilmente para não o esmurrar. O doutor retirou-se e dez minutos depois a
nave estava no espaço.
Mohrlock só ficou amedrontado — e bem amedrontado — quando
soube que era o único passageiro.

II
O destino deles era o Inferno. Por qualquer lapso tinha ficado
assinalado nos mapas sob a designação de Bal.
— Antigamente era Baluse — disse o grumete do camarote, o único
membro da tripulação que Mohrlock viu durante toda a viagem. — As
pessoas costumavam confundir com Daluse e por isso encurtaram a palavra.
A nave dirigia-se diretamente para o sol dalusiano, e à medida que o
calor aumentava, o velho aparelho de ar condicionado não se mostrava à
altura de cumprir a sua missão. Funcionava aos solavancos e entre eles a
temperatura subia alarmantemente.
— Ficaremos em cinzas antes de lá chegarmos — queixou-se
Mohrlock.
O grumete sorriu.
— Não... Vai piorando, piorando, e depois para.
— Costumam voltar de Bal muitos passageiros?
O grumete olhou para o lado.
— Não muitos.
— Já voltaste com algum?
— Desde que estou nesta carreira, não.
— Como é aquilo por lá?
— Não sei. A base é toda subterrânea. Tenho visto pouca coisa.
O tom da sua voz dava a entender que não estava interessado em ver
muito.
Mohrlock deixou o grumete regressar ao seu jogo de cartas e aguardou
ofegante a próxima pausa do calor, que, enquanto durava, ia aumentando até
atingir um grau quase insuportável e depois estacionava.
No décimo segundo dia entraram no cone de sombra de Bal, com as
chapas sobreaquecidas da nave a estalarem devido ao frio do espaço exterior,
e acabaram por aterrar no lado não iluminado de um mundo tão estéril como
Mohrlock nunca antes havia visto.
Não havia atmosfera. Um fugitivo desta colónia penal ficaria
rapidamente congelado até à imobilização, ou cozido se o período de
revolução do planeta produzisse dias e noites. Os Dalusianos deviam ter
dificuldades em manter vivos os seus presos, mas certamente não receavam
que fugissem.
Um dalusiano em uniforme preto e com um nariz invulgarmente
proeminente veio a bordo, apresentou-se desinteressadamente como Dr.
Rudieb, administrador da base, e conduziu Mohrlock através de um tubo
flexível recoberto de gelo para uma escotilha de ar múltipla. A escotilha de
carga já estava aberta e um trator com um dalusiano de expressão aborrecida
aos comandos aguardava o sinal para pôr em posição o transportador de
carga.
Sacudiram o gelo das botas e entraram num túnel infindável e
brilhantemente iluminado. O Dr. Rudieb abriu uma porta para Mohrlock
passar e disse com indiferença:
— Bem-vindo a Bal.
— Tenho muito prazer em aqui estar — disse Mohrlock
arrastadamente. Gastar aquele sarcasmo com o Dr. Rudieb era inútil. Este
murmurou qualquer coisa que soou a «Muito prazer em tê-lo entre nós» e
conduziu Mohrlock para uma sala obviamente destinada ao interrogatório dos
presos.
Mohrlock sentou-se e olhou em volta indignado. A cadeira onde se
sentara estava rodeada de aparelhagem psicológica. De um armário saía um
tentáculo mal arrumado de um detetor da verdade. A secretária de Rudieb
situava-se num plano superior, e enquanto ele abria um sobrescrito e remexia
em papéis, ia lançando olhares condenatórios na direção de Mohrlock.
— Trata-se de um caso bem claro — acabou por afirmar. A maneira
como falou dava a entender que estava à espera de qualquer coisa mais
complicada. — Não há necessidade de testes — acrescentou.
— O que está a dizer é um cumprimento de felicitações? — Perguntou
Mohrlock.
Rudieb carregou o sobrolho, pondo uma carranca que provavelmente
pensava ser assustadora, mas o resultado foi ridículo.
— Temos poucos regulamentos, mas aqueles que temos têm de ser
cumpridos incondicionalmente. Não toleramos irregularidades de qualquer
espécie. Está a entender?
Mohrlock assentiu resignadamente.
— Vou destiná-lo ao piso três. O primeiro regulamento a cumprir é não
abandonar esse piso se eu não lho pedir ou autorizar. O segundo diz respeito
à sua roupa. Ser-lhe-á fornecida uma indumentária completa, preta, de
trabalho. Poderá comprar toda a roupa adicional que quiser, de qualquer
estilo, desde que seja preta. É-lhe proibido usar qualquer peça de roupa,
mesmo roupa interior, que não seja preta. Entendeu?
Mohrlock fez que sim com a cabeça.
— O terceiro regulamento a cumprir diz respeito ao dinheiro. O nosso
mês tem cinco semanas e trinta dias e você receberá um subsídio de trezentas
unidades monetárias por mês, pagas semanalmente. Este montante chegará
para as suas necessidades normais e permitir-lhe-á ainda ter algumas
extravagâncias. Se necessitar de mais dinheiro, poderá trabalhar mais para o
ganhar. No seu piso há uma agência de emprego no edifício da
administração. Se ganhar mais dinheiro do que aquele que consegue gastar,
será conveniente pô-lo no banco. O banco paga uma boa taxa de juro pelas
economias depositadas. Pode pedir emprestado ao banco se gastar mais do
que ganha ou se perder ao jogo o seu subsídio, mas a quantia que pedir
emprestada mais o juro ser-lhe-ão descontados automaticamente no subsídio
da semana imediatamente a seguir. Não interferimos nos seus assuntos
financeiros desde que trate deles com competência.
»O quarto regulamento diz respeito aos seus concidadãos. No seu piso
há dois tipos de cidadãos. Por razões de conveniência referenciamo-los por
tipo A e tipo B. Você é do tipo B, tal como todos os cidadãos vestidos de
preto. É-lhe absolutamente proibido cometer qualquer espécie de crime ou de
transgressão contra qualquer cidadão do tipo B. Os crimes contra os cidadãos
do tipo A são permitidos desde que os comunique segundo as regras.
»O quinto regulamento refere-se à sua quota. Amanhã receberá pelo
correio informações completas, juntamente com os impressos em que deverá
fazer aquelas comunicações. Peço-lhe o favor de não cometer nenhum crime
antes de receber os impressos. Isso criaria ao meu serviço complicações
desnecessárias. Tem algo a perguntar?
Mohrlock olhava para ele com espanto.
— Não percebi nada do que disse!
Irritado e de cenho carregado, o Dr. Rudieb fez uma breve pausa para
esfregar o nariz.
— Não é nada complicado! Nesse sobrescrito encontrará uma lista dos
regulamentos, o seu cartão de identidade e o seu subsídio. Como estamos no
último dia da segunda semana do quarto mês, pago-lhe dez unidades
correspondentes a esta semana e sessenta unidades pela próxima. Estude os
regulamentos, e se necessitar de esclarecimentos adicionais verá que os seus
concidadãos do tipo B saberão dar-lhos. É claro que sempre que quiser falar
comigo pode escrever-me a pedir uma entrevista. — Dito isto, levantou-se e
premiu um botão existente na secretária. — Boa sorte, tenente John
Mohrlock. Desejo-lhe uma boa estada na base Bal. Sr. Jones: mais uma
pessoa acabada de chegar. Entregue-lhe a roupa e leve-o ao piso três.
Um indivíduo não dalusiano e vestido de preto havia surgido
tranquilamente junto à porta. Levou um dedo ao boné em arremedo de
continência, chamou Mohrlock para que o acompanhasse e conduziu-o para
fora do gabinete.
O primeiro local onde pararam foi uma secção de abastecimentos.
— Despe os teus trapos — disse Jones. — Vamos ver se encontramos
qualquer coisa que te sirva.
— Você também está preso? — Perguntou Mohrlock, olhando-o com
curiosidade.
— Eles não gostam que usemos a palavra «preso». Eu sou um cidadão
do tipo B. Mas claro que estou. Conheces o Bar do Cometa Dourado na
Cidade Espacial?
— Estive lá na noite anterior à minha partida.
— Pois eu assaltei-o à mão armada e filei as receitas do dia. Quase dez
mil unidades de ouro dalusianas. Nunca executei um golpe tão proveitoso.
Quase consegui escapar com a massa. Olha, põe as tuas coisas aqui nesta
caixa. Podes ficar com a tua carteira... O Narigueta Azul não te pagou o
subsídio? Deixa o teu dinheiro estrangeiro aqui. Em Bal não serve para
comprar uma migalha.
Mohrlock enfiou na caixa a roupa que trazia e vestiu-se de preto. James
carimbou a caixa com a identificação de Mohrlock e perguntou:
— Está tudo pronto? Então vou levar-te ao piso três.
— Como é aquilo lá?
— Não é mau. Não é nada mau.
A mim parece-me que será uma prisão um tanto esquisita.
— Eu cá penso que estes dalusianos são chalados. Fiz um assalto
daqueles e tudo o que eles me fazem é... Vem comigo. Tenho de voltar antes
que o Narigueta Azul se lembre de que precisa de mim outra vez.
Entraram num enorme túnel inclinado e foram conduzidos por uma
rampa móvel a uma profundidade que parecia não ter fim. A rampa
ascendente era do outro lado e entre eles corria uma estrada larga.
James tagarelava alegremente.
— Não tenho nada contra isto, a sério! É quase como viver em
qualquer outro lado. Em cada piso há uma cidade agradável, bons
restaurantes e bares, armazéns que vendem quase tudo o que é preciso. O que
é importante é não se cometerem crimes contra cidadãos do tipo B e não se
deixar de cumprir a quota. Se se tiver um deslize em qualquer destas
matérias, arranja-se um sarilho.
— Mas que é isso da quota?
— Depende. Porque é que estás dentro?
— Matei um homem em legítima defesa.
— Nesse caso não sei. Suponho que consideraram isso como um
assassínio, senão não estarias aqui. Portanto, essa será a tua quota.
Provavelmente, um ou dois por semana.
— Um ou dois quê?
— Assassínios.

III
A rua principal podia ter sido transportada intacta de uma pequena
cidade qualquer das dezenas de mundos que Mohrlock conhecia. Os edifícios
comerciais eram estruturas escorreitas e práticas, alguns de pedra rebocada,
outros revestidos com placas onduladas de pedra moldada. Os passeios
pejavam de peões, homens e mulheres, do tipo A e do tipo B. As coloridas
indumentárias dalusianas misturavam-se com a sombria e monótona
tonalidade dos fatos pretos. Havia vários carros de superfície estacionados na
curva e por vezes um deles movia-se lentamente ao longo da rua, pilotado por
um cidadão do tipo B vestido de preto. Esta povoação subterrânea tão
desenvolvida exigira uma enorme caverna para a sua construção; o seu teto
distante estava completamente oculto pelo brilho da luz artificial.
Maravilhado, fascinado, Mohrlock foi andando lentamente até ao fim
do sector comercial, contornou um quarteirão, contornou outro quarteirão,
sentou-se finalmente numa cadeira de uma pequena esplanada e tratou de
mandar vir um copo de cerveja por uma bonita e jovem empregada, cidadã do
tipo A. Enquanto bebia a cerveja, observava os transeuntes, e estava tão
espantado que já não tinha cerveja no copo quando tomou consciência deste
facto interessante: quase todos os cidadãos do tipo A eram dalusianos e quase
todos os do tipo B eram estrangeiros.
A sua preocupação de momento era conseguir arranjar uma habitação.
Atravessou a rua em direção a um alto edifício onde uma tabuleta anunciava
HOTEL DO TERCEIRO PISO e o recepcionista dalusiano elevou ambas as mãos em
sinal de desalento quando ele lhe perguntou se tinha um quarto.
— Tenho muita pena, mas não temos nenhum vago. Creio que todos os
três hotéis estão completamente cheios. Eu sugeriria que tentasse uma casa de
hóspedes.
— Onde é que posso encontrá-la? — Perguntou Mohrlock.
— Quase todas as casas particulares aceitam hóspedes.
Mohrlock agradeceu e saiu lançando um olhar cobiçoso ao átrio
luxuosamente mobilado. Desceu a rua principal e logo que chegou ao sector
residencial deu com árvores frondosas, elegantes muros de pedra e casas de
diversa dimensão e com uma arquitetura admiravelmente variada. As casas
possuíam relvados bordejados por canteiros de flores e de quando em quando
viam-se hortas nas traseiras.
Ansiosamente procurou uma tabuleta que indicasse um quarto vago,
mas não viu nenhuma. As casas começavam a rarear à medida que se
aproximava da periferia da cidade e estavam separadas umas das outras por
relvados ou jardins semelhantes a grandes parques. Caminhou até ao último
cruzamento e depois voltou para trás aborrecido.
— Procura alguém? — Perguntou-lhe um cidadão do tipo B que viera
atrás dele. Era um homenzinho pequeno e magro com cabelo preto brilhante.
— Procuro uma pensão ou casa que alugue quartos.
— Todas estas casas alugam quartos.
— Estava à procura de ver uma tabuleta.
— É novo por aqui, não é? — Perguntou, estendendo-lhe a mão. —
Trate-me por Whitie.
Mohrlock apertou-lhe a mão:
— John Mohrlock.
— Esqueça esse nome. Aqui precisa de um nome só e você teria toda a
vantagem em escolher um que fosse só seu e pronunciá-lo sempre alto e bom
som quando lho perguntarem. Se assim não fizer, aparecerá alguém que lhe
ponha um nome qualquer de que você poderá não gostar. Um sujeito com
bom aspecto como você é, poderia vir a ser chamado «feio». Foi o que me
aconteceu: sou Whitie1 por ter o cabelo preto. John Mohrlock... É melhor
passar a chamar-se Morrie. Já cá temos Johnnies a mais. Quanto às casas com
quartos para alugar: todas estas casas têm quartos vagos. A maior parte dos
BB gostam de viver no centro da cidade, e por isso é difícil encontrar quarto
lá. Os hotéis têm listas de espera. Os quartos aqui são mais baratos e eu gosto
mais dos subúrbios sossegados. A escolha é sua. Porém, aconselho-o a
arranjar quarto antes de escurecer. As noites aqui são mesmo escuras como
breu.
Mohrlock olhou desconfiado para a luz intensa que se via sobre as suas
cabeças e Whitie deu uma risadinha.
— Eles diminuem-nas ao anoitecer e desligam-nas à noite. Temos
assim períodos regulares de dia e de noite, bonitos ocasos e lindas alvoradas.
Se acha que gostaria de viver aqui, pois bem, a minha senhoria tem muitos
quartos vagos.
— A mim agrada-me o sítio — disse Mohrlock.
A senhoria de Whitie, uma tal Sra. Lynez, era uma cidadã do tipo A,
uma dalusiana gorducha de meia-idade e garridamente vestida.
Cumprimentou Mohrlock com uma indiferença cortês e poucos minutos
depois já ele estava instalado num quarto situado na parte da frente da casa,
espaçoso, limpo, adequadamente mobilado e de preço módico. As dez
unidades por semana que tinha de pagar por ele incluíam pequeno-almoço.
No andar de cima havia quartos vagos por menos uma unidade por semana,
mas a casa não era mecanizada e Mohrlock não gostava de subir escadas.
Whitie deu-lhe um novo aperto de mão e desejou-lhe boa noite,
dizendo:
— Costumo vir cedo para casa porque também tenho de me levantar
cedo. Sou empregado na padaria. Como amanhã também é começo de
semana, tento despachar-me para conseguir alcançar a minha quota. Até à
vista!
Mohrlock ficou a olhar pela janela da frente da casa. Para além dos
limites da cidade havia um campo de cereais em maturação, vendo-se,
inflexíveis no ar imóvel, as altas e esguias hastes. No cume distante de uma
pequena colina recortavam-se edifícios de explorações agrícolas. O brilho lá
de cima tinha diminuído notavelmente e já se viam as primeiras riscas
vermelhas de um pôr-do-sol artificial. Mohrlock abanou a cabeça em sinal de
incredulidade.
Foi para a cama cedo, sem jantar, e dormiu profundamente pela
primeira vez desde que havia deixado Daluse. Quando acordou pela manhã
deixou-se ficar na cama desfrutando de uma abençoada descontração. A cama
era confortável e a ventilação do quarto fazia circular um ar de cheiro fresco
que contrastava com os jatos estéreis de ar reconstituído a que fora submetido
no espaço. O sítio, se se excetuasse um ou outro ressonar que se ouvia vindo
do quarto em frente, era deliciosamente sossegado.
Quando se levantou tinha um enorme pequeno-almoço à espera dele,
preparado pela Sra. Lynez, e que era constituído por uma bebida quente,
sumos gelados, uma empada de carne, bolos e melaço. A comida agradou-
lhe, mas a voz dela, monótona e inexpressiva, depressa o começou a enervar.
Era incrível o modo como ela se queixava do tempo, dizendo que a chuva
fazia imensa falta às suas flores e ao seu jardim. Mohrlock manteve uma
atitude de compreensiva simpatia face às suas queixas, mas pôs infimamente
em dúvida a sua sanidade mental.
Saiu depois do pequeno-almoço e no cruzamento da rua principal
voltou à esquerda e dirigiu-se para o campo. O que lhe parecera ser um
horizonte artificial recuava à medida que ele avançava, até que teve de parar
estupefacto com as inacreditáveis dimensões daquela cavidade — uma entre
várias — existente na rocha inóspita de um planeta meio congelado, meio
assado. Devia ter pelo menos duas milhas de largura e umas tantas milhas de
comprimento; quanto à altura, não era possível calculá-la, porque o brilho do
sol artificial impedia que se lhe visse o cume.
A estrada principal corria a direito para o centro da cavidade, lá em
baixo, sendo cruzada a espaços regulares por estradas laterais. A paisagem
era agradavelmente ondulada, as searas bem tratadas e havia saudáveis
animais de carne a pastar calmamente em campos de pastagem murados a
pedra. Solitários edifícios agrícolas pintalgavam a paisagem aqui e ali.
Era meio-dia quando chegou ao fim do percurso. A estrada terminava
em frente de um muro alto de pedra que atravessava a cavidade de um lado
ao outro. Sentou-se com as costas contra o muro e tentou descortinar algum
sentido naquilo que acabava de ver.
Pensou então que aquelas enormes cavernas deviam um dia ter sido
minas; talvez ainda o fossem lá pelas suas distantes extremidades. Todos os
mundos altamente civilizados substituíam a sua riqueza mineral esgotada
explorando os planetas inabitados do seu sistema solar, e era voz corrente que
exilavam os seus criminosos para as minas, onde iam trabalhar como
escravos. À medida que as minas dalusianas iam sendo automatizadas e que a
criminologia dalusiana ia evoluindo, teria podido formar-se aquela estranha
sociedade de cidadãos do tipo A e do tipo B. As minas já não precisavam de
escravos, mas a sociedade dalusiana havia continuado a exigir o castigo dos
seus criminosos, embora esse castigo fosse mais humano e científico. Era um
castigo perfeito.
Até aí tudo lhe parecia suficientemente claro, mas era incapaz de
prosseguir o raciocínio em direção a uma conclusão satisfatória. Qual era o
castigo? Uma quota de... Crime? Era possível que um criminoso fosse punido
obrigando-o a cometer crimes adicionais? Pensou demoradamente nisso e
quanto mais pensava mais convencido ficava de que estava a ser vítima de
uma brincadeira bizarra.

***

Mohrlock voltou à cidade sob as turbulentas contorções de um pôr-do-


sol artificial. Quando entrou em casa, Whitie deixou logo o quarto para vir ao
seu encontro.
— Estava a pensar no que lhe teria acontecido! Ninguém o viu hoje na
cidade.
— Ninguém me conhece lá — disse Mohrlock. — Mas de facto não
estive na cidade. Fui passear ao campo.
— Sem comida? Devia ter pedido uma caixa à Ida. Ela é uma B e tem
uma loja na cidade, onde vende almoços em caixas, o que lhe proporciona um
bom rendimento. Tem uma casa dela e um carro de superfície e também não
lhe falta uma bela conta bancária. Os BB que estão empregados ou que se
cansaram dos restaurantes compram-lhe lá os almoços. Sobre o facto de
ninguém o conhecer, não é tanto assim. Um novo B não passa despercebido.
Sabe? Perdeu um bom espetáculo por não ter ido hoje à cidade. Como é
princípio de semana, há muitos BB que tentam alcançar as suas quotas logo
pela manhã. Quase vale a pena pagar bilhete de entrada só para ver os
carteiristas em ação. Duvido que haja algum A que ponha o pé na rua no
primeiro dia da semana sem que lhe roubem a carteira. A Sra. Lynez deixou-
lhe o correio no quarto. Deve tratar-se da sua quota.
Whitie seguiu-o até ao quarto e ficou a olhar enquanto ele abria o
volumoso sobrescrito e o esvaziava. Havia um maço de sobrescritos grandes
que apenas traziam escrito a palavra OFICIAL, um bloco de impressos
destacáveis codificados para serem arquivados à máquina e um cartão com a
quota atribuída.
TENENTE JOHN MOHRLOCK
QUOTA SEMANAL: UM ASSASSÍNIO
Por baixo, em letra fina: Regulamento quatro: são proibidos os crimes
contra os cidadãos do tipo B.
Whitie deitou-se para cima da cama e pôs-se a olhar para ele in-
credulamente.
— Assassínio? — Perguntou ele.
— Sim, matei um homem em legítima defesa — disse Mohrlock
amargamente. — Os Dalusianos chamam-lhe assassínio.
— Peço desculpa — disse Whitie evitando-lhe o olhar. — Não devia
estar a espreitar o seu correio.
— Porque é que a minha quota deve constituir segredo?
— É mesmo assim. A quota que é atribuída a alguém, é assunto que só
a ele diz respeito, a menos que queira discutir a matéria abertamente. Se eu
fosse a si não tocava nisso a ninguém. Nunca tivemos um assassino neste
piso, pelo menos que eu saiba. Pensei que talvez pudesse ajudá-lo no
princípio, mas... Assassínio!? Vai ter de tratar disso sozinho. Tem a certeza
de que está no piso que lhe compete? Julguei que os diversos pisos eram para
tipos diferentes de crimes. No piso três somos quase todos carteiristas e
executores de vários tipos de roubos à mão armada. O piso cinco é que é o da
violência. Julguei que todos os assassinos iam para o piso cinco.
— O Dr. Rudieb disse piso três.
— Então está no local certo. Talvez o cinco esteja superlotado. Ou
talvez estejam a modificar o destino deste piso. Espero que não, pois sempre
foi um local agradável!
— Isto não tem sentido — murmurou Mohrlock. — Nada disto tem
sentido!
— Tem até muito sentido! Quanto a mim, os Dalusianos enviam para
aqui os seus próprios criminosos que classificam como cidadãos do tipo A e
criminosos estrangeiros a quem chamam cidadãos do tipo B. O nosso castigo
consiste em termos de continuar a cometer crimes e o castigo deles é terem
eles de ser as vítimas.
— É muito amável da parte deles deixarem-nos ficar com a melhor
parte — disse Mohrlock secamente.
— Pode parecer assim à primeira vista, mas passado pouco tempo
começa-se a duvidar. Os AA não falam muito dos seus problemas, ou seja do
que for, mas tenho a impressão de que eles, tal como nós, andam na sua faina,
tentando economizar algum dinheiro e ignorando em que minuto preciso
algum B os utilizará para preencher a sua quota, levando-lhes assim os lucros
da semana. Deve ser um inferno para eles, mas também não é nada divertido
ter de decidir sobre quem se vai roubar a seguir. Eu cá resolvi o problema da
seguinte maneira: fico a observar um homem até que ele leva o seu dinheiro a
um banco. Depois disso, o que eu fizer já não será tão grave para ele.
— Continuo a dizer que isto não faz sentido. Então podemos roubar
quando nos der na real gana e eles ainda por cima dão-nos um subsídio
semanal?
— Isso faz parte do castigo, ou seja, o crime sem lucro. É que temos de
entregar o que roubamos quando apresentamos o nosso relatório. Uma vez
quando andava com falta de dinheiro, fiquei com dez unidades para mim e
eles deduziram-nas depois no subsídio da semana seguinte. Com juro!
— Suponhamos que eu não preencho a minha quota? Que é que
acontece?
— Tire já essa ideia da cabeça!
— Que podem eles fazer?
— Imenso. Podem andar a empatar durante uns tempos, podem aplicar
uma multa, fazer repreensões ou talvez não... Talvez você desaparecesse e só
o Narigueta Azul saberia para onde. Correm certos boatos, mas... Não
falemos nisso. Preencha a sua quota e porte-se bem.
— Quais são os boatos que correm?
— Que se seria levado para um piso inferior...
— E que é que isso tem de tão terrível?
— É como se se passasse a ser um A. Se você já acha que cometer um
crime não é nada agradável, pense agora no que será a situação ao estar do
lado das vítimas...
Mohrlock examinou os impressos dos relatórios. Na parte da frente de
cada cartão estava impresso o seu nome e número de identificação. Havia
espaços em branco para preencher com o tipo de crime e sua localização e no
fundo estava este aviso: todos os objetos e dinheiro roubados às vítimas
deverão ser entregues juntamente com este relatório. São proibidos os crimes
contra os cidadãos do tipo B.
Do lado oposto havia uma única pergunta: porque escolheu esta
vítima?
— Ouça — disse Whitie num repente. — Poupe a Sra. Lynez, por
favor. Moro com ela desde que vim para aqui. É uma pessoa sossegada e fala
pouco, mas sempre foi simpática para comigo. E Porky, também. Porky é o A
que dirige o Bar Terceiro P. Só de olhar para ele logo se vê que anda
preocupado com qualquer coisa, mas que não diz o que é. Acho que todos os
AA têm muito com que se preocupar. Depois, também há o velho Scrubby,
que tem a lavandaria manual e faz um trabalho muito mais perfeito do que
aquela porcaria da Autolav que há do outro lado na rua, mas que não
consegue fazer muito negócio porque, como é manual, lava mais devagar.
Uma vez assaltei-o, quando para aqui vim, e as receitas de um dia inteiro que
tinha com ele eram só... Mas não falemos nisso. Você fará o que tem a fazer,
mas... Bom, é que temos de conhecer primeiro alguns destes AA muito bem.
— Faça o que eu fizer — disse Mohrlock —, uma coisa é certa: não
tenho pressa nenhuma de o fazer.
— Claro! Não precisa de correr! Ainda tem cinco dias à sua frente.

IV
Na manhã seguinte, Mohrlock explorou a cidade desde a pradaria, de
um lado, até ao grupo de pequenas fábricas, do outro. Por todo o lado a
atividade era febril. Havia carteiros apressados a fazer as suas voltas, todos
eles BB, porque o Dr. Rudieb não queria correr o risco de incluir o correio na
sua quota de roubos... Mohrlock sorriu ao recordar-se de que o próprio
Rudieb estava vestido com um uniforme preto. Havia pequenos camiões que
traziam produtos agrícolas das quintas e camiões grandes transportando
abastecimentos vindos de outros pisos e levando as sobras do piso três.
Quando as lojas abriram, Mohrlock juntou-se aos compradores da
manhã. Recheou em razoável proporção o seu guarda-roupa, fez-se freguês
de um barbeiro e de uma tabacaria, vagueou distraidamente através das lojas,
passou algum tempo num salão de exposição de carros de superfície e até lhe
deu para se interessar pelas montras de materiais de construção e de utensílios
agrícolas.
Sempre que um cidadão do tipo A se aproximava dele, voltava-se
incomodado. Quota semanal: um assassínio. Certamente não estavam à
espera de que ele os levasse a sério!
Num escritório de venda de propriedades estudou as listas das que se
encontravam à venda, as dos terrenos urbanos para construção, as das lojas
em trespasse e as dos escritórios em que um cidadão B que dispusesse de
algumas economias poderia desenvolver um negócio qualquer. Visitou o
edifício da administração, onde estavam instalados o banco e os correios —
ambos com pessoal do tipo B — e abriu lá uma conta bancária.
No pequeno gabinete estava inscrita a palavra ADMINISTRAÇÃO,
Mohrlock encontrou um cidadão do tipo B a ler um livro.
— Parece haver um erro qualquer sobre a minha quota — disse ele. —
Com quem devo falar sobre este assunto?
— Escreva ao Dr. Rudieb — respondeu o empregado prontamente. —
É sobre alguma revisão?
— Revisão? Eu sou novo por aqui e...
— Recebeu um cartão com a quota?
Mohrlock fez que sim com a cabeça e entregou-lhe o cartão. O outro
deu-lhe uma vista de olhos, voltou a olhar, mirou Mohrlock, mirou o cartão e
disse:
— Qual é o erro? Prenderam-no por um crime que não cometeu?
— Não. Quer dizer... Com certeza que não esperam...
— Ah! Estou a compreender.
Devolveu o cartão.
— É exatamente isso que esperam. Um crime por semana.
— Acha que eu ganharia alguma coisa em escrever ao Dr. Rudieb?
O empregado abanou a cabeça.
— Se foi um crime a causa da sua vinda para aqui, o que você terá de
fazer é cometer crimes. Um por semana, conforme diz o seu cartão.
— Que é que acontece se não cumprir isso? — Perguntou Mohrlock
tranquilamente.
O empregado olhou-o com curiosidade.
— Desde que estou aqui, e já lá vão onze anos, nunca conheci ninguém
que tivesse a coragem de não cumprir a sua quota e tivesse ganho alguma
coisa com isso. Você não me parece suficientemente corajoso para ser o
primeiro. Vai ver que vai gostar de cumprir a quota de um crime por semana.
E se está preocupado com os AA, deixe lá isso. Não há nenhum deles que não
esteja melhor morto.
Na esplanada, Mohrlock bebeu cerveja sobre cerveja e inspecionou
cada A que passava. No espaço de duas horas só viu dois que não eram
dalusianos. Seriam BB que não haviam cumprido a sua quota? E que teriam
feito os AA para merecer aquele castigo? Seriam prisioneiros políticos?
Quota semanal: um assassínio.
— Não contem comigo para isso! — Disse ele em voz alta, olhando de
súbito para a empregada do tipo A que limpava as mesas ao lado. Ela,
contudo, pareceu não o ter ouvido.
De repente sentiu-se muito melhor. Acabara de tomar uma decisão; não
contassem com ele. Passou o resto da tarde a beber cerveja e a gozar do belo
sol artificial.
Foi quando as lojas já estavam a fechar que acabou a refeição da noite.
Houve uma saída maciça dos AA que nelas trabalhavam e a certa altura deu
com ele a seguir um deles quando se dirigia para casa. Era um dalusiano
velhote e baixo, cuja mulher certamente seria senhoria de alguém. Mohrlock
ultrapassou-o precisamente quando ele dobrava uma esquina e chocaram os
dois.
— Desculpe — disse Mohrlock.
— Perdão — exclamou suavemente o dalusiano.
Afastou-se pela rua lateral e Mohrlock ficou a olhar para ele até o
homem chegar a casa. A mulher estava à porta, à espera dele. À espera de
Mohrlock, também à porta, estava Whitie, que disse:
— Então... Já matou algum?
Mohrlock abanou a cabeça.
— Não. Hoje não me apetecia matar.
— Quando se resolver a isso, é melhor que o faça onde houver alguma
luz. Ou então, se preferir os locais escuros, é melhor perguntar primeiro se se
trata de um A.
— Perguntar? — Repetiu Mohrlock espantado. — Quer dizer que eles
responderiam a tal pergunta?
— Claro. Os AA nunca resistem. A nós, os que fazemos assaltos à mão
armada, distribuem-nos armas, mas não munições. Quando chegamos ao
local do assalto dizemos: «Passem para cá o dinheiro!», e eles passam logo.
Se houver luz não se confunde um B com um A por causa das roupas. No
escuro isso pode acontecer. Se se tentar assaltar um B no escuro, ele diz logo
que é um B e desfaz-se logo o equívoco. Mas se a quota forem crimes, como
é o seu caso, se se confundir um B com um A, ele poderá não ter tempo de o
fazer saber e então temos sarilho pela certa. Por isso digo: se você não tiver a
certeza de que a vítima é um A, o melhor é perguntar. É só uma sugestão que
lhe estou a dar, já que você é novato aqui.
— Obrigadinho — disse Mohrlock.
Whitie estava noivo. A noiva dele, uma mulher descarnada e de meia-
idade cujas feições sugeriam uma estranha mistura de diversas origens
planetárias, trabalhava com ele na padaria. Estavam a fazer economias para
construir uma casa e Whitie tinha já dado entradas adiantadas para três lotes
de terreno em local privilegiado.
Mohrlock deu com eles num pequeno restaurante que ostentava o nome
de Salão de Chá Denebiano e que tinha um ambiente pretensioso, e eles
interromperam a discussão o tempo suficiente para o convidarem a juntar-se-
lhes.
— Eh, para lá de te queixares, Bella — disse Whitie. — E despacha-te.
Não é coisa que leve muito tempo. Pois não, Morrie?
— Que é que não leva tempo? — Perguntou Mohrlock.
— Bella deixa sempre o cumprimento da quota dela para o fim da
semana — explicou Whitie. — Estou sempre a dizer-lhe... Olha: está ali uma
A com os braços cheios de embrulhos. Fisga-a antes que ela se vá embora.
— Oh, está bem, pronto!
Bella afastou-se repentinamente, chocou com a mulher e, com um
movimento tão ágil que deixou Mohrlock a pestanejar perplexo, arrancou-lhe
a mala da mão. Depois voltou para trás e sentou-se, respirando com
dificuldade, para preencher um impresso de relatório.
— «Porque escolheu esta vítima?» Bah! Se pudesse deitar as mãos ao
Narigueta Azul, mostrar-lhe-ia para que servem as unhas. Porque aconteceu
ter-me cruzado com ela», responderei. — Meteu o relatório e o conteúdo da
mala da mulher num sobrescrito oficial, fechou-o e entregou-o a Whitie.
— Ainda faltam três — disse Whitie. — A empregada não tem
qualquer coisa no bolso do avental?
— É só um lenço. Teria vergonha de fazer um relatório só a comunicar
um roubo desses!
— Acaba então a sanduíche e depois vamos experimentar as
mercearias. E que tal, na próxima semana, começar a trabalhar logo no
primeiro dia, hã?
— Bah! No primeiro dia não se pode deitar a unha a nada sem
descobrir que antes dois outros BB já lá meteram a mão.
Whitie riu-se.
— Como vão as coisas consigo, Morrie?
— Nada de novo — respondeu Mohrlock.
— É melhor resolver-se. Só faltam quatro dias, contando com o dia de
hoje.
— O quê!? Ele ainda não preencheu a quota dele? — Perguntou Bella.
— Ele é novo aqui. Vá lá, come a tua sanduíche.
Afastaram-se apressados. Mohrlock seguiu a direção contrária e foi
andando lentamente, a olhar para as montras.
Subitamente viu uma cara familiar a olhar para ele. Era o dalusiano
com quem havia chocado na noite anterior, um empregado indefinido de uma
loja indefinida que vendia quinquilharia e parecia fazer muito pouco negócio.
Mohrlock entrou e comprou um cinzeiro para o quarto, embora já lá tivesse
três. Foi atendido delicadamente sem ter sido reconhecido.
Mais tarde não seria capaz de dizer o que impeliu a esperar o
empregado quando naquela noite se dirigia para casa. Seguiu-o discretamente
até que ele abandonou a rua principal e continuou depois apressadamente sem
um único olhar para trás.
Nessa noite teve o seu primeiro pesadelo. Sonhou que com as mãos
estrangulava o longo pescoço dalusiano do empregadito e que o apertava com
toda a sua força, asfixiando-o, asfixiando-o, asfixiando-o, enquanto os braços
dele se agitavam desesperadamente e as pernas esperneavam, fixando-se-lhe
na face uma máscara de terror mortal. Acabou por acordar empapado em suor
e deu com Whitie, ansioso, dobrado sobre ele.
— Julguei que alguém o tivesse confundido com algum A — disse
Whitie.
— Parece-me que tive um pesadelo. Desculpe-me — bocejou
Mohrlock. E, como tivesse medo de voltar a adormecer, ficou acordado até
de manhã.
Quota semanal: um assassínio. Mohrlock tentou afastar a palavra quota
da mente, mas ela regressava sempre. Regressava inevitavelmente. Ou porque
ouvisse por acaso os BB a conversarem uns com os outros: «Ainda não
preencheu a sua quota?», ou porque os olhos lhe caíssem sobre o bloco de
relatórios, ou porque a palavra se lhe esgueirava para a mente pela sua
própria sinistra persistência.
Ainda lhe restavam três dias para assassinar alguém. Intimaram-no a
que matasse e, se não cumprisse as ordens, as consequências seriam
horríveis. Talvez aquilo fosse justo, talvez fosse mesmo um castigo perfeito
ou o tivesse podido ser se ele fosse um assassino. Porém, obrigá-lo a eliminar
um ser humano intencionalmente porque o havia uma vez feito
acidentalmente, parecia-lhe uma deformação monstruosa da justiça.
E eliminar uma vida humana na próxima semana e na semana a seguir,
viver toda a sua vida neste ambiente ocioso e sem nexo, assassinando,
assassinando... Era-lhe uma ideia intolerável.
Não contassem com ele. Já decidira isso, o assunto estava encerrado...
Então porque era que a palavra «quota» o incomodava? Porque havia ele
seguido o empregadito até casa? Teria o seu subconsciente escolhido já a
primeira vítima?
Na noite seguinte acompanhou novamente o empregado até casa,
seguindo-o quase até à porta da rua, e ficou ali, no escuro, a olhar para a porta
durante muito tempo depois de ela se ter fechado.

V
— Finalmente choveu a noite passada — disse a Sra. Lynez ao
pequeno-almoço, com a mesma voz inexpressiva com que se queixara da
falta de chuva.
— Tenho muito gosto em ouvir isso — respondeu Mohrlock
afavelmente, interrogando-se se ela estaria a brincar ou se a sua mente teria
acabado por dar o passo fatal na direção da loucura. Porém, quando saiu
descobriu que os passeios estavam húmidos e que havia gotículas de água na
relva. Naquela tarde perguntou a Whitie como faziam aquilo.
— Têm um sistema de aspersão — explicou Whitie. — Não faz mesmo
chuva, mas apenas um orvalho grosso. Só o ligam de noite e serve para
limpar o ar e fazer depositar a poeira.
— Mas de onde vem a água? Certamente que não são aquelas velhas
naves de carga que a trazem!
— A base recupera provavelmente a água que usa, tal como acontece
numa nave espacial. Parece que há um grande reservatório no piso abaixo de
todos e além disso há muitas naves que aqui vêm carregar minério. Talvez
elas tragam água. Alguma coisa hão de trazer.
Mohrlock reconheceu a verdade desta asserção e reviu as suas ideias
sobre o valor da criminologia dalusiana. Se as coisas não se passassem assim,
as naves mineraleiras cruzariam os espaços vazias no seu curso económico
em direção ao sol e por isso os materiais descarregados em Bal podiam ser
considerados praticamente isentos de custos de transporte. A base produzia
alguns, senão a maior parte dos alimentos que consumia, havia abundância de
energia solar no outro lado do planeta e os presos forneciam o trabalho
necessário. Talvez as pequenas fábricas fabricassem mesmo os produtos para
exportação e a criminologia dalusiana exibisse um modesto lucro.
Quota semanal: um assassínio.
Mohrlock estava decidido a não se aproximar de novo do empregadito
e por isso comprou uma das caixas de almoços de Ida para o jantar e foi
passear até ao campo. Passou a tarde sentado sob uma árvore enfezada a
observar um camponês A mais a sua mulher a sachar as ervas daninhas da
sua horta. Os BB tinham máquinas agrícolas, mas os AA só conseguiam
economizar dinheiro para a compra de simples utensílios manuais. Todos os
seus lucros lhes eram arrancados por aquelas infindáveis quotas que os
ladrões e os carteiristas tinham de preencher. Mohrlock pôs-se a matutar no
sentido da vida de um A, interrogando-se sobre se se poderia autoconvencer
de que ó assassínio de um deles talvez pudesse ser considerado um ato de
piedade.
Mas não podia. Os AA tinham a liberdade de se suicidar, e no entanto
Whitie dissera que nunca ouvira falar do suicídio de um A. Possivelmente as
suas penas no purgatório da base Bal eram de duração limitada, e assim a sua
força derivava do conhecimento de que acabariam por ser libertados.
A camponesa regressou a casa quando começou a escurecer; o marido
ficou a trabalhar sozinho até a escuridão o impedir de ver. Finalmente entrou
em casa e Mohrlock voltou à cidade.
Whitie mal o viu perguntou-lhe:
— Então, já...
Mohrlock abanou a cabeça.
— Ó amigo! Olhe que amanhã é fim de semana!
— Que me importa isso? — Respondeu Mohrlock bruscamente.
— Desculpe. Pensei que devia lembrar-lho.

***

Pequeno-almoço. A voz monótona da Sra. Lynez, que, embora usasse


palavras diferentes, parecia estar sempre a dizer a mesma coisa. Mohrlock já
estava para lá da porta quando ela disse:
— Estamos no último dia da semana.
Ouvido por acaso a uma esquina...
— Já cumpriste a quota?
Um carteirista deu um safanão no cotovelo de Mohrlock ao bater com
uma carteira no balcão do bar e começou a preencher o relatório:
— Por esta semana é tudo. Finalmente!
Mohrlock já começava a sentir a monotonia daquele lugar. Mesmo
quando aconteciam coisas diferentes, aconteciam sempre da mesma maneira.
Sabiam sempre ao mesmo, tal como a humidade sabia ao mesmo um dia após
outro, e a temperatura sabia ao mesmo, e o seu pequeno-almoço parecia o
mesmo e tinha sempre o mesmo paladar e se podiam ver sempre os mesmos
AA e BB, todos os dias, à mesma hora e no mesmo lugar, vestidos do mesmo
modo e fazendo as mesmas coisas.
O empregadito dalusiano postou-se junto à montra como de costume,
olhando distraidamente para os transeuntes. Mohrlock interrogava-se se não
seria o longo pescoço dalusiano do homem que o atraía. Sentia os dedos
irresistivelmente empurrados para ele. Era como se o seu último e definitivo
objetivo na vida fosse estrangular aquele pescoço dalusiano. Voltou-se,
passou pela montra outra vez e voltou a passar terceira vez. O empregado
continuava a olhar distraidamente.
Na esquina seguinte encontrou Whitie e a noiva. Estavam nas
derradeiras convulsões da sua discussão semanal e não deram por ele.
Que é que queres fazer? Esperar até que tenham ido todos para casa?
Só precisas de mais um. Agarra aquele!
— Está bem, pronto!
Mohrlock afastou-se rapidamente, evitando assim o inevitável: «Então,
já...», de Whitie. Enfiou-se num bar e, antes de ter tempo de as pedir, dois BB
trouxeram-lhe bebidas.
— Estamos a comemorar — disse um deles. — Acabamos mesmo
agora de preencher as nossas quotas. Todas as semanas dizemos a nós
mesmos que os limparemos logo ao princípio, mas nunca o conseguimos.
Mohrlock não lhes agradeceu.
— Olhem para aqueles idiotas — disse um idoso B que, na esplanada,
compartilhava a mesa de Mohrlock. — Metade deles tenta cumprir a quota no
princípio da semana e a outra metade espera até ao último dia. Quanto a mim,
trabalho sempre ao meio dela. Às vezes sou o único que ando no trabalhinho.
Mohrlock começou a andar à volta do quarteirão, viu um B emboscado
perto da entrada traseira de uma loja para atacar de surpresa o proprietário e
debandou freneticamente para o bar mais próximo.
— Já tem a sua quota em dia? — Perguntou-lhe a sorrir um B que
estava de pé ao lado dele.
Mohrlock teve vontade de gritar: «Não! Falta-me só um crime!»
Meteu-se no átrio de um hotel e queimou algum tempo a ver um jogo
rápido de Queda Livre. As apostas eram elevadas e os jogadores esbanjavam
sem hesitações o que lhes sobrava do subsídio semanal.
— Dêem-me o meu prémio — disse um deles vasculhando um vaso
bojudo. — Ainda não acabei a minha quota!
— Oh, valha-nos Deus! Um fura-quotas! Quem é que o deixou entrar
no jogo?
Mohrlock seguiu-o quando ele saiu e, mais uma vez, passou pela loja
do pequeno dalusiano, olhando cuidadosamente para o outro lado. «Se tem de
ser...»
Voltou a passar e desta vez fixou bem o tentador pescoço. «Se tem de
ser...»
Este pensamento provocava-lhe náuseas, mas toda a sua resistência se
dissipara e as suas nobres decisões já mais não eram que cinzas a triturar
entre os dentes cerrados. «Se tem de ser... Tem de ser!»

***

O relógio do edifício da administração soava a hora do encerramento


dos escritórios. Logo que as lojas se esvaziaram de gente, Mohrlock
caminhou vacilantemente para a esquina e escondeu-se à entrada da porta de
uma sapataria. As luzes permaneciam acesas em todas as lojas e os
empregados arrumavam as mercadorias e faziam o inventário de fim de
semana. Mohrlock meteu as mãos trémulas nos bolsos e esperou.
As luzes começaram a apagar-se e finalmente apareceu o pequeno
dalusiano. Caminhava lentamente, com a cabeça inclinada para a frente pelo
cansaço ou pelos pensamentos profundos ou, quem sabe, pela oração.
Mohrlock praguejou furiosamente e pôs-se no seu encalço, com as pulsações
aceleradas e a respiração difícil e entrecortada. Depressa o alcançou e ficou a
segui-lo de perto. Embora fosse já quase totalmente escuro, o longo e branco
pescoço brilhava palidamente sob a luz evanescente e fazia-lhe um apelo.
Na esquina da rua do dalusiano, Mohrlock deu um passo em frente e
esbarrou com ele.
— Desculpe-me — murmurou, com as mãos preparadas para lhe saltar
ao pescoço. — Pode dizer-me que horas são?
— Que horas são? — Repetiu o dalusiano. Houve qualquer coisa nos
seus modos que fez Mohrlock hesitar. Ouviu-se o roçagar das roupas quando
ele levou as mãos aos bolsos. — Que horas são? — Voltou ele a repetir.
Procurou noutro bolso e acabou por dizer: — Desculpe-me. Roubaram-me o
relógio!
Dizendo isto afastou-se para a escuridão, deixando Mohrlock a olhar
para ele atordoado. A patética criatura fora roubada e depois espiada por um
criminoso e, apesar disso, regressava a casa miraculosamente salva.
Mohrlock deu meia volta e dirigiu-se para o bar mais próximo quando
uma voz vinda do escuro disse:
— Mãos ao ar!
— Vá para o diabo! — Disparou Mohrlock.
A voz converteu-se em gargalhada:
— Desculpe. Com a escuridão não vi que você era um B. Viu por aqui
alguns AA?
— Não.
— Ora bolas! Parece-me que vou ter de me meter num desses bares que
estão abertos toda a noite. Eh! Quer vir comigo?
— Não.
— Já tem a sua quota, hã! Cheio de sorte! Todas as semanas digo a
mim mesmo...
Mohrlock estugou a passada e deixou-o para trás. Passou quase toda a
noite a beber, até que ficou num estado de estupefação taciturna. Quando se
lhe acabou o dinheiro foi direito para casa e passou o resto da noite na cadeira
defronte da janela do seu quarto, a olhar para a escuridão. Ouviu Whitie a
levantar-se, ouviu-o a falar calmamente com a Sra. Lynez enquanto comia o
pequeno-almoço e ouviu-o a sair de casa para se dirigir à padaria. Riscas
uniformes de vermelho anunciavam as ânsias de uma aurora artificial.
Quando ouviu de novo as movimentações da Sra. Lynez a preparar-lhe
o pequeno-almoço, foi até à cozinha.
— Não estou com fome esta manhã — disse.
Ela fez um aceno indiferente com a cabeça e regressou ao quarto, na
parte de trás da casa. Mohrlock olhou-a pensativo, estudando o seu longo e
branco pescoço dalusiano. Quando tomou consciência do que estava a fazer
regressou rapidamente ao quarto, atirou-se para a cama e desatou a chorar.

VI
Passou a semana, ele não conseguiu cumprir a quota e, apesar disso, a
vida no piso três prosseguia monotonamente. O carteiro, um B, trouxe-lhe um
sobrescrito oficial, que só continha o subsídio semanal: seis notas, novas em
folha, de dez unidades. Deu uma delas à Sra. Lynez para pagar a renda do
quarto e em troca recebeu um recibo.
Não sabia bem do que estava à espera, mas que absolutamente nada
acontecesse parecia-lhe absurdo. O tempo passou e a sua disposição
transformou-se gradualmente em euforia. Travara uma luta consigo próprio e
havia ganho. Nunca mais se perturbaria ao ouvir pronunciar a palavra
«quota», nem se poria mais a contar os dias da semana para calcular o tempo
que faltava para matar alguém. A ameaça de um castigo indefinido já não o
aterrorizava. E porque havia de o aterrorizar? O mais que lhe podiam fazer
seria torná-lo vítima do tipo A, o que ele considerava ser de longe preferível à
vida de um assassino B. Tinha vencido!
Esta súbita erupção de exuberância e euforia restituiu-lhe o apetite, pelo
que voltou a comer ao pequeno-almoço. Conversava com a Sra. Lynez e até
tentava de vez em quando arrancar-lhe um sorriso, no que não era bem-
sucedido. Saiu para ir dar um passeio pela cidade e para ter o prazer de se rir
dos carteiristas do primeiro dia da semana.
Quando ao fim do dia se encontrou com Whitie na rua, pôde responder
à habitual pergunta desta vez não formulada, com um abanar de cabeça e um
sorriso na face.
— Deixe-me oferecer-lhe uma bebida — disse Whitie.
— Não. Quem lhe oferece a bebida sou eu — ripostou Mohrlock.
— Mas, a sério que não... Está bem, pronto! Pague-me você a bebida.
Mas depois não diga que não o avisei!
Naquela noite chegou outro sobrescrito oficial, enviado por mensageiro
especial. Mohrlock abriu-o com os dedos a tremer e arrancou de lá uma carta.
Era uma carta-circular. Até a assinatura redonda do Dr. Rudieb era nela
reproduzida. Havia dois quadradinhos assinalados com um rabisco mal feito.
De acordo com as informações que possuo, a sua quota da
semana passada apresenta um défice de UM ASSASSÍNIO. Deste modo, a
sua quota para a semana que agora começa passa a ser de DOIS
ASSASSÍNIOS. Se houver discrepância entre as minhas informações e a
realidade, por favor comunique-me imediatamente.
A carta escorregou-lhe dos dedos. Whitie apanhou-a, deu-lhe uma
olhadela e comentou:
— O velho Narigueta Azul devia estar bem-disposto quando hoje
despachou esta carta.
— Julguei que tinha vencido, mas enganei-me — disse Mohrlock. —
Não se tratou de uma vitória, mas sim de um adiamento.
— Repita lá isso.
— Quero dizer que agora vai começar tudo de novo. Mais cinco dias
nisto.
— Certo. E se me deixar dar-lhe um conselho, trate desses crimes o
mais depressa possível... Que é que se passa? Está com mau aspecto.
— Não me sinto bem.
— Meta-se na cama. Você dormiu pouco a noite passada.
Mohrlock abanou a cabeça:
— Não. Vou até à cidade embebedar-me.
Naquela noite teve o segundo pesadelo. E na noite seguinte outro ainda,
uma ilusão tão real e horripilante que o deixou com medo mórbido de dormir.
Durante duas noites nem sequer voltou ao quarto. Quando Whitie finalmente
o conseguiu encontrar, estava alcoolizado, exausto, desmazelado,
subalimentado e com uma agressividade inspirada pelo terror de ver alguém
aproximar-se dele.
Apontou um dedo na direção de Whitie e disse:
— Não contem comigo! Não quero saber das malditas quotas para nada
e não me importo com o que me poderão fazer. Só não quero que me
chateiem!
— Ótimo — respondeu Whitie. — Você está a tremer como se sofresse
de um caso avançado de delirium tremens espacial. Se não vai matar
ninguém, não quer saber da quota para nada e não quer chatear-se, porque é
que está a tentar dar cabo de si?
— Porque suponho que acabarei por matar — respondeu Mohrlock a
chorar.
— O seu caso é de médico. Venha comigo.
Mohrlock, cambaleante, seguiu-o mansamente até ao primeiro
cruzamento e depois recusou-se a continuar.
— Não vou por esse quarteirão.
— Porquê?
— O tipo trabalha lá e eu não quero vê-lo.
— Está bem — disse Whitie pacientemente. — Vamos dar a volta.
Por fim lá chegaram à clínica, que era no edifício da administração, e
um médico B deu-lhe uma injeção. Na manhã seguinte acordou já na sua
cama, muito mais recomposto, mas desejando não o estar. Durante as poucas
horas em que esteve relativamente sóbrio conseguiu escrever uma carta ao
Dr. Rudieb, dizendo-lhe precisamente o que se passava com a quota. A
primeira vez que voltou a sair da inconsciência foi no primeiro dia da semana
seguinte. Whitie levara-o de novo à clínica e o Dr. Rudieb enviara outra
circular a dizer que a sua quota revista para a semana seguinte era de três
assassínios.
— Conheço um B — disse Whitie — que às vezes faz uns biscates
dando uma ajuda nas quotas. As tabelas que ele cobra para roubos são
razoáveis, mas não sei quanto cobraria ele por um assassínio, ou até se estaria
interessado em trabalhar nisso. Posso perguntar-lhe, se você quiser.
— Não.
— Você tem de arranjar um emprego. Tem de ter qualquer coisa em
que tenha o espírito ocupado.
— Boa ideia — disse Mohrlock. — Que espécie de emprego poderia eu
arranjar onde não visse nenhuns AA?
— Bom...
— Já estava à espera disso. Os AA não me fizeram mal nenhum e eu
também não quero fazer-lhes nenhum mal. Se não me embebedar, estou certo
de que irei matar um.
— Mas é mesmo isso que se espera que você faça!
— Alguma vez imaginou ver os seus dedos à volta de um daqueles
longos pescoços dalusianos? Se alguma vez lá puser os meus, estou perdido.
Um homem tem direito a um pouco de integridade moral, mesmo que seja
um criminoso condenado. A minha integridade moral exige que eu nunca
faça mal, desnecessariamente, a qualquer outro ser humano, seja roubando-
lhe a carteira, seja roubando-lhe a vida. Na primeira semana que aqui passei
estive assustadoramente próximo disso. Agora até tremo só de pensar em tal
coisa. Como nunca mais quero estar tão próximo do crime, vou embebedar-
me o mais que puder e deixar-me ficar assim. Para cometer um crime sem
arma é necessária muita coordenação de movimentos e eu julgo que se estiver
demasiado bêbedo para andar também o estarei para matar.
— O funeral é seu.
— É melhor que seja meu do que de algum dos AA. Whitie, será
possível que bem dentro de cada um de nós haja um impulso assassino?
— Eu nunca o senti — respondeu Whitie.
— Talvez seja porque ninguém lhe deu nunca uma quota de
assassínios.
Mesmo quando Mohrlock estava bêbedo, o pequeno dalusiano
continuou a obcecá-lo, e ele acabou por adquirir gradualmente a ideia de que
o empregado era responsável pelos seus males. Um dia sonhou que apanhou
uma pedra e a atirou á montra da loja. A montra não era de vidro e a pedra foi
devolvida. Voltou a atirá-la várias vezes e ela era sempre devolvida até que,
finalmente, alguém o imobilizou. Durante toda a cena o empregadito estava
postado na montra, olhando absorto os transeuntes e não reparando em
Mohrlock.
A quarta semana passou, com a sua quota revista de quatro assassínios.
Num impulso de fúria embriagada, Mohrlock devolveu pelo correio a circular
ao Dr. Rudieb. Nos dias que se seguiram, meteu no correio o cartão de
quotas, o bloco de impressos para relatórios e o bilhete de identidade.
Quando já nada mais tinha a enviar, selou os sobrescritos oficiais e meteu-os
no correio. Ao entregar ao postigo os sobrescritos vazios, dizia
orgulhosamente:
— É a minha quota deste dia!
Os outros BB pareciam ter dúvidas sobre se Mohrlock estava doido
devido à embriaguez ou se ele era um lunático que andava sempre
embriagado. Quando, muito raramente, ele era capaz de raciocinar sobre o
assunto, dizia que achava que ambas as hipóteses estavam certas. Mesmo
embriagado, tentava seguir o empregadito de noite até casa, mas os seus
passos eram tão incertos e ele caia tantas vezes que nunca conseguia
ultrapassá-lo.
Finalmente houve uma entrevista com o Dr. Rudieb em que Mohrlock
o via vagamente através de uma nuvem de álcool, como se estivesse longe. O
doutor abanou com mágoa o descomunal nariz e lamentou o facto de ter dado
a Mohrlock todas as oportunidades e de, em troca, não ter podido contar com
a sua colaboração. Mohrlock olhou-o de soslaio através da enorme distância
que os separava e pôs-se a insultá-lo aos gritos. Acabou por abandonar a sala
com uma simples expressão a ecoar-lhe repetidas vezes pelos corredores
enevoados de álcool da sua consciência já deformada: nova missão.

VII
— Homem, você estava realmente em órbita! — Disse o grumete do
camarote.
— Onde estou eu?
O rapaz riu-se.
— No espaço. Ainda não reparou no calor?
— Reparo agora — disse Mohrlock.
— E essa correia não é para segurar o seu pijama, se está interessado
em saber. É que você estava sempre a flutuar para fora do beliche. Olhe: beba
isto.
Mohrlock engoliu e estremeceu.
— Que é isto?
— Será possível? Tem estado a tomar isso de quatro em quatro horas
desde que o trouxeram para bordo e não se lembra?
— Não. E não acredito que me pudesse esquecer desse horrível gosto
assim tão depressa!
— Homem, você estava em tal estado que nem tinha paladar!
— Para onde vamos?
— Esta nave só tem dois destinos e você vem de um deles.
— Estou a ver. Julgo que ouvi falar de qualquer coisa como nova
missão.
— Se se lembra disso é porque está a recuperar bem. Quando o
trouxeram para aqui julguei que estaria morto!
— E estava — respondeu Mohrlock gravemente. — Era mesmo isso o
que eu estava: morto.
— Certo. Com um pouco de sorte estará completamente sóbrio quando
entrarmos no porto.
Em Daluse veio buscá-lo a bordo uma escolta do Gabinete de
Criminologia, que o levou para a sede local, onde teve de esperar numa
antecâmara por mais de uma hora. A cadeira onde estivera sentado, após doze
dias no espaço, parecia-lhe de uma dureza aflitiva.
Finalmente, o Dr. Fyloid chamou-o.
— Ah! Tenente Mohrlock! Sente-se, tenente — disse-lhe com ar
pacífico e olhando-o penetrantemente.
— Se não se importa, preferia ficar de pé.
O sorriso do doutor ampliou-se.
— O Dr. Rudieb enviou-me um relatório muito completo a seu
respeito. Tenho estado a estudá-lo.
— É generosidade da sua parte, estou certo — respondeu Mohrlock,
olhando para o sorriso dele pouco à vontade.
Tinha uma leve suspeita de que Fyloid era um sádico que havia
descoberto a profissão mais adequada à satisfação dos seus impulsos
grosseiros. A amplitude do seu sorriso indicava provavelmente a severidade
do castigo que estava prestes a aplicar-lhe. Quando mandava proceder a uma
execução devia ter muita dificuldade em conter a hilaridade.
— Parece que você não foi nada colaborante em Bal. Porquê?
— De vez em quando tenho ataques de teimosia — respondeu
Mohrlock absorto. Os medicamentos que lhe haviam ministrado a bordo da
nave tiveram um estranho efeito sobre ele: estava sempre a divagar. Ou então
ficava inesperadamente vazio e quando readquiria o contacto consigo mesmo
confundia desconcertantemente o tempo, os lugares e as pessoas. É claro que
se recordava do Dr. Fyloid, mas, de maneira um tanto estranha, ele fazia-lhe
lembrar alguém que... Ah, sim, fazia-lhe lembrar o empregadito de Bal! Este
facto pareceu-lhe uma coincidência impressionante porque, excetuando os
longos pescoços que ambos tinham, não havia entre eles a mais ligeira
parecença. A face do empregadito não exprimia absolutamente nada,
enquanto a do doutor era o modelo acabado da superioridade presunçosa.
— Este é um momento de triunfo para mim — dizia o Dr. Fyloid com
ar realmente triunfante. — Tenho o prazer de o informar que está curado.
— Curado?
— A natureza do seu crime, a violência invulgar com que o cometeu e
a sua confessada convicção de que essa violência tinha sido necessária,
fizeram-nos suspeitar de que você possuía impulsos homicidas latentes. Se
isso fosse verdade, havia o perigo de que pudesse de novo ceder perante eles.
O objetivo da sua detenção em Bal foi, é claro, dar-lhe a oportunidade de se
purgar desses impulsos. O Dr. Rudieb acha que o nosso diagnóstico estava
errado, mas eu sinto-me mais inclinado a concluir que você os possuía e que
aprendeu a controlá-los. Tenho aqui os papéis para a sua libertação e vou ter
muito prazer em assiná-los.
— Libertação? Vão libertar-me?
— Claro!
Mohrlock deu um passo na direção da secretária.
— Bal... Purguei-me... Controlei...
Fazia um esforço para se concentrar.
— Quer dizer que os carteiristas e ladrões de todos aqueles cidadãos do
tipo B que estão em Bal se encontram lá para se purgarem?
— Exato.
— E tencionam mantê-los lá até que eles se recusem a... A...
— Exato mais uma vez. Temos o dever de proceder assim, não só em
relação à nossa sociedade, mas também em relações a todas as outras
sociedades. Não podemos libertar esses criminosos e deixá-los andar por aí a
atacar os seus concidadãos. Temos de os manter detidos até estarmos aptos a
garantir que estão curados e não podemos fazê-lo antes de eles terem
aprendido a dominar os seus impulsos antissociais.
— Isso é monstruoso! — Exclamou Mohrlock. — Vocês dão-lhes uma
quota de crime a cumprir e ameaçam-nos com toda a espécie de horríveis
consequências se eles o não fizeram e quando eles obedecem às vossas
ordens dizem que não aprenderam a dominar os seus impulsos antissociais!
O Dr. Fyloid sorriu tranquilamente.
— Tenente, está a querer dar-me uma lição de criminologia?
Alinhou os papéis sobre a secretária e garatujou uma assinatura.
— Ora bem! Saia por essa porta, por favor. O Dr. Laime está à sua
espera para lhe aplicar o tratamento hipnótico. Não é nada de drástico; é só
uma pequena ação de desmemorização. É óbvio que não podemos consentir
que o público em geral venha a saber os pormenores da sua cura, pois se os
conhecesse a nossa técnica criminológica perderia a utilidade.
Mohrlock não fez caso dos papéis.
— E os AA? — Exclamou ele. — De que é que estão a querer curá-
los?
— Ah! É claro que você não sabe que Daluse é o centro mais avançado
em robótica de toda a galáxia. Não é um facto muito conhecido, mas devo
dizer-lhe que as nossas conquistas técnicas neste campo são tão notáveis
quanto o nosso trabalho em criminologia. Assim, é lógico que os nossos
criminologistas fizessem uso das técnicas robóticas dalusianas.
— Robots — murmurou Mohrlock.
— Precisamente. Com certeza que não ia imaginar que consentiríamos
que os nossos criminosos descarregassem os seus impulsos sobre seres
humanos! O nosso avançadíssimo laboratório criminológico em Bal não seria
viável sem a robótica. Quando o nosso trabalho estiver concluído, tenente,
esperamos ter banido o crime da sociedade civilizada. A contribuição que
você acaba de dar, por pequena que tenha sido, deveria proporcionar-lhe uma
enorme satisfação!
— Robots! — Murmurou Mohrlock de novo. — Passei semanas
infernais a abster-me de matar... Robots!
— Aqui tem os seus papéis, tenente. Por aquela porta, por favor.
O cérebro de Mohrlock estava outra vez a pregar-lhe partidas. A cara
que ria de esguelha para ele não era a do Dr. Fyloid, mas sim a do
empregadito — uma cara de robot. A sua expressão transformou-se em
espanto quando ele se inclinou sobre a secretária e tentou agarrar o tentador
pescoço dalusiano. Só quando o empregadito começou a esbracejar é que ele
realmente exerceu pressão.
Um robot.
Finalmente deu um passo atrás e a cara desapareceu por detrás da
secretária. Mohrlock apanhou mansamente os papéis e saiu pela porta que o
Dr. Fyloid havia indicado.
Outro robot de pescoço comprido adiantou-se para vir ao seu encontro
e pegou nos papéis.
— Sou o Dr. Laime — apresentou-se. — Se se sentar aqui, por favor...
Obrigado... E olhar para a luz...
Mohrlock obedeceu resignadamente. A cena seguinte de que ainda teve
consciência representava uma sala cheia de robots que discutiam uns com os
outros excitados.
— Mas eu já tinha principiado! — Gritou o que se intitulara de Dr.
Laime. — Ele não poderá recordar-se.
— Recordar-se de quê? — Perguntou Mohrlock.

***

O Circulo de Justiça era tão irreal como um pesadelo meio esquecido.


Os tentáculos do detetor da verdade enrolavam-se em volta de Mohrlock
ameaçadoramente. Ao enfrentar o olhar do magistrado-chefe franziu o
sobrolho. Lembrava-se de pescoços compridos como aquele, em qualquer
parte. Ah! Eram robots, não eram? Robots surpreendentemente reais.
Produzidos pela robótica mais avançada de toda a galáxia. Onde é que ele
ouvira falar daquilo?
— Tenente John Mohrlock, pôs fim a uma vida humana por
estrangulamento?
— Que é que disse? — Perguntou Mohrlock.
— Responda à pergunta, por favor. Pôs fim a uma vida humana por
estrangulamento? Sim ou não?
— Claro que não! — Exclamou Mohrlock, não escondendo a sua
indignação. Mas que ideia. Só havia dado uns empurrões a um robot e
vinham agora perguntar-lhe se tinha posto fim a uma vida humana!
— Positivo — declarou o técnico de pescoço comprido.
Do estrado das testemunhas, o Dr. Laime gritou um protesto.
— Foi com certeza ele! Mais ninguém entrou na sala. Mas a hipnose...
— Contudo, não temos a certeza, e a justiça dalusiana tem de ser exata
— disse o magistrado-chefe. — O senhor sabe perfeitamente que a lei exige
um registo positivo de uma confissão de culpa ou um registo negativo de uma
rejeição de culpa. Estou seguro de que estamos perante um caso
extremamente invulgar. Está encerrada a audiência.
Mohrlock abandonou pensativamente a Arcada da Justiça e moveu os
braços como que para abraçar a luz do Sol. Tinha a consciência de que devia
estar exultante de alegria, mas em vez dela sentia somente uma inquietante
perplexidade.
Estava livre e o tribunal havia-lhe restituído uma substancial soma de
dinheiro que nem se recordava de ter ganho. Isso agradava-lhe, mas
preocupava-o não compreender porque houvera toda aquela excitação. Por
causa de um robot? Com tantos robots de pescoço comprido por toda a parte,
um a menos não faria assim tanta diferença. Tinham agido como se pôr um
robot fora de serviço fosse um crime grave. Os magistrados também eram
robots, o que poderia explicar uma grande parte da excitação, mas, nesse
caso, porque o teriam libertado?
Uma hora mais tarde estava num bar a tomar a sua quinta ou talvez a
sua nona bebida e começava a sentir-se agradavelmente descontraído, quando
outro desajeitado robot lhe tocou no cotovelo. Furiosamente, Mohrlock atirou
a sua bebida à cara espantada do robot e fisgou-lhe o longo pescoço com as
mãos. Os outros clientes acabaram por o afastar, mas quando o fizeram já o
robot estava sem conserto.

***

— Tenente John Mohrlock: pôs fim a uma vida humana por


estrangulamento?
— Claro que não!
— Positivo — declarou o técnico robot.
Um outro robot de pescoço comprido pôs-se de pé de um salto,
gesticulando freneticamente:
— Algo está errado! Doze testemunhas viram-no praticar o crime. Teve
mesmo de ser dominado à força. Devemos manter este homem detido para
continuar a estudá-lo!
— Dr. Laime — disse o magistrado-chefe —, por favor, familiarize-se
com a lei antes de levantar objeções no meu tribunal. O que propõe é
ridículo. A criminologia dalusiana é a mais avançada da galáxia, como devia
bem saber, e o detetor da verdade dalusiano é infalível. A recusa do acusado
em admitir a prática do crime é positiva. Está encerrada a audiência!
Mohrlock abandonou pela segunda vez a Arcada da Justiça
encaminhando-se para a luz do Sol. Um robot de pescoço comprido cruzou-
se com ele. Quase instintivamente virou-se para o seguir. Não se recordava
de nada que lhe desse tanto prazer quanto o que sentia ao despedaçar robots.
Ao mesmo tempo tinha uma vaga consciência de que não poderia
continuar a destruir indefinidamente aquela maquinaria tão cara sem que
fosse punido. Contudo, o castigo não o preocupava especialmente, porque
sobre esse assunto já ele estava informado. O que os Dalusianos fariam seria
embarcá-lo com destino a uma linda cidade onde viviam bastantes cidadãos
de pescoço comprido... Mas que, é claro, não eram robots. Eram sim pessoas
autênticas, e por isso ele não poderia fazer-lhes mal.
O robot dobrou uma esquina e Mohrlock acelerou o passo para o
ultrapassar.
7
Uma Breve Passagem pelo Limbo
(«A Slight Case of Limbo»)
Este conto foi publicada pela primeira vez em Abril de 1963
na revista Analog
© 1963, Conde Nast Publications, Inc.
O lamento pungente do vento baixou subitamente de intensidade e
passou a sussurro abafado. George Cramer pensou ter ouvido um grito que se
sobrepôs ao ruído da chuva sobre o telhado de chapa ondulada. Abriu a porta
e espreitou desconfiado por entre a noite fustigada pela chuva.
A seus pés, o rio caudaloso sibilava e gorgolejava à roda da estacaria. O
barco de remos, balouçando com a corrente, golpeava a parte lateral da doca,
produzindo sons fortes e irregulares. Cramer apontou uma lanterna elétrica
para a praia distante, mas a escuridão acabou por engolir o foco de luz. Não
se via nada.
De repente ouviu-se de novo o grito. Era um grito longo e soluçante,
que pairava convulsivamente sobre o rio até que um golpe de vento frio o
reduzia ao silêncio. Cramer não hesitou. Apanhou os remos, saltou para
dentro do barco e segundos depois aproava contra a corrente, remando
freneticamente.
Gritou bem alto, mas se houve resposta o vento levou-a para longe
dele. A chuva gelada e impetuosa encharcou-lhe instantaneamente a cabeça e
a roupa e deixou-o a tremer de frio, apesar de os remos lhe provocarem dores
e transpiração nas mãos. O seu coração velho e irregular enchia-lhe o peito,
pulsando inexoravelmente; as suas mãos artríticas e inchadas faziam-lhe
largar gemidos de dor através dos lábios crispados, ao manobrar os remos.
Voltou a gritar quando virou o barco a favor da impetuosa corrente e parou
um pouco para apontar o foco de luz da lanterna. Em resposta obteve um
grito de chamamento que vinha de longe, rio abaixo. Cramer dobrou o corpo
exausto sobre os remos e fez o barco seguir em frente, aos solavancos.
Muito antes de se ter aproximado daquele vulto que lutava em
desespero sobre a água, Cramer sabia já que estava a morrer e o facto de se
aperceber disso levou-lhe um sorriso tímido à severa face. Seria uma boa
troca, pensou ele: a sua doença e a sua debilidade, a sua vida gasta e velha
por uma vida jovem e saudável, cheia de ideais e de sentido. Em vez de um
fim miserável na sórdida solidão da sua exígua cabana, este inesperado
desvio do destino oferecia-lhe uma morte em combate, que acolhia com plena
satisfação. Enquanto impelia o barco para a frente, castigando-se e lutando
para concentrar os seus derradeiros lampejos de vida numa memorável
chama, os seus soluços de dor pareciam hossanas fervorosas.
Por fim alcançou o que pretendia. Uma mão agarrou-se ao bordo do
barco, Cramer voltou-se para ajudar e naquele instante o seu coração
explodiu.

***

Quando abriu os olhos viu as vigas nuas da sua cabana. Sobre a parede
mais afastada apoiava-se uma mancha alongada de luz solar. Do lado de fora
da janela cantavam alguns pássaros e lá em cima uma brisa suave acariciava
as árvores. Tentou mover os braços para se sentar.
De longe veio uma voz, profunda, suave e agradavelmente musical, que
disse:
— Calma! Calma! Você precisa de descansar. Durma... Durma...
Durma.
Cramer adormeceu.
Quando acordou viu um homem dobrado sobre ele. Tinha uma face
redonda e plácida, que Cramer observou por uns instantes, até reparar que ele
lhe aplicava uma ligadura ao peito, com dedos ágeis.
— Você é médico? — Sussurrou Cramer.
— Não — cantou a voz. — Não. Não sou médico.
— Então é enfermeiro.
Esta ideia parecia incompatível com aquela figura corpulenta e colossal
de homem, mas os dedos dele eram de uma delicadeza infinita.
— Eu estava a morrer — disse Cramer. — Eu morri e você... Foi
você...
— Silêncio! — Cantou a voz. — Foi você, amigo Cramer, quem salvou
a minha vida. Agora precisa de dormir... Dormir...
Quando Cramer voltou a acordar estava sozinho. Pouco a pouco e com
todo o cuidado sentou-se. O quarto estava precisamente como quando o havia
deixado precipitadamente para enfrentar a tempestade, e isso já fora... Pelo
menos há dois dias, pensou ele, apalpando a barba com a ponta dos dedos.
Mas sentiu-se bem. Sentia-se maravilhosamente até que moveu as pernas e a
artrite lhe fez lembrar dolorosamente que desde então não tomara os
medicamentos.
Cambaleou até ao armário dos medicamentos para ir buscar os
comprimidos e depois decidiu vestir-se. Intrigava-o o modo como tinha o
peito enfaixado em ligaduras. As tiras de pano cor-de-rosa eram macias como
a gaze mais suave, mas resistiam aos seus esticões. Deixou-as ficar onde
estavam e vestiu as roupas. Atirou-se para a cadeira em frente à porta, do lado
de fora da casa, e recostou-se com os olhos fechados para gozar o afago
quente do sol.
— Então levantou-se, amigo Cramer — cantou a voz. — É bom que
assim seja. É justo.
O enfermeiro de Cramer aproximou-se vindo por um caminho da
floresta, impressionante de altura e corpulência e andando de um modo
gingão que fez Cramer ter vontade de lhe perguntar se havia sido marinheiro.
Ali ficou a olhar para ele lá de cima, com a face redonda e inexpressiva, os
olhos de uma solenidade escura e um pequeno tufo de cabelo ridiculamente
isolado no topo da cabeça.
Mas a sua voz era calorosa e musical.
— Como se sente esta manhã, amigo Cramer?
— Sinto-me bem, obrigado. Só estou ainda um pouco fraco. Posso
perguntar-lhe quem é você?
— Quem? Gostaria de saber o meu nome? É justo — disse.
Pareceu estar a ponderar a pergunta.
— E se me tratasse por Joe?
— Decerto, Joe — respondeu Cramer.
— Pronto. Agora já se sente bem. Vamos tirar a ligadura.
Os longos dedos abriram rapidamente a camisa de Cramer e
desenrolaram com perícia as faixas envolventes de pano. Os dedos
imobilizaram-se quando a ligadura caiu. A face redonda de Joe assumiu uma
expressão absorta, que Cramer não sabia interpretar.
— Você não se curou tão depressa quanto eu esperava — declarou.
Cramer olhou espantado para a incisão aberta que tinha por baixo do
coração.
— Teve de me operar?
— Sim, operar. Vocês aqui chamar-lhe-iam isso.
— Oh! Você massajou o meu coração para o pôr a trabalhar de novo,
não foi?
— Não — disse Joe. — O seu coração não voltou a trabalhar. Era um
coração muito fraco.
— Não percebo.
— Eu explico-lhe. Mas, primeiro, a ligadura.
Joe atou a ligadura rapidamente e abalou bamboleando-se em direção
ao bosque. Passaram vinte minutos, meia hora, e lá veio ele de volta,
novamente a gingar. Trazia um objeto transparente, parecido com um frasco,
que pôs mesmo à frente da cara de Cramer e que depois segurou junto à luz.
— Vê? Era um coração muito fraco! — Disse ele com a sua voz
cantante.
Cramer olhou-o espantado e incrédulo. O frasco, porém, continha sem
dúvida um coração humano.
— Muito fraco — disse Joe outra vez.
— Quer dizer que... O meu coração...
— O seu coração... Claro!
Cramer começou a rir. Este Joe, pensou ele, era mesmo a personagem
que parecia ser.
— Que é que me mantém vivo? — Perguntou esfregando os olhos.
Carregou no peito com a mão, procurou sentir o pulso e parou de rir. Não
sentia as pancadas do coração e não tinha pulsação.
Joe disse então com gravidade:
— Mas eu pus-lhe outro coração.
— Você disse-me que era médico — protestou Cramer.
— O coração não é matéria para médicos! É mais para... Julgo que
vocês lhe chamariam engenharia.
— Penso que sim — disse Cramer. — Não é mais que uma bomba.
— Correto. Foi por isso que lhe pus outra bomba.
— Espero que me tenha posto uma bomba melhor! — Respondeu
Cramer, apalpando de novo o pulso, que foi incapaz de sentir.
— Muito melhor! Esta não se gasta.
— Muito bem. Fizesse o que fizesse, agradeço-lhe. Se isto é uma piada,
como julgo que tem de ser, agradeço-lhe à mesma. Quando ali estava na
água, não me preocupei muito em saber se viveria ou morreria, mas aqui
sentado, com o sol a brilhar-me na cara, penso que gostaria de andar por cá
mais um pouco. Portanto, agradeço-lhe.
— Eu também lhe agradeço, amigo Cramer. Há um laço entre nós
porque salvámos a vida um do outro, mas eu penso que a minha dívida é
maior do que a sua. Voltarei esta noite.
E lá se foi, gingando e levando o frasco consigo.

***
Cramer recuperou as forças lentamente. Ele sabia que o exercício o
teria ajudado, mas a artrite parecia piorar dia a dia. Os pequenos passos
cambaleantes que dava em volta da cabana eram um tormento lancinante.
Joe apareceu pontualmente ao lusco-fusco e perguntou cheio de
entoações musicais pela sua saúde, pedindo para lhe ver o peito, onde a
incisão estava a sarar, dando lugar a uma cicatriz bem delineada.
— Tenho de ir à cidade — disse-lhe Cramer uma noite.
— Mas claro, porque não? — Cantou Joe. — Você está quase bom.
Cramer levantou o pé inchado.
— Tenho muita dificuldade em andar. Se não tomar os meus
medicamentos rapidamente, ficarei impedido de andar de todo.
— Eu cá não gosto de ir a essa cidade, mas se houver outro modo de
poder ajudá-lo...
— Se pudesse levar-me até à quinta do Morton, o Ed ou a Ruth levar-
me-iam depois até lá.
— Quer ir agora?
— Não, amanhã. Amanhã à tarde. O médico não está no consultório de
manhã.
— Então, amanhã — concordou Joe.

***

Levou Cramer nos braços com a facilidade com que levaria uma
criança e depositou-o no pórtico da frente da casa de Morton. Ainda Cramer
não havia acabado de bater à porta, desapareceu. Ruth Morton transportou
Cramer de carro até à cidade e ajudou-o a subir os degraus que conduziam ao
consultório do médico.
O velho Dr. Franklin, dez anos mais novo que Cramer, examinou-lhe
os pés e os tornozelos inchados com uma expressão de desagrado e de
espanto e disse:
— Julguei que tínhamos isto controlado!
— Também eu — respondeu Cramer.
— Mas você insiste em viver metido lá naquele buraco húmido!
— Esgotaram-se-me os comprimidos.
— Deixe-me ver essas mãos outra vez. Há mais algum sítio onde lhe
doa?
— Sim, nos joelhos, um pouco nos pulsos e...
— Nos cotovelos e nos ombros — disse o Dr. Franklin. — Em resumo,
doem-lhe todas as articulações do corpo. Não seria por não tomar os
comprimidos por alguns dias que isto se ia espalhar tão rapidamente. Vamos
ver os joelhos.
Observou brevemente os joelhos e inclinou-se para trás, ficando a olhar
para o teto, pensativo.
— Vou dar-lhe um produto diferente. Veremos o que acontece. Preferia
utilizar as injeções só como último recurso, mas, da maneira como as coisas
vão, esse último recurso não andará longe. Ora vejamos. Está disposto a
mudar-se para a cidade, onde alguém o possa tratar?
Cramer abanou a cabeça.
— Agora não. Mais tarde, talvez.
— Se esperar muito mais tempo ficará totalmente inválido. E então só
terá de escolher entre ser empurrado numa cadeira de rodas por alguém e
morrer de fome. Isto se não morrer de fome primeiro, antes de alguém dar
pela sua falta. Para um homem inteligente como o senhor é, professor
universitário reformado, admita que é bastante teimoso...
Cramer ouviu-o com um sorriso. Já antes tinha ouvido este pequeno
sermão. A bem dizer, ouvia-o sempre que vinha à consulta.
— Deixe-se de sorrisos — disse o médico. — Gosta então de andar a
chapinhar na água. Quanto irá você chapinhar quando já não puder sair da
cama?
— Irei pensar no assunto.
O médico fungou e perguntou:
— Há mais alguma coisa de que se queixe?
Cramer falou sem pensar:
— E se me observasse o coração?
O médico voltou-se rapidamente.
— O coração também está a fazer das suas? Diabos me levem se você
não é um cadáver ambulante!
Pôs-se à procura do estetoscópio.
— Não se incomode — apressou-se Cramer a dizer, levantando-se
subitamente. — Não tenho nada no coração.
— Lá isso é que tem, e não é pouco. Desabotoe a camisa.
— Não. Nunca me senti melhor na vida... Exceto quanto a isto — disse,
exibindo a mão inchada.
— Oitenta por cento das vítimas de doenças coronárias dizem a mesma
coisa pouco antes de marcharem desta para melhor. Desabotoe lá a camisa.
Cramer pegou na receita e deu dois dolorosos passos em direção à
porta.
— Vou experimentar estes comprimidos. Muito obrigado, doutor.
— Você é mais teimoso do que qualquer dos imbecis que até hoje já vi,
e olhe que vi alguns bons espécimes. E não me falem de criancinhas
mimadas! Esta tarde vem cá a Sadie Brian com o fedelho dela para fazer uma
vacina de pólio, e olhe que depois de o ver a si até tenho prazer em atender o
pequeno. Você não precisa de comprimidos. Do que precisa é de um bom
pontapé no traseiro, e tenho a impressão...
Cramer saiu e fechou atrás de si a porta do consultório, ficando
encostado a ela, ofegante. Mais alguns segundos na cadeira do médico e ter-
se-ia visto a tentar explicar uma cicatriz no peito, que não estava lá da última
vez que o tinha visto, e um coração que não batia.
— Está pronto? — Perguntou Ruth Morton.
— Bem pronto! — Respondeu Cramer.
Ruth deixou-o num banco ao sol enquanto foi validar a receita e fazer-
lhe as compras. Regressaram à quinta e depois Ed encarregou-se de levar
Cramer e as suas compras à cabana.
Já era de noite quando Ed arrumou o último pacote. O crepúsculo
apontava longas sombras por sobre a água. Cramer acompanhou Ed à saída e
foi recostar-se na cadeira que tinha na doca, à espera de Joe.
Este emergiu da floresta balouçando, com a sua ampla e larga face
quase luminosa no meio da escuridão cada vez mais densa, e falando como
sempre com voz cantante.
— Então voltou, amigo Cramer. Já estava preocupado consigo.
Cramer fez que sim com a cabeça, pensando em como dizer o que tinha
para dizer. Apontou para o céu, onde uma estrela cintilava timidamente
através do maciço de nuvens, e disse:
— Você veio dali, não?
Joe hesitou antes de responder.
— Não dali — disse apontando depois para o horizonte —, mas sim
dali. Como sabia?
— Por muitos motivos. Por me ter dado um coração novo. Por ter
dedos a mais, o que notei há já alguns dias mas nem queria acreditar, e
porque...
Joe ergueu uma mão de sete dedos.
— Do meu ponto de vista, é você quem tem dedos a menos! — Disse
ele.
— Porque está aqui?
— Para estudar e recolher espécimes...
— Para se prepararem para uma invasão?
— Amigo Cramer! Porque quereria o meu povo o vosso mundo
distante? Há tantos mundos mais próximos e inabitados! Não; só vim estudar
e fazer colheitas de espécimes, e quando me for embora é possível que
ninguém do meu povo volte cá.
— Estou a ver. Quando me arranjou o coração fez mais alguma coisa?
— Mas eu não lhe arranjei o coração! Ele já nem tinha arranjo. Tive de
lhe pôr uma bomba nova e, além disso, acrescentar-lhe algumas coisas ao
sangue para que a nova bomba pudesse funcionar. O seu sangue era muito
suscetível àquilo a que vocês aqui chamam coagulação. Isso agora não
voltará a acontecer.
— Mas se o meu sangue não coagular, um pequeno golpe...
— Coagulará quando for necessário e coagulará melhor. Mas nas veias
e nas artérias, bem como na bomba, não voltará a coagular. Compreende?
— Não, mas acredito na sua palavra. Você sabe tanto, apesar de dizer
que não é médico...
— E não sou! O sangue... É química pura. De engenharia e química
percebo eu. De medicina nada sei.
— Devem ter sido essas coisas que me acrescentou ao sangue que me
puseram pior da artrite.
— Que é isso de artrite?
Cramer explicou e mostrou-lhe as mãos inchadas.
— Talvez o novo medicamento que lhe deram o vá ajudar — disse Joe.
Porém, os novos comprimidos nada ajudaram. A artrite tornou-se um
tormento incessante, que aumentava dia a dia. Cramer não saía da cama e
mexia-se o menos possível devido às dores que sentia. Joe aparecia com
frequência para saber dele. A sua expressão tranquila nunca se modificava,
mas as suas ações e perguntas traduziam uma receosa preocupação.
Estava a preparar-se para partir, disse ele a Cramer. Já estava neste
mundo há muito tempo. Há muitos anos, para utilizar o método de medir o
tempo que Cramer usava. Os estudos que tinha a fazer estavam completos e
só lhe faltavam alguns espécimes de animais grandes para completar a
coleção. Pediu a ajuda de Cramer, e este foi falar com Ed Morton, a quem
contou uma história ingénua sobre a iniciação de um novo negócio. Com a
ajuda de Ed começou a comprar gado, cavalos, carneiros, porcos, cabras e até
raças exóticas de cães e gatos. Joe fornecia-lhes todo o dinheiro de que
precisavam, o que levava Cramer a pensar onde o arranjaria ele, embora
achasse descortês perguntar-lho.
Joe ergueu um pequeno curral para os animais e ia-os levando um a um
ou dois a dois pelo caminho da floresta. Depois de Cramer ter visto a
vigésima vaca desaparecer naquela direção observou-lhe:
— Você deve ter uma grande nave!
— Nem por isso — respondeu Joe complacentemente.
— Então como consegue meter lá os animais todos juntos?
— É só um pequeno problema de embalagem — disse Joe, afastando-
se com o primeiro carneiro de um rebanho inteiro.
Joe abria as latas e preparava as refeições de Cramer, e como a artrite
piorava, começou também a ajudá-lo a comer. Enquanto ele trabalhava junto
ao canto da cabana a que Cramer chamava cozinha, iam conversando.
— Essa doença a que chamam «artrite» não é conhecida entre o meu
povo — disse Joe. — Não a encontro mencionada nos meus livros.
Cramer acenou com a cabeça e conseguiu encobrir o seu
desapontamento. De certa maneira esperara sempre — esperara
confiantemente — que Joe acabaria por fazer algo por ele. Um homem que
era capaz de colocar um coração sobresselente e modificar a composição
química do sangue de uma pessoa, também devia ser capaz de tratar de uma
coisa sem importância como a artrite.
— Lamento que as coisas que acrescentei ao seu sangue lhe tenham
provocado isto — disse Joe. — Mas não posso dar-lhe ajuda neste caso. Não
percebo o que se passa.
— Será que irá piorando?
— Não sei.
— Com esta nova bomba e os novos produtos químicos que tenho no
sangue, quanto tempo poderei esperar viver?
— Quem o poderá dizer? A vida é uma frágil chama que lampeja sob
os ventos do acaso. A minha própria vida teria findado no vosso rio se você
não ma tivesse salvo generosamente.
— Sim, pois — disse Cramer impacientemente. — Mas sem acidentes
quanto tempo viverei?
— Sem acidentes, nunca mais morrerá! Esta bomba não se gasta nem
para de funcionar.
Cramer ficou a olhar silenciosamente para o teto, refletindo sobre a
vida eterna acompanhada da dor eterna.
— Ser-lhe-ia possível retirar os produtos químicos do meu sangue? —
Perguntou ele por fim.
— Talvez, mas seria difícil e em breve a nova bomba deixaria de
funcionar. Depressa se formariam...
— Coágulos? — Sugeriu Cramer.
— Sim.
— Não teria possibilidades de me restituir o meu velho coração, pois
não?
— Para quê? Esse é que não funcionaria mesmo nada!
Cramer levantou a mão dilatada para o dobro do seu tamanho normal.
— Muito em breve — disse —, talvez já mesmo amanhã e com certeza
dentro dos próximos oito dias, a dor será tão intensa que não poderei mexer-
me. Não poderei fazer nada sozinho. Talvez nem sequer me possa sentar, e
então terei de ir para um asilo e ser lá assistido até morrer. Ora, para isso não
tenho eu dinheiro suficiente.
— Quanto ao dinheiro — respondeu Joe encolhendo os ombros —,
posso dar-lhe a quantidade que quiser.
— Mesmo com dinheiro suficiente, você já imaginou que espécie de
vida seria a minha? Deitado de costas e em agonia de cada vez que mexesse
um dedo! E isso eternamente! Nos asilos acontecem muito poucos acidentes.
Mas enfim; parece que não tenho outra alternativa.
Joe não disse nada.
— Na verdade, porém, tenho-a — continuou Cramer. — Posso pedir-
lhe para me repor o meu velho coração para que uma eventual autópsia não
levante problemas (poderiam pensar o que muito bem entendessem da
incisão) e para acabar assim com tudo imediatamente, tal como devia ter
acontecido naquela noite, no rio. Ou então posso aceitar-lhe todo o dinheiro
que queira dar-me e ir para um asilo, onde viveria indefinida mas
desesperadamente, no meio de um razoável e confortável tormento. Não é
uma grande alternativa, mas, seja como for, é uma alternativa.
Joe esperava tranquilamente, com uma expressão de calma enigmática
estampada no rosto.
— Terei de decidir antes de você partir — disse Cramer. — Quando
será?
— Tinha pensado em ir-me embora amanhã. Amanhã à noite. Porém,
como você tem uma escolha tão difícil a fazer, posso esperar mais um dia ou
dois.
— Se não for capaz de decidir amanhã, nunca mais o serei —
desabafou Cramer secamente.
De manhã, Joe levou-o para fora e ele ficou sentado sobre almofadas e
cobertores a olhar para o rio. O Verão não tardaria, trazendo consigo, pela
noite, a canção rouca das rãs, os saltos dos peixes e a taciturna tartaruga velha
que costumava apanhar sol sobre o grande tronco que havia a algumas jardas
dali, rio acima. Tudo aquilo ele amava e agora, fosse o que fosse que
decidisse, tudo estava perdido para si.
Se entrasse para um asilo, talvez a ciência médica um dia fosse capaz
de tratar aquela artrite artificialmente intensificada, ou talvez não. Seria um
jogo terrível, porque seria atormentado por dores infindáveis se perdesse. Em
desespero, vigiado de perto pelo pessoal do asilo, nem sequer teria a
liberdade de atentar contra a própria vida. Da primeira vez que um médico o
examinasse, teria de enfrentar perguntas embaraçosas sobre o seu coração.
Transformar-se-ia numa curiosidade médica.
Contudo, sentado ali e a olhar para o Sol refletido na água ondulante,
qualquer espécie de vida lhe parecia boa.
Até que tentou deslocar-se.
Joe veio preparar-lhe o almoço, mantendo um silêncio compreensivo.
Voltou ao crepúsculo para o alimentar pela última vez: feijões enlatados,
guisado enlatado, fruta enlatada, muito café quente. Comida simples, como
convinha que fosse a última refeição de um homem condenado, pensou
Cramer. Comeu devagar e saboreando cada garfada. Quando acabasse de
comer, Joe levá-lo-ia a casa dos Mortons juntamente com dinheiro suficiente
para lhe durar uma eternidade de vidas; ou então substituiria o coração novo
pelo velho e deixaria o seu corpo na cabana, para ser encontrado conforme o
acaso decidisse.
— Então, amigo Cramer? — Perguntou Joe, depois de o ter deixado
acabar de comer.
— Se fosse capaz de utilizar as mãos — disse Cramer —, deitaria uma
moeda ao ar.
— Admiro a sua coragem, amigo Cramer.
— Não é coragem, Joe. Lançar uma moeda ao ar pode ser a única
forma de obter uma resposta, porque ainda não decidi.
— Se quiser esperar mais um dia...
— Isso não resolveria nada. Se a questão fosse fazer ou não fazer uma
determinada coisa, julgo que me seria fácil decidir. Não tive problema
nenhum em decidir naquela noite no rio. Mas estar aqui sentado calmamente
numa cadeira e fazer uma escolha entre viver para sempre, apesar de em
agonia, e morrer, é coisa de que não sou capaz. Por isso vou deixar que seja
você a escolher.
— Eu?
Cramer acenou afirmativamente com a cabeça.
Pela primeira vez a cara redonda de Joe manifestou uma emoção
discernível: o choque. Recuou agitado e a sua voz musical adquiriu tons
estridentes.
— Amigo Cramer... Não posso tomar essa decisão por si! Não tem o
direito de mo pedir!
— Tenho todo o direito — disse Cramer calmamente. — Tudo isto é
culpa sua. Se eu não lhe tivesse salvo a vida e se depois você não tivesse
salvo a minha, não haveria problema. Por isso é você quem tem de decidir. Se
quiser lançar uma moeda ao ar, não me importo.
Joe fitava-o desesperado. A sua consternação foi sublinhada por um
gesto feito com a mão cheia de dedos. Tentou falar, mas só conseguiu
tartamudear.
— Estou à espera — disse Cramer.
— Muito bem — respondeu asperamente aquela voz normalmente
cantante. — Muito bem. Vou decidir por si... Agora mesmo.
Agarrou em Cramer à bruta, ignorando os seus gemidos de dor, e
correu com ele para a floresta.

***
O Prof. Zukoquol, presidente do Departamento de Zoologia Exótica da
Universidade de Gwarz, observa fascinado uma estátua de um carneiro, com
um pé de comprimento, que passava num transportador pelo reabilitador de
vida. Um carneiro de tamanho natural avançou a correr, vindo da outra
extremidade, balindo com cio. Seguiu-se uma vaca de vinte polegadas que se
transformou num monstro cornudo, largando baba pela boca e um cheiro
pestilento.
Os olhos do Prof. Zukoquol brilhavam de excitação.
— Que coleção assombrosa! — Exclamou. — Amigo Juroloq, você fez
um trabalho estupendo! Veio carregado ao máximo?
— Ao máximo da capacidade! — Respondeu Juroloq modestamente.
— Esplêndido. Merece congratulações calorosas. Exceto no que diz
respeito ao seu encontro com o humano, é claro. Aí está uma coisa que me
perturba.
— E a mim também — disse Juroloq.
— Ele pediu-lhe mesmo para você decidir o seu destino por ele?
— É verdade.
— Não é horroroso que uma criatura supostamente civilizada não
possua princípios éticos evoluídos? Eu não o teria criticado se o tivesse morto
imediatamente.
— Mas isso teria sido decidir por ele! — Protestou Joruloq.
— Ou se o tivesse abandonado.
— Isso também seria decidir por ele!
— Tem razão. É por isso que nós aconselhamos vivamente os nossos
exploradores a evitarem contactos com seres inteligentes. A sua moralidade é
tão imprevisível! Pode surgir toda a espécie de dilemas sórdidos.
— Concordo — disse Joruloq. — Infelizmente, não tinha escolha
porque estava em dívida para com ele.
— Estou quase inclinado a acreditar que teria sido melhor que ele não
lhe tivesse salvo a vida. Mas não falemos nisso. Visto que já se deixara
envolver, tenho de admitir que agiu com uma sensatez louvável. Já consultou
a Faculdade de Medicina?
— Já. Logo que cheguei.
— Que é que eles disseram?
— Prometeram resolver o mistério da artrite do humano na primeira
oportunidade. Não preveem ter quaisquer dificuldades. Ele tem de esperar a
sua vez, é claro, visto que eles têm tantos projetos prioritários entre mãos que
levará mil a dois mil anos dos dele até que eles possam debruçar-se sobre o
seu problema.
— São muito generosos em colocá-lo em lugar tão cimeiro do seu
calendário de trabalhos, considerando que o projeto não terá importância para
mais ninguém que não seja ele. Entretanto, que é que você fará com ele?
— Nada.
— Não tenciona reabilitá-lo?
— Claro que não — respondeu Juroloq, tirando George Cramer para
fora de uma dobra da sua capa, transformado numa figura de dezoito
polegadas, semiagachada, tendo erguidas as mãos inchadas e uma expressão
de enorme surpresa na face.
— Não. De facto não tenciono. Não gostaria de o obrigar a viver com
dores durante mil ou dois mil anos dos dele, enquanto esperava que a
Faculdade de Medicina arranjasse tempo para estudar o seu caso. Só o
reabilitarei quando eles estiverem prontos para se ocuparem dele.
— Então poderá emprestá-lo ao museu.
— Não. Prefiro mantê-lo perto de mim. Sabe, ele salvou-me a vida e eu
sinto-me grato e amigo dele. Além disso, dá um excelente pesa-papéis.
8
D. C. F.
(«D. F. C.»)

Este conto foi publicado pela primeira vez em Fevereiro de 1957, sob o título
«Cronus of the D. F. C.», na revista If Worlds of Science Fiction, e em
Setembro de 1966 na revista Ellery Queen’s Mystery Magazine, sob o título
«Department
of Future Crime»
© 1956, Quinn Publishing Company, Inc.
Um dia quente e luminoso de Maio e um novo emprego para mim.
Encontrei a sala na cave da sede da polícia; era uma grande sala, com as
letras D. C. F. decalcadas de fresco na porta e um horrível aglomerado de
transístores, bobinas e mostradores a monte num dos cantos.
Um jovem e inteligente cadete da polícia sentou-se numa secretária, ao
centro da sala. Estes rapazes pensam que um uniforme é uma licença para
brincar aos detetives.
— Você é Jim Forsdon — declarou ele antes de eu ter tido tempo de
me apresentar. — O Velho que vê-lo. — Fiz um aceno de assentimento com
a cabeça e enfiei as minhas coisas num armário vazio.
O Velho tinha o gabinete num cubículo da sala principal. Era mesmo
uma descida de categoria em comparação com as instalações que havia
ocupado lá em cima como chefe dos detetives. Mas ele agarrara-se àquele
emprego para além da idade da reforma! Estavam quase a correr com ele
quando apareceu o D. C. F. e ele logo se atirou ao lugar. O Velho não era
daqueles que se reformam.
— Sente-se, Forsdon. Seja bem-vindo ao Departamento do Crime do
Futuro.
Um olhar seu podia fazer um veterano de trinta anos sentir-se como um
calouro. Tinha uma face magra e dura, cabelo branco cortado curto e olhos
cinzentos de aço que viam através de um homem em vez de olharem para ele.
Pequeno, com um metro e setenta de altura e sessenta e quatro quilos de peso,
era surpreendente como ele alguma vez pudera ter entrado na polícia, mas a
surpresa desvanecia-se depois de se lhe verem os olhos. Nunca me sentira à
vontade na sua presença.
— Sabe o que temos aqui, Forsdon?
— Não sei bem — disse eu.
— Também não o sei exatamente. Os chefões lá de cima julgam que
isto é um brinquedo caro. Depende de nós fazermos disto uma coisa
importante.
Calcou o tabaco no cachimbo, acendeu-o, inclinou-se para trás e
deixou-o apagar-se. Segundo os boatos que corriam no departamento, ele
costumava roer duas boquilhas de cachimbo por dia e consumia meio quilo
de tabaco por ano.
— Temos aqui um novo invento — prosseguiu —, que não ouso dizer
que compreendo. Já o viu?
— Qualquer coisa que seja maior que um carro aéreo não me costuma
passar desapercebida.
Sorriu e disse:
— Walker chama-lhe Cronus, em homenagem ao deus grego do tempo.
Proporciona-nos imagens aleatórias da cidade numa espécie de tela grande de
TV. Imagens aleatórias do futuro!
Fez uma pausa à espera de um efeito dramático, mas devo tê-lo
desapontado. É que eu já conhecia aquilo.
— A imagem é esbatida e por vezes passamos maus bocados a tentar
adivinhar qual é o local para onde estamos a olhar. Também temos problemas
com a localização da época de um acontecimento. Esperamos que Walker
consiga afinar isto. Mesmo assim, tal como está, a máquina tem umas
potencialidades assombrosas. Desde há três semanas que está em
funcionamento e já detectámos meia dúzia de assaltos na tela... E detetámo-
los antes de eles se terem produzido!
— Deverá portanto ajudar-nos a atingir o ideal por que sempre nos
batemos, isto é, evitar o crime, em lugar de simplesmente prender os
criminosos — adiantei eu.
— Ah! — Respondeu ele manuseando o cachimbo outra vez. — Talvez
eu não tenha sido claro. A Cronus deu-nos imagens antecipadas de meia
dúzia de assaltos, mas nós não impedimos nenhum deles de ocorrer. O
máximo que conseguimos fazer foi apanhar os criminosos uns minutos
depois de terem cometido os crimes. O que levanta uma dúvida interessante:
será possível modificar o futuro?
— Porque não? — Perguntei.
O cachimbo tinha-se apagado, mas ele continua a aspirá-lo.
— Aí está uma pergunta interessante. O problema não é grave quando
se trata de roubos. O criminoso é imediatamente preso, o produto do roubo é
recuperado e a vítima vai à sua vida a pensar que a polícia é extremamente
eficiente. Mas no que diz respeito a assassínios? Prender o criminoso dez
minutos após o crime não vai ajudar a vítima.
Tirou o cachimbo da boca e franziu a testa enquanto olhava para ele.
— Pergunta interessante, de facto. Agora, que temos o nosso detetive
privativo, talvez descubramos a resposta. Quero apresentá-lo a Walker... E
também a Cronus.
Walker — o Dr. Howard F. Walker — estava debruçado sobre a sua
invenção. Não podia haver dúvidas sobre o facto de ele a considerar como
um filho seu. Podia ver-se isso pelo modo como acariciava os botões de
controlo. Era um homem com ar esgrouviado, com dois metros de altura e
talvez oitenta quilos de peso, de quarenta anos de idade. Tinha um pescoço
comprido com uma maçã-de-adão excessivamente pronunciada e já lhe
rareava o cabelo. A expressão do rosto era delicada e cheia de dignidade e,
por detrás dos seus óculos grossos, parecia um professor universitário
bastante cansado.
Não nos ouviu aproximar, pelo que o Velho esperou calmamente que
ele desse por nós.
— Apresento-lhe Forsdon, o nosso novo detetive — disse o Velho.
Walker quase não olhou para mim.
— Cronus tem qualquer coisa — disse ele. — Se eu pudesse
reencontrá-la...
E voltou-se para os botões.
— Aqui está um dos nossos problemas — disse o Velho. — Quando
focamos um crime, por vezes é difícil voltar a localizá-lo. O intervalo de
tempo entre o presente e a ocasião em que o crime é cometido vai
diminuindo, naturalmente. Para cada imagem é necessário fazer uma nova
sintonização.
A voz dele sumiu-se e eu pus-me a olhar para a tela quadrada com um
metro e oitenta de lado que se via acima da cabeça de Walker e por onde
perpassavam sombras. Uma sombra feminina passava agora por uma rua,
levando pela mão a sombra de uma criança. Sombras de carros aéreos
passavam flutuando aos safanões. Uma fila de sombras masculinas postadas
grotescamente ao longo do balcão de um bar e produzindo manchas
brilhantes com os copos. Uma sala e uma sombra feminina a movimentar-se
em volta de uma mesa.
Walker dobrou-se tensamente, com a face banhada de suor, e fez alguns
ajustes delicados.
A cena não era estável. Um parque com árvores, adultos recostados e
crianças a correr. Uma sala com pessoas sentadas à mesa, uma sala de leitura,
talvez uma biblioteca pública. Uma sala de estar confortável com uma lareira
à moda antiga e uma mancha brilhante que devia ser o fogo. Um quarto de
dormir e uma sombra feminina a vestir-se, ou talvez a despir-se. E repare:
Cronus não era brinquedo de bisbilhoteiro. As sombras eram tão sombrias
que só pelas roupas se sabia de que sexo eram.
— Aí está! — Exclamou Walker. Pôs uma câmara de cinema em
posição e carregou num botão. Enquanto observávamos, a máquina zumbia
suavemente.
Uma sala de estar indefinida. Uma sombra feminina abriu a porta e
entrou rapidamente. Levantou os braços e ficou imóvel durante um arrepiante
momento. Uma sombra masculina saltou para a imagem. Era uma enorme
sombra masculina. Quando ela se voltou para fugir ele apanhou-a por trás. A
mão dele moveu-se para cima e o punhal que segurava brilhou no momento
em que o enterrava nas costas dela. Quando o arrancou já não brilhava.
Desferiu um segundo golpe e depois largou-a. Enquanto ela se abatia sobre o
solo, ele rodopiou, correu na nossa direção e desapareceu na tela. A câmara
mergulhou em direção ao solo, registando a imagem daquela sombra imóvel
ali estendida.
De repente a cena mudou. Um restaurante com mesas apinhadas de
gente e empregados robots de movimentos lentos. Walker pronunciou umas
pragas inofensivas e desligou a câmara.
— Até agora, foi o que consegui apanhar — disse ele. — Se pudesse
focá-la de outro ângulo talvez pudéssemos determinar o local da ação.
— E o tempo? — Perguntou o Velho.
— Dentro de sete a doze dias.
A revelação, naquela ocasião, atingiu-me como um murro violento nos
queixos. Estivera a ver um crime que ainda não havia acontecido.

***

— Temos bastante tempo — disse o Velho. — Contudo, não chega


para continuarmos com estas tentativas de localização.
Voltou-se para mim e disse:
— Que é que pensa disto?
— Devíamos poder identificar o homem — disse eu. — Ele deve ter
mais de um metro e oitenta. Não me admiraria nada que tivesse mesmo dois
metros ou dois metros e dez. Deve ter a compleição de um gorila macho. E
coxeia ligeiramente do pé direito.
— Nada mau. Mais alguma coisa?
— Trata-se de um apartamento ou do quarto de um hotel. Quando a
mulher abriu a porta brilhou nela um número, mas não consegui distingui-lo.
Inclino-me para que seja um apartamento. A tela de monitorização que tem
junto à porta significa que o prédio ou é relativamente novo ou foi
remodelado há pouco tempo. A sala de estar tem um canto com janelas em
dois lados adjacentes. É difícil dizer ao certo, mas julgo que há um sofá
antigo, daqueles que têm costas, encostado à parede mais distante.
Walker deixou-se cair numa cadeira.
— Você faz-me sentir melhor. Pensei que não valia a pena continuar
por os elementos serem escassos. E vi aquilo duas vezes. Como é que...
— Agora já pode compreender porque é que pedi a colaboração de
Forsdon — disse o Velho enquanto eu fazia alguns ruídos que se destinavam
a revelar a minha modéstia. — Você só deixou escapar uma coisa.
— Que foi?
— O nosso agressor é canhoto. E não se esqueça de que o facto de
coxear pode ser temporário. Muito bem, Forsdon, o caso é todo seu. Sete a
doze dias é de quanto dispomos, mas é melhor que programe o seu trabalho
para sete dias.
Dito isto voltou ao seu gabinete.
— Walker, pode dar-me alguma ideia, por vaga que seja, quanto ao
local do crime? — Perguntei-lhe.
— Posso desenhar um círculo no mapa, mas julgo que só terá cinquenta
por cento de probabilidades de descobrir o local dentro dele.
— Já é melhor que nada!
— Há ainda uma coisa — disse Walker. — Gostaria que usasse isto
onde quer que esteja.
Entregou-me uma banda elástica provida do que pareciam ser pérolas
pretas dispostas sobre ela espaçadamente.
— É uma banda de braço — disse ele. — A Cronus detecta estas
pérolas sob a forma de pontos brilhantes. Assim poderei identificá-lo se
aparecer na tela. Sabemos que funciona porque o Velho usa uma. A Cronus
já o detetou por duas vezes.
Enfiei-a no braço e fui trabalhar com um mapa e um roteiro da cidade.
Walker estava ainda a transpirar em frente da Cronus, tentando conseguir
focar o crime pela terceira vez. A porta do Velho estava fechada, mas ouvia-
se a sua voz anasalada ao telefone. Quando um técnico entregou o filme
revelado, puxei as cortinas para escurecer um dos cantos da sala e introduzi-o
num projetor.
Passei-o dez vezes sem descobrir nada de novo. Nem sequer fui capaz
de concluir se o agressor aparecera ali por acaso ou se era alguém conhecido
da vítima. Não se viam expressões faciais. Finalmente parei o projetor e fiz
um esboço da sala com base naquilo que me pareciam ser as mobílias.
O Velho entrou na nossa sala abruptamente, vindo do seu gabinete, deu
uma olhadela fugaz ao meu esboço e acenou afirmativamente com a cabeça,
em jeito de aprovação.
— Estou convencido de que iremos descobrir o apartamento — disse
ele. — Quanto mais cedo melhor, em meu entender, porque o problema só
começará na realidade quando o descobrirmos.
Não compreendi aquela frase e disse-lho. Julgava que o problema
ficaria praticamente resolvido se descobríssemos o apartamento.
— Você pensa que é possível impedir a consumação do crime — disse
ele. — Eu não. Mesmo que descubramos o local e que identifiquemos o
homem e a mulher, o crime vai, mesmo assim, acontecer.
— Porquê? — Perguntei.
— Encare a questão desta maneira. Se impedirmos o crime, ele não vai
acontecer, não é verdade?
— Certo.
— Se não vai acontecer, a Cronus não no-lo teria mostrado e nesse
caso não estaríamos a fazer nada para o impedir, o que levaria a que ele afinal
acontecesse.
— E assim estamos perante aquela pergunta interessante novamente —
sugeri eu.
Fez um aceno com a cabeça.
— Tudo o que você vir naquela tela irá acontecer, senão não o veria.
No que diz respeito à Cronus, até já aconteceu. Tentar impedir a sua
ocorrência é como que modificar o passado.
— Podemos tentar — disse eu.
— Temos o solene dever de tentar. Tenho três equipas de detetives à
nossa espera lá fora. Diga-lhes o que quer que eles façam.
O que eu queria era um apartamento com sala de estar onde houvesse
um recanto e um monitor de porta. O monitor estava na moda naquela época
e por isso ainda não havia muitos edifícios de apartamentos que o tivessem.
Mas as coisas não eram assim tão más quanto soavam. Havia sempre a
possibilidade de um indivíduo ter mandado instalar o seu próprio monitor,
mas eu só queria recorrer a essa hipótese em último caso. Tive um dia agitado
calcorreando as ruas por entre edifícios de apartamentos e discutindo com
porteiros e acabei por encontrá-lo na manhã seguinte num atarracado edifício
se sete andares da área centro-sul da cidade. Tratava-se de um daqueles
edifícios de apartamentos que haviam sido erigidos quando a cidade resolvera
que não tinha posses para o luxo dos espaços abertos e abrira uma parte do
Parque Central à construção de edifícios de apartamentos. Este era um
pigmeu entre os outros edifícios daquela zona, mas fora remodelado
recentemente. Já estava equipado com telas de monitor.
Após os protestos habituais, o porteiro foi mostrar-me as instalações.
Deixou-me entrar num apartamento das traseiras, no sexto andar, e eu, ao
olhar para aquela casa, sustive a respiração.
Puxei do meu esboço, embora na ocasião já o tivesse de memória, e
atravessei a sala para conseguir o ângulo correto. Lá estava o sofá e travava-
se mesmo de um sofá dos antigos, com costas. O que na imagem nos aparecia
como uma mancha brilhante era na verdade um espelho. Uma mancha baça
junto ao sofá era uma pequena mesa. Havia uma cadeira fora do sítio, mas
poderia ter sido deslocada. Que estava eu a pensar? Ela iria ser deslocada,
sim, para o seu novo sítio. Todos os pormenores coincidiam.
— Stella Emerson — disse o porteiro. — Miss Stella Emerson... Julgo.
Nunca me deu problemas. Há algum problema com ela?
— Não. Não há nada — disse eu. — Só quero perguntar-lhe umas
coisas.
— Não sei quando ela volta para casa.
Mas sabia-o o vizinho do lado. Regressei à esquadra e comecei a juntar
os dados na tentativa de identificar o nosso candidato a agressor. Sem êxito.
Nessa noite, às seis horas, fui tomar um café com Miss Stella Emerson.
Ela era uma daquelas pessoas com quem é sempre um prazer conversar.
Viva, inteligente e colaborante, com ela não se passavam nunca aquelas cenas
mesquinhas e emocionais que é costume desenrolarem-se a propósito da
alegada invasão da privacidade alheia. Também, não era nenhuma garota:
teria uns vinte e seis ou vinte e sete anos, talvez um metro e cinquenta e
quatro de altura e cinquenta quilos de peso. Os quilos estavam bem
distribuídos e era de uma beleza que dava gosto.
Serviu o café na mesa pequena junto ao sofá e sentou-se recostada,
segurando a chávena com a mão.
— Queria fazer-me perguntas?
Passei os dedos pela minha chávena, mas não a levantei.
— Gostava que pensasse cuidadosamente e me dissesse se conheceu
algum homem que corresponda a esta descrição: é alto, muito alto, de
compleição robusta e tem talvez dois metros ou dois metros e dez. É canhoto
e parece coxear do pé direito.
Ela poisou a chávena com força.
— Olha! Parece mesmo o Mike... Mike Gregory. Já não o vejo há anos.
Pelo menos desde...
Respirei fundo e escrevi Mike Gregory no meu bloco de apontamentos.
— Onde o viu pela última vez?
— Em Marte. Estive lá durante dois anos como funcionária pública.
Mike era uma espécie de faz-tudo, que aparecia ali perto do edifício do
Governo.
— Sabe onde ele está agora?
— Tanto quanto sei, está ainda em Marte.
— Gostava que me contasse tudo o que sabe acerca de Mike Gregory.
Posso convidá-la para jantar.
Como o meu paizinho costumava dizer, não há nada como juntar o
prazer ao trabalho.
Ela sugeriu o local — um pequeno e estranho restaurante no segundo
piso subterrâneo de um edifício de apartamentos próximo. Havia velas acesas
sobre as mesas, coisa que eu já não via há anos. As empregadas de mesa
vestiam umas roupas esquisitas, com lenços atados à cabeça. Um velho foi
sentar-se a um canto e pôs-se a arranhar um violino. A cena era quase
fantástica.
A comida, porém, era boa, e Stella Emerson era uma boa companhia.
Infelizmente só pensava em Mike Gregory:
— Há problemas com o Mike? — Perguntou ela. — Ele sempre me
pareceu ser uma pessoa delicada e atenciosa.
— Às vezes as pessoas delicadas e atenciosas modificam-se — disse
eu, pensando no apunhalamento sombrio que ainda não havia acontecido.
— Conhecia-o bem?
— Não muito bem. Sempre que o vi foi durante as minhas horas de
trabalho. Ele costumava parar para falar comigo, de vez em quando. Nada
mais.
— Ele estava... Interessado em si?
Miss Stella corou. Nunca fui um reformador social e sempre aceitei
mais ou menos as coisas tal como elas são, inclusive no que respeita a
mulheres. Ouvi dizer que as mulheres deixaram de corar quando puseram de
parte os seus biquínis de duas peças e passaram a usar calções de banho como
os homens. Acreditem no que lhes digo: não se pode ter uma ideia do que
está errado na nossa civilização científica até se ter visto uma rapariga a corar
à luz da vela.
— Suponho que sim — respondeu ela. — Estava sempre a convidar-me
para sair com ele. Eu tinha pena dele... Parecia-me tão grotesco... Mas não lhe
dava muitas esperanças.
— Está segura de que ele coxeava?
— Oh, sim. Notava-se muito.
— E quanto a ser canhoto?
Ela pensou durante uns instantes.
— Não. Não tenho a certeza disso. Pode ser que fosse, mas nunca
reparei.
— Há mais alguma coisa de que se lembre a respeito dele?
Abanou a cabeça lentamente e disse:
— Pouca coisa. Ele não era mais que uma pessoa que de vez em
quando passava pelo escritório. Tinha um modo invulgar de falar. Falava
muito devagar, separando as palavras assim... Deste... Modo. A maioria das
raparigas ria-se dele e quando isso acontecia ele virava as costas e ia-se
embora sem dizer nada. Ah, é verdade! Às vezes punha-se a falar da
Califórnia. Depreendi que era originário de lá, mas nunca soube nada da sua
vida privada.
— Mas não se ria dele?
— Não. Não era capaz disso. Ele era demasiado... Patético.
— Ele deu-lhe notícias desde que você voltou de lá?
— Enviou-me uma vez um cartão de boas-festas. Não sabia qual era o
meu endereço na Terra e por isso remeteu-o ao cuidado do escritório de
Marte. Só o recebi em Julho!
— Neste Julho?
— Não. Deve ter sido há quatro anos... Dois anos depois de eu ter
regressado de Marte.
Não falei mais de Mike Gregory e tentei saber mais alguma coisa
acerca de Stella Emerson. Tinha vinte e oito anos. Havia trabalhado em Marte
durante três anos e regressara à Terra, onde arranjou emprego como secretária
de uma pequena firma fabricante de têxteis à base de plástico. Ganhava o
dinheiro suficiente para comprar aquilo de que necessitava e ainda lhe
sobrava algum para as economias. Gostava de ter uma casa própria. Tinha
uma irmã em Boston e uma tia em Newark. Ambas a visitavam
ocasionalmente. Levava uma vida sossegada, acompanhada de livros e de
visitas a institutos de arte. O seu único passatempo era a fotografia.
Aquilo tudo parecia-me maravilhoso. Uma vida sossegada... O detetive
já tem bastante que o excite no emprego. Se não puder descontrair-se em casa
acabará por ser uma desgraça para as tabelas de mortalidade.
Já íamos na nossa segunda chávena de café quando fiz o velho
violinista aproximar-se da nossa mesa.
— Miss Emerson é uma rapariga muito bonita, não acha? — Perguntei-
lhe eu.
Os seus olhos raiados de vermelho examinaram-na com curiosidade por
entre uma barba já com duas semanas.
— Pois acho! Não tenha dúvidas!
Passei-lhe uma nota de um dólar e perguntei:
— E que tal se nos tocasse uma melodia tão bonita como Miss
Emerson?
Pôs-se a tocar uma tosca serenata e ela reagiu exatamente como eu
esperara que reagisse. Corou intensamente e continuou a corar enquanto eu
me recostava na cadeira a apreciar a cena.
Acompanhei-a ao apartamento e despedi-me amistosamente dela, à
porta. Apertámos as mãos... Sim, apertámos mesmo as mãos! Apesar da era
em que estamos, apertámos apenas as mãos e ela não me convidou para
passar a noite consigo, o que seria bem reconfortante.
Desci o elevador cheio de sinos na cabeça e um fragmento da música
do velho à volta deles. Desci no rés-do-chão, saí para a rua a sonhar e mandei
parar um táxi aéreo com o meu sinal de algibeira.
Quando estava para entrar para o táxi a ideia apunhalou-me como se
fora o punhal reluzente que vira na tela. Dentro de sete a doze dias... Não!
Menos, dentro de cinco a dez dias, ela iria ser assassinada.
— Há algum problema? — Perguntou o motorista.
Identifiquei-me à pressa e mandei-o seguir para a esquadra da polícia.
— Utilize a altitude de emergência — disse-lhe.
Walker estava agachado em frente da Cronus transpirando como já era
hábito, mas parecendo infinitamente mais cansado.
— Não voltei a encontrá-la — disse ele.
— Não faz mal. Podemos arranjar-nos com o que temos.
Franziu o sobrolho, irritado.
— Isto é importante, cos diabos! Este modelo é apenas experimental e é
de uma ineficácia enlouquecedora! Com dinheiro e instalações para proceder
a pesquisas poderíamos produzir uma máquina que realmente funcionasse,
mas não obteremos esse tipo de apoio de que tanto necessitamos se nos
limitarmos a prever alguns assaltos insignificantes. Mas um assassínio, ah!
Isso fá-los-á levar-nos a sério!
— Deixe de se preocupar com o raio da sua Cronus! Que importa esse
monte de sucata quando o que temos a fazer é salvar a vida de uma rapariga?
Olhou para mim e pestanejou, não propriamente ofendido mas somente
com ar de cientista bastante cansado e tentando refocar os olhos para poder
continuar a trabalhar.
— Pois claro, sem dúvida — disse ele mansamente. — Com um
modelo mais eficiente talvez pudéssemos salvar muitas vidas. Quanto à
rapariga... Se eu não conseguir mais informações...
— Já encontrei o apartamento e a rapariga. A última vez que ela ouviu
falar do nosso homem foi há quatro anos, em Marte. Claro que já lá não está,
a não ser que a Cronus seja vítima de alucinações. Amanhã ao meio-dia já
teremos a certeza.
Emiti uma nota de informação geral sobre Mike Gregory e tomei
disposições para que houvesse investigadores à porta do Serviço Público e da
Administração Colonial quando estes serviços abrissem pela manhã. Depois
telefonei ao Velho para lhe dar conhecimento das minhas averiguações. Esta
é a norma de atuação em qualquer departamento que ele chefie. Nunca nos
deixa à vontade enquanto o caso não estiver encerrado. Entretanto, seja o que
for que se lhe diga, a pergunta é sempre a mesma: «Como é que resolveu o
assunto?» Aquele que não encontra resposta depressa se vê transferido para
outro local de trabalho.
Como nada mais se poderia fazer naquela noite, fui para casa. Não vou
afirmar que dormi, porque isso seria uma falsidade.
Na manhã seguinte, ainda cedo, recebemos um relatório completo da
Administração Colonial sobre Michael Rolland Gregory. Impressões digitais,
fotos, descrição pormenorizada, incluindo a informação de que era coxo e
canhoto e ainda uma nota dizendo que ele se havia demitido há oito meses do
emprego que tinha em Marte e que partira imediatamente para a Terra numa
nave de passageiros que devia aterrar em São Francisco.
Enviei uma mensagem urgente para São Francisco e fiquei a secar na
esquadra à espera da resposta até chegar a hora de partir para mais um jantar
com Stella Emerson. E para mais um aperto de mãos à porta do seu
apartamento.
Em São Francisco fizeram um trabalho completo, mas que levou
tempo. Precisamente dois dias. Michael Rolland Gregory tinha vagueado por
ali durante algum tempo, vivendo em pensões de segunda e passando por
uma série de empregos esporádicos. Quanto aos dois últimos meses não havia
vestígios dele.
— Nesta altura pode encontrar-se por aí, em qualquer parte — disse eu
ao Velho.
— Inclusive aqui, em Nova Iorque — respondeu ele secamente.
Nessa noite descobri que Stella Emerson havia deslocado a cadeira do
sítio onde se encontrava, desconhecendo que estava a dar ao seu apartamento
aquele último toque de que ele necessitava para estar pronto para a execução
do seu crime. Levei-a a casa após o nosso encontro habitual para jantarmos e,
quando nos encontrávamos à porta, ignorei-lhe intencionalmente a mão que
me estendia.
— Stella, quero que saiba que gosto bastante de si.
Ela corou de um modo maravilhoso.
— Também gosto de si, Jim.
— Gostaria de lhe pedir um favor, um favor muito especial — disse-
lhe.
Corou ainda mais, revelando uma pontinha de pânico.
— Também eu, Jim. Porque... Gosto de si. Mas não posso. É difícil de
explicar, mas sempre disse para comigo que, a não ser que me casasse...
Os olhos dela abriram-se de espanto quando me encostei à parede e me
pus a rir às gargalhadas. Depois prescindi do aperto de mão, apertei-a a mim
e talvez tenha acontecido o seu primeiro beijo.
— Querida: gostar não é termo que baste — disse-lhe. — Eu amo-te. E
não era esse o favor que te ia pedir. Disseste que tens uma tia que vive em
Newark. Quero que fiques com ela durante alguns dias.
— Mas porquê?
— Confias em mim? Nada mais te posso dizer, a não ser que aqui
corres perigo.
— Por causa do Mike?
— Receio que sim.
— É difícil acreditar que o Mike me quisesse fazer qualquer mal, mas
se pensas que é assim tão importante...
— Pois penso. Queres telefonar agora à tua tia e combinar tudo? Levo-
te lá esta noite.
Stella fez a mala e eu levei-a a Newark num táxi aéreo. A tia recebeu-a
com toda a hospitalidade, embora se mostrasse um pouco confusa devido ao
modo como eu lhe revistei o apartamento. Quis verificar bem se a sala de
estar dela não poderia ser o palco potencial do crime. Concluí que não, pois
não havia qualquer semelhança com a outra sala.
— Promete-me que não voltas ao teu apartamento, seja qual for a
razão, até eu te dizer que podes.
— Prometo. Mas posso precisar de qualquer coisa.
— Faz uma lista que eu mando lá uma mulher-polícia buscar aquilo de
que necessitares.
— Está bem.
Pedi-lhe a chave da porta dela. Não queria correr nenhum risco de que
ela fizesse nem que fosse uma rápida visita ao apartamento e assim corresse
ao encontro do destino que lhe parecia estar reservado.
Combinei com o porteiro do prédio dela que lhe deixasse as luzes do
apartamento acesas todas as noites e que as desligasse a uma hora
determinada. Pus um guarda junto do prédio, bem como junto do prédio da
tia, e consegui que fosse destacado um detetive para a seguir, embora, é claro,
ela não o soubesse.
Depois, faltavam só cinco dias e eu ia ficando cada vez mais nervoso.
Quatro dias. Entrei na sala do D. C. F. e Walker correu para mim
— Encontrei-a outra vez — disse ele.
— Há algo de novo?
— Não. Está tudo na mesma... Exatamente na mesma.
— E quando será?
— Dentro de dois a três dias.
Sentei-me fatigado e pus-me a olhar para a Cronus. A tela estava sem
imagens.
— Como é que conseguiu inventar isto? — Perguntei.
— A bem dizer não a inventei. Descobri-a. Estava a remendar uma
aparelhagem de TV e modifiquei alguns circuitos, juntando alguns outros
novos, só para experimentar. As imagens que conseguia eram fracas, mas não
pareciam provir de qualquer estação conhecida... Ou grupo de estações
conhecidas, visto que estavam sempre a mudar. Como aquilo me pareceu
interessante, continuei a trabalhar no assunto. Então, um dia a tela mostrou-
me uma grande colisão de carros aéreos. Havia pelo menos uma dúzia deles
enfeixados uns nos outros e lembro-me de que disse para comigo: «Estes
filmes da classe D estão realmente a exagerar.» Cerca de uma semana depois
abri o jornal da manhã e encontrei nele a mesma colisão na página frontal.
Levou-me muito tempo para conseguir interessar alguém pela questão,
mas, finalmente...
Interrompeu a frase. O Velho irrompeu vindo do seu gabinete e
agitando ambas as mãos.
— Brooklyn! Gregory esteve instalado numa pensão em Brooklyn!
Saiu há três dias.
Era a única pista boa que nos aparecera e acabava por não conduzir a
lado nenhum. Ninguém sabia para onde ele tinha ido. Obtínhamos assim a
prova de que ele estava nas vizinhanças de Nova Iorque, mas disso nenhum
de nós duvidara jamais.
— Há uma coisa interessante — disse o Velho. — Ele está a usar o seu
nome verdadeiro. Claro que não há razão para que não o fizesse, visto que
não é nenhum criminoso. Mas é um potencial criminoso, e não o sabe.
De súbito apercebi-me de que tínhamos entre mãos um duplo problema.
Tínhamos de proteger Stella de Gregory, mas também tínhamos de proteger
Gregory de si próprio. Se fôssemos capazes de o encontrar.
— Tem algumas sugestões a dar? — Perguntei.
— Continue de olhos abertos — disse o Velho.
— Se ao menos pudéssemos apanhar Gregory e mantê-lo preso durante
alguns dias, talvez conseguíssemos vencer esta guerra. Já temos Stella
Emerson protegida, já lhe fechámos o apartamento. Se agora engaiolarmos
Gregory, temos o caso encerrado.
O Velho riu-se.
— Você ainda pensa que podemos impedir este crime. Ouça: num
daqueles assaltos que detectámos, consegui reconhecer o assaltante. Era
Butch Mackey, lembra-se dele? Tinha uma perna mais curta que a outra e por
isso não podia disfarçar os sons dos seus passos, mesmo na escuridão.
Mandei-o prender, e como lhe encontrámos uma arma, trouxemo-lo para aqui
e foi condenado. Depois conseguiu escapar, arranjar outra arma e praticou o
assalto mesmo em cima da hora. Acredite no que lhe digo, o futuro que a
Cronus nos revela não pode ser alterado. Estou a trabalhar com afinco, como
todos os outros, para impedir este crime, mas tenho a certeza de hoje ou
amanhã a rapariga e Gregory se vão encontrar naquele apartamento... Ou
noutro exatamente igual àquele.
— Desta vez vamos alterar o futuro — disse eu.
Quando saía parei para olhar bem para a Cronus. Só um monstro seria
capaz de entregar-nos um assassino, uma vítima, o local e a ocasião
aproximada e depois deixar-nos completamente impotentes para fazer o que
quer que fosse para evitar o crime. Se Walker não estivesse presente ter-lhe-
ia dado um pontapé bem firme numa das peças vitais da sua anatomia.
Walker chamava a estes dois dias o Período Crítico. Eu concordava
com ele, com a diferença de que ele estava a pensar na exatidão da Cronus
enquanto eu pensava no perigo que corria uma vida humana. A vida de Stella.
Desmarquei o nosso jantar e vagueei por Manhattan à procura de um homem
robusto e pronunciadamente coxo. Um grãozinho de poeira ligeiramente
grotesco entre milhões de grãozinhos normais. Foi com alguma satisfação
que vi que não andava só nas minhas buscas. Havia carros aéreos em voo
baixo para uma rápida observação dos peões. Patrulhas de homens a pé
analisavam cada transeunte e havia detetives a percorrer as pensões e os
hotéis, com fotografias do candidato a criminoso nas mãos. Os motoristas dos
táxis e dos autocarros também foram alertados.
Para um homem que não tinha razões para se esconder, Michael
Rolland Gregory estava a fazer um inacreditável trabalho de perito ao
manter-se fora das nossas vistas.
Às dez horas da noite falei pela rádio para a esquadra da polícia e o
Velho explodiu:
— Onde raio tem você estado? O guarda de serviço ao apartamento da
rapariga apanhou Gregory em flagrante. Estão a caminho aqui da esquadra.
Saltei por cima das formalidades de fecho da emissão e corri para a
esquadra. Precipitei-me peto corredor abaixo em direção à sala do D. C. F. e
irrompi no que parecia ser uma cerimónia fúnebre. Walker estava sentado
com a cara entre as mãos e o Velho, com ar soturno, dava pequenas voltas na
sala.
— Fugiu — resmungou o Velho. — Quebrou as algemas como se
fossem palitos, derrubou os guardas que o escoltavam e fugiu sem deixar
rasto. O homem deve ter a força de uma escavadora.
— Como conseguiram apanhá-lo? — Perguntei.
— Ele vinha pela rua abaixo e meteu-se no edifício de apartamentos.
Completamente ignorante de tudo quanto se passava, claro. Não tinha a
menor ideia de que o procurávamos.
— Agora já a tem — disse eu. — Vai ser divertido tentar localizá-lo
outra vez.
O Velho já tinha um pequeno exército à solta na área onde Gregory se
havia escapulido, mas, a avaliar pelo êxito até ali alcançado, o fugitivo devia
ter-se sumido pelo chão abaixo. Telefonei a Stella e pedi-lhe para não ir
trabalhar e ficar em casa no dia seguinte. Depois dupliquei a força de plantão
ao apartamento da tia, onde ela se encontrava.
Ao nascer do dia já eu andava a patrulhar as ruas com os esquadrões
aéreos e, julgo, a tornar-me incomodativo com os constantes apelos para a
sede da polícia. Passámos um dia miserável e, pela sorte que tivemos, bem se
poderia admitir que Gregory se havia escondido em Marte.
Ao pequeno-almoço tomei café, ao almoço voltei a tomar café e à noite
traguei uma refeição rápida numa pequena casa de sanduíches por onde
passei enquanto fazia uma ronda pedestre pela rua em frente do apartamento
de Stella. O guarda de plantão estava de serviço e o porteiro havia acendido
as luzes do apartamento conforme combinado. Postei-me por momentos junto
à porta do edifício, observando os escassos peões que por ali passavam e
depois fiz sinal para mandar parar um táxi aéreo.
— Gostava de dar umas voltas por esta área — disse ao motorista.
— Com certeza.
Esquadrinhámos lá de cima as ruas em todas as direções enquanto eu
perscrutava os peões e observava a trama do escasso tráfego. Quinze minutos
depois voltámos ao edifício de apartamentos.
— Voe em círculos baixos à volta do edifício — pedi ao motorista.
— Oh, lá isso é que não! Quer que me tirem a licença? Não posso sair
dos corredores aéreos!
— Desta vez pode. Polícia.
Olhou para as minhas credenciais e rabujou:
— Porque é que vocês não usam os vossos veículos para estes
serviços?
Descemos a planar. Havia uma faixa estreita de relva por detrás do
edifício, mais um par de árvores e uma alameda ao lado, mal iluminada. O
taxista emprestou-me uns binóculos e eu agucei a vista na direção daquelas
sombras dispersas. Não vi nada de suspeito, mas resolvi que valeria a pena
percorrer a alameda a pé.
Da terceira vez que olhei para as janelas iluminadas do apartamento de
Stella — refiro-me às janelas das traseiras — ia perdendo a respiração. Uma
sombra escura agarrava-se à parede do edifício e caminhava lentamente ao
longo do parapeito em direção à janela dela. Era Gregory.
O taxista viu-o ao mesmo tempo que eu.
— Aquele tipo é doido! — Exclamou ele.
Enquanto observávamos, Gregory conseguiu abrir a janela e
desapareceu da nossa vista, entrando no apartamento.
Tentei chamar pela rádio os homens que se encontravam de guarda ao
edifício, mas não consegui despertá-los o suficiente. Chamei então a
esquadra.
— Forsdon — ronronou a rapariga que o atendeu —, há uma
mensagem urgente para si.
— Deixe lá isso! — Respondi. Fiz uma rápida descrição da situação e
desliguei o rádio.
— É capaz de pôr esta coisa o mais próximo possível da janela para eu
entrar por ela? — Pedi ao motorista.
— Posso tentar. Mas tenha cuidado, porque a queda é de bem alto!
Aproximou-se e lá consegui agarrar-me ao rebordo da janela, puxando-
me para dentro. Gregory enfrentava-me do outro lado da sala de estar com
uma expressão de perplexidade e pânico estampada na sua face infantil. Pela
minha parte pensava em quanto podemos ser tão estúpidos. Com efeito, a
partir da maneira como ele entrava na imagem da Cronus, podíamos ter
suspeitado de qualquer coisa deste género, mas quem iria pensar que um
homem do tamanho de Gregory podia comportar-se como uma mosca
humana?
— Vamos, Gregory. Estás preso.
A sua face encheu-se de lágrimas. Mexia o maxilar, os lábios
desenhavam palavras, mas nenhum som saía. Subitamente percebi como nos
tínhamos enganado. Esta criança de dimensão grotesca não queria fazer mal a
ninguém. Stella era a única pessoa que ele havia conhecido que o tratara
como um ser humano e por isso queria vê-la outra vez. Por qualquer razão
que não podia compreender, a polícia estava a querer impedir isso. Todo o
seu restrito universo, incluindo Stella, troçava dele, e por isso ele estava
amedrontado.
Estava amedrontado e... Perigoso. Investiu contra mim como se fora a
escavadora de que o Velho havia falado e obrigou-me e recuar até à janela
aberta. Puxei pela pistola, mas ele arrancou-ma com um simples safanão.
Tinha conseguido empurrar-me para o parapeito da janela quando a porta do
apartamento se abriu.
Era Stella.
— Foge! — Gritei.
A seguir senti o vento da noite a assobiar à minha passagem e ouvi o
grito longo e lancinante de Stella, vindo da janela, lá em cima. Despenhei-me
sobre os ramos de uma árvore, lutei freneticamente para conseguir um apoio
e acabei por cair no solo.

***

O médico tinha cara de mocho. Dobrou-se sobre mim, fazendo curiosos


ruídos com a língua, e quando viu que eu tinha os olhos abertos sorriu.
— Nada mau! Mesmo nada mau!
— Que é que há de bom nisto? — Perguntei.
— Meu rapaz: você caiu de um sexto andar e só partiu uma perna e fez
algumas escoriações ligeiras. Ainda me pergunta que é que há de bom nisto?
— O senhor nunca me compreenderia — disse eu.
O grito de Stella soava nos meus ouvidos. Torci-me e senti o pesado
molde na minha perna esquerda. O meu estado de espírito confundia-se com
o cinzento sombrio do quarto do hospital.
Uma enfermeira entrou em bicos de pés e sorriu afavelmente quando
viu que eu estava acordado.
— Tem aqui visitas. Quer vê-las?
Eu sabia que era o Velho que me vinha ver. Detestava ter de o encarar,
mas acabei por dizer:
— Deixe-o entrar.
Olhou para dentro do quarto, acenou com a cabeça e recuou. Depois
voltou, com Stella à sua frente. Uma Stella diferente, de cara pálida e
distorcida e com olhos que revelavam um estado de choque e de aflição. Mas
viva, bastante viva.
Comecei a sentar-me, mas a enfermeira colocou-me uma mão firme em
cada ombro e usou exclamações de desaprovação. O Velho ofereceu uma
cadeira a Stella.
— Jim... — Disse ela com a voz embargada.
— Eu digo-lhe — propôs o Velho. — Parece que Miss Emerson tem
uma irmã que vive em Boston.
— Eu sei — disse eu.
— Uma irmã gémea. A rapariga não sabia nada acerca do nosso
problema e veio cá esta noite para fazer uma visita. Tinha uma chave do
apartamento de Miss Emerson e entrou nele na altura exata de desempenhar
um papel no drama da Cronus.
— Ele matou-a?
— Não. Felizmente, não. As feridas dela são dolorosas mas
superficiais. Ficará boa.
Descansei.
— E que é que aconteceu a Gregory?
— Tentou sair pelo mesmo modo como entrara, mas não teve árvore
que lhe amortecesse a queda. Outra coisa: tenho uma mensagem urgente de
Walker para si.
Olhei de relance para o bocado de papel:
«Jim, por amor de Deus, não entre em carros aéreos!», dizia ele.
— A Cronus mostrou-nos a sua queda meia hora antes de ela acontecer
— disse o Velho. — Do ângulo em que a víamos, parecia que você caía do
táxi aéreo. Segundo cálculos de Walker, era coisa para acontecer nas vinte e
quatro horas seguintes, mas não nos foi possível contactá-lo. Porque é que
desligou aquele maldito rádio?
— Mesmo que tivesse ficado ligado, isso não alteraria nada, como o
senhor sabe.
— Sim, bem sei. A Cronus mostra-nos o futuro, mas não pode
modificá-lo nem nós tão-pouco.
— O meu, modificou-o — disse eu, olhando para Stella.
O Velho percebeu a deixa e afastou-se.
Cinco minutos depois o telefone tocou e eu passei o braço em volta de
Stella para o alcançar. Era Walker. Stella pôs a cara ao pé da minha para
ouvir o que ele dizia.
— Telefono-lhe só para lhe dar os parabéns.
— Parabéns, porquê?
— Pelo seu casamento. A Cronus acaba de o detectar.
Praguejei, mas para dentro.
— Ainda nem sequer pedi a rapariga em casamento! E não me venha
dizer para usar aquela estúpida braçadeira no dia do meu casamento, porque
não o farei!
— Não, mas está de muletas, e o Velho estará lá com a braçadeira
dele...
— Está bem. Quando é que esse feliz acontecimento se vai realizar?
— Dentro de quatro a oito dias.
Pousei o auscultador com força e beijei a ruborizada face de Stella.
— Querida: a Cronus diz que vamos casar-nos dentro de quatro a oito
dias, mas é desta vez que aquela monstruosidade se vai enganar. Vamos mas
é casar amanhã.
— Está bem, Jim, se assim o queres. Mas...
— Mas o quê?
— Estamos a 28 de Maio e se nos casarmos amanhã não poderei ser
uma dessas noivas do mês de Junho.
Casámos cinco dias depois e fomos passar a lua-de-mel ao Arizona. Eu
estivera a investigar e descobri que o Arizona ficava bem fora do alcance da
Cronus.
9
Asas da Canção
(«Wings of Song»)

Este conto foi publicado pela primeira vez em Novembro de 1963 na revista
The Magazine of Fantasy and Science Fiction
© 1963, Mercury Press, Inc.
Karl Brandon viu a tabuleta por acaso. Um carro aéreo passou por
debaixo deles e ele seguiu-o com a vista porque se tratava de um Smires do
último modelo, e foi assim que viu uma pequena tabuleta colocada entre uma
fila de outras pequenas tabuletas dispostas sobre os telhados do atravancado e
exíguo centro comercial.
ANTIGUIDADES, anunciava ela. Brandon olhou para o relógio e
calculou que só lhe restavam vinte e cinco minutos. Cotovelou o motorista e
apontou-lhe a tabuleta.
Dois minutos depois estava dentro da loja. Passou em revista o seu
interior juncado de lixo e coberto de poeira, com um rápido relance de olhos,
e voltou-se para sair. Tinha o instinto pacientemente desenvolvido de um
crítico entendido na matéria e esse instinto dizia-lhe que não valia a pena
passar a pente fino aquela miserável coleção de sucata.
O proprietário da loja fazia mesuras à sua volta. Era um homem de
baixa estatura e calvo, que meneava a cabeça, sorria e esfregava as mãos uma
na outra.
— Faz favor de dizer.
— Têm isqueiros? — Disse Brandon.
— Temos, sim senhor. Temos uma ótima coleção. Não se importa de
chegar aqui...
Brandon deslocou a sua pesada figura atrás do proprietário, seguindo na
peugada do homenzinho com passos pesados e sonoros, no meio de uma certa
excitação. Podia sempre apaziguar-se com o seu instinto mais tarde, e se este
inauspicioso local tivesse realmente uma ótima coleção de isqueiros isso seria
o golpe da sua vida! Aqui, em Pala City, precisamente nas barbas de Harry
Morrison! Morrison faria um banzé que se ouviria até na estrela Arcturo, e
Brandon exultaria com cada um dos seus decibéis.
O proprietário colocou um mostruário à sua frente e Brandon respirou
fundo e inspecionou lentamente o seu conteúdo, tomando o gosto ao
desapontamento que sentia. Aqueles isqueiros não eram mais que fragmentos
corroídos e ferrugentos sem classificação possível. Não havia em todo o lote
um único espécime aproveitável.
— Não! Não estou interessado — exclamou Brandon, voltando-se e
afastando-se.
— Temos um que ainda funciona — disse o proprietário. Apanhou um
pedaço de metal disforme, acendeu-o com o polegar e ergueu-lhe a chama
hesitante.
Brandon resfolegou.
— Meu caro senhor: eu tenho setecentos e sessenta e um isqueiros na
minha coleção e todos eles funcionam!
O proprietário assentiu com a cabeça, rendendo-se ao inevitável.
— Deseja mais alguma coisa?
Brandon abanou a cabeça impacientemente. Ao dirigir-se para a porta
pela segunda vez, deu uma última olhadela pela sala e hesitou. A sua atenção
foi desperta por um estranho objeto que estava ao cimo de um montículo de
objetos estranhos. Sob a poeira espessa que lhe cobria a superfície, os
penetrantes olhos de Brandon surpreenderam qualquer coisa que sugeria
lustro e uma textura peculiar.
Agarrou nele. Parecia ser uma espécie de recipiente com uma pega
comprida, mas não tinha aberturas, a não ser duas ranhuras de forma esquisita
no alto e um orifício irregular no fundo, que, obviamente, havia sido causado
por uma pancada. Brandon passou os dedos pelo orifício, olhou-o
detidamente e aproximou o objeto da luz.
— Que diabo é isto? — Murmurou.
Rondando perto dele, o omnipresente proprietário emitiu um grito
triunfante.
— Vi logo que não reconheceria isso — disse ele. — É madeira.
— Madeira?
Brandon inclinou-se mais, para ver melhor.
— Já alguma vez tinha visto madeira? — Perguntou o proprietário.
— Não sei. Penso que uma vez vi uma mesa de madeira num museu.
— É possível. É possível. Mas é raro. E este objeto é uma antiguidade
genuína. Veja.
Segurou o objeto por baixo da luz e apontou. No interior, dificilmente
visível através de uma das ranhuras, estava um rótulo desvanecido: «Jacob
Raymann, da casa Bell. Southmark, Londres, 1688.»
— Genuíno — disse o proprietário. — Já tem quase mil anos.
— Não me diga. E é feito de madeira?
— É verdade. De madeira obtida de uma árvore.
O proprietário puxou de um pano e limpou o pó à superfície lisa do
objeto.
— De uma árvore — repetiu ele, expondo-o à luz. — Alguma vez viu
uma árvore? Claro que não. Havia uma enorme quantidade de árvores na Mãe
Terra, mas não se davam em mais nenhuma parte. Agora, na Mãe Terra não
há nada. O custo da guerra, meu amigo, não se mede em dinheiro, mas sim
em coisas que se perderam para sempre, tais como as árvores.
— Mas afinal que é isto?
— É um violino.
Brandon esfregou o dedo na sua superfície. Por debaixo do polimento
havia uma textura delicada e ondulada, diferente de tudo o que ele vira até aí.
— Que é um violino?
— É um instrumento musical.
— Não me diga! Como é que funciona?
Pela primeira vez o proprietário pareceu inseguro de si.
— Bem... Não sei exatamente como funciona.
— Não há lá dentro muito espaço para o mecanismo — disse Brandon,
espreitando pelo buraco.
— Meu caro senhor! — Exclamou o proprietário. — Naqueles dias não
havia mecanismos!
— Então, como raio produzia ele música?
O proprietário abanou a cabeça.
Brandon recolocou-o na mesa e disse:
— Para que serve atualmente?
— Pense, meu amigo. Alguns séculos antes da última grande guerra
houve uma árvore na Terra, uma entre milhões, talvez, e este pedaço de
madeira era uma parcela do seu tecido vivo. Um mestre artífice construiu-o
com as suas próprias mãos, pois que naqueles tempos não havia máquinas. É
feito de madeira, o material mais raro em toda a galáxia, e é um soberbo
ornamento. Lindo. Para a parede, talvez, ou para uma mesa...
— Diabos para o ornamento! Se eu comprar um instrumento musical,
quero que ele dê música! Já fiz funcionar setecentos e sessenta e um isqueiros
e devo ser capaz de arrancar música de uma antiguidade... Como é que lhe
chama?
— Violino.
— Isso. Deve haver livros que digam como ele funciona.
O proprietário fez que sim com a cabeça.
— Com certeza a biblioteca da Universidade terá qualquer coisa.
— Quanto custa?
— Dez mil.
Brandon arregalou os olhos.
— É ridículo! Está quebrado, não funciona e com certeza que lhe
faltam muitas peças. No fundo, não passa de uma caixa.
— Mas é uma antiguidade genuína — sussurrou o proprietário. —
Madeira genuína. Tem quase mil...
— Bom dia!
Brandon deixou a pesada porta bater com força atrás dele. O motorista
saltou para fora do veículo e postou-se à sua espera. Parou um instante,
perdido em pensamentos. Já era tempo de se entregar a outro passatempo.
Estava a perder o interesse que sentira pelos isqueiros, de que já não havia
espécimes de qualidade, mesmo a bom preço. E agora aparecia-lhe a madeira.
Harry Morrison não tinha nem uma lasca de madeira em qualquer das suas
coleções.
Brandon voltou-se e tornou a entrar na loja.

***

Morrison pôs de lado a lupa e abanou a cabeça pensativamente.


— Sim — disse ele.
Afagou a bochecha lisa com dedos compridos e cuidadosamente
tratados, mostrando as unhas pintadas de azul-celeste. Brandon observava
com um semblante grave. Sempre considerara que Morrison tinha um pouco
de peralvilho.
— Sim — disse Morrison de novo. — Pode ser mesmo um achado.
— Foi o que eu pensei — respondeu Brandon.
— Ou então... — Morrison inclinou para trás a sua bela cabeça grisalha
e olhou para o teto. —... Pode não ser. Vejamos a fotografia. Ah... Sim. É
bastante nítido, tanto quanto se vê. Suponhamos que este tipo aqui é o músico
que tocava nele. É pena que tenha a extremidade escondida debaixo do braço.
Esta é a melhor fotografia que se encontrou?
— É a única fotografia que se encontrou!
— Hum. Sim. Bom, É óbvio que faltam peças. Estas coisas...
— São cordas — disse Brandon muito despachado.
— Parecem ir ao correr de todo o comprimento do instrumento, embora
não se consiga ver como eram presas, porque o braço do tipo não o deixa. E
que diabo será isto que ele tem na outra mão? Parece Uma vareta comprida.
— Não se sabe exatamente. A descrição que temos não o menciona.
— Ah... A descrição. Vamos ouvi-la.
Brandon leu:
Violino: o mais importante dos instrumentos de cordas. As suas
partes principais são o corpo, constituído pelo tampo, costas e costilhas;
o braço, que termina na caixa das cravelhas e na espiral; o estandarte; e
o cavalete. Dentro do corpo encontra-se a cadeira ou barra. As quatro
cordas afinam-se por intervalos de quinta, mi, lá, ré e sol.

Pode ser que continuasse, mas o livro era velho e faltam-lhe páginas.
Morrison olhou cheio de dúvidas para a fotografia e abanou a cabeça.
— É evidente que faltam peças, e a descrição não dá nenhuma
indicação sobre o mais importante de tudo que é: como se toca esta coisa?
— Isso é que eu não sei — disse Brandon. — Até o Prof. Weltz não
fazia a mínima ideia. Diz que vai estudá-lo. Já tirou fotografias e fez
medições e vai mandar fazer uma cópia do instrumento.
— De madeira? — Perguntou Morrison.
Brandon riu-se.
— De metal ou de plástico. O professor pensa que vai poder responder
a uma série de questões sobre a música antiga quando descobrir como se toca
o violino.
— E que é que você vai fazer com ele?
— Vou mandar arranjá-lo — disse Brandon com confiança. — E vou
aprender a tocá-lo.
— Pode ser mais difícil do que pensa. É pena que não haja uma
fotografia de um a ser tocado.
— Ora, havemos de descobrir. O que lhe queria perguntar, contudo...
Voltou o violino ao contrário e passou os dedos pelo orifício do fundo,
— O primeiro problema vai ser reparar isto. Quem é que sabe reparar
um buraco em madeira?
Morrison ficou silencioso um bom pedaço. Finalmente disse:
— Terei de fazer consultas sobre esse assunto. Provavelmente,
ninguém!
O secretário particular de Brandon era um homem zeloso e trabalhador
que tinha a feliz capacidade de transformar entusiasticamente em seus
projetos mais queridos de Brandon. Brandon apreciava esta sua maneira de
ser e pagava-lhe em conformidade.
Porém, nesta ocasião, enquanto colocava cuidadosamente a caixa de
plástico na secretária de Brandon, não parecia entusiasmado e disse mal-
humorado:
— Isto vai ser mais difícil do que eu pensava.
Brandon abriu a caixa para olhar embevecido para o violino.
— Qual é o problema, Parker?
— Falei ao diretor do Museu do Congresso. Eles têm lá um objeto de
madeira. Uma mesa.
— Eu lembro-me — disse Brandon.
— Ele disse que a mesa precisava de ser reparada quando a adquiriram,
mas faltava-lhes encontrar uma cola que colasse madeira. Tinham todas as
peças e só lhes faltava juntá-las. Consegui a fórmula da cola.
Brandon acenou com a cabeça em sinal de aprovação.
— Mas ele nunca teve o problema da falta de peças de madeira, como
nós temos. Não fazia a mínima ideia de como resolvê-lo ou de quem o
poderia resolver. Descobri um técnico na nossa Divisão Polivar que pensa
adaptar uma peça de plástico no buraco...
— Que disparate! — Disparou Brandon.
— Exatamente. Julga que também seria capaz de o reparar com
madeira, mas é claro que não tem nenhuma. No entanto, está disposto a
tentar, se lha fornecermos.
— Então veja se lhe arranja alguma.
— Mas aí é que está o problema. Não há madeira. Já perguntei em toda
a parte.
— Tem de haver alguma em qualquer parte. Pois se eu encontrei esta,
mesmo sem tentar!
— Deve ter tido um golpe de sorte, porque por toda a parte onde eu
pergunto...
— Sim. O truque está em saber onde perguntar. Passe-me o Morrison.
Esperou impacientemente até que o semblante tranquilo de Morrison
apareceu na tela da parede. Morrison ergueu uma mão em sinal de
cumprimento — neste dia tinha as unhas pintadas de vermelho-escuro — e
disse:
— Vem falar-me no seu violino, suponho.
Brandon confirmou.
— Harry, tenho a certeza de que conhece todos os antiquários que vale
a pena conhecer. Não se importa de lhes ir dizendo que necessito de um
pedaço de madeira?
— Já fiz algumas consultas — respondeu Morrison. — Se alguma delas
resultar, logo lhe darei a conhecer.
— Obrigadinho.
— A menos que aconteça tratar-se de alguma coisa que valha a pena
conservar. Não faz sentido destruir um objeto valioso só para reparar outro
estragado.
Brandon resistiu à vontade de sorrir. O facto de ter encontrado o violino
havia picado Morrison mais do que ele suspeitara. Não vale a pena referir que
quaisquer objetos valiosos que apareciam à luz do dia se destinavam à
coleção de Morrison.
— Não, isso não seria necessário — disse Brandon. — Só necessito de
pequenos bocados.
— Certo. Se eu descobrir alguma coisa apropriada, não deixarei de o
avisar.
Morrison ergueu uma mão languidamente e a sua imagem desapareceu.
Brandon girava os polegares em torno um do outro, impacientemente. Depois
levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro. Sentou-se novamente e
premiu um botão que havia sobre a sua secretária.
— Parker! — Vociferou ele. — Arranje-me madeira!
Parker desapareceu de circulação durante uma semana inteira.
Quando voltou vinha pálido e cansado e Brandon, após um rápido
relance de olhos pela cara dele, disse:
— Teve algum azar? Por onde é que andou?
— Estive na Biblioteca de Livros de Referência do Congresso.
— E esperava encontrar madeira lá?
— Esperava encontrar informações sobre a madeira. São quase tão
raras como a própria madeira, mas descobri uma coisa. Há cerca de cem anos,
no planeta Beloman (fica no Sector Partu), houve um homem que declarou
que a sua profissão era entalhador.
— Duvido de que ainda possamos contar com ele para o consultarmos
— disse Brandon secamente.
— Certo. Mas se a profissão dele era entalhador, deve ter andado a
fazer algo com madeira, o que significa que deve ter havido alguma. Se
trabalhou naquela atividade muito tempo, deve ter tido muita madeira e pode
ser que tenha sobrado lá alguma.
— Entalhador — murmurou Brandon. — Uma pessoa que grava em
madeira. Uma pessoa que faz coisas a partir da madeira. Mas isso é
impossível! Mesmo há cem anos não havia já madeira em quantidade
suficiente para que alguém pudesse fazer profissão do seu uso. Onde obteve
essa informação?
— De um pequeno livro intitulado Profissões Estranhas. Tudo o que lá
dizia era que «no último censo da população em Beloman, houve um homem
que declarou ter a profissão de entalhador». O Sector Partu é bastante
afastado daqui e pode acontecer que as consultas que o Sr. Morrison está a
fazer não atinjam aquele sector. Penso que vale a pena investigar.
— Beloman. O nome não me é estranho. Tenho lá alguns interesses?
— Tem, sim. O senhor controla algumas minas. Se o pedisse ao seu
inspetor que lá reside, tenho a certeza de que ele descobriria facilmente se
ainda por lá há alguma madeira.
— É uma ideia. Pode ser até uma ideia muito boa. Já alguma vez estive
em Beloman, Parker?
— Que eu saiba, não. Pelo menos desde que trabalho para si, não.
— Julgo que nunca estive no Sector Partu. Parker: faça-se um
inventário das minhas participações financeiras em Partu e vizinhanças. É
tempo de eu ir fazer uma visita de inspeção.

***

Aterraram em Beloman num dia de chuva. Ao avançarem, com os pés a


chapinharem na água, para um carro de superfície, Rozdel, o inspetor
residente de Brandon, desfez-se em desculpas.
— É o raio da política — disse ele. — Só temos uma nave de
passageiros por semana e também um só dia de chuva por semana e nem a
Transportes Interestelares nem a Junta de Controlo Climático querem alterar
a situação. Não me canso de lhes dizer que isso dá aos visitantes uma visão
errada de Beloman. Pessoalmente, tenho conhecimento de alguns turistas que
olharam em volta, viram esta confusão toda, e foram-se embora na mesma
nave que os trouxe.
Brandon resmungou qualquer coisa indefinida. Parker encostava a si a
caixa do violino e fazia votos para que ela fosse estanque. Rozdel fê-los
sentar e conduziu-os a um hotel.
Uma hora depois afastava o montinho de livros e de discos e dirigia-se
para a janela. Beloman era quase um planeta fronteira e havia uma juventude
crua transmitida pelas suas ruas largas e ao ar livre e pelas filas bem
ordenadas das suas casas de pedra atarracadas. A chuva continuava a fustigar
a janela.
— Alguma vez viu madeira? — Perguntou Brandon.
Rozdel chocalhou a cabeça para a limpar das estatísticas da produção
mineira.
— Madeira? Que é isso?
Brandon disfarçou o seu desapontamento.
— Se não sabe o que é, não vale a pena continuar a falar nela. Parker:
veja se pode descobrir alguma coisa, enquanto eu acabo aqui o meu trabalho.
Voltou-se de novo para Rozdel:
— Soubemos que em tempos houve um homem neste planeta que
declarou ser entalhador. Por isso pensámos que haveria aqui alguma madeira.
Bom, mas vamos lá a este calendário de amortizações...
— Entalhador? — Disse Rozdel absortamente. — Oh, agora me
lembro. O velho Thor Peterson diz que é entalhador. Nunca pensei nisso, mas
ele faz de facto bugigangas e coisas assim, a partir de madeira, claro. Cobra
preços esquisitos e quase só trabalha por encomenda. Julgo que manda
aquelas coisas para Partu. As pessoas de lá devem ter dinheiro para gastar em
chinesices daquelas. Por aqui não há dinheiro para isso.
— Então ele ainda é vivo?
— Não faço a mínima ideia. Já não o vejo, sim... Pelo menos há dois
anos. Já nessa altura ele andava com dificuldades. Era muito velho, sabe?
— Lá velho devia ser, sim! — Exclamou Parker. — Ora vejamos: ele
deve ter...
— Deixe lá isso — disse Brandon. — Se ele ainda for vivo temos de o
ir ver. Se o não for, mantém-se o problema: continuamos a precisar de
madeira. Onde é que ele arranjava a madeira?
— Não faço ideia — respondeu Rozdel. — Talvez os parentes dele lho
possam dizer. Vou ver se descubro se ele ainda é vivo e obter informações
sobre o caminho para a quinta Peterson.
— É favor — disse Brandon. — E rapidamente. Parker: alugue um
carro aéreo.
Beloman era um planeta de minas e agricultura e eles voaram por cima
de belos terrenos agrícolas ondulados e de estradas que se entrecruzavam e
que ainda eram conservadas e utilizadas. Havia pequenas florestas esparsas
de ervas gigantes. Em breve atravessaram os limites de uma outra zona
climática, escapando assim do dia de chuva da cidade de Beloman para o
luxuriante brilho de um sol dourado. Brandon observava a paisagem
impacientemente.
— Não deve faltar muito. Aquele não é o rio que Rozdel mencionou?
Parker consultou o mapa.
— Deve ser. E mesmo na nossa frente, o que estamos a ver deve ser o
lugar que procuramos.
Aterraram num largo círculo de velhos edifícios de pedra
cuidadosamente conservados: grandes celeiros, alpendres de armazenagem,
uma oficina e estruturas de menor dimensão albergando galináceos
cacarejantes ou animais que grunhiam. A casa de pedra, um edifício alto e
quadrado que havia passado pela adição de alas em três dos seus lados, ficava
no centro do círculo. Dirigiram-se para ela. Subitamente, Brandon agarrou o
braço de Parker.
— Que diabo é aquilo?
Aquilo ficava junto à casa e era como que um dedo direito, de textura
rugosa, que apontava para uma coroa de folhagem verde que se via ao alto.
— Será...
Parker confirmou com a cabeça.
— Uma árvore.
— Julguei que já não havia nenhuma árvore em toda a galáxia!
— Como é evidente — disse Parker —, sobrou uma!
— Talvez ele tenha mais. É então daqui que ele tira a madeira! Parker:
aquela coisa deve ter quatro metros e meio de altura!
Aproximaram-se da árvore. O terreno era suavemente inclinado e entre
a casa e os edifícios exteriores havia filas de concavidades revestidas de
pedra.
— É ali que ele as cria — disse Brandon. — Vinte e três, vinte e quatro
buracos. Mas só uma árvore. Bem... Vamos falar com o tipo.
Foram recebidos à porta por uma mulher gorducha e jovem que os
cumprimentou delicadamente e os conduziu pela rampa abaixo até um dos
pequenos edifícios exteriores.
— Entrem, por favor. Tem aqui pessoas que o querem ver, pai! —
Disse ela.
Entraram. O edifício estava vazio, com exceção de um banco e de
algumas prateleiras de ferramentas na parede mais distante. Uma cara voltou-
se para eles. Era velha, grotescamente enrugada e escura, em contraste com
um tufo de cabelo branco. A sala estava na obscuridade, com exceção da
bancada, brilhantemente iluminada.
— Desculpem-me não poder levantar-me para os cumprimentar. — A
voz era aguda e trémula e velha como a cara. — As minhas pernas já não
servem para nada. A minha voz quase desapareceu e os meus olhos e mãos já
não são o que eram. Felizmente, nunca me falta o apetite, e enquanto há
apetite há esperança. — Riu-se e continuou: — Que é que os traz por cá?
Brandon deu um passo em frente e deu-lhe um cartão-de-visita. O
velho estava sentado numa cadeira de rodas e vestido com roupas
brilhantemente coloridas e grosseiramente tecidas, que enrolava à sua volta.
Sobre o banco estava um pedaço de madeira; gravada nele podia ver-se uma
cabeça ainda inacabada de mulher. Brandon olhava pasmado para ela.
— Vem de longe, Sr. Brandon! — Disse Peterson. — Com certeza que
não foi só para me ver.
— Não esperávamos vê-lo, de facto — respondeu Brandon. —
Descobrimos... Descobriu-o o meu secretário, num velho livro uma
informação sobre um entalhador que havia neste planeta.
— Que idade tem o livro?
— Foi publicado há cento e quatro anos — disse Parker.
— Ah! Então referia-se ao meu avô. Ou talvez ao pai dele. Nós, os
Peterson, temos sido entalhadores desde há várias gerações. Eu vou ser o
último, porque os meus filhos encontraram profissões mais cativantes. As
minhas filhas casaram com agricultores, bons agricultores. Todos eles estão
prósperos. Quanto a mim, desperdiço o que resta do meu talento em
bugigangas, porque as minhas mãos já não são firmes.
— Eu vi aquela árvore — disse Brandon. — Julguei que as árvores só
cresciam na Terra.
— Nem mesmo lá — disse Peterson. — Lá já não cresce nada. Porém,
os Petersons cultivaram sempre árvores porque os entalhadores precisam de
madeira. Durante muito tempo o cultivo de árvores foi um segredo de
família. Quando se derrubava uma árvore havia sempre um novo rebento
pronto para ser plantado. Mas agora isso acabou-se. Não planto novas árvores
porque não viverei o tempo suficiente para as utilizar. A que viu é a última.
Quando eu a tiver utilizado deixará de haver entalhadores em Beloman. Mas
você não veio de tão longe para ouvir os lamentos de um velho.
— Aquela árvore pode ser a última de toda a galáxia — disse Brandon.
O velho suspirou.
— Talvez seja. É cultivada com produtos químicos, o que é um
processo doloroso e laborioso. Revelei o segredo voluntariamente a outros,
mas ninguém se quer incomodar. E para que haveria alguém de se entregar a
um trabalho destes se já não há entalhadores para utilizar a madeira?
Brandon tirou a caixa das mãos de Parker, abriu-a e colocou-a nos
joelhos do velho.
— É por causa disto que aqui estou — disse.
As mãos brancas e sulcadas de grossas veias do velho pegaram no
violino, levaram-no junto à luz e viraram-no repetidas vezes.
— Lindo — sussurrou Peterson com os olhos a brilhar de excitação.
— Lindo! Que é?
— Um violino — respondeu Brandon. — Um instrumento musical.
— Ah! Eles eram verdadeiros artistas naquele tempo. E também eram
músicos autênticos!
Olhou para Brandon e disse:
— Agradeço-lhe o ter-me mostrado isto. É-me difícil viajar, mas acho
que deveria ter ido lá tão longe só para o ver. Lindo!
— Quero que você mo arranje — disse Brandon.
O sorriso desvaneceu-se. Peterson olhou de soslaio para o buraco,
passou os dedos por ele com a perícia do entendido e disse:
— Porquê?
— Porquê? — Repetiu Brandon olhando para ele com espanto. —
Porque está estragado. Olhe, temos aqui uma fotografia que mostra como era
ele novo. Quero aprender a tocá-lo.
Peterson abanou a cabeça lentamente. Com uma carícia final, recolocou
o instrumento na caixa.
— Não. Peço desculpa mas... Não.
— Mas porquê? A madeira é a sua profissão, não é?
— O meu avô tinha um instrumento musical — disse Peterson. — Era
uma flauta. Por vezes ia tocá-la para os campos. Os animais vinham ouvi-lo.
Eu próprio os vi. Ele tocava músicas maravilhosas. Até que um dia morreu, a
flauta passou para mim e eu tentei tocá-la. Fiz alguns sons, mas era incapaz
de extrair música dela. A música morreu com o músico.
— Que é que aconteceu à flauta? — Perguntou Brandon, com a visão
súbita de uma coleção inteira de instrumentos musicais raros e de valor
incalculável.
— Enterrei-a. Era um instrumento velho, muito velho... Como este
violino. O segredo de fazer música com ela passou de dono para dono até que
o meu avô foi incapaz de descobrir alguém que quisesse aprender. Quando
ele morreu, a sua música morreu também. A música ca deste violino está
igualmente morta. — Deu umas suaves pancadinhas na caixa e disse: —
Enterre-o.
— Disparate! É um belo instrumento. Você mesmo o disse. Que mal
pode haver em mandá-lo arranjar, mesmo que ninguém saiba tocar nele?
— Seria capaz de pedir a um médico que curasse um morto? Não. Ele
poderia pôr-lhe pensos, mas não curá-lo. Quanto a mim, teria todo o prazer
em curar o seu violino se também fosse capaz de o fazer falar de novo. Como
não sou capaz de o curar, também não o remendarei. Enterre-o.
— Eu pago bem — disse Brandon. — Você tem a madeira e tem
também a habilidade. É coisa que não demora muito tempo...
— Demora tempo de mais — disse ele com voz roufenha. — Demora
uma eternidade e, mesmo assim, não saberia curá-lo. Mas eu não deveria ter a
veleidade de que me compreendesse. A música... A música antiga... Não era
como a música que hoje temos. Hoje temos máquinas musicais sem alma. A
música antiga... Eu sei o que ela era, porque ouvi o meu avô tocar.
Deu ao violino um último olhar acariciador e fechou a caixa
cuidadosamente.
— Lamento que tenha vindo tão longe para nada.
— Conhece mais alguém que pudesse arranjá-lo?
Peterson abanou a cabeça.
— Só eu. Em breve morrerei e depois não haverá mais ninguém.
Brandon endireitou os ombros, lançou a cabeça para a frente e disse
com rispidez.
— Creio que não sabe bem quem eu sou. Mesmo neste obscuro
planetazinho...
— Você é um homem com um violino morto e eu não posso ajudá-lo.
Dizendo isto entregou a caixa a Parker, voltou para a sua bancada e
agarrou numa ferramenta.
— Vamos embora — disse Brandon, que não voltou a falar até terem
chegado à cidade de Beloman. Depois refilou:
— Que velho fóssil vaidoso. Hei de mostrar-lhe que não é o único!
No mundo resplandecente e cosmopolita de Partu, Brandon
inspecionou fábricas, assistiu a reuniões da gerência, fez discursos e comprou
madeira. O infatigável Parker ganhou uns pontos atrás dos outros ao
descobrir proprietários das obras talhadas por Thor Peterson ou pelo seu pai,
pelo seu avô ou por Petersons mais remotos. Havia caixas de madeira de
todos os tamanhos, com tampas entalhadas. Havia pequenas figuras de
madeira meticulosamente entalhada. Havia pequenas placas e jogos de pratos
de madeira, bem como terrinas entalhadas. Havia até relógios de madeira que
punham em movimento um cortejo de figuras de madeira do seu lado de fora.
A lista crescia em extensão e variedade. Brandon não tinha dificuldade
em adquirir os artigos mais simples. Coisas daquelas tinham sempre estado à
venda em Partu e os Partusianos naturalmente pensavam que sempre
estariam, Brandon comprava ou aceitava ofertas, guardando para si o
conhecimento do velho inválido e da única árvore sobrevivente.
Os objetos mais elaborados, tais como os relógios, eram muitas vezes
heranças de família, mas Brandon tinha dinheiro, influência e o dom da
persuasão e aplicava-os generosamente ou sem escrúpulos, conforme o caso.
Numa questão de poucos dias era proprietário da maior coleção de objetos de
madeira de toda a galáxia, uma coleção que iria deixar Harry Morrison lívido
de inveja. Sob promessa de uma boa gratificação ao agente de Thor Peterson
em Partu, tinha igualmente disposto as coisas de modo a ser ele o único
adquirente de toda a produção futura do velho.
— Agora podemos regressar a casa — disse ele jovialmente a Parker
— e arranjar este violino.
Passou a coleção a pente fino e consentiu relutantemente em sacrificar
uma pequena caixa de madeira. O técnico da Divisão Polivar encarregou-se
dela, desmontou-a e começou a experimentar, e a aprender a trabalhar com
madeira. Cortou pedaços, aparou-os até ficarem com a espessura pretendida,
deu-lhes forma e colou-os.
Os dias passaram. Brandon refreava a sua impaciência e encorajava o
homem a não se apressar. O que ele queria era que o trabalho saísse perfeito.
Finalmente o técnico declarou-se pronto. Procurou em toda a coleção
de Brandon o pedaço de madeira que correspondesse melhor à delicada
textura do violino. Raspou-o e, fazendo-o, causou a formação de um
montículo de serradura que Brandon contemplou com tristeza e mandou
recolher. Não podia imaginar que utilidade aquilo poderia ter, mas tratava-se
inquestionavelmente de madeira. Com precisão cirúrgica, o técnico alisou o
rebordo rugoso do buraco. Com precisão cirúrgica recortou o remendo e
colou-o no lugar.
Mas ele não colou.
O desapontamento de Brandon foi compensado pela chegada de um
carregamento de entalhes do agente de Peterson em Partu: uma pequena
placa, aquela em que o velho estava a trabalhar quando o visitaram, e um par
de caixas com ornamentos simples, talhados na tampa. Brandon inspecionou
tudo criticamente, mas achou que eram de inferior qualidade. Com uma
pancadinha nas costas, disse ao técnico com satisfação.
— Ele agora é o segundo. Vamos continuar!
O técnico tentou uma segunda vez e ainda uma terceira. Depois, com
engenhosidade e paciência, fixou o remendo com ganchos pelo lado de
dentro do instrumento. Desta vez pegou. Exultante, Brandon mandou chamar
um dos seus químicos e pediu-lhe que reproduzisse no remendo o
acabamento polido do violino. O químico retirou-se azedamente, com os
fragmentos que haviam sobrado do remendo e lançou-se à obra fazendo as
suas experiências. A tarefa desafiava tanto o seu humor que rabujou várias
vezes com Brandon antes de a terminar, mas, por fim, produziu um
acabamento que não se distinguia muito do original.
— Agora, sim! Vamos no bom caminho! — Disse Brandon.
Brandon e o seu técnico estudaram a fotografia do violino e, com a
ajuda do Prof. Weltz, conseguiram identificar o cavalete e as cravelhas que o
técnico torneou. Igualmente identificaram o braço, mas Brandon teve
relutância em sacrificar qualquer objeto que pudesse fornecer uma tão grande
quantidade de madeira. O Prof. Weltz assegurara-lhe que o braço não era de
modo nenhum funcional e que a sua substância não iria afetar o som do
instrumento. E assim concordaram em fazer um de plástico.
O estandarte levantava um problema porque, na fotografia, o braço do
violinista escondia aquela parte do instrumento. O engenhoso técnico
resolveu-o fixando uma pequena barra em volta da qual se enrolaram as
cordas. A substância das cordas constituiu o enigma mais intrigante de todos.
O Prof. Weltz fez um estudo intensivo do significado da palavra «corda» ao
longo dos séculos e recomendou-lhes o uso de um certo tipo de fibra de que
Brandon nunca ouvira falar.
Brandon encomendou a fibra, metros de fibra! O técnico cortou-a aos
pedaços e colocou-a no violino. Brandon estendeu um dedo e tangeu
cuidadosamente uma corda. O violino emitiu um som macio, oco, mas
nitidamente musical.
— Conseguimos! — Exclamou Brandon.
O Prof. Weltz demonstrou a utilização das cravelhas para afinar as
cordas e explicou a Brandon como se podia alterar a altura do som pela
colocação dos dedos ao longo do braço. No espaço de uma semana, Brandon
foi capaz de tocar uma melodia simples, de uma maneira facilmente
reconhecível. Duas semanas depois já tinha adquirido uma meritória
agilidade.
— Ora bem: vamos falar agora desta vareta que o violinista segura na
sua outra mão — disse o Prof. Weltz.
— Deixe lá a vareta — respondeu-lhe Brandon. — Já estou a tocar
música. Que mais se pode esperar de um instrumento musical?
Morrison entrou, apreciou o que viu e partiu melancólico, de ombros
descaídos, depois de ter sido conduzido através da coleção de madeiras de
Brandon. O exultante Brandon passou mais uma semana de crescente júbilo e
recebeu então um segundo carregamento de Partu. Gravada em relevo numa
das seis caixas recebidas havia uma imagem perfeitamente executada de um
violino.
— Diabos levem o homem! — Praguejou Brandon.
Imaginou o velho Thor Peterson vergado sobre a sua bancada e a
produzir de memória este impecável trabalho de talha, enfatuadamente
convencido de ser o único homem no universo capaz de trabalhar com
madeira. Brandon levantou-se de um jacto e pôs-se a andar de um lado para o
outro no seu gabinete. Depois consultou a sua agenda de compromissos.
— Ora eu fui praticamente mendigar àquele homem — resmungou ele
— e a resposta que tive foi que ele não faria o trabalho e que mais ninguém
seria capaz de o fazer!
Decidiu chamar Parker.
— Parker: vamos a Beloman.
O geralmente imperturbável secretário ficou surpreendido.
— Outra vez? — Perguntou ele.
— Trate de tudo — disse Brandon. — Posso partir depois de amanhã.

***

Voaram para o reconfortante calor da luz resplandecente, deixando para


trás um dia de chuva na encharcada cidade de Beloman. Com um Brandon
agitado e observando impacientemente o solo em busca de pontos de
referência, passaram sobre o rio caudaloso e desceram lentamente no círculo
de edifícios agrícolas. Brandon saltou para fora do carro aéreo e foi seguido
por Parker, que transportava cuidadosamente o violino.
— Já cá não está a árvore — disse Parker.
— Ele disse-nos que estava para a utilizar — respondeu Brandon.
Dirigiram-se diretamente para a oficina, e Brandon acabara de pôr a
mão na porta quando um grito de chamamento o fez parar. A jovem mulher
que eles haviam conhecido aquando da primeira visita corria para eles.
— Que é que queriam? — Perguntou.
— Gostávamos de falar com o Sr. Peterson — disse Brandon.
— Lamento, mas o pai morreu. Morreu já há um mês.
Brandon ficou a olhar para ela atordoado.
— Lamento — repetiu a mulher.
— Também eu lamento — disse Brandon.
Lentamente, voltaram para o carro aéreo. E lentamente se afastaram
pelo ar.
Brandon tocou no braço de Parker, dizendo:
— Vamos pousar em qualquer parte. Quero pensar tranquilamente.
Parker aterrou num prado ondulante junto a um baixio do rio. Levando
consigo a caixa do violino, Brandon afastou-se e sentou-se num local de onde
pudesse ver lá em baixo a água saltitante e borbulhante. A face de Thor
Peterson aparecia defronte dele com uma perfeita nitidez, com o seu cabelo
branco, as suas rugas profundas e aqueles olhos encovados e tristemente
pensativos.
«A música deste violino está morta.»
Brandon abriu a caixa e puxou uma corda. Ploque.
«O meu avô tinha um instrumento musical. Era uma flauta. Por vezes
ia tocá-la para os campos. Os animais vinham ouvi-lo.»
Ploque.
«A música morreu com o músico.»
Dentro do violino, o rótulo desvanecido: «Jacob Raymann, da Casa
Bell, Southmark, Londres, 1688.» Quase há mil anos! Séculos de som
majestoso e emocionante. Ploque.
Por efeito de uma percepção súbita e intuitiva, Brandon começou a
ouvir música: ouviu um lamento lancinante e soluçante, como se um fio de
melodia enfeitiçadora estivesse a ser fiado não se sabia onde, com uma
límpida e cativante doçura; ouviu um amontoado incompreensível de notas,
um movimento tonal de relampejante rapidez, um florete expressivo,
dardejante, mortal e veemente de sons cintilantes.
E viu uma audiência, uma audiência de milhares, arrebatada e vibrante
de emoção.
Ploque.
Brandon inclinou-se para o rio e deixou cair o violino. Ficou
hipnotizado a olhá-lo enquanto ele caía, rodopiando. De ali perto, Parker
gritou horrorizado, mas Brandon ignorou-o. O violino atingiu o rio com um
chapinhar débil e, para seu espanto, ficou a flutuar. Durante um breve
momento saltitou levemente sobre a água agitada. Depois mergulhou numa
pequena cascata, embateu numa rocha e ainda noutra e desapareceu por entre
uma poalha de água e uma chuva de estilhaços de madeira.
Brandon voltou-se e afastou-se. De novo lhe pareceu ouvir música, mas
desta vez não era mais que o murmúrio abafado do rio lá em baixo e o silvo
de um vento quente à procura da relva seca do prado.
Notes
[←1]
Whitie = Branquinho. (N. do T.)

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