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SÉRIE: FICÇÃO CIENTÍFICA

VOLUME: 94
TÍTULO: OLHOS DE ÂMBAR
TÍTULO EYES OG AMBER
AUTOR: JOAN D. VINGE
TRADUÇÃO: MARIA DE FÁTIMA TOMÁS
ILUSTRAÇÃO DA CAPA:
EDITORA: EUROPA-AMÉRICA
ANO DA PUBLICAÇÃO: 1985

SCANS E TRATAMENTO: ABEL COSTA


aacneto@yahoo.com

FORMATAÇÃO: RÔMULO RANGEL


romulorangel1969@gmail.com

DISPONIBILIZAÇÃO
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bolsilivroclub@gmail.com
JOAN D. VINGE

OLHOS DE ÂMBAR
Tradução de: Maria Teresa Pinto Pereira

F.C. EUROPA AMÉRICA – VOLUME 94


Para Vernor sine qua non
OLHOS DE ÂMBAR
A pedinte arrastava os pés na rua silenciosa do entardecer, atrás da casa
da cidade de Lord Chwiul. Hesitou, lançando um olhar perscrutador às torres
suavemente brilhantes, depois agarrou o braço do guarda.
— Queria trocar duas palavras consigo, senhor.
— Não me toques, bruxa velha! — O guarda ergueu a ponta da lança,
indignado.
Um pé destro libertou-se dos andrajos e fê-lo perder o equilíbrio. Este
viu-se estendido ao comprido na água com a ponta da lança apontada à
barriga, guiada por outra série de mãos. Ele abriu a boca, incapaz de falar.
À pedinte atirou um amuleto para cima do seu peito.
— Olha para ele, idiota! Tenho assuntos a tratar com o teu amo.
A pedinte recuou; a ponta da lança cravou-se nele com impaciência.
O guarda contorceu-se na lama e na água, segurando o amuleto perto do
rosto à luz fraca.
— Tu... Tu és a tal? Podes passar.
— É verdade! — Uma gargalhada abafada. — Realmente posso passar...
Por muitas razões, em muitos lugares. A Roda da Mudança leva-nos a todos.
— Ela levantou a lança. — Põe-te em pé, idiota... E não precisas de me
escoltar. Estão à minha espera.
O guarda levantou-se, encharcado e taciturno, e recuou enquanto ela
soltava as membranas das asas das pregas de pano. Ele viu-as cintilar e abrir
quando ela se preparava para saltar sem esforço para a entrada da torre, com
o dobro da altura dele. Esperou até ela desaparecer antes de se atrever a
rogar-lhe pragas.
— Lorde Chwiul?
— T'uupieh, suponho. — Lorde Chwiul inclinou-se para a frente no sofá
de musgos perfumados, perscrutando as sombras do vestíbulo.
— Lady T'uupieh. — T’uupieh avançou para a luz, deixando cair do
rosto o capaz esfarrapado. Sentia um prazer enorme em esconder sinais de
obediência, em apresentar-se diretamente como a nobreza. A ondulação
sensual de uma centena de minúsculas peles miih fizeram que os seus pés
cheios de calosidades sentissem formigueiros. Passado tanto tempo, volta
com demasiada facilidade...
Ela escolheu o sofá do outro lado da mesa baixa de pedra de água,
afastada dele, espreguiçando-se languidamente nos andrajos de pedinte.
Estendeu uma unha do dedo e apanhou uma baga sumarenta de kelet da taça
pousada na superfície cinzelada da mesa. Deixou-a deslizar para dentro da
boca e pela garganta abaixo, como fizera tantas vezes, há tanto tempo atrás. E
depois, finalmente, levantou os olhos para examinar a indignidade dele.
— Atreves-te a vir ter comigo dessa maneira...
Satisfatório. Sim, sim...
— Não vim ter contigo. Tu vieste ter comigo... Procuraste os meus
serviços.
Os olhos dela vaguearam pela sala com uma indiferença afetada, vendo
logo os frescos elaborados que cobriam as paredes de pedra de água mesmo
neste quarto. Especialmente neste quarto? Interrogou-se. Quantos encontros
à meia-noite para intrigas tão diversas se realizaram neste quarto? Chwiul
não era o mais abastado da família nem do clã, e as aparências da opulência e
do poder tinham importância nesta cidade, neste planeta — porque a riqueza
e o poder eram tudo.
— Procurei os serviços de T'uupieh, a Assassina. Fico surpreendido ao
constatar que Lady T’uupieh se atreveu a acompanhá-la até aqui — Chwiul
recuperara a calma. Ela via o bafo dele, e o seu próprio a gelar quando ele
falava.
— Onde vai uma, a outra vai atrás. Somos inseparáveis. Devias saber
isso melhor que ninguém, meu senhor. — Viu o seu braço comprido e claro
estender-se para trespassar várias bagas com uma lança, de uma só vez.
Apesar de as noites estarem frias, ele usava apenas uma túnica que lhe
cobria o corpo e lhe permitia mostrar as incrustações intrincadas de joias que
dançavam e se moviam em espiral nas superfícies das asas.
Ele sorriu. Ela viu as presas afiadas a projetarem-se ligeiramente para
fora.
— Porque o meu irmão transformou uma na outra quando se apoderou
das tuas terras? Estou admirado com a tua vinda! Como sabias que podias
confiar em mim? — Os seus movimentos eram desgraciosos. Lembrou-se do
modo como as joias arrastavam membranas de asas frágeis e translúcidas e
braços esguios, até que o voo se tornava impossível. Como todos os nobres.
Chwiul estava normalmente rodeado de criados que respondiam a todos os
seus caprichos. Incompetência, fingida ou real, era mais um aparato do poder,
mais uma indulgência e que só os ricos se podiam dar ao luxo. Estava
satisfeita por as joias não serem de grande qualidade.
— Não confio em ti — disse ela. — Só confio em mim. Mas tenho
amigos que me disseram que foste bastante sincero... Neste caso. E, claro,
não vim sozinha.
— Os teus foragidos? — Incredulidade. — Isso não seria uma
salvaguarda.
Pegando na bolsa de farrapos, separou calmamente as pregas de tecido
que ocultava o seu companheiro.
— É verdade — disse Chwiul com uma voz trinada. — Chamam-te a
Consorte do Demónio...
Ela afastou os olhos âmbar do precioso olho do demónio e fixou o seu
olhar em Chwiul. Ele recuou um pouco, tocando no musgo com os dedos.
— Um demónio tem mil olhos e milhares e milhares de tormentos para
aqueles que o ofendem. — Fez uma citação do Livro de Ngoss, cujos rituais
usara para o prender a ela.
Chwiul espreguiçou-se nervosamente, como se quisesse voar. Mas
limitou-se a dizer:
— Então parece que nos entendemos. Acho que fiz uma boa escolha. Sei
como serviste bem o Overlord e outros membros da corte... Quero que mates
alguém por mim.
— Evidentemente.
— Quero que mates Klovhiri.
T’uupieh começou a falar muito delicadamente.
— Por outro lado surpreendes-me, Lorde Chwiul. O teu próprio irmão?
E o usurpador das minhas terras. Como sofri para o matar lentamente, tão
lentamente, com as minhas próprias mãos... Mas ele está sempre tão bem
protegido.
— E a tua irmã, também... Minha senhora. — Laivos de escárnio. —
Quero a família inteira eliminada: a mulher, os filhos...
Klovhiri... E Ahtseet. Ahtseet, a sua irmã mais nova, que fora a sua
companheira mais íntima desde a infância, a sua única família desde a morte
dos pais. Ahtseet, a quem ela adorara e protegera; a querida, condescendente
e falsa Ahtseet, que era capaz de pôr de parte o orgulho, a decência e a honra
da família para se unir voluntariamente ao homem que lhes roubara tudo.
«Seja o que for para conservar as terras da família», gritara Ahtseet. Tudo
para manter a sua posição. Mas não daquela maneira! Rendendo-se, não, mas
respondendo à agressão. T’uupieh percebeu que Chwiul estava a observar a
sua reação com um interesse incomodativo. Passou com os dedos no punhal
preso no cinto.
— Porquê? — Ela soltou uma gargalhada, querendo perguntar:
«Como?»
— Devia ser óbvio. Estou cansado de ficar em segundo plano. Quero
aquilo que ele possui... As tuas terras e o resto. Quero-o afastado do meu
caminho, e não quero que mais ninguém fique vivo que tenha mais direito à
sua herança que eu.
— Por que razão não o fazes tu? Envenená-los, talvez... Já se fez isso.
— Não. Klovhiri tem demasiados amigos, demasiados homens leais
dentro da tribo, demasiada influência junto do Overlord. Tem de ser um
assassínio «acidental». E ninguém está em melhor posição para o fazer por
mim que tu, minha senhora.
T’uupieh acenou vagamente com a cabeça, ponderando. Ninguém podia
ser tão bem escolhido para que um desejo se tomasse realidade... E também
numa posição em que pudesse atacar. O que lhe faltara até àquele momento
fora a oportunidade. Desde o tempo em que fora despojada, durante o
Outono, quando os dias se tomavam mais pequenos, e o interminável Inverno
— há já quase um terço da sua existência —, ela não abandonara o pântano
deserto e as terras pantanosas do seu estado. Reunira alguns criados fiéis,
alguns descontentes, alguns assassinos para torturar e matar os servidores de
Klovhiri, arruinar as suas redes, roubar as suas armadilhas e caçar
ilegalmente nas suas próprias terras. E, para sobreviver, caíra no hábito de
roubar todos os viajantes que usassem os caminhos que atravessavam a sua
propriedade.
Porque ela não deixara de pertencer à nobreza, ao princípio o Overlord
tolerara e depois encorajara secretamente os seus atos de banditismo. Muitos
forasteiros abastados passavam pelos caminhos que atravessavam o seu
estado e, em troca de uma determinada comissão, ele deixava-a atacá-los com
impunidade. Era uma oferta propiciatória, ela sabia, que lhe era dirigida,
porque ele deixara que o seu favorito, Klovhiri, se apossasse das terras dela.
Mas serviu-se disso para poder granjear a sua simpatia e, passado algum
tempo, o Overlord começara a dar-lhe um trabalho mais discreto e lucrativo
— a eliminação de certos inimigos. E assim se tomara também numa
assassina — e constatou que essa ocupação não diferia muito da de um nobre:
ambas requeriam coragem, astúcia e uma falta total de compunção. E, porque
ela era T’uupieh, saíra-se admiravelmente bem. Mas, devido à sua vingança,
as recompensas tinham sido insignificantes... Até àquele momento.
— Não respondes — dizia Chwiul. — Isso quer dizer que te falta a
coragem para matares crianças, quando isso não acontece comigo?
Ela soltou uma gargalhada rouca.
— O que dizes prova duplamente que a tua é mais fraca que a minha...
Não, não me falta a coragem. Efetivamente, o sangue arde de prazer. Mas não
tinha pensado em colocar Klovhiri debaixo do gelo para dar as minhas terras
ao irmão dele. Por que razão te devo fazer esse favor?
— Evidentemente porque não o podes fazer sozinha. Klovhiri não te
conseguiu mandar matar durante todo o tempo em que o atormentaste, o que
é uma prova da tua habilidade. Mas tomaste-o prudente de mais. Não te
podes aproximar dele enquanto estiver tão bem protegido. Precisas da ajuda
de alguém da sua confiança, alguém como eu. Posso fazer que ele seja teu.
— E qual será a minha recompensa se eu aceitar? A vingança é
cativante, mas a vingança só não chega.
— Pagarei o que pedires.
— A minha posição. — Ela sorriu.
— Nem mesmo tu és tão ingénua.
— Não. — Ela estendeu uma asa para o vazio no ar. — Não sou tão
ingénua. Conheço o seu valor... — A recordação de um dia de Verão, cheio
de nuvens douradas, apossou-se dela: planar, planar nas correntes de ar
ascendentes, quentes, por cima do lago fumegante, vendo o vermelho-rosado,
pálido, das torres da casa senhorial, que projetavam luz ao longe sobre a
ondulação das árvores sacudidas pelo vento... As lagoas de amónia cor de
açafrão, carmesim e verde-azuladas, brilhantes com os metais dissolvidos,
que existiam na superfície derretida da terra da sua família, a terra que se
estendia até perder de vista, como o Verão... — Eu conheço o seu valor. — A
voz tomou-se mais dura. — E sei que Klovhiri continua a ser o animal de
estimação do Overlord. Como tu dizes, Klovhiri tem muitos amigos
poderosos e eles passarão a ser teus amigos quando ele morrer. Preciso de
mais poder, mais riqueza antes de ter possibilidade de comprar influência
suficiente para reaver o que me pertence. Estou em desvantagem neste
momento.
— És feita de gelo, T'uupieh. Gosto disso. — Chwiul inclinou-se para a
frente. Os seus olhos vermelhos, amorfos, percorreram o seu corpo estendido,
tentando adivinhar, à luz fraca da fosforescência do quarto, o que estava
escondido sob os farrapos. Os olhos fixaram-se de novo no rosto dela.
Ela não lhe mostrou nem enfado nem contentamento.
— Não aprecio homens que gostam disso em mim.
—; Nem mesmo que isso signifique recuperar a tua posição?
— Como tua companheira? — A sua voz produziu um estalido como o
de um ramo gelado. — Meu senhor, acabo de decidir matar a minha irmã por
esse mesmo motivo. Matar-me-ia dentro de pouco tempo.
Ele encolheu os ombros, reclinando-se no sofá.
— Como queiras. — Acenou com uma mão para a mandar sair. — Então
o que será preciso para me livrar do meu irmão... E de ti, também?
— Ah! — Ela acenou com a cabeça, compreendendo melhor. — Queres
comprar os meus serviços e livrares-te de mim, pagando-me também. Isso
talvez não seja assim tão fácil de fazer. Mas... Mas fingirei, por agora. Com a
lança, tirou bagas da taça e espetou-as no topo da mesa, ficando a observar o
lençol acetinado da água de amónia, cor de esmeralda, que cobria uma
parede. Este caía das alturas no interior da torre para dentro de uma piscina
minúscula, com uma música que abafaria as palavras se alguém tentasse
escutar do lado de fora. Discrição e beleza!
A fragrância almiscarada do sofá musgoso fez-lhe lembrar a infância,
subitamente, desconcertantemente: a recordação de jazer numa cama fofa,
numa noite calma de Primavera... — Mas como as estações mudam, a
mudança leva-me em direções novas. De volta à cidade, talvez. Gosto da tua
torre, Lorde Chwiul. Ela reúne discrição e beleza.
— Obrigado.
— Dá-ma e farei o que me pedes.
Chwiul sentou-se, franzindo as sobrancelhas.
— A minha casa da cidade! — Recompondo-se: — É só isso que
queres?
Ela abriu os dedos, examinou as tiras de tecido vestigial no meio deles.
— Compreendo que é um desejo bastante modesto. — Fechou a mão. —
Mas, tendo em conta a satisfação que advirá de a ganhar, é o suficiente. E não
precisarás dela se eu for bem-sucedida.
— Não... — Ele descontraiu-se um pouco. — Creio que não. Quase não
sentirei a sua falta, depois de possuir a tuas terras.
Ela fez que não ouviu.
Então estamos de acordo. Agora diz-me onde está a chave da fechadura
e Klovhiri? Qual é o teu plano para o lançares, e à sua família, nas minhas
mãos?
— Sabes que a tua irmã e os filhos vêm aqui hoje à noite? E que
Klovhiri regressará antes do novo dia?
— Sei. — Acenou com a cabeça com mais indiferença do que sentia,
vendo que Chwiul estava bem impressionado, ainda que não o manifestasse,
com a coragem dela em ir lá. Desembainhou o punhal perto do olho de âmbar
do demónio e bateu com a lâmina de madeira serrilhada impregnada de pedra
de água. — Queres que eu lhes corte as gargantas enquanto estão a dormir
sob o teu teto? Conseguiu imprimir à voz um tom de incredulidade.
— Não! — Chwiul franziu novamente as sobrancelhas. — Que espécie
de louco é que tu... Calou-se. — Com o novo dia, regressarão à herdade pelo
caminho habitual. Prometi escoltá-los para garantir a sua segurança durante a
viagem. Haverá também um guia para nos conduzir através dos pântanos.
Mas o guia cometerá um erro...
— E eu estarei à espera. — Os olhos de T’uupieh tomaram-se mais
brilhantes. No Inverno as pessoas abastadas usavam trenós quando faziam
viagens longas, preferindo ser carregados sobre o gelo em barcos
membranosos ou puxados por escravos onde a superfície do solo era áspera e
irregular. Mas, quando chegava a Primavera e a superfície do solo começava
a liquefazer-se, abriam-se fossas e lagos traiçoeiros como flores para
engolirem os incautos. Somente um guia experiente era capaz de distinguir as
superfícies, a pedra de água sólida da água de amónia instável. — Ótimo —
disse ela suavemente. — Sim, muito bem... O teu guia fará que se afundem
nalgum buraco no lodo, e depois faço-os cair numa cilada como phibs.
— Exatamente. Mas quero estar presente quando o fizeres, quero
presenciar. Arranjarei uma desculpa qualquer para abandonar o grupo e para
me encontrar contido no pântano. O guia só os levará pelo caminho errado se
ouvir o meu sinal.
— Como queiras. Pagaste bem pelo privilégio. Mas vai sozinho. Os
meus sequazes não precisam de auxílio nem de interferência. — Sentou-se,
colocou os pés compridos, providos de membranas, uma vez mais em posição
de descanso sobre as peles sensuais do tapete.
— E se pensas que sou louco e te dou armas contra mim mesmo, pensa
nisto: tu serás o primeiro suspeito, quando Klovhiri for assassinado. Serei a
única testemunha que pode jurar ao Overlord que os teus foragidos não eram
os atacantes. Não te esqueças disto.
Ela acenou com a cabeça.
— Não me esquecerei.
— Então como é que te encontrarei?
— Não me encontrarás. Serão os meus mil olhos que te encontrarão. —
Ela envolveu de novo o olho do demónio na bolsa de farrapos.
Chwiul parecia um pouco desconcertado.
— Ele tomará parte no assalto?
— Talvez sim ou talvez não, como ele decidir. Os demónios não estão
ligados à Roda da Mudança, como tu e eu. Mas de certeza que tu o irás
encontrar frente a frente, embora ele não tenha rosto, se vieres. — Ela passou
os dedos pela bolsa presa na ilharga. — Sim, não te esqueças que eu também
tenho as minhas salvaguardas neste acordo. Um demónio nunca se esquece.
— Levantou-se, finalmente, lançando um olhar pelo quarto. — Ficarei bem
aqui. — Olhou de relance para Chwiul. — Procurar-te-ei, quando o novo dia
chegar.
— Que chegue o novo dia. — Ele ergueu-se, as asas cobertas de joias
captaram a luz.
— Não precisas de me acompanhar. Serei discreta. — Fez uma vénia
como se fosse da sua igualha e encaminhou-se para o vestíbulo sombrio. —
Livrar-me-ei para sempre do teu guarda. Não sabe distinguir uma dama de
uma pedinte.
***
— A Roda rodopia uma vez mais por mim, pelo meu demónio. A vida
nos pântanos acabará com a vida de Klovhiri. Mudar-me-ei para a casa da
cidade... E voltarei a ser a suserana do meu feudo, quando os peixes
pousarem nas árvores!
O rosto estranho de T’uupieh brilhou com uma alegria malévola quando
se afastou no écran por cima do terminal do computador. Shannon Wyler
reclinou-se na cadeira, acabou de dactilografar a tradução e desligou o
aparelho principal. Alisou o cabelo loiro e comprido, o gesto habitual que o
ajudava a orientar-se de novo no seu meio. Quando T’uupieh falava nunca
conseguia manter a objetividade de que necessitava para o ajudar a recordar
que ainda estava na Terra e não em Titan, que se movia em tomo de Saturno,
a alguns biliões e meio de quilómetros de distância. T' uupieh, sempre que
penso que te amo, decides cortar a garganta a alguém...
Ele acenou com a cabeça com um ar vago aos sussurros de felicitações
do pessoal e dos técnicos, que se agarravam a todas as suas palavras à espera
de novidades. Começaram a sair de detrás dele quando o computador
reproduziu cópias da transcrição dactilografada. Custava a crer que ele fazia
isto há cerca de um ano. Levantou os olhos para os cartazes dos seus
concertos pendurados na parede, com nostalgia mas sem mágoa.
Alguém estava a telefonar a Marcus Reed. Suspirou, resignado.
— Quando os peixes pousarem nas árvores? Estás a ser irónico?
Olhou por cima do ombro para o corpo enorme da Dra. Garda Bach.
— Olá, Garda. Não a ouvi entrar.
Ela desviou o olhar de uma cópia da tradução, deu-lhe uma pancadinha
no ombro com a bengala bifurcada.
— Eu sei, rapaz. Tu nunca ouves nada quando T’uupieh fala... Mas que
é que pretendes com isto?
— É Verão em Titan... Quando os triphibians se metamorfoseiam pela
terceira vez. Portanto ela talvez queira dizer daqui a cinco anos, a nossa era.
— Ah! Claro. O velho cérebro não é o que... — Ela abanou a cabeça
grisalha, a capa preta rodopiou melodramaticamente.
Ele sorriu ironicamente, sabendo que ela não falava a sério.
— Talvez aprender a língua de Titan para além de cinquenta outras
línguas seja a última gota que faz transbordar o copo.
— Ja, ja, talvez seja... — Deixou-se cair pesadamente na cadeira ao
lado, já absorta na transcrição dactilografada. — «Nunca esperei», pensou
ele, «gostar tanto das costas largas daquela mulher idosa.» Apercebera-se da
sua presença enquanto estudava linguística em Berkeley — era a grande
dame dos estudos linguísticos, remontando ao tempo em que ainda não havia
línguas registadas aqui na Terra. Mas a sua habilidade para conseguir ter o
nome em publicações e o rosto na televisão, como perita naquilo que toda a
gente «queria dizer» convencera-o de que o seu verdadeiro talento residia em
negociar. Acabando por a conhecer pessoalmente, não mudara a sua opinião
sobre isto, mas convencera-o para sempre de que ela era uma conhecedora da
linguística cultural. E isso, por seu turno, convencera-o de que o seu sotaque
era uma fraude total. Mas, apesar da ostentação, ou talvez por causa dela,
verificou que os seus pontos de vista, já arcaicos, sobre a linguística, estavam
muito mais próximos das suas próprias noções sobre comunicação que os
pontos de vista dos pais.
Garda suspirou.
— Extraordinário, Shannon! És simplesmente extraordinário. O teu tato
para com uma língua completamente desconhecida surpreende-me. Que é que
teríamos feito se não tivesses vindo para junto de nós?
— Teriam passado sem mim, suponho. — Saboreou o prazer especial
que advinha do facto de ser admirado por uma pessoa que respeitava. Olhou
de novo para a consola do computador, para os dois pratos que brilhavam
com uma luz verde, feitos de plástico com trinta centímetros num dos lados,
que, em conjunto, lhe davam a versatilidade de um violinista virtuoso e de
um dactilógrafo com cem mil teclas — o seu elo de união a T'uupieh, a sua
voz: o novo sintetizador IBM cujos pratos de controlo, sensíveis ao tato,
podiam ser manipulados para recriar as complexidades impossíveis da língua
dela. Uma oferta de Deus ao mundo da linguística... Só que exigia a
sensibilidade e inspiração de um músico para se tirar o melhor partido dela.
Levantou outra vez os olhos e olhou para a janela, para a já familiar
linha do horizonte de Coos Bay, envolta em nevoeiro. Uma vez que muito
poucos linguistas eram músicos, a sua resistência ao sintetizador tinha sido
como uma parede de tijolo. A velha guarda da não menos velha New Wave
— que incluía o seu pai, o professor e a sua mãe, a engenheira de
Comunicações — ainda continuava agarrada a uma crença vã na tradução
matemática através do computador. Ainda lutava com programas difíceis,
sobrecarregados por listas infindáveis de morfemas, que, por suposição, um
dia dariam origem a uma mensagem numa língua dada. Mas mesmo após
anos de aperfeiçoamento, as traduções criadas por computadores eram ainda
imperfeitas e pouco consistentes.
Na Universidade não havia línguas novas para pesquisar e ele não tinha
autorização para utilizar o sintetizador para explorar as antigas. E assim —
depois de uma discussão familiar acesa, a derradeira — abandonou a
Universidade. Levara a sua crença no sintetizador para o mundo da sua
segunda paixão, a música; um campo, assim ele esperava, onde a verdadeira
comunicação ainda tinha algum valor. Agora, aos 24 anos, ele era Shann, o
Músico, o músico dos músicos e o herói para uma geração imensa de
admiradores, que envelheciam, e um admirador novo que herdara a sua
paixão pela música, sempre em mutação, denominada rock. E nem o pai nem
a mãe falaram com ele de bom grado durante anos.
— Sem falsa modéstia — Garda estava a queixar-se. — Que poderíamos
ter feito sem ti? Tu mesmo te queixaste bastante dos métodos da tua mãe.
Sabes que não teríamos um décimo da informação sobre Titan, que
obtivemos por intermédio de T’uupieh, se ela tivesse continuado a usar
aquela maldita tradução do computador.
Shannon franziu um pouco as sobrancelhas, aguilhoado por uma culpa
secreta.
— Olhe, sei que disse algumas mentiras... E a maior parte
intencionalmente... Mas nunca me teria afastado se ela não tivesse feito a
análise preliminar mesmo antes de eu vir. — A sua mãe já tinha feito parte do
pessoal da missão, tendo trabalhado durante anos na NASA, nas esotéricas da
comunicação por computador com satélites e sondas espaciais, e por causa
dos seus conhecimentos de linguística tinha sido escolhida para chefiar o
grupo de especialistas, em comunicação, recentemente formado por Marcus
Reed, o diretor do projeto Titan. Estivera encarregada da análise fónica
inicial: utilizando o computador para concentrar a extensão da voz
desconhecida, tornando-a audível aos humanos, decompondo depois os sons
complexos em fonemas humanos mais numerosos e mais simples,
identificara fonemas, separara morfemas, ajustara-os num esquema
gramatical e atribuíra-lhes equivalentes sonoros, ingleses. Shannon vira-a nas
primeiras entrevistas na TV, com um ar infeliz e constrangido enquanto Reed
recebia a imprensa arrebatada. Mas o que a Dra. Wyler, engenheira de
Comunicação, tinha para dizer, finalmente, mantivera-o na beira da cadeira.
Incapaz de resistir, apanhara logo o avião para Coos Bay.
— Então, não quis ofender — disse Garda. — A tua mãe é sem dúvida
uma engenheira experiente. Mas precisa de um pouco mais de...
Flexibilidade.
— Está a dizer-me isso a mim. — Abanou pesarosamente a cabeça.
Ela ainda iria adorar ver rolar o sintetizador pelo chão. Sente-se
deslocada desde que cheguei aqui. Pelo menos Reed aprecia o meu «valor».
— Reed dera-lhe as boas-vindas como a um filho há muito perdido, quando
ele chegara pela primeira vez ao Instituto. Não era um linguista proficiente e
um músico inspirado, não tinha algum tempo no intervalo das digressões, não
gostaria de prolongar a sua visita para apreciar o trabalho da mãe? Ele
concordara com modéstia, com os três e depois as câmaras da televisão e os
repórteres tinham-se levantado de repente, como se lhes tivessem feito sinal,
e ele compreendeu que estava ali para registar a visita de Shann, o Músico, e
não do filho da Dra. Wyler.
Mas conseguira a sua primeira sessão com uma voz de um outro mundo.
E com uma audição transformara-se num viciado... Porque a sua linguagem
era música. Cada fonema era formado por dois ou três sons sobrepostos, e
cada morfema era uma mistura de fonemas, que fluíam como a água.
Falavam com acordes, e o resultado era um coro, sinos de cristal a repicar, o
esmigalhar de lustres de vidro.
E, por isso, deixara-se ficar, ao princípio capaz apenas de observar a mãe
e os seus assistentes com uma frustração torturante. Os métodos da mãe na
análise computadorizada resultaram na transcrição fonética inicial das
palavras de T'uupieh, e tinham aprendido o suficiente em pouco tempo para
enviarem respostas imperfeitas, servindo-se do aparelho de localização do
eco da sonda para evitar que T'uupieh se afastasse. Mas captar num teclado e
esperar mesmo a programação mais sofisticada para a transformar noutra
língua continuaria a não surtir efeito mesmo com línguas humanas
conhecidas. E ele sabia, quase com um fervor religioso, que o sintetizador
tinha sido projetado para este milagre da comunicação, e que só ele o podia
utilizar para captar diretamente as tonalidades e subtilezas que a tradução
através da máquina não seria capaz de fornecer. Tentara abordar a mãe a fim
de o deixar usá-lo, mas ela recusara terminantemente: «É um centro de
pesquisa, não um estúdio de gravação.»
E, então, passara-se para o lado de Reed, que ficara encantado. E,
quando sentiu finalmente as mãos a passarem por cima dos pratos de luz,
quentes e que faziam formigueiro, recriando por tentativas a linguagem do
outro planeta, tomara consciência de que estivera sempre com a razão.
Abandonara os seus compromissos musicais, sem mágoa, quase com alívio,
quando passou de novo para o campo que estivera sempre em primeiro lugar.
Shannon examinou a projeção em que T'uupieh se encostara de novo ao
lado da sonda, que se curvava, com familiaridade e à-vontade, obscurecendo
parcialmente a vista do acampamento. Felizmente, tanto ela como os seus
sequazes tratavam a sonda com um cuidado obsessivo, mesmo quando a
arrastavam de um lado para o outro, porque mudavam constantemente o
acampamento. Perguntou a si mesmo o que teria acontecido se eles tivessem
acionado o sistema automático de defesa, inadvertidamente, que tinha sido
projetado para a proteger de animais agressivos; provocava um choque
elétrico que, apesar de poder causar apenas dor, podia ser fatal. E interrogou-
se sobre o que teria acontecido se a sonda e os seus «olhos» não se
ajustassem perfeitamente às crenças de T’uupieh sobre demónios. A ideia de
que nunca a podia ter conhecido nem ouvido a sua voz...
Já passara mais de um ano desde que ele e o resto do planeta tinham
ouvido as notícias extraordinárias de que existia vida inteligente na lua maior
de Saturno. Ele não se recordava dos dois primeiros voos rápidos por Titan,
nos anos de 79 e 81 — embora se recordasse perfeitamente do satélite 1990,
que captara imagens breves da superfície por entre as faixas de nuvens
opacas e douradas de Titan. Mas a série de minisondas, que deixara cair,
tinham provado que Titan beneficiava do mesmo «efeito de estufa» que
tomava Vénus num inferno em ebulição. E, apesar de as temperaturas
próprias das estações do ano nunca subirem acima dos 200° Kelvin, as
poucas fotografias tinham revelado, incontestavelmente, que lá existia vida.
A descoberta de vida, depois de tantos desapontamentos no resto do sistema
solar, fora o bastante para se dar início a outra missão de sondagem,
destinada a enviar dados da superfície de Titan.
Aquela sonda descobrira uma forma de vida com inteligência humana,
ou melhor, a forma de vida descobrira a sonda. E a descoberta de T'uupieh
transformara uma missão potencialmente fracassada num sucesso: a sonda
fora projetada com uma unidade principal, imóvel e que reproduzia dados e
com dez «olhos» ou unidades acessórias, que se deviam espalhar na
superfície de Titan para retransmitir informações. O lançamento de sondas
suplementares durante a aterragem falhara, contudo, e todos os «olhos»
tinham descido num raio de alguns quilómetros quadrados ao poisarem no
pântano deserto. Mas o fascínio de T'uupieh e a vontade de aplacar o seu
«demónio» compensara tudo...
Shannon levantou de novo os olhos para o écran, espalmado na parede,
para o rosto incrível, inumano, de T’uupieh — um rosto que lhe era tão
familiar como o seu no espelho. Ela esperava com a sua paciência ilimitada
por uma resposta do seu «demónio»: esperava há cerca de uma hora quando a
transmissão chegou até ele através do abismo entre os seus planetas, e teria
de esperar uma vez mais outro tanto tempo enquanto eles procuravam
encontrar uma resposta e ele criava a nova tradução. Agora passava mais
tempo com a sonda que com a sua gente. A solidão do comando. Ele sorriu.
O perfil quase chato do seu rosto branco como a Lua virou-se ligeiramente
para ele — para as lentes da câmara. A sua boca delicada sorriu suavemente,
sem mostrar completamente os dentes compridos e afiados. Ele conseguiu ver
um olho vermelho, sem pupila, e a abertura do nariz em forma de crescente
que quase o circundava; o bafo glacial do cianido refletia uma luz branco-
azulada, iluminada pelas auréolas fantasmais do Fogo-de-Santelmo, que
rodeavam a sonda nas oito noites intermináveis de Titan. Podia ver bolas de
fogo pendentes como lanternas japonesas no emaranhado de ramos presos
pelo gelo num bosque distante.
Era inacreditável... Ou perfeitamente lógico, dependendo do especialista
em biologia que estava a falar... Que a vida em Titan, tendo como base o
azoto e amoníaco, possuísse tantas analogias com a vida na Terra, com base
no oxigénio e na água. Mas T’uupieh não era humana, e a música das suas
palavras traziam-lhe, continuamente, mensagens que metiam a ridículo todos
os ideais que ele tentava guardar sobre ela e a sua relação. Até ao ano transato
tinha assassinado onze pessoas, e com o auxílio dos seus foragidos, matara
sabe Deus quantas mais para as roubar. O único motivo por que ela
cooperava com a sonda, como foi afirmado, era porque apenas um demónio
tinha uma reputação mais terrível. Só um demónio lhe podia inspirar respeito.
E, no entanto, do pouco que ela lhes conseguira revelar e contar sobre o
planeta em que vivia, não era nem melhor nem pior que qualquer um —
apenas mais competente. Seria ela uma prisioneira de uma era, de uma
cultura, onde o sangue era uma coisa que devia ser derramada em vez de
repartida? Ou seria qualquer coisa biologicamente inata que lhe permitia
converter a brutalidade em filosofia e a filosofia em brutalidade?
Além de T'uupieh, à volta da fogueira de nitrogénio do acampamento,
alguns dos seus foragidos tinham começado a cantar — as melodias
populares desconhecidas, que, depois de traduzidas, não eram mais que
versos simples, monótonos. Mas, ouvidos na sua forma pura, não traduzida,
reproduziam uma complexidade harmónica: uma linguagem musical numa
forma de canção mais elaborada. Shannon estendeu o braço e pegou de novo
nos auscultadores, abstraindo-se do resto. Em tempos, tivera um sonho em
que tinha conseguido cantar em acordes...
Aproveitando os longos períodos de espera entre as comunicações,
conseguira, há alguns meses, registar um conjunto das músicas desconhecidas
com o auxílio do sintetizador. Eram versões fracas e simples, comparadas
com as originais, porque mesmo naquele momento a sua proficiência com a
língua não se podia igualar à dos cantores, mas tinha um desejo ardente de
fazer que fossem suas. Cantar era uma parte de um ritual religioso, dissera-
lhe T’uupieh. «Mas não cantam por serem religiosos, cantam porque gostam
de cantar.» Uma vez, secretamente, ele tocara-lhe uma das suas composições
humanas no sintetizador e transmitira-a. Ela olhara fixamente para ele (ou
para o olho dourado da sonda) com um silêncio profundo mas tolerante. Ela
nunca cantava, embora tivesse ouvido algumas vezes as suas harmonias
suaves. Perguntava a si mesmo o que diria ela se ele dissesse que as suas
canções marginais já tinham feito que ele ganhasse o seu primeiro Disco de
Platina. Nada, provavelmente. Mas conhecendo-a, se conseguisse clarificar as
ideias, talvez ela concordasse plenamente com a sua exploração.
Ele concordara em doar o lucro do disco à NASA (e, apesar de ter tido
isso sempre em mente, irritara-se por Reed lho ter pedido), com a condição
de que o seu gesto não fosse divulgado. Mas, por qualquer razão, na
conferência de imprensa que se seguiu, um repórter soube precisamente qual
a pergunta que devia formular e Reed deitou tudo a perder. E a sua mãe,
quando interrogada sobre o sacrifício do filho, murmurara: «Saturno está a
transformar-se num círculo com três anéis». E ele ficou sem saber se devia rir
ou praguejar.
Shannon tirou do bolso do cafetã um maço de cigarros amarrotado e
acendeu um. Garda levantou os olhos, a fungar, e abanou a cabeça. Ela não
fumava nem tinha vícios (embora ele desconfiasse que ela andava com
homens), e pregara-lhe um sermão longo e inútil, terminando com. «Bem,
pelo menos não é tabaco.» Ele abanou também a cabeça.
— Então, que pensa das últimas vítimas de T’uupieh? — Garda agitou a
cópia, impedindo-o de continuar a pensar.
— Irá matar a própria irmã?
Ele expirou lentamente à volta das palavras.
— Sintonizem-nos amanhã para o próximo e excitante episódio! Creio
que Reed o irá adorar. E o que eu penso. — Apontou para o jornal no chão,
ao lado da cadeira. — Reparou que saltámos para a página três? — T’uupieh
introduzira alguns artefactos de metal no funil de carga da sonda, uma coisa
que ela dissera ser conhecida apenas pelos «Antigos», e a especulação
científica sobre a existência de uma cultura tecnológica primitiva despertara o
interesse na sonda como assunto de primeira página. Mas nem as notícias
daquela descoberta podiam durar sempre. — Temos de manter estes níveis,
pessoal. Continuem a enviar essas doações e esses donativos.
Garda cacarejou.
— Estás zangado com Reed ou com T’uupieh?
Ele encolheu os ombros, cheio de desalento.
— Com ambos. Não vejo por que razão ela não matará a própria irmã.
— Calou-se quando o barulho abafado dos numerosos projetistas na sala
aumentou subitamente e se concentrou. Marcus Reed entrava, resolvendo os
problemas de todos ao mesmo tempo, como sempre. Shannon ficava
surpreendido com a energia de Reed, mesmo nos momentos em que sentia
uma espécie de repugnância pela forma como ele a dispendia. Reed explorava
tudo e todos com um cinismo fascinante, na luta derradeira pela Ciência e,
vendo-o trabalhar, esgotara todo o respeito e boa vontade que Shannon levara
consigo para o projeto. Sabia que a reação da mãe em relação a Reed era
semelhante à sua, apesar de ela nunca lhe ter falado nisso. Surpreendia-o que
ainda pudesse existir alguma coisa em que estivessem de acordo.
— Dr. Reed...
— Desculpe, Dr. Reed, mas...
A mãe já estava com Reed quando todos chegaram à sala. Tinha os
lábios cerrados e parecia resignada, com a bata do laboratório toda abotoada
como se procurasse evitar a contaminação. Reed parecia saído da revista
Manstyle, como sempre. Shannon olhou rapidamente para o cafetã cinzento,
desapertado, e para as calças de ganga, o que levara Garda a comentar:
«Tenciona entrar para um mosteiro?»
— Gostaríamos de...
— O senador Foyle quer que o senhor lhe volte a telefonar.
— Sim, está bem, e diga a Dinocci que pode continuar a tentar que a
sonda pesquise outra amostra. Sim, Max, eu tratarei disso... — Reed fez sinal
para que calassem quando Shannon e Garda se viraram nas cadeiras para
olharem para ele. — Bem, acabei de ouvir as notícias sobre o último e difícil
acordo do nosso «Robin Hood».
Shannon sorriu discretamente. Era a primeira pessoa a chamar «Robin
Hood» a T’uupieh num tom faceto. Reed aproveitara-se disso e apelidara os
pântanos de amónia de «Sherwood Forest», frente à imprensa. Depois da
verdade sobre o seu corpo sedento de sangue começaram a surgir pontos de
acusação e dava mesmo a impressão de que ela estava a colaborar com «o
xerife de Nottingham». Um repórter qualquer chamou a atenção para o facto
de T’uupieh se assemelhar tanto a Robin Hood como a Rima, a rapariga-
pássaro. Reed dissera a rir: «Então, afinal a única razão por que Robin Hood
roubava os ricos era porque o desgraçado não tinha dinheiro!» Isto, pensava
Shannon, fora o princípio do fim da sua tolerância.
— Isto pode servir de pretexto para mostrar graficamente ao mundo as
realidades chocantes da vida em Titan.
1
— Ein Moment — disse Garda. — Diz-nos que quer deixar que o
público veja esta atrocidade, Marcus? — Até àquele momento nunca tinham
revelado aos órgãos de comunicação social as gravações gráficas de
assassínios autênticos. Nem mesmo Reed fora capaz de argumentar que isso
teria um objetivo verdadeiramente científico.
— Não, ele não diz isso, Garda. — Shannon levantou os olhos quando a
mãe começou a falar. — Porque todos concordámos que não revelaríamos
gravações apenas com fins sensacionalistas.
— Carly, você sabe que a imprensa não me tem largado para que eu
revelasse aquelas outras gravações e que eu não o fiz, porque votámos contra
isso. Mas reconheço que esta situação é diferente... Uma demonstração de
uma situação sociocultural, desconhecida, invulgar. Que pensa disto, Shann?
Shannon encolheu os ombros, irritado e sem o encobrir.
— Não vejo que seja assim tão invulgar: o ruído seco de uma fungadela
é um ruído seco onde quer que se filme. Acho que a ideia cheira mal. — Uma
vez, numa festa, quando ele andava na faculdade, vira um filme de uma
vítima confiante a ser esquartejada até morrer. O filme, e tudo o que os filmes
como este diziam da raça humana, tinha-lhe provocado náuseas.
— Ah... Há mais verdade que poesia nisso! — Disse Garda.
Reed franziu as sobrancelhas e Shannon viu a mãe com uma expressão
de surpresa.
— Tenho uma ideia melhor. — Apagou o cigarro, esmagando a ponta no
cinzeiro por baixo do painel. — Por que é que não me deixa... Tentar
dissuadi-la? — Ao dizer isto compreendeu o quanto desejava tentar e o que
significaria para a sua crença na comunicação, para a sua imagem do povo de
T’uupieh e talvez para a sua própria imagem.
Desta vez ambos mostraram surpresa.
— Como? — Disse Reed.
— Bem... Ainda não sei. Deixem-me falar com ela, tentar comunicar
realmente com ela, descobrir o que pensa e o que sente, sem toda essa
porcaria técnica a atrapalhar por algum tempo.
A boca da mãe ficou mais estreita. Viu a ruga de preocupação, que lhe
era familiar, no meio das sobrancelhas.
— A nossa tarefa aqui é reunir essa «porcaria». Sem começarmos a
impor valores morais ao universo. Já assim temos demasiado trabalho.
— Que há de «imposição» em tentar evitar um assassínio? — Surgiu um
brilho estranho nos olhos azul-claros de Garda. — Agora isso tem
implicações sociais... Reais. Pense nisso, Marcus.
Reed acenou com a cabeça, relanceando o olhar pelos rostos pacientes e
atentos que ainda o rodeavam.
— Sim, tem. Muito interesse humano. — Houve, em resposta, alguns
acenos e murmúrios. — Está bem, Shann. Ainda faltam três dias para voltar a
amanhecer em «Sherwood Forest». Pode tê-los para si, para trabalhar com
T’uupieh. A imprensa vai querer notícias sobre o andamento do seu caso... —
Olhou rapidamente para o relógio e acenou na direção da porta, já a afastar-
se. Shannon desviou o olhar do rosto da mãe quando ela passou por ele.
— Boa sorte, Shann — disse-lhe Reed distraidamente. — Eu não
contaria que «Robin Hood» se modificasse, mas mesmo assim pode tentar.
Shannon enterrou-se na cadeira, franzindo as sobrancelhas, e virou-se de
novo para o painel.
— Na próxima encarnação podes voltar com a forma de uma retrete.
T’uupieh estava desorientada. Estava sentada num monte de pedra de
água, fria e húmida ao lado do demónio cativo, à espera que ele lhe desse
uma resposta. No espaço de tempo que decorrera desde que ela o encontrara
no pântano, surpreendera-se vezes sem conta ao constatar que o seu
comportamento se assemelhava pouco com o conhecimento que tinha dos
demónios. E naquela noite...
Sobressaltada, fez um movimento brusco quando o braço grotesco, com
garras, se mexeu subitamente e tateou os rebentos prateados de gelo que
rasgavam a água na base do pequeno monte. O demónio fazia muitas coisas
incompreensíveis (o que era natural) e exigia ofertas de carne e vegetação e
até pedra — às vezes até parte do saque que ela tirava aos transeuntes. Dera-
lhe estas coisas de boa vontade na esperança de conseguir granjear a sua
simpatia e auxílio. Até lhe dera, com alguma relutância, ornamentos de metal
precioso dos Antigos que roubara a um lorde estrangeiro, lamuriento. O
demónio elogiara-a efusivamente por isso. Todos os demónios acumulavam
metal e ela pensava que ele devia precisar de metais para manter as forças. A
carapaça em forma de cúpula brilhava agora com a fogueira da bruxa que
sempre o envolvia à noite, era uma imensa joia de metal da cor do sangue. E,
no entanto, sempre ouvira dizer que os demónios preferiam a carne de
homens e mulheres. Mas, quando tentara meter a asa do lorde estrangeiro na
goela, ele cuspiu-a com alguns arranhões gotejantes e ordenou-lhe que o
soltasse. Espantada, obedecera, e deixou que o idiota fugisse a gritar para se
perder no pântano.
E então, nessa noite...
«Vais matar a tua irmã, T'uupieh», dissera-lhe ele naquela noite, «e duas
crianças inocentes. Como te sentes?» Ela dissera o que primeiro lhe viera à
cabeça e sem mentir: «O novo dia não pode chegar cedo de mais para mim!
Esperei tanto tempo, tempo de mais, para me vingar de Klovhiri! A minha
irmã e os filhos são uma parte da sua infâmia, é melhor matá-los antes que se
multipliquem.» Desembainhara o punhal e enterrara-o na terra mole, como o
enterraria nos seus corações perversos.
O demónio ficara outra vez calado, durante muito tempo, como sempre.
A ciência dizia que os demónios eram imortais e por isso pensara sempre que
ele não tinha nenhum motivo para dar uma resposta rápida. As vezes desejara
que ele mostrasse mais consideração pela sua condição de mortal. Depois,
dissera finalmente na sua voz cavernosa cheia de sombras estranhas: «Mas as
crianças não fizeram mal a ninguém. E Ahtseet é a tua única irmã, ela e os
filhos são do teu sangue. Ela compartilhou a tua vida. Dizes que uma vez...»
o demónio calou-se, sondando a limitada reserva de palavras «... A
estimavas, por essa razão. Será que o que ela significava para ti no passado já
não significa nada? Não ficou nenhum amor para refrear a tua mão contra
ela?»
«Amor!» dissera ela, incrédula. «Que dizes tu, que não tens alma?
Zombas de mim...» Uma raiva súbita tinha posto a descoberto os dentes. «O
amor é um brinquedo, demónio, e eu pus de parte os meus brinquedos. E
Ahtseet também... Ela não é da minha família. Traidora! Traidora!» A
palavra sibilou com as brasas na fogueira do acampamento. Ela tinha deixado
o demónio indignado, esquadrinhando a camada isoladora da cinza sulfúrea e
espalhando mais alguns ramos ensopados em água. Y’lirr, segundo no
comando, sorrira-lhe do sítio onde estava deitado, envolto na capa, dizendo-
lhe que devia dormir. Mas ela ignorara-o e regressara à vigília na colina.
Apesar de a noite estar bastante fria para recristalizar as pernadas das
árvores safilil, que descongelavam lentamente, o equinócio já passara há
muito tempo e agora a névoa fina da chuva, polímera, pressagiava os dias
radiosos do Verão que se aproximava. T’uupieh aconchegara-se mais na capa
e levantara o capuz para evitar que a cacimba pegajosa obstruísse as
membranas das asas e das orelhas, e lembrara-se do último Verão, o seu
primeiro Verão, que ela recordaria sempre... Quando aquele primeiro Verão
começou, Ahtseet era uma criança desastrada, inquieta, e T’uupieh, ainda
criança, pensou que a sua nova irmã era tola e inútil. Mas o verão
transformou lentamente a terra e encheu os seus olhos espantados com
milagres e a irmã também se tornou numa companheira brincalhona,
facilmente influenciável, que podia ser sua companheira de aventuras. Juntas
aprenderam a servir-se das asas e a usar as correntes de ar ascendentes e
quentes para explorarem as fronteiras e as liberdades da herança.
E agora que a Primavera dava lugar, uma vez mais, ao Verão, T’uupieh
agarrava-se ferozmente à visão, sem querer perdê-la nem recordar aquele
Verão ameno; intempestivo, da infância, que não voltaria mais, mesmo que
as estações voltassem, porque a Roda da Mudança continuava a passar
velozmente sempre num só sentido. Quando o Verão terminou, ela era adulta
e nunca voaria com a liberdade de uma criança com asas leves. A Ahtseet
nunca mais faria nada. A pequena Ahtseet, sempre atrás dela, como se fosse a
sua própria sombra. Não! Ela não se arrependeria! Ficaria contente...
«T’uupieh, já pensaste alguma vez», dissera-lhe o demónio subitamente,
«que é condenável matar uma pessoa? Tu não queres morrer, ninguém quer
morrer prematuramente. Por que é que eles têm de morrer? Já alguma vez
imaginaste como seria se pudesses transformar o mundo num onde tu... Onde
tu tratasses os outros como querias que te tratassem a ti e eles te tratassem da
mesma maneira? Se todos pudessem... Viver e deixar viver.» A sua voz
transformou-se rapidamente numa série de sons harmónicos, confusos, que
ela não conseguia compreender.
Ela esperara, mas ele não disse mais nada, como se estivesse à espera
que ela pensasse no que já tinha ouvido. Mas não havia necessidade de
pensar no que era óbvio: «Apenas os mortos ‘vivem e deixam viver’. Trato
toda a gente como espero que me tratem a mim, caso contrário iria logo ao
encontro dos mortos serenos! A morte faz parte da vida. Morremos quando o
destino quer, e, quando o destino quer, matamos.»
«És imortal, tens o poder de alterar o sentido da Roda, de alterar o
destino segundo a tua vontade. Podes brincar com fantasias vãs, torná-las
realidade sem nunca sofreres as consequências. Não temos lugar para essas
coisas nas nossas vidas breves. Por mais que tente ser como tu, acabarei por
morrer como todos os outros. Não podemos alterar nada, as nossas vidas
estão predeterminadas. É assim entre os mortais.» Ela ficara calada outra vez,
perturbada com esta estranha divagação do espírito do demónio. Mas não
podia deixar que isso atormentasse os seus nervos. Em breve seria dia, não
devia estar nervosa, devia estar completamente calma quando atacasse
Klovhiri. Não podia interferir nenhuma emoção, por mais que ansiasse sentir
o sangue de Klovhiri a cair azulado nas suas mãos e o da irmã e dos filhos...
Os filhos de Ahtseet nunca sentiriam o vento quente a erguê-los para o céu,
nem mergulhariam, como ela, nas profundezas das suas lagoas com pétalas
de cores do arco-íris, nem veriam as suas torres a projetar luz ao longe, no
meio das árvores. Nunca! Nunca!
Depois, bruscamente, susteve a respiração, quando uma roda dentada,
ígnea, atravessou subitamente o muro de silvas emaranhadas atrás dela,
passando-lhe perto da cabeça a virar-se de um lado para o outro em direção à
clareira do acampamento. Viu-a rodear a fogueira — lançando faíscas,
sibilando furiosamente no ar calmo — três vezes e meia antes de rodopiar na
escuridão. Nenhum dos que dormiam acordou e apenas dois estremeceram.
Abalada, agarrou uma das pernas angulosas e duras do demónio, tendo
consciência de que o facto de ter rodopiado à volta da fogueira era um sinal
de mau agouro — mas não sabia o que significava. O silêncio ardente que
deixara atrás de si oprimia-a. Ela mexeu-se de uma maneira rígida, abrindo as
asas.
E o demónio, sem se mexer, começara uma vez mais a expressar
monotonamente os seus pensamentos estranhos e sombrios: «Nem tudo o que
ouviste dizer dos demónios é verdade. Podemos sofrer...» — procurava as
palavras de novo — «As... As consequências dos nossos atos: Nós lutamos
uns com os outros e morremos. Somos perversos, brutais e impiedosos, mas
gostamos de ser assim. Desejamos tomar-nos melhores, mais compassivos,
mais indulgentes. São mais as vezes que falhamos do que somos bem-
sucedidos, mas cremos que podemos mudar. E tu és mais parecida connosco
do que supões. Pode traçar uma linha entre... Confiança e traição, certo e
errado, bom e mau. Podes decidir nunca transpor essa linha.»
«Como, então?» Ela virara-se para enfrentar o olho âmbar tão grande
como a sua cabeça, ousando interromper o discurso do demónio. «Como é
que uma pequena gota pode alterar o movimento das ondas do mar? É
impossível! O mundo liquefaz-se e corre, transforma-se em névoa, gela de
novo, apenas para derreter e correr uma vez mais. Uma roda não tem
princípio nem fim, nenhum ponto de partida. Não existe nem o ‘bem’ nem o
‘mal’ não existe nenhuma linha entre eles. Apenas aceitação. Se fosses um
mortal, pensaria que eras doido!»
Afastara-se novamente, com as unhas a rasgarem arroios pouco fundos
na pedra revestida de polimeria, enquanto procurava dominar-se. Loucura...
Seria possível?, interrogou-se subitamente. Seria possível que o seu demónio
tivesse enlouquecido? Então como poderia ela explicar as ideias que ele
pusera no seu espírito? Ideias loucas, bizarras, suicidas — mas ideias que a
iriam perseguir.
Ou seria possível existir uma ordem na sua loucura? Ela sabia que havia
perfídia no coração de cada demónio. Podia estar simplesmente a mentir-lhe
quando falava de confiança e piedade — sabendo que ela tinha de estar
preparada para o dia que se avizinhava, na esperança de a fazer duvidar de si
mesma, de a fazer fracassar. Sim, isto era muito mais razoável. Mas então,
por que razão era tão difícil acreditar que aquele demónio iria tentar arruinar
os seus planos há muito acalentados? Afinal ela mantinha-o prisioneiro.
Embora os seus feitiços não o impedissem de a despedaçar, talvez tentasse
ainda despedaçar o seu espírito para fazer perder a razão. Por que motivo não
havia de a odiar e sentir prazer no seu tormento e ansiar pela sua destruição?
Como pode ser tão ingrato! Chegara a rir-se do seu próprio
ressentimento, precisamente no momento em que este dava forma à ideia.
Como se um demónio tivesse conhecido a gratidão! Mas, desde o dia em que
o apanhara no pântano com os seus feitiços, só lhe dispensara o melhor
tratamento. Andara ao serviço dele e levara os seus sequazes a fazerem o
mesmo. Dera-lhe o melhor — tudo o que ele desejava. As suas ordens,
mandara batedores em busca dos seus olhos, espalhados por toda a parte, e
ele permitira e encorajara-a mesmo a servir-se dos olhos como se fossem
dela, como observadores e protetores. Até o ensinou a compreender a sua
língua (porque era tão ignorante sobre o mundo dos mortais como um bebé)
quando se apercebeu que queria comunicar com ela. Fizera tudo isto para
granjear a sua simpatia, porque sabia que ele lhe caíra nas mãos por uma
razão, e, se conseguisse a sua cooperação, não haveria ninguém que se
atrevesse a atravessar-se na sua vida.
Passara todo o tempo livre a fazer-lhe companhia, a alimentar a sua
curiosidade e a dela, enquanto lhe enchia a barriga coberta de joias. Até que,
pouco a pouco, aquelas conversas com o demónio se tomaram um fim em si
mesmas, um tesouro digno do sacrifício até de metais preciosos. Até a espera
constante para que o seu espírito estranho refletisse sobre as perguntas e
respostas nunca a fatigara. Acabara por gostar de compartilhar os prazeres
simples dos seus silêncios e de descansar à luz quente e âmbar do seu olhar.
T’uupieh baixou os olhos para o cinto de fibra, finamente entrançada,
que passava pelas ranhuras estreitas entre a ilharga e a asa e lhe segurava a
túnica. Tocou nas pesadas contas de âmbar que a ornamentavam
profusamente — encastoadas em pedra de água, polida e da cor do metal,
pelas artes secretas do joalheiro— e que lhe faziam lembrar os mil olhos do
demónio. O seu demónio...
Desviou de novo os olhos, fixando-os na fogueira, nas formas dos
foragidos, envoltas em capas. Desde que o demónio viera ao seu encontro,
sentira o espaço físico e emocional que mantivera sempre entre ela, como
chefe, e o bando de sequazes, que aumentava gradualmente. Continuava a ser
o chefe deles, talvez de uma forma mais estável porque tinha subjugado o
demónio e o laço do perigo partilhado e do respeito mútuo nunca tinha
cedido. Mas havia outras necessidades, necessidades essas que os seus
homens podiam satisfazer uns aos outros, mas a ela não.
Viu-os dormir com os mortos — como ela já devia estar a dormir —.
Preparando-se para o dia que se aproximava. Dormiam esporadicamente,
quando podiam, como fazem todos os homens do povo — como ela fazia
também agora, em vez de ficar inativa toda a noite como era próprio da
nobreza. Muitos deles dormiam aos pares, homem e mulher, mesmo que se
unissem com a falta caótica de discriminação da gente vulgar sempre que
uma mulher sentia o período a aproximar-se. T'uupieh gostava de saber o que
eles imaginavam quando a viam ali sentada com o demónio a altas horas da
noite. Sabia aquilo em que acreditavam, aquilo em que ela os encorajara e
acreditar: que ela o escolhera para consorte ou que ele a escolhera a ela. Viu
que Y’lirr ainda dormia sozinho. Confiava e gostava dele mais que qualquer
outro. Era vivo e cruel, e ela sabia que ele a adorava. Mas era um homem do
povo e, mais importante ainda, não a desafiava. Em parte alguma, mesmo
entre a nobreza, não encontrara nenhum que lhe oferecesse o tipo de
companhia por que ela ansiava, até àquele momento, até o demónio vir ao seu
encontro. Não, não acreditava que todas as suas palavras tivessem sido
mentiras.
— T’uupieh! — O demónio sussurrou o seu nome na escuridão
brumosa. — Talvez não possas mudar o destino, mas podes mudar de ideias.
Já desafiaste o destino quanto te tomaste uma foragida e desafiaste Klovhiri.
A tua irmã foi a única que aceitou... — (palavras ininteligíveis) —... Deixou
apenas que a Roda a levasse. Podes matá-la por isso? Tens de compreender a
razão por que ela o fez, como o pôde fazer. Não precisas de a matar por causa
disso, não precisas de matar nenhum deles. Tu possuis a força, a coragem
para pores de parte a vingança e descobrires outra forma de alcançares os teus
objetivos. Podes resolver ser clemente, podes escolher o teu próprio caminho
na vida, mesmo que o último destino de toda a vida seja o mesmo.
Ela levantou-se, irritada, ficando à altura do demónio, e aconchegou a
capa ao corpo.
— Mesmo que quisesse mudar de ideias, é demasiado tarde. A Roda já
está em movimento, e eu tenho de dormir se quero estar em condições. —
Afastou-se em direção à fogueira, parou, olhando para trás. — Agora não há
nada que possa fazer, meu demónio. Não posso mudar o dia de amanhã. Só tu
o podes fazer. Só tu.
Mais tarde ouviu-o pronunciar o seu nome em voz baixa, quando estava
deitada na terra fria, sem dormir. Mas voltou as costas ao som e ficou quieta e
o sono veio, por fim.
***
Shannon caiu bruscamente na cadeira acolchoada, coçando a cabeça, que
lhe doía. As pálpebras eram papel de lixa, o corpo um peso. Olhou fixamente
para o écran, para as costas de T’uupieh, voltadas obstinadamente para ele
enquanto dormia junto da fogueira de nitrogénio no acampamento.
— Muito bem, é isso. Desisto. Ela nem sequer ouvirá. Chame Reed e
diga-lhe que desisto.
— Que desististe de tentar convencer T’uupieh? — Disse Garda. —
Tens a certeza? Ela ainda pode voltar atrás. Põe um pouco mais de ênfase
em... Assuntos espirituais. Temos de ter a certeza de que fizemos tudo para...
A fazer mudar de ideias.
Para salvar a alma dela, pensou ele com amargura. Garda fizera o seu
primeiro estágio num instituto dedicado a traduzir a Bíblia. Nas últimas horas
descobrira que ela ainda tinha um desejo oculto de fazer prosélitos. Que
alma?
— Estamos a desperdiçar o nosso tempo. Já passaram seis horas desde
que ela me abandonou. Ela não volta... E eu tenciono desistir de tudo. Não
quero estar aqui para o acontecimento mais importante. Já o vi.
— Não está a falar a sério — disse Garda. — Estás cansado, também
precisas de descansar. Quando T’uupieh acordar, podes falar de novo com
ela.
Ele abanou a cabeça, puxando para trás a cadeira.
— Esqueça isso. Chame Reed. — Olhou através da janela para a aurora
que separava do céu a silhueta dos condomínios da costa, envolta em névoa.
Garda encolheu os ombros, desapontada, e voltou para junto do telefone.
Ele examinou uma vez mais o painel dos botões do sintetizador, ainda
brilhante e expectante, ainda a chamar as suas mãos pesadas como chumbo,
cansadas, para fazerem uma outra tentativa. Pelo menos quando fez esta
proclamação final não teria de a dirigir aos olhos e aos ouvidos de um planeta
que estava na expectativa; duvidava que algum repórter fosse suficientemente
dedicado para estar ainda àquela hora na sala de observação com paredes de
vidro. Interrogaram-no incessantemente desde as primeiras horas da noite,
sondando os seus sentimentos, o seu objetivo, os seus motivos e planos,
fazendo-lhe perguntas sobre a moralidade de «Robin Hood» ou a falta dela, e
a dele, sobre cento e uma coisas que só a ele diziam respeito.
O mundo da música tentara fazer-lhe o mesmo uma vez, mas nessa
altura havia indivíduos desatualizados — agentes, pessoas da publicidade —
para o protegerem. Agora, que arriscara tanta coisa, não tinha havido
nenhuma proteção, apenas Reed perto do microfone, transformando
eloquentemente a sala num espetáculo de feira, com Shann, o Homem como
atração principal, até Shannon se começar a sentir como um homem preso a
estacas sobre um formigueiro e coberto de mel. Os repórteres miraram-no da
cabeça aos pés, fazendo apreciações críticas sobre as respostas de T'uupieh e
criticando as dele, preenchendo os intervalos com interrupções exasperadoras
quando ele precisava de silêncio para pensar. Reed conseguira arrancar cada
gota de pathos e interesse humano à sua luta para impedir a vingança de
T'uupieh contra os Inocentes... E com isso, conseguira fazê-lo fracassar.
Não. Sentou-se mais direito, tentando aliviar as costas. Não, não podia
culpar Reed. Na altura, o que tinha para dizer era realmente importante, os
repórteres desistiram por causa dele. O fracasso era dele, só dele: a sua
perícia não fora suficiente, a sua mensagem não fora suficientemente
convincente — ele é que não fora capaz de ver com clareza suficiente através
dos olhos de T’uupieh para fazer ver através dos seus olhos. Pela primeira
vez na sua vida tivera a oportunidade de comunicar — comunicar algo
importante. E perdera-a.
Uma mão passou perto dele para colocar uma chávena de café
fumegante sobre a prateleira debaixo do terminal.
— Uma coisa sobre este computador: — disse uma voz calmamente —
está programado para uma boa chávena de café.
Sobressaltado, riu-se sem contar e levantou os olhos. O rosto da mãe
parecia deformado e cansado; segurava na mão outra chávena de café.
— Obrigado. — Pegou na chávena e bebeu um gole, sentiu o líquido
quente a deslizar pela garganta abaixo e a entrar no estômago vazio. Sem
voltar a levantar os olhos, disse: — Bem, conseguiu o que queria. E Reed
também. Conseguiu o pathos e apanha os assassinos, também.
Ela abanou a cabeça.
— Não era isto que eu queria. Não quero ver-te a desistir de tudo o que
fizeste aqui só porque não gostas do que Reed está a fazer com uma parte do
teu trabalho. Não merece esse sacrifício. O teu trabalho tem uma importância
demasiado grande para o projeto e para ti.
Ele levantou os olhos.
— Ja, ela tem razão, Shann. Não podes desistir agora, precisamos muito
de ti. E T’uupieh precisa de ti.
Ele riu-se outra vez, sem querer.
— Como de um yo-yo de cimento. Que está a tentar fazer, Garda, a
servir-se da minha própria moralização para me atacar?
— Ela está a dizer o que qualquer cego era capaz de ver hoje à noite, se
já não o tivesse visto há meses. — A voz da mãe era estranhamente distante.
— Que este projeto não teria alcançado este êxito sem ti. Que tens razão em
relação ao sintetizador. E que o facto de te perdermos agora podia...
Ela calou-se, afastando-se e vendo Reed a transpor as portas ao fundo da
sala comprida. Desta vez estava sozinho, pela primeira vez, e com um
aspecto desleixado. Shannon imaginou que ele estava a dormir quando a
chamada telefónica chegou e ficou irracionalmente contente por o ter
acordado.
Reed não estava assim tão contente. Shannon viu-o franzir as
sobrancelhas, o que podia significar preocupação ou descontentamento, ou
ambas as coisas, quando atravessou o vestíbulo, que fazia eco, e se
encaminhou para eles.
— Que queria ela dizer? Você quer desistir? Só porque não consegue
mudar uma mente estranha? — Entrou no cubículo e relanceou o olhar pelo
terminal — para se certificar de que os microfones distantes estavam
desligados. Shannon assim pensava. — Sabia que era uma tentativa ousada,
talvez sem perspectivas de êxito. Tem de aceitar que ela não pretende
corrigir-se, aceitar que os valores de uma cultura desconhecida vão ser
diferentes da sua.
Shannon reclinou-se na cadeira, sentindo um músculo começar a torcer-
se de fadiga ao longo da parte inferior do cotovelo.
— Posso aceitar isso. O que não posso aceitar é que você nos queira
transformar num bando de proxenetas. Por Deus, você nem sequer tem uma
justificação válida! Não vim para aqui para passar uma fita boa por causa do
ruído seco de uma fungadela. Se for em frente e fornecer ao mundo aqueles
assassínios, rendo-me. Não quero desistir de tudo isto, mas não vou ficar aqui
para assistir a uma matança carnavalesca, pornográfica.
Reed franziu mais as sobrancelhas, desviou os olhos.
— Então? Que é que vocês dizem? Ainda estão a marcar-me com ferro
quente, secretamente, com cúmplice também do crime? Carly?
— Não, Marcus, não é bem isso. — Ela abanou a cabeça. — Mas todos
reconhecemos que não devíamos depreciar nem enfraquecer a nossa pesquisa
fazendo dela um espetáculo público. Afinal o povo de Titan tem tanto direito
à privacidade, como qualquer cultura na Terra.
— Ja, Marcus. Penso que nisso estamos todos de acordo.
— E que privacidade tem uma pessoa na terra nos nossos dias? Meu
Deus, lembrem-se de Tasaday! E isso foi há trinta anos. Não existe nenhum
cume de montanha nem ilha deserta que o olho indiscreto da câmara não
tenha difundido em todo o mundo. E aquilo a que chamam leis de vigilância
pública do crime... As nossas próprias vidas são um enorme espetáculo visto
através de um orifício.
Shannon abanou a cabeça.
— Isso não quer dizer que tenhamos de...
Reed virou-lhe um olhar glacial.
— E eu estou farto da sua piedade, Wyler. A quem deve então o seu
sucesso como músico, se não à publicidade? — Apontou para os cartazes nas
paredes. — Há muito mais mistificação no seu tipo de música que em
qualquer outro campo que eu possa mencionar.
— Tenho de suportar algumas investidas da publicidade, senão não
podia chegar às pessoas. Não podia fazer aquilo que é realmente importante
para mim: comunicar. O que não quer dizer que goste.
— Pensa que eu gosto disto?
— Não gosta?
Reed hesitou.
— Acontece que sou forte nisso, o que é realmente importante. Porque
talvez não acredite, mas continuo a ser um cientista e o que mais me interessa
é ver que a investigação ocupa um lugar importante. Diz que não tenho um
bom motivo para fazer propaganda das nossas descobertas. Tem consciência
de que a NASA perdeu todos os dados da nossa sonda em Neptuno só porque
alguém se fartou de esperar que ela lá chegue e corte os nossos recursos
financeiros? O verdadeiro problema destas longas missões fora do planeta
não é a segurança dos instrumentos, é a segurança financeira. O público
desembolsará milhões por um dos seus concertos, mas nem um cêntimo por
uma coisa que não compreende.
— Não faço...
— As pessoas querem esquecer os seus problemas, querem divertir-se, e
quem os pode censurar? Assim, a fim de competirmos com o cinema e
diversões e pessoas como você... Sem falar das dez mil causas dignas do
Governo e dos particulares... Temos de dar ao público o que ele quer. É
minha responsabilidade conceder isso, para que os «verdadeiros cientistas» se
possam sentar nos seus institutos, agradáveis e brilhantes, rodeados de
equipamento no valor de meio milhão de dólares e possam falar de «respeito
pela investigação».
Ele calou-se. Shannon manteve o olhar fixo, teimosamente.
— Pense nisto. E, quando me puder dizer que aquilo que fez como
músico é moralmente superior ou mais valioso que aquilo que está a fazer
agora, pode vir ao meu escritório e apontar o verdadeiro hipócrita. Mas
ponderem, primeiro... Todos vocês. — Reed virou-se e saiu do cubículo.
Ficaram a olhar em silêncio até as portas duplas no fundo da sala
pararem.
— Bem... — Garda olhou de relance para a bengala e para a capa. — Ele
tem mesmo um objetivo.
Shannon inclinou-se para a frente, descobrindo a beleza complexa do
terminal do sintetizador, sentindo a combinação da desilusão e da cafeína a
abater da fadiga.
— Eu sei que tem, mas esse não é o fim que eu tinha em vista! Não
queria que T'uupieh mudasse de ideias, nem desistisse, só porque me opus a
que se vendesse este projeto. E a forma como está a ser vendido, como um
espetáculo corrupto, uma matança, isso não posso aceitar. — Lembrou-se
que, quando era miúdo, os concertos rock tinham uma certa fama, mas eram
tão respeitáveis como uma orquestra sinfónica dos nossos dias, comparados
com os «espetáculos emocionantes» que os eclipsaram à medida que ele ia
crescendo, onde «peritos» arriscavam a vida por uma aposta de milhões de
dólares, em frente de uma multidão que vinha para os ver perder; onde
masoquistas viviam de mutilações do próprio corpo, onde projetavam filmes
cinéma verité de carnificina e morte.
— O que eu quero dizer é se é isto que todos querem de facto? Será que
isto faz que todos se sintam realmente bem ao verem uma pessoa a sangrar?
Ou irão alcançar alguma coisa moralmente superior se virem acontecer isso
em Titan em vez de ser aqui? — Ele levantou os olhos para o écran, para
T’uupieh, que ainda dormia, imóvel e impassível. — Se eu pudesse fazer que
T’uupieh mudasse de ideias ou mudar o que acontece aqui, então talvez me
pudesse sentir bem com alguma coisa. Pelo menos comigo mesmo. Mas
quem estou a intrujar? — T’uupieh estivera sempre com a razão e agora ele
tinha de o admitir; que nunca tinha havido um processo de mudar tanto um
como o outro. — T’uupieh é como qualquer um deles, teria preferido cortar a
mão a apertar a mão a alguém... E fazendo-o em vez de outrem mostra que
não somos melhores. E nenhum de nós jamais será. — A letra de uma canção
mais velha que ele veio-lhe à memória, com uma ironia inopinada: — «As
mãos de um homem não podem construir» — começou a desligar o terminal
— «nada».
— Precisas de dormir... Precisamos todos de dormir. — Garda levantou-
se da cadeira, entorpecida.
— «... Mas se um mais um mais cinquenta faz um milhão...» — A mãe
acompanhou com voz branda a citação dele.
Shannon virou-se para olhar para ela, viu-a abanar a cabeça. Sentiu-o a
olhar para ela, levantou os olhos.
— Afinal, se T’uupieh pudesse reconhecer que tudo o que fez era
moralmente mau, que teria sido feito dela? Ela sabia! Isso tê-la-ia destruído,
tê-la-íamos destruído. Teria sido banida e afogada na maré de violência. — A
mãe desviou o olhar e fixou-o em Garda, depois outra vez nele. — T’uupieh
é realista, para além do que possa ser.
Ele sentiu a boca cerrar-se para refrear o Assentimento que sublimava
uma emoção mais profunda, mais penosa. Ouviu o gemido de indignação de
Garda.
— Mas isso não significa que estivesses errado ou que tivesses
fracassado.
— Isso é conversa sua. — Levantou-se, acenando com a cabeça na
direção de Garda e encaminhou-se para a saída. — Deixe-se disso.
— Shannon.
Ele parou, ainda com o rosto virado.
— Não acho que tenhas fracassado, penso que conseguiste comunicar de
facto com T'uupieh. A última coisa que ela disse foi: «Só tu podes mudar o
amanhã.» Penso que estava a incitar o demónio a ir em frente, a fazer aquilo
que ela mesma não tinha poder para fazer. Creio que lhe estava a pedir que a
ajudasse.
Ele virou-se lentamente.
— Acredita realmente nisso?
— Sim, acredito. — Ela curvou a cabeça, soltou o cabelo da gola da
camisola.
Ele voltou a sentar-se: as mãos tocaram nos botões escuros e frios do
painel.
— Mas não adiantaria falar de novo com ela. Seja como for, o demónio
tem de impedir o ataque. Se eu pudesse usar a «voz» para os avisar... Maldito
atraso! — Quando a sua voz chegasse até eles, o ataque teria terminado há
horas. Como é que ele podia mudar alguma coisa no dia seguinte se estava
sempre com duas horas de atraso?
— Sei como resolver o problema do atraso.
— Como? — Garda sentou-se de novo, ostentando no rosto largo e cheio
de rugas emoções desencontradas. — Ele não pode enviar um aviso antes da
hora marcada. Ninguém sabe quando Klovhiri irá passar. Chegaria cedo de
mais... Ou tarde de mais.
Shannon endireitou-se.
— E melhor perguntar: «Porquê?» Por que é que mudaste de ideias?
— Nunca mudo de ideias — disse a mãe calmamente. — Também nunca
gostei disto... Quando era rapariga pensávamos que as nossas ações podiam
mudar o mundo! Talvez nunca tenha deixado de acreditar nisso.
— Mas, seja como for, Marcus não vai gostar que nos intrometamos na
sua ausência. — Garda brandiu a bengala. — E se viermos a precisar desta
publicidade?
Shannon olhou para trás, irritado.
— Pensava que estava do lado dos anjos, e não fosse a defensora do
demónio.
— Estou! — A boca de Garda contraiu-se. — Mas...
Então onde está o problema se a sonda fizer um salvamento à última
hora? Será uma sensação.
Ele viu a mãe sorrir pela primeira vez em meses.
Será sensacional... Se T’uupieh não nos abandonar no pântano por causa
da nossa traição.
Ele ficou mais calmo.
— Não se pensarem que ela quer mesmo a nossa ajuda. E eu sei que ela
quer... Sinto-o. Mas como vamos ultrapassar o problema da diferença de
hora?
— Eu sou a engenheira, lembras-te? Vou precisar de uma mensagem
gravada da vossa parte e algum tempo para brincar com aquilo. — A mãe
apontou para o terminal do computador.
Ele ligou o terminal e afastou-se. Ela sentou-se e começou a programar
uma documentação no écran. Ele leu: MANUAL DE OPERAÇÕES À
DISTÂNCIA.
— Vejamos... Vou precisar de feedback quando o grupo de Klovhiri se
aproximar...
Ele pigarreou.
— Estava mesmo a falar a sério quando Reed entrou?
Ela levantou os olhos: ele viu uma forma de resposta no seu rosto que
depois se transformou num sorriso.
— Garda, conheceu o meu filho, o Linguista?
— E quando escolheste aquela canção de Pete Seeger?
— E o meu filho, o Músico... — O sorriso aflorou de novo ao seu rosto.
— Ouvi alguns discos nesse tempo. — O sorriso interiorizou-se, virou-se
para uma recordação. — Creio que nunca lhe disse que me apaixonei pelo
seu pai porque ele fazia lembrar Elton John?!
***
T’uupieh estava parada, em silêncio, a olhar fixamente para o olho firme
do demónio. Um novo dia mudava as nuvens bronze em douradas; o brilho
passava através da cabeleira cintilante, emaranhada, das copas das arvores,
refletia-se na superfície verde e translúcida dos penhascos e encostas, que
ressuavam, para dar brilho à carapaça do demónio. Ela arrancou com os
dentes os últimos bocados de carne de um osso, esforçando-se por comer,
quase sem se dar conta de que o fazia. Já enviara sentinelas em direção à
cidade para vigiarem Chwiul... E o grupo de Klovhiri. Atrás dela, o resto do
bando, já preparado, testava as armas e os reflexos ou enchiam as barrigas.
E o demónio ainda não lhe dirigira a palavra. Tinha havido muitas
ocasiões em que ele resolvera não falar durante horas, mas, depois dos seus
delírios na noite anterior, a ideia de que ele talvez nunca mais falasse não lhe
saía da cabeça. A sua preocupação aumentou, incendiando o rastilho da sua
cólera, que, naquela manhã, já estava bastante curto: até que, por fim,
avançou resolutamente e bateu-lhe com a mão aberta.
— Fala comigo, mala’ingga!
Mas, quando a pancada o atingiu, uma dor como o toque do fogo subiu-
lhe pelos músculos dos braços. Ela deu um salto para trás com uma praga de
surpresa, sacudindo a mão. O demónio nunca a tinha atacado, nunca a
magoara de nenhuma maneira. Mas ela nunca se atrevera a bater-lhe, tratara-
o sempre com um respeito calculado... Idiota! Olhou para a mão, meio
receosa de a ver coberta de queimaduras que faziam dela uma estropiada no
dia do ataque. Mas a pele continuava macia e sem defeitos, apenas brilhante
do choque pungente.
— T’uupieh! Estás bem?
Ela virou-se e viu Y’lirr aparecer por detrás dela, meio assustado, meio
carrancudo.
— Estou. — Acenou com a cabeça, dominando uma resposta mais azeda
ao ver a preocupação dele. — Não foi nada. — Ele trazia o arco com duas
voltas e aljava; ela estendeu a mãe dorida, tirou-lhos com indiferença e pô-los
às costas. — Vem, Y’lirr, temos de...
— T’uupieh. — Desta vez era a voz arrepiante do demónio que gritava
seu nome. — T’uupieh, se acreditas no meu poder de mudar o destino
segundo a minha vontade, então tens de voltar atrás e ouvir de novo o que
tenho para te dizer. Ela voltou para trás, sentiu Y’lirr hesitar atrás dela.
— Acredito sinceramente em todos os teus poderes, demónio! — Ela
esfregou a mão.
As profundezas de âmbar do seu olho absorveram a sua expressão e
decifraram a sua sinceridade, ela assim o esperava.
— T’uupieh, sei que não fiz que acreditasses no que te disse. Mas quero
que acredites — as palavras saíam ininteligíveis — em mim. Quero que
saibas o meu nome. T’uupieh, o meu nome é...
Ouviu um grito de pavor de Y’lirr, atrás dela. Olhou em redor vendo-o
tapar os ouvidos — e recuar, paralisado pela incredulidade.
— Shang’ang.
A palavra atingiu-a como o chicote ígneo do demónio, mas desta vez o
golpe atingiu-a apenas no espírito. Ela gritou, num protesto desesperado, mas
o nome já tinha penetrado no seu entendimento, era tarde de mais!
Passou um longo momento; ela respirou e abanou a cabeça. A
incredulidade mantinha-a ainda imóvel enquanto deixava que os olhos
perscrutassem o acampamento cheio de luz, enquanto escutava os sons da
floresta que despertava, e inspirava o cheiro acre e forte da Primavera. E
depois começou a rir. Ouvira o demónio a proferir o seu nome, e ela
continuava viva — e não estava cega nem surda, nem louca. O demónio
escolhera-a, unira-se a ela, rendera-se-lhe finalmente!
Aturdida pela exaltação, quase não se apercebera de que o demónio
continuava a falar com ela. Interrompeu a canção de triunfo que crescia
dentro dela, prestando atenção:
—... Por conseguinte ordeno-te que me leves contigo quando partires
hoje. Preciso de ver o que acontece, e esperar que Klovhiri passe.
— Sim! Sim, meu... Shang’ang. Será feito como desejas. O teu capricho
é o meu desejo. — Afastou-se, descendo a encosta, parou de novo quando
deparou com Y’lirr deitado ainda de borco no sítio onde se atirara ao chão no
momento em que o demónio proferiu o seu nome.
— Y’lirr? — Deu-lhe um pequeno toque com o pé. Aliviada, viu-o
levantar a cabeça, viu a sua própria incredulidade refletir-se no rosto quando
ele olhou para ela.
— Minha senhora... Ele não fez?
— Não, Y’lirr — disse ela ternamente. Depois, com mais brusquidão! —
Claro que não fez! Agora sou realmente a Consorte do Demónio, nada se
atravessará no meu caminho. — Deu-lhe um empurrão com o pé, com mais
força. — Levanta-te. Que é que eu tenho, um bando de covardes lamurientos
para arruinarem a manhã do meu sucesso?
Y’lirr conseguiu pôr-se de pé, limpando-se.
— Isso nunca, T’uupieh! Estamos preparados para qualquer ordem.
Preparados para levar a cabo a tua vingança. — A mão apertou o punho da
faca.
— E o meu demónio ajudar-nos-á a alcançá-la! — O orgulho que sentia
vibrou na sua voz. — Arranja quem te ajude a ir buscar um trenó e prepara-o.
E diz-lhes que o movam devagar!
Ele acenou com a cabeça, e, por um instante, ao olhar de relance para o
demónio, ela viu medo e inveja nos seus olhos.
— Boas notícias. — Em seguida afastou-se com a brusquidão habitual,
sem se virar e sem olhar para ela.
Ela ouviu um pequeno clamor no acampamento e desviou os olhos dele,
a pensar que a ordem do demónio já se tinha espalhado. Mas depois viu
Lorde Chwiul vir como prometera e ser conduzido para a clareira pela
escolta. Ela levantou um pouco a cabeça, surpreendida — de facto, viera
sozinho, mas montava um bliell. Eram montadas raras e caras, sendo o único
animal que ela conhecia com o tamanho suficiente para carregar tanto peso,
para além de serem manhosas e difíceis de adestrar. Viu-o a tentar abocanhar
o ar, com os dentes e projetarem-se para fora da corda, os lábios babados, e
ela fez um pequeno esgar. Viu que a escolta se mantinha bastante afastada
das suas patas providas de membranas e semelhantes a cepos de árvore, e
tinham as lanças prontas a aguilhoar. Era um anfíbio, sendo demasiado
pesado para se servir das asas, mas leve e ágil quando nadava. T’uupieh
relanceou o olhar pelos seus próprios pés e dedos com membranas, pelas
membranas das asas ao longo das ilhargas, que agora só conseguiam levantar
o seu corpo durante escassos segundos de cada vez. Perguntou a si mesma,
como fizera tantas vezes, que estranhas reviravoltas do destino os teriam
formado e transformado a todos.
Viu Y’lirr a falar com Chwiul, apontando para ela, e o sorriso insolente e
o traço de apreensão que Chwiul ostentava ao levantar os olhos para ela;
pensou que Y’lirr tinha dito: «Ela sabe o nome dele.»
Chwiul avançou para ir ao seu encontro, com o rosto impassível
enquanto suportava o exame minucioso do demónio. T’uupieh estendeu uma
mão com indiferença — suavemente — e bateu na sua ilharga sensual,
facetada. Os seus olhos desviaram-se de Chwiul por instantes, atraída por um
instinto, e fixaram-se no céu mesmo por cima deles, e durante meio segundo
viu as nuvens a separarem-se...
Ela pestanejou para ver melhor e, quando olhou de novo, tinha
desaparecido. Ninguém, nem mesmo Chwiul, vira o disco convexo de ouro
esverdeado, atravessado por uma linha de prata e uma faixa de preto opaco: a
Roda da Mudança. Ela mantinha o rosto sem expressão, mas o coração batia
desenfreadamente. A Roda só aparecia quando a vida de alguém estava para
sofrer uma alteração profunda — e a mudança geralmente significava morte.
A montada da Chwiul precipitou-se subitamente para ela, quando ele
estacou à sua frente. Ela não se afastou do demónio, mas parte do cuspo do
bliell azulado caiu na sua capa, quando Chwiul lhe puxou bruscamente a
cabeça.
— Chwiul! — Ela deu largas à sua cólera. — Domina esse porco
baboso, senão mando-o espancar até morrer! — A mão fechada agrediu a
pele escorregadia do demónio.
O esgar de Chwiul desapareceu abruptamente, e puxou para trás a
montada, olhando fixa e constrangidamente para o olho brilhante do
demónio.
T’uupieh respirou fundo e sorriu.
— Com que então atreves-te a vir sozinho ao meu acampamento, meu
senhor!
Ele curvou-se um pouco em cima da sela.
— Estava apenas hesitante se havia de vaguear a pé no pântano, até que
a tua gente me encontrou.
— Estou a ver. — Ela não deixou de sorrir. — Então presumo que esta
manhã as coisas correram como tinhas planeado. Klovhiri e o seu grupo
dirigem-se para a nossa armadilha?
— Assim é. E o guia está à espera do meu sinal para os afastar do
caminho certo e os levar para o lodaçal que escolheste.
— Ótimo. Tenho um lugar em mente que está rodeado de montes. — Ela
ficou admirada com o sangue-frio de Chwiul na presença do demónio,
embora sentisse que não estava tão à vontade como pretendia fazer-lhe crer.
Viu alguns homens do seu bando dirigirem-se para eles com um trenó que
levaria o demónio. — O meu demónio irá connosco por sua própria vontade.
Um sinal certo do nosso êxito de hoje, não concorda?
Chwiul franziu as sobrancelhas como se pretendesse contestar aquilo,
mas não se atreveu.
— Se ele te serve com dedicação, então sim, minha senhora. Uma
grande honra e um bom augúrio.
— Serve-me com verdadeira dedicação. — Ela sorriu outra vez, de uma
maneira insinuante. Recuou quando o trenó subiu para o montículo de terra,
ficou a observar enquanto o demónio era instalado nele para se assegurar de
que a sua gente era cuidadosa. A recente reverência com que os foragidos o
trataram e ao seu chefe não passou despercebida nem a Chwiul nem a ela.
Depois reuniu a sua gente e partiram para o seu destino, escolhendo
cuidadosamente o caminho sobre a superfície fumegante do pântano e por
entre os tentáculos viscosos, azul-escuros e sem brilho da vegetação rasteira,
frágil e descongelada. Estava contente por percorrerem com frequência este
terreno, porque a vegetação com espinhos de Primavera e a terra mole e
traiçoeira alterava a configuração da passagem de um dia para o outro.
Gostava de ter podido separar Chwiul da sua montada, mas duvidava que ele
cooperasse, e receava que não conseguisse acompanhá-la a pé. O demónio ia
bem seguro sobre o trenó e os que o carregavam transpiravam e puxavam-no
sem um queixume.
Chegaram finalmente aos montes que davam para a estrada principal —
embora naquela altura dificilmente se pudesse considerá-la como tal — que
passava junto às propriedades da sua família. Mandou que colocassem o
demónio numa posição donde pudesse ver o trilho largo e por onde se
aproximaria Klovhiri e enviou alguns dos seus sequazes para esconderem os
olhos no extremo do caminho. Depois ficou parada a olhar para o sítio onde o
caminho parecia bifurcar-se, mas não se bifurcava: a falsa bifurcação seguia
as uniões amarelas e Ondulantes da superfície do penhasco por baixo dela,
convergindo num charco criado pela água amoníaca, que se infiltrava e
atravessava os compostos porosos de sulfureto da rocha. Todos se iriam
espojar ali enquanto ela e o bando os arrancavam como ngips esmagados —
esmagou pensativamente um ngip que lhe pousara na mão —, a não ser que o
demónio resolvesse provocar outro resultado.
— Algum sinal? — Chwiul aproximou-se dela montado no cavalo.
Ela afastou-se um pouco da beira dos penhascos, que se esboroava,
recuando, observando-o com mais que um mero interesse.
— Ainda não. Mas dentro de pouco tempo. — Tinha foragidos
colocados na encosta inferior do outro lado do trilho, mas nem o olho do
demónio conseguia penetrar na folhagem ao longo da estrada. Não falara
desde a chegada de Chwiul e ela não esperava que ele revelasse os seus
segredos naquela altura. — Que uniforme usa a tua escolta e quantos queres
que sejam mortos? — Tirou os estropos ao arco e começou a testar a sua
força.
Chwiul encolheu os ombros.
— Morto o bicho acaba a peçonha! Mata-os a todos! Em breve terei a de
Klovhiri. Mata o guia, também. Um homem que pode ser comprado uma vez,
pode ser comprado duas vezes.
— Ah! — Ela acenou com a cabeça, sorrindo ironicamente. — Um
homem com a tua visão e descrição vai longe no mundo, meu senhor. —
Introduziu, com umas pancadas, uma seta, na corda do arco antes de se
afastar para examinar de novo a estrada. Continuava deserta. Desviou o olhar
com impaciência, fixou-o no verde-azulado e prateado dos pinheiros das
montanhas distantes, cobertas de névoa; nos dedos côncavos de gelo,
erguidos no ar, outrora mais altos que ela, agora baixos e que diminuíam ao
longo da borda do lago mais próximo. O lago onde planara no último Verão...
Um movimento vacilante, um ruído estranho, atraíram os seus olhos para
a estrada. A tensão tomou mais rígida a fluidez do seu movimento quando
soltou o gripo trilado que mandaria o bando para os seus postos ao longo da
beira do penhasco. Finalmente. Inclinando-se para a frente, cheia de
ansiedade, vislumbrou Klovhiri pela primeira vez, divisou o guia, e depois o
trenó que transportava a irmã e os filhos. Contou os homens que formavam a
escolta, viu-os surgir no caminho à sua frente. Mas Klovhiri... Onde estava
Klovhiri? Voltou para junto de Chwiul; o seu sussurro chegou até ele.
— Onde está ele? Onde está Klovhiri?
A expressão de Chwiul era um misto de culpa e perfídia.
— Atrasado. Ficou para trás, disse que ainda havia assuntos a tratar na
corte.
— Por que é que não me disseste?
Ele deu um sacão à rédea do bliell.
— Não altera nada! Ainda podemos erradicar a família dele. Assim serei
o primeiro candidato à herança, e Klovhiri sempre pode ser derrubado mais
tarde.
— Mas é Klovhiri que eu quero, para mim. — T’uupieh levantou o arco,
com a seta apontada ao coração dele.
— Se eu morrer saberão quem é o culpado! — Abriu uma asa para se
defender. — O Overlord virar-se-á contra ti para sempre. Klovhiri
encarregar-se-á disso. Vinga-te na tua irmã, T’uupieh... E mesmo assim dar-
te-ei uma boa recompensa se mantiveres a tua promessa!
— Não foi isso que combinámos! — O ruído do grup que se aproximava
chegou aos seus ouvidos com nitidez, vindo de lá de baixo; ouviu as
gargalhadas estridentes de uma criança. Os foragidos acocoraram-se,
aguardando o seu sinal, e ela viu Chwiul a prepara-se para avisar o guia.
Virou-se para olhar para o demónio, com o olho âmbar fixo nos viajantes que
passavam em baixo. Dirigiu-se para ele. Ainda lhe podia mudar o destino. Ou
já o teria mudado?
— Retrocedam, retrocedam! — A voz do demónio fez-se ouvir por cima
dela, atravessou a floresta silenciosa como uma avalanche. — Emboscada...
Cilada... Foste traída!
—... Traição!
Mal conseguiu distinguir a voz de Chwiul no estrondo. Olhou para trás a
tempo de ver o bliell dar um salto para a frente para interceptar o seu
caminho em direção ao demónio. Chwiul desembainhou a espada; ela viu a
expressão de fúria no seu rosto lívido, sem saber se era por causa dela ou do
demónio. Correu para o trenó do demónio, esforçando-se por tirar o arco, mas
o bliell cobriu o espaço que os separava com dois saltos enormes. A cabeça
oscilava na direção dela, com a boca aberta. O pé resvalou na superfície
escorregadia e ela caiu, as mandíbulas babadas fecharam-se bruscamente e
em vão por cima do seu rosto. Mas uma pata bateu-lhe com violência e
atirou-a ao chão, fazendo-a deslizar no gelo derretido até ao pé do demónio.
O demónio. Tentava inspirar o ar que não enchia os pulmões, procurando
gritar o seu nome; viu com uma claridade incrível a beleza do seu corpo e o
pavor ululante do bliell, que se aproximava deles, vertiginosamente, para os
matar. Viu-o empinar por cima dela, por cima do demónio; viu Chwiul, aos
saltos, ser projetado e pairar no ar — e, finalmente, recuperou a voz, e gritou
o seu nome, um aviso e uma súplica.
— Shang’ang!
E, quando o bliell baixou as patas, saíram faíscas da carapaça do
demónio e envolveram o bliell em chamas. Os uivos do animal aumentaram,
tomaram-se estridentes. T’uupieh tapou os ouvidos para aliviar a dor aguda
do seu grito. Mas os olhos não; o chicote do demónio parou com a
brusquidão do relâmpago e o bliell cambaleou, ressaltando ligeiramente
quando embateu no chão, morto. T’uupieh caiu para trás, batendo no pé do
demónio, que a susteve de bom grado enquanto ela enchia os pulmões e
desviava os olhos.
Para ver Chwiul, encurralado nas correntes de ar ascendentes na beira do
penhasco, a planar, a planar... E viu três setas que lhe saíam das costas, antes
de as correntes libertarem o seu corpo e ele desaparecer por baixo da borda.
Ela sorriu e fechou os olhos.
— T’uupieh! T’uupieh!
Abriu-os outra vez, resignadamente, quando sentiu a sua gente a juntar-
se à volta dela. A mão de Y’lirr afastou-se quando lhe ia tocar no rosto no
momento em que ela abriu os olhos. Sorriu-lhe uma vez mais, sorriu a todos,
mas não com o sorriso que mostrara a Chwiul.
— Y’lirr... — Deu-lhe a mão e deixou que ele a levantasse. Dores e
feridas aguilhoavam-na a cada pequeno movimento, mas estava certa e
segura de que o único e verdadeiro dano era um rasgão na asa donde escorria
sangue. Manteve a mão junto à ilharga.
— T’uupieh!
— Minha Senhora...
— Que aconteceu? O demónio...
— O demónio salvou-me. — Fez-lhe sinal para que se calassem. — E,
por razões muito suas, levou a melhor sobre a conspiração de Chwiul. — A
tomada de consciência e as implicações só agora se tomavam realidade no
seu espírito. Voltou-se e durante algum tempo, olhou fixamente para o olho
enigmático do demónio. Afastou-se em seguida, dirigindo-se com dificuldade
para a beira do penhasco para olhar para baixo.
— E o contrato? — Disse Y’lirr.
— Chwiul quebrou o contrato! Não me deu Klovhiri. — Ninguém
protestou. Lançou um olhar perscrutador às moitas, adivinhando facilmente
os sítios onde Ahtseet e o seu grupo tinham caído. Podia ouvir o choro de
uma criança. O corpo de Chwiul jazia no charco de pernas e braços abertos, à
vista de todos, e ela julgou ver mais setas a saírem do cadáver. Teria sido o
guarda de Ahtseet que crivara o seu corpo de setas, tomando-o por um
assaltante? A ideia agradou-lhe. E uma voz fraca dentro dela ousou murmurar
que a fuga de Ahtseet lhe agradava muito mais... Ela franziu as sobrancelhas
ao pensar nisso.
Mas Ahtseet tinha escapado e Klovhiri também — e assim podia tirar
partido disto para salvar o que fosse possível. Parou, pondo em ordem os
pensamentos, ainda confusos.
— Ahtseet! — A sua voz não era a voz do demónio, mas ecoou
satisfatoriamente. — É T’uupieh! Olha para o cadáver do traidor que jaz à tua
frente, o irmão do teu marido, Chwiul! Contratou assassinos para vos
matarem no pântano. Apanha o teu guia e obriga-o a contar tudo. Se ainda
estás viva apenas o deves ao aviso do meu demónio.
— Porquê? — A voz de Ahtseet tremeu tenuemente no vento.
T’uupieh riu amargamente.
— Porquê? Para fazer desaparecer os rufias das estradas. Para fazer com
que o Overlord sinta mais afeição pela sua serva fiel e a recompense melhor,
querida irmã! E para que Klovhiri me odeie. Que ele lhe tire as tripas se não
me deve as vossas vidas! Passa pelas minhas terras, Ahtseet. Dou-te
autorização... Desta vez.
Ela afastou-se do trenó e foi-se embora, sem se preocupar se Ahtseet
acreditava nela ou não. A sua gente esperava-a, reunida em silêncio à volta
do corpo do bliell.
— Que se passa agora? — Perguntou Y’lirr, olhando para o demónio,
perguntando a todos.
E ela respondeu, mas deu a resposta diretamente ao olho âmbar,
silencioso do demónio.
— Afinal parece que disse a verdade a Chwiul, meu demónio. Disse-lhe
que a partir de hoje não iria precisar da casa na cidade... Talvez o Overlord
considere isto um negócio honesto. Talvez se possa chegar a um acordo. A
Roda da Mudança leva-nos a todos, mas não com a mesma facilidade. Não é
assim, meu belo Shang’ang?
Ela deu uma pancadinha na sua carapaça aquecida pelo dia, e sentou-se
na terra macia à espera da sua resposta.
POSFÁCIO
Olhos de Âmbar é uma história de Cinderela — em sentido figurado,
senão literalmente. Ben Bova escreveu-me para me perguntar se fazia uma
história que serviria de introdução à «Women’s issue» da revista Analog, de
Junho de 1977. Já me tinha dado o título há cerca de um mês. Fiquei
encantada, porque escrevo muito devagar e nessa altura não havia nenhuma
história em embrião no meu espírito, ansiosa por ser escrita. Neste caso
tinha de tirar essencialmente alguma coisa de um chapéu — ou da minha
caixa das ideias.
Uma caixa de ideias é um instrumento extremamente útil a um escritor.
Penso que uma caixa de cartão mantém a minha coleção em ordem. Muitas
vezes uma só ideia não chega para servir de base a uma história, por isso
serve para reunir ideias e para as manter juntas em qualquer parte. Em
momentos de dificuldade podem ser retiradas e espalhadas, combinadas e
recombinadas até criaram ressonâncias interessantes que começam a dar
forma a uma história. Isto foi essencialmente o que fiz para criar Olhos de
Âmbar.
Comecei por tirar a ideia de uma relação emocional, íntima mas não
física entre o humano e o desconhecido, de um livro que li sobre um índio e
um lobo, e acrescentei-lhe os detalhes de um sonho que tive sobre uma
assassina num ambiente medieval. Aproveitei também a sugestão do meu
marido, Vernor, para situar a história em Titan, um satélite de Saturno, um
dos poucos corpos deixados no sistema solar que os cientistas pensam ter a
função potencial de desenvolverem uma certa forma de vida. Visto que sou
inspirada muitas vezes pela música, introduzi também elementos de uma
canção de Buffy St. Marie, que fala de uma «amante do demónio» afável.
Fundindo todos estes elementos, criei a estrutura básica da história. Uma vez
que tinha o essencial, sentei-me e escrevi sem parar, às vezes dez ou doze
horas por dia. O ritmo básico da criação literária é muito lento e constante. A
fim de escrever mais depressa tenho de escrever durante muito tempo, e o
processo de escrita é uma espécie de sonhar acordado, prolongado, quase
meditação. O meu corpo fica muito tenso quando é forçado a estar
imobilizado muito tempo; a disciplina que tenho de impor a mim mesma,
com a aproximação do fim do prazo, fez-me compreender que era capaz de
elevar o nível básico da minha resistência.
Mas depois de a história estar escrita, senti nela uma certa alienação,
talvez por ter sido criada sob tensão, sem se poder desenvolver num ritmo
normal. Ao elaborar uma história à minha velocidade «normal» tenho várias
oportunidades para me sentir bem com a sua qualidade, o que não aconteceu
com esta. Quando recebi uma carta a informar-me que ela tinha sido
designada como candidata a um Hugo, fiquei surpreendida. Concluí naquele
momento que esta história estava destinada a fazer-me sentir assim. Jurei que,
se ela ganhasse efetivamente o Hugo, iria ter de lhe pedir perdão pela minha
falta de fé, como uma sogra vingativa... Ganhou e espero ter reparado esta
injustiça ao dar o seu título a esta antologia.
Embora Olhos de Âmbar fosse escrita basicamente como uma aventura,
um dos temas fundamentais da história (e, assim espero, uma das razões por
que foi designada para o Hugo) é a importância da comunicação: comunicar
com seres desconhecidos (que podem ser simplesmente outros seres
humanos); a ideia de que por detrás da verdadeira comunicação está a
compreensão, e que com a compreensão talvez possamos vencer os nossos
receios. Contesta também o direito de qualquer ser ou sociedade interferir
com as estruturas de valor de outra cultura — podemos estar realmente
seguros de que os valores que lhes impomos são superiores aos que eles já
possuem? Temos o direito de fazer prosélitos? A vida é feita essencialmente
de sombras cinzentas e não de absolutos de certo e errado. Não há respostas
fáceis para os personagens, para o escritor, para o leitor.
CORRER RISCOS PARA SALVAR OUTROS
Outro grito de dor física chegou até eles, vindo da tenda transparente a
vinte metros de distância. Juah-u Corouda estremeceu quando atirava ao ar as
pedras do jogo esculpidas, que estavam dentro da taça, estragando o
lançamento.
— Diabos, uma tríade... Maldito barulho! Parecem unhas sobre metal.
— Orr não sabe o significado de «rendição». — Albe Hyacin-Soong
apanhou a taça. — Deve estar a ficar louco por não conseguir descobrir como
é que aqueles ratinhos sobrevivem à radiatividade. Como é que se
desenvolveram...
Ele não sabe o significado de «piedade». — Xena Soong-Hyacin olhou o
marido de sobrancelhas carregadas, as mãos apertaram os cotovelos. — Por
que é que ele não os anestesia?
— Deixa-te disso, Xena — disse Corouda. — São apenas animais. Não
sentem como nós.
— E que é que nós somos, Juah-u, senão animais que tentam
desempenhar o papel de Deus?
Eu só quero jogar squamish — murmurou Albe.
— Corouda esboçou um sorriso, desviando os olhos de Xena na direção
do limite do acampamento. Algumas queixas, entre elas a de Xena, tinham
levado Orr a afastar a tenda do laboratório das outras. Corouda ficou radiante.
Os ruídos irritavam-no, mas achava que aquilo não lhe dizia respeito. A
investigação era necessária. Xena — qualquer cientista— devia ser capaz de
aceitar isso. Mas os corações que sangram, estão sempre connosco. Por
melhor, por mais justa e quase perfeita que uma sociedade se tomasse, havia
sempre alguém que pretendia descobrir falhas. Certas pessoas nunca estavam
satisfeitas; ele sentia-se contente por não ser uma delas. E contente por ser
casado com uma delas. Por outro lado, Albe gostou sempre de uma boa
discussão.
— Depois vens dizer-me, que ele também não sente nada! — Retorquiu
Xena.
— Não levantes a voz, Xena. Ele ouvir-te-á. Está mesmo ali. E não
derrubes homens de palha, ele não tem nada a ver com isto. Ele é Piper
Alvarian Jary, tem de sofrer.
— Fizeram-lhe uma lavagem ao cérebro. E como punir uma pessoa que
sofre de amnésia, não é o mesmo homem...
— Não quero voltar a meter-me nisso — disse Albe, pouco
convincentemente.
Corouda abanou a cabeça, puxou para trás os caracóis loiros debaixo do
boné e afastou-se para a sombra. Sentaram-se de pernas cruzadas na terra
macia, castanho-acinzentada, com o primitivismo estudado que todos os
vigias simulavam. Virou ligeiramente a cabeça para olhar para Piper Alvarian
Jary, sentado numa rocha ao sol, sozinho como sempre, e à vista, como
sempre, de Hoban Orr, o seu senhor. Piper Alvarian Jary, que durante seis
anos — seis anos! Eram só seis? — Cumpria uma pena no Simeu Biomedical
Research Institute, estava a ser punido pela gravidade do seu pecado
Não que ele agora parecesse um monstro, enquanto brincava sem parar
com um monte de pedras. Envergava uma bata simples de cor clara, fechada
até ao pescoço apesar do calor; o cabelo preto caía-lhe sobre os olhos num
rosto estranho, queimado pelo sol. Podia ter sido ajudante servil de qualquer
pessoa, sentindo-se inquieto num grupo de peritos em Ecologia num planeta
inexplorado. Podia ter sido alguém...
Corouda desviou o olhar, lembrando-se das cicatrizes que o fato fechado
provavelmente escondia. Mas ele era Piper Alvarian Jary, que apoiara o
ditador Naran — que manchara as mãos de sangue num dos mais brutais
regimes na longa história da brutalidade da desumanidade infligida ao
homem. Corouda ficara surpreendido ao constatar que Jary ainda era jovem.
Mas uma vida passada no Simeu Institute como uma cobaia envelheceria
rapidamente um homem. Talvez seja por se sentar ao sol! Talvez queira
fritar os miolos.
—... É por isso que quis tornar-me vigia, Albe! — A voz insistente de
Xena atraiu de novo a sua atenção. — Assim não precisaríamos de fazer parte
de coisas como esta... Assim não teria de me sentar aqui a bater com a cabeça
numa parede de pedra por causa da injustiça e indiferença desta sociedade...
Albe estendeu um braço distraidamente e meteu uma madeixa de cabelo
apanhado em cima atrás da orelha dela.
— Mas tens de admitir que fizemos aqui uma descoberta extraordinária.
Afinal, um reator natural, uma concentração de urânio tão rica que está a
fender-se. A única coisa comparável de que temos conhecimento aconteceu
na Terra há um bilião de anos, antes que houvesse alguém que se
interessasse. — Ele acenou com a cabeça na direção da boca da caverna a
duzentos metros de distância. — E precisamente naquela caverna encharcada
há um em atividade e os animais sobrevivem no seu interior! Descobrir como
foi possível adaptarem-se a tanta radiação... Não é importante para nós
descobrirmos isso?
— Claro que é. — Xena estava com uma expressão magoada. — Não
me trates com ar protetor, Albe. Sei isso tão bem como tu. E tu sabes que não
estou a falar disso.
— Sim, eu sei que não é... — Ele suspirou, rendendo-se. — Em breve
esta expedição estará de partida. Já conseguiram a parte dos dados que
pretendem. E então nós os cinco podemos concentrar-nos no trabalho e
esquecer que os vimos. Teremos um planeta novo só para nós.
— Até começarem a mandar de barco os malditos turistas...
— Vá lá — disse Corouda num tom de voz demasiado alto. — Vá lá.
Por que razão estamos aqui sentados? Faz rolar os dados.
— Albe riu-se e abanou a taça. Espalhou as figuras esculpidas e deixou-
as agrupar na lama.
— Ah! Two-square.
Corouda resmungou.
— Sei que fazes batota. Se ao menos pudesse descobrir como o fazes,
Xena...
Ela virou-se para trás, deixando de olhar para Piper Alvarian Jary. O
rosto estava taciturno.
— Xena, se isto te faz sentir melhor, Jary não sente nada. Apenas nas
mãos, um pouco no rosto.
Ela olhou para ele sem expressão.
— Quê?
— Foi o próprio Jary que me disse. Orr destruiu o sentido do tato quando
o apanhou a primeira vez, para que ele não tivesse de sofrer inutilmente por
causa das experiências.
A boca dela abriu-se.
— Isto é justo? — Albe puxou para trás a tira do suor na testa bronzeada
e sem cabelo. — Lembra-te da semana passada, entrou na fogueira do
acampamento a recuar... Não sabia que falaste com ele, Juah-u. Que género
de pessoa é ele?
— Não sei. Quem sabe que tipo de pessoa é um indivíduo como ele? Há
pouco veio oferecer-se para examinar uma coleção de flora potencialmente
comestível... E Jary voltara no dia seguinte com os espécimes, com um ar
cansado e um pouco trôpego, para eu lhe dizer o que era e não era comestível.
Foi só mais tarde, depois de ter tido tempo para fazer as suas próprias
pesquisas, que compreendi como é que Jary tinha conseguido obter as
respostas em tão pouco tempo e com tanta precisão. Comeu-os para ver se o
envenenavam. Não me perguntes por que razão o fez. Talvez goste de ser
castigado.
Xena fulminou-o com um olhar.
— Não sabia que ele os ia comer. — Corouda bateu com a mão aberta
num percevejo, irritado. — Além disso teria de beber um litro de estricnina
para se matar. Transformaram Jary num laboratório de biologia ambulante! O
corpo dele produz uma imunidade contra qualquer coisa, quase
instantaneamente. Servem-se dele para fazerem vacinas. Podes cortar tudo
menos a cabeça, pois essa crescerá para trás...
— Oh, por amor de Deus. — Xena levantou-se, com o rosto moreno
congestionado. Deixou cair a taça no meio deles como uma coisa suja,
afastou-se com passos largos e desapareceu por entre as árvores.
Corouda viu-a partir, a coroa da floresta, vermelha com o vinho,
protegia-a da sua insensibilidade. Ao longe, por entre as árvores, conseguia
ver a vegetação atrofiada junto à boca da caverna do reator. A radiação
consumira uma encosta inteira e o coração da caverna ainda era uma fossa
radiativa, supurante, suficientemente quente para ferver água. No entanto,
algumas criaturas estranhas e minúsculas tinham decidido viver no seu
interior... O que significava que aquela expedição teria de continuar a assar
ao sol até que Orr fizesse uma descoberta importante ou resolvesse desistir.
Corouda suspirou e virou-se para olhar para Hyacin-Soong.
— Desculpa, Albe. Desta vez até me senti indignado comigo mesmo.
A expressão de Albe tomou-se menos dura.
— Daqui a pouco ficará calma... Diz-lhe isso quando ela voltar.
— Assim farei. — Corouda arregaçou as mangas da camisa, sentindo-se
incomodado com o calor. — Então precisamos de três se vamos continuar a
jogar. — Fez um gesto na direção de Piper Alvarian Jary, que ainda estava
sentado ao sol. — Querias saber que género de pessoa é ele... Por que é que
não lhe perguntamos?
— A ele? — A incredulidade transformou-se em curiosidade no rosto de
Albe. — Por que não lhe vais perguntar?
— Olá, Jary! — Corouda viu o rosto queimado pelo sol a levantar-se,
surpreendido, para olhar para ele. — Queres jogar squamish? — Mal pôde
ver a expressão do rosto de Jary, quase sem se aperceber da mudança. Pensou
que se tinha transformado em medo, concluiu que estava errado. Mas nessa
altura Jary olhou de soslaio para ele, protegendo os olhos do sol, e a cabeça
escura oscilou. Jary encaminhou-se para eles, examinando o solo com o passo
inseguro e arrastado de um homem que não conseguia equilibrar-se.
Sentou-se desastradamente no meio deles, com um sorriso inexpressivo
nos lábios e colocou os pés em posição com um puxão.
Corouda viu-se atrapalhado para encontrar palavras, perguntando a si
mesmo por que razão tinha feito aquilo. Segurou a taça no ar, abanou-a.
— Uh!... Sabes jogar squamish?
Jary pegou na taça e abanou a cabeça.
— Não te-tenho muitas oportunidades de jogar seja o que for, s-
sentinela. — O sorriso tomou-se triste, mas não transpareceu nada na sua voz.
— Nunca me convidaram.
Corouda recordou uma vez mais que Piper Alvarian Jary gaguejava e
sentiu uma pontada de compaixão indesejada. Mas não tinha ouvido da boca
de alguém que Jary gaguejara sempre? Jary tinha finalmente desapertado a
bata, Corouda pôde ver o princípio de uma cicatriz no meio das clavículas,
que se estendia pelo peito. Jary surpreendeu-o a olhar espantado; uma mão
ergueu-se instintivamente para a fechar.
Corouda pigarreou.
— É fácil, é sobretudo uma questão de sorte. Deitas as pedras e isso
depende de...
Saiu outro guincho estranho da tenda atrás deles. Jary olhou na sua
direção.
—... Da distribuição, da forma como as pedras se agrupam... Aborrece-
te? — A pergunta monótona saiu antes que ele se desse conta e esta fez que
se sentisse como uma criança insolente.
Jary olhou para ele como se o facto não o tivesse surpreendido.
— Não. São apenas animais. Antes eles que eu.
Corouda sentiu a raiva aumentar, lembrando-se do que Jary era... Até se
lembrar de que ele tinha dito a mesma coisa.
— Piper! Chega aqui, preciso de ti.
***

Corouda reconheceu a voz de Hoban Orr. Jary também a reconheceu,


pôs-se de pé, tropeçando com a pressa.
— Desculpem, o Doutor precisa de mim. — Ele afastou-se; viram-no
virar-se a dirigir-se para a tenda de Orr, arrastando os pés. A sua voz não se
alterara. Corouda tentou de repente não se interrogar sobre o motivo por que
precisavam dele... Catspaw: pessoa usada por outra para fazer algo perigoso
ou desagradável.
Corouda levantou-se, limpando as calças. Jary passava o tempo ao ar
livre enquanto Orr estava a dissecar. Piper Alvarian Jary, que servira um
homem que fizera que Attila, o Huno, Hitler e Kahless parecessem boas
pessoas. Corouda gostava de saber se era possível que ele não quisesse
observar.
Albe levantou-se também e espreguiçou-se.
— Que me dizes a isto? É mesmo o autêntico Piper Alvarian Jary.
«Antes eles do que ele... Apenas um bando de animais.» Talvez pense que
somos todos um bando de animais.
Corouda viu Jary desaparecer no interior da tenda.
— Não surpreenderia nada.
***
Piper Alvarian Jary caminhava cautelosamente sobre a superfície
irregular, transformada em escória, do rebordo estreito da caverna. Por baixo
dele, a uns cinco metros da sólida superfície rochosa, encontrava-se a
superfície líquida e pouco funda da lama radiativa. Raramente olhava para
ela, demasiado preocupado em alumiar um caminho para os seus próprios
pés. Os testes geológicos tinham revelado que uma camada a sete metros de
profundidade na lama em ebulição continha uma concentração invulgar de
minérios cindíveis, outrora suficientemente quente para devorar este estranho
e deformado mundo subterrâneo. Aventurara-se a lançar um olhar para o
negrume, a lanterna do capacete projetava a luz sobre formas grotescas
arrancadas da rocha derretida; estalactites e estalagmites metálicas, prateadas,
ressurgidas dos minérios vaporizados. Durante milhares de anos a massa de
lama e urânio, saturada de água, tomara-se exotérmica e depois arrefecia
esporadicamente aqui e ali. Como enormes caldeirões de feiticeiras, o subsolo
mantivera-se em ebulição e crepitava há cerca de meio milhão de anos.
Os vapores que subiam na linha de visão de Jary impediam-no de ver o
torturado mundo inferior. Perguntou a si mesmo, vagamente, se o cheiro seria
desagradável se ele conseguisse tirar o capacete do fato de proteção contra as
radiações. Qualquer outra pessoa talvez tivesse pensado no Inferno, mas essa
imagem não lhe veio ao espírito.
Tropeçou e ao subir bateu num afloramento chanfrado. A figura perfeita
de Orr virou-se para olhar para ele, cintilando à luz trémula da lanterna do
capacete.
— Cuidado com essa caixa!
Ele procurou às apalpadelas o recipiente bojudo, suspenso junto à anca,
tranquilizando o corpo sem nervos de que o conteúdo ainda estava bem
guardado. Amontoados dentro dele, rastejando uns por cima dos outros, sem
destino, estavam os seis trogloditas inertes, do tamanho de um rato, que
tinham capturado naquela jornada. Fez incidir a luz sobre eles, mas não
reagiram, olhando para ele com ar espantado e através do postigo de
observação.
— Está tudo bem, d-doutor.
Orr acenou com a cabeça, prosseguindo a marcha. Jary desviou-se de
uma estalactite reluzente, avançou rapidamente antes de a corda de segurança
se esticar com um sacão. Sentiu-se grato pela corda, apesar de ter ouvido o
sentinela de nome Hyacin-Soong chamar-lhe trela. Hyacin-Soong vinha já
atrás dele com o outro sentinela, Corouda, que lhe pedira para jogar squamish
nessa manhã. Não esperava que lhe pedissem outra vez; sabia que tinha
hostilizado Hyacin-Soong — talvez pelo simples facto de existir. Corouda
ainda o tratava com uma indiferença benigna.
Jary lançou de novo um olhar aos trogloditas, desejando subitamente que
Orr perdesse o interesse por eles e os tirasse dali. Queria a segurança do
Simeu Institute, a proteção do conhecido. Tinha medo da sua falta de
habilidade naquele ambiente hostil, medo dos desconhecidos, medo de
ofender Orr... Deixou sair o ar dos pulmões contraídos num longo suspiro.
Claro que estava com medo; tinha motivo para estar. Ele era Piper Alvarian
Jary.
Mas Orr nunca iria perder o interesse pelos trogloditas até desvendar o
código secreto dos genes desconhecidos ou ficar sem espécimes com que
trabalhar. Orr pretendia acima de tudo descobrir como se tinham adaptado à
caverna no espaço de tempo geologicamente curto em que o reator estivera
estável — na expedição todos desejavam saber. Mas até a biologia básica dos
trogloditas o confundia: quais eram as funções das quatro espécies diferentes
que ele observara; como se reproduziam, quando pareciam ser assexuados,
pelo menos segundo os padrões humanos; que cavidades ecológicas
ocupavam, com uns cérebros tão desesperadoramente rudimentares. E, em
particular, como era possível a sua existência em termos termodinâmicos. Orr
pensava que tiravam nutrientes diretamente da lama radiativa, mas nem
mesmo ele podia aceitar a possibilidade de a cadeia de alimentos vir a dar em
cisão nuclear. Os próprios trogloditas eram pouco radiativos; eram formados
fundamentalmente por carbono, podiam resistir a altas pressões e captavam
estímulos no extremo do espectro EM. E até àquele momento era tudo o que
Orr sabia ao certo.
Jary segurou-se com as mãos enluvadas à parede áspera por cima do
rebordo, quando esta se contraiu, e lembrou-se de tocar nos trogloditas. Uma
vez, quando estava sozinho, tirara as luvas de proteção e segurara um nas
mãos nuas. O seu corpo coberto de escamas cinzento-arroxeadas não estava
frio nem escorregadio como ele imaginara, mas quente, sinuoso e
reconfortante. Segurara-o tanto quanto se atreveu, ansiando o prazer sensual,
sensorial, do seu movimento e da textura estranha da sua pele. Acariciara o
corpo insensível, enquanto repetia continuamente os mesmos movimentos
tateantes, impassível, como uma máquina desgovernada. E as suas mãos
tremeram com a mesma confusão de vergonha e desejo que sempre sentia
quando lidava com os animais das experiências...
Em tempos brincara inocentemente com os ratos e coelhos macios,
flexíveis, de olhos cor-de-rosa, com os ágeis macacos e os fletters
iridescentes. Mas depois Orr começara a treiná-lo como assistente, e a
observação do progresso de doenças provocadas, a extração de intestinos e
sangue, a disposição de pequenos corpos mutilados dentro do cano
incinerador mostrara-lhe o lugar deles e o seu. Os animais não tinham direitos
nem sentimentos. Mas, quando segurava entre os dedos a cabeça do rato, que
se contorcia e olhava para os olhos vermelhos, amorfos, quando agarrava a
sua cauda para o sacão que lhe partiria a espinha, as suas mãos tremiam.
O solo tremeu com a tensão da pressão reprimida; Jary caiu de joelhos
sem sentir o violento impacte. Ouviu as pragas dos sentinelas atrás dele e viu
Orr à frente a tentar equilibrar-se a todo o custo. Quando as mãos lhe
disseram que o abalo tinha passado, começou a rastejar na direção de Orr,
servindo-se das mãos para tatear o caminho, com as palmas frias do suor.
Não podia compensar um movimento inesperado; era mais fácil rastejar.
— Piper! — Orr deu um sacão na corda de segurança. — Levanta-te,
estás a arrastar a caixa dos espécimes.
Jary sentiu os sentinelas a aparecerem por detrás dele e ouviu um a rir-
se. O aguilhão de uma recordação súbita e violenta fê-lo pôr-se de pé;
continuou sem olhar para eles. Rastejara após a primeira operação, aquela
que destruíra o seu sentido do tato — usando as mãos ainda sensíveis para
guiarem o seu corpo entorpecido. O pessoal do laboratório rira; e ele também
rira, até que a névoa do tratamento de repersonalização começou a levantar,
até começar a perceber que se estavam a rir dele. Depois acabara por
aprender pelos seus próprios meios a caminhar ereto como um ser humano,
para parecer pelo menos um ser humano.
Viu Orr parar de novo à sua frente e compreendeu que já deviam ter
chegado à Cisão.
— Alumia mais, aqui em cima.
Ele avançou para soltar a corda no meio deles e fez incidir a luz da
lanterna sobre a fenda, quase com um metro de largura, que se abriu de um
lado ao outro do caminho. Os sentinelas juntaram-se a ele; Orr recompôs-se
no mar de luz e saltou sem dificuldade. Jary aproximou-se da borda da fissura
e baixou a luz da lanterna do capacete; viu o reflexo na superfície da água,
impregnada de óleo, cintilante, a dez metros de profundidade. Ele vacilou.
— Não fiques tão perto da borda!
— Recua e salta.
— Não pense nisso!
— Vá lá, Jary, não temos o dia todo!
Hyacin-Soong bateu-lhe no ombro precisamente no momento em que ele
começava a avançar. Com um grato abafado de protesto, desequilibrou-se e
caiu.
A corda de segurança esticou bruscamente, atirando-o contra as paredes
apertadas da fissura. Desorientado e atordoado, ficou suspenso num
caleidoscópio de luz e sombra giratórios. E depois, incrédulo, sentiu a corda
de segurança a começar a ceder... Soltou-se abruptamente, algures por cima
dele, e foi projetado até ao fundo, numa queda de mais seis metros.
— Jary! Jary...?
— Consegues ouvir-nos?
Jary abriu os olhos, vagamente surpreendido por ainda conseguir ver —
por a lanterna do capacete ainda funcionar, e os altifalantes no interior do fato
e o cérebro...
— Estás bem, Piper?
A voz de Orr foi registada, e depois o significado das palavras. Um
sorriso breve de admiração alargou a boca de Jary.
— Sim, doutor, ó-ótimo! — A voz tremia-lhe. O absurdo da resposta
atingiu-o e começou a rir.
— Domina-te! Estás a ficar em estado de choque. Que aconteceu aos
espécimes?
Jary respirou fundo, obedientemente e olhou para baixo. Viu-se
submerso em água fumegante até à cintura. As pernas não conseguiram
responder quando tentou movê-las; por um instante perguntou a si mesmo se
tinha partido as costas. Mas as mãos tateantes encontraram lama compacta
trinta centímetros abaixo da superfície da água, e percebeu que estava apenas
preso e não paralisado. A caixa dos espécimes boiava, meio submersa, quase
fora do seu alcance. Fez um movimento brusco para a frente, apanhou a tira
de couro e puxou-a para trás, patinhando na lama. Os trogloditas dentro da
caixa tinham sido acordados do seu torpor com o sacão; o escarafunchar
frenético sobressaltou-o.
— Então? Que aconteceu?
Jary apercebeu-se de que o movimento brusco para agarrar a caixa o
enterrara mais na lama; agora a água chegava-lhe ao peito.
— A-apanhei-a. Mas fiquei atolado na lama! Estou a enterrar-me. —
Levantou os olhos para os medidores de radiação externa no interior do
capacete. — Os dosímetros estão todos vermelhos; o meu fato está a ficar
com um peso excessivo, rapidamente. — Curvou-se para trás, esforçando-se
por ver o rosto de Orr do outro lado da curva convexa da parede da fissura.
Viu apenas uma estrela tripla, três raios luminosos nas lanternas dos
capacetes, muito distantes por cima dele, que desciam no meio das paredes
verticais da fenda.
— Mantém a cabeça levantada para te podermos ver. Vamos atirar-te
uma corda. — Ele reconheceu a voz de Corouda, viu a corda a descer em
espiral e a entrar no feixe luminoso da sua lanterna. — Amarra-a à volta da
cintura.
A ponta da corda balouçava meio metro acima da sua cabeça. Tentou
subir, segurando-se à parede, mas as luvas cobertas de lama não conseguiam
agarrar as fibras escorregadias e caiu para trás, enterrando-se mais.
— E curta de mais. Não con-consigo.
— Então ao menos prende-a à caixa dos espécimes.
— Não consigo chegar-lhe! — Bateu na rocha com o punho. — Estou a
afundar-me vou ficar frito. — Ti-tirem-me daqui!
— Não te mexas. — Disse Corouda calmamente —, enterras-te mais
depressa. Dentro desse fato não correrás perigo pelo menos durante quinze
minutos. Procura um apoio para as mãos na parede e agarra-te a ele.
Voltaremos logo com o equipamento. Ficarás bem.
— M-mas...
— Não largues essa caixa.
— Sim, doutor... — Deixou de ver a estrela tripla e perdeu o contacto
com o bordo da fissura. Não conseguia tocar nas duas paredes sem esticar os
braços; descobriu uma saliência baixa, colocou a caixa dos espécimes e um
cotovelo em cima dela. O vapor embaciou a placa do rosto e ele limpou-a,
cobrindo o vidro com água e lama. Os trogloditas tinham serenado sobre a
saliência, como se estivessem à espera como ele. Só se ouvia o ruído da sua
respiração ofegante, o alçapão de rocha isolou-o até do conforto de outra voz
humana. De repente sentiu-se satisfeito por ter a companhia dos trogloditas.
Os minutos passaram. Comprimido no círculo de luz, começou a
imaginar o que aconteceria se outro abalo fechasse aquela minúscula fratura
na rocha... O que aconteceria se o fato deixasse de o proteger... O suor caía-
lhe pela cara abaixo como lágrimas; abanou a cabeça, sem saber se estava a
transpirar por causa do calor da lama ou por causa da tensão da espera. O fato
podia ter-se rasgado quando ele caiu; a lama radiativa podia estar a infiltrar-
se e ele não o saberia. Tinha sido exposto a radiações nalgumas experiências
de Orr; provocara-lhe náuseas, e uma vez caíra-lhe o cabelo todo. Mas nunca
fora obrigado a ver a carne a apodrecer e a desprender-se dos ossos, o corpo a
desintegrar-se à sua frente...
A mão dormente escorregou do rebordo e ele caiu na lama. Içou-se uma
vez mais, a arfar, recuperando o sangue-frio. Era demasiado imaginativo; era
o que Orr lhe dissera sempre. E Orr ensinara-o a dominar o pânico durante as
experiências, como o ensinara a dominar as funções biológicas do corpo. Já
devia saber o suficiente para não perder a cabeça. Mas havia ocasiões em que
nem tudo o que sabia era o suficiente. E era nesses momentos que chegava
quase a compreender o que Piper Alvarian Jary tinha feito e por que merecia
ser castigado.
Respirou mais devagar, concentrando-se naquilo que era tangível e real;
a visão deslumbrante da lua na parede pintalgada à sua frente, as chamas
brilhantes da dor quando dobrava a mão que ferira na pedra. Saboreou a
estimulação sensorial que era dor, que provava que estava vivo, com uma
sensação de culpa e desejo aumentada pelo medo. Os olhos dos trogloditas,
convexos como espelhos, juntaram-se perto do postigo de observação da
caixa, refletindo a luz, sem desviarem os olhos dele, como se estivessem a
ver um outro mundo. Lembrou-se de que eles podiam ver e virou
ligeiramente a cabeça, constrangidamente. Ficou imóvel quando o rosto
pequeno, coberto de lodo, de outro troglodita saiu da água perto do seu peito;
depois dois e três... Meia dúzia de um momento para o outro.
Movendo-se com um sentido de determinação que ele nunca os vira
revelar, começaram a saltar e a tentar subir pela parte exterior da parede — e
pelo seu próprio fato, como se ele fosse apenas uma extensão da rocha. Ficou
imóvel, incapaz de fazer o que quer que fosse a não ser olhar com um ar tão
pasmado como o dos seus prisioneiros. Os seus prisioneiros... Um troglodita
escorregou do seu ombro para cima do rebordo; todos procuravam chegar à
caixa. Os que estavam presos tê-los-iam chamado ali? Mas como? Eram
estúpidos, primitivos, criaturas com cérebros rudimentares. Como é que
podiam trabalhar juntos?
Mas estavam a trabalhar juntos, já agrupados à volta da caixa. Alguns
sondavam com dedos compridos, providos de membranas, os maiores
puxavam e espreitavam. Examinaram a superfície com os corpos, indiferentes
à luz da lanterna do capacete, como se o sentido do tato fosse a única maneira
de conseguirem descobrir a sua natureza. Lembrou-se de que não podiam ver
o segmento do espectro EM que para ele era luz visível. Ele era apenas uma
parte da rocha na sua cegueira. E ali, na escuridão da caverna, eram criaturas
dotadas de razão, inteligentes — quando, lá fora, no acampamento, nunca
tinham revelado nenhuma espécie de inteligência nem atividade de grupo;
nunca revelaram nada. Porquê? Deixavam os cérebros na lama quando
vinham à superfície?
Repentinamente Jary perguntou a si mesmo se enlouquecera. Não, estava
realmente a acontecer. Se alguma vez esteve para perder a razão, isso já teria
sucedido há muito tempo. E não havia nenhuma dúvida no seu espírito de que
aqueles animais tinham vindo ali com um objetivo — libertar os prisioneiros
da caixa. Estes animais...
Observou a luta infatigável, desesperada, para abrirem a caixa, sabendo
que era inútil, que acabaria em fracasso. Os trogloditas presos estavam
condenados à morte, porque somente um ser humano podia abrir o fecho para
os pôr em liberdade. Somente um ser humano...
A sua mão ergueu-se de través a gotejar lama e estendeu-se na direção
da caixa; teve a impressão de que os trogloditas tinham recuado, como se o
sentissem aproximar-se. Quebrou o lacre do fecho e levantou a tampa. Lá
dentro, os trogloditas encolheram-se desordenadamente, enquanto os que
estavam do lado de fora trepavam para cima do rebordo.
— V-vá lá! — Puxou a caixa para perto dele, colericamente, e virou-a ao
contrário com um abanão. Viu os corpos deselegantes caírem na água
fumegante.
Colocou de novo a caixa sobre o rebordo e agarrou-se a ele, com o
espírito estranhamento leve e vazio. E foi então que viu o segundo círculo de
brilho que envolveu o dele na parede, iluminando a caixa vazia. Levantou os
olhos e viu Corouda suspenso em silêncio numa corda por cima da sua
cabeça com os pés comprimidos contra a rocha coberta de sombras.
Conseguia ver perfeitamente os olhos negros de Corouda e a estranha
ansiedade do seu rosto.
— Precisas de ajuda, Jary?
Ele virou-se e olhou para a caixa vazia, com a mão ainda agarrada à tira
de couro.
— Preciso.
Corouda acenou com a cabeça e atirou-lhe uma corda.
***
Isthp: Mas temos de entrar em contacto com estas criaturas. Vimos
finalmente que são seres, estranhos mas parecidos connosco; não uma força
desconhecida. Possuem móbiles com formas que podem ser conhecidas.
(Correntes quentes e pesadas erguem-se em vagas)
(Móbiles erguem-se em conjunto)
(Sussurro de nuvens neutrónicas e térmicas)
Mng: Possuem almas que podem ser alcançadas. O móbile que libertou
os nossos presos, quando tudo o que fizemos foi infrutífero — temos de
entrar em contacto com o séssil deste e dar a conhecer o nosso problema.
Estes seres estranhos também devem ter uma esquadrilha espacial. Não são
oriundos daqui. Podem ajudar-nos.
(As minhas gavinhas achatam)
(Teias carbonosas, verdes, douradas)
(Gama brilhante fica vermelho-escura quando subimos)
Ahm: O nosso único problema é que estes seres estranhos querem
destruir-nos! Aquele ser não irradiava vida — era uma criatura fria da
escuridão, que gotejava lama quente.
(Correntes sedimentosas, que arrefecem quando esta se ergue)
(Por cima escuridão suave, subimos em direção à escuridão)
Mng: Mas o séssil apercebeu-se da nossa angústia. Libertou os teus
móbiles. Mostrou boa vontade. Não tínhamos conhecimento da verdadeira
natureza do ser estranho; talvez só agora comecem a compreender a nossa.
(Ausência silenciosa de fluxo neutrónico)
Ahm: Mas como é que sabemos que depois nos deixariam em paz?
Enviámos os nossos móbiles para a escuridão superior e já começámos o
ritual por três vezes. E três vezes nos atacaram traiçoeiramente. Só nos restam
seis meses. Os nossos móbiles têm de completar o ritual nas suaves camadas
superiores ou não haverá séssiles novos. Estamos a envelhecer; leva tempo a
focar a difusão, a obliquidade de outra mente jovem. Não podemos esperar
até à próxima chamada.
(Toma-se mais suave, mais frio)
(O mundo brilhante obscurece à nossa volta)
(A radiação toma-se cinzenta, retardada)
(Apenas sussurros das nuvens neutrónicas)
Isthp: Isso é verdade. Mas certamente podemos fazê-los compreender...
Temos de correr esse risco para ganharmos alguma coisa que valha a pena.
(Correntes contrárias, frias e arenosas)
Scwa: E que é que existe lá que valha a pena para pormos em perigo a
nossa integridade e sanidade por uma coisa que ainda não temos? Partimos
para colonizar um planeta novo — e assim fizemos.
(Escuridão; escuridão que desaparece e sussurra)
(Espaços atmosféricos suaves, basalto sólido)
Isthp: Isso é que não! Estamos encurralados nesta bolsa de luz, mal
temos espaço para exercitar os nossos móbiles num mundo escuro e hostil.
Cada século a nossa vida fica mais curta. A concentração de minério é apenas
um acaso feliz, incerto. Este não é o mundo que vocês queriam, um como o
nosso que produz luz perpétua. Aqui não há futuro.
(Rajadas de neutrões rápidos que estalam)
(Sobem velozmente, sobem velozmente)
(Detém-te, ó rajada veloz, espera pelas outras)
Ahm: Então que sugeres? Que regressemos ao nosso planeta, onde não
há lugar para nós? Que temos de depender destes monstros estranhos para
nos levarem até lá?
(Escuridão, escuridão em toda a parte)
(Radiância de lama, suave e quente)
Mng: Não existem monstros! Podiam ajudar-nos a encontrar um mundo
melhor!
Kle: Sentimo-nos bem aqui. Somos colonos, não exploradores; só
pedimos que nos deixem criar os nossos móbiles... Tal orgulho, para sentir a
vivacidade do corpo ou a graciosidade de uns dedos ágeis; para saber que eu
escolhi o melhor para procriar... E para servir de mediador na paz.
(Poças de lama com uma radiância vermelho-clara)
(Basalto macio... E a atmosfera rarefeita das camadas superiores)
(Sinto que brilho em todo o corpo)
Mng; Que adianta criar os melhores móbiles, se não têm nenhum
objetivo? Não te constroem nada, não contribuem com nada — tu não és um
ser integral: és um criador de animais de estimação, adulterado. Criar
móbiles que sejam capazes de olhar fixamente para o universo estrelado, isso
é verdadeiramente maravilhoso. Se fosse possível criar móbiles como os
nossos, que comandam a nave, que pudessem ver a verdadeira natureza dos
desconhecidos da escuridão superior — isso valeria a pena. Mas aqui não
temos possibilidade de criar alguma coisa de valor.
(Correntes que produzem estalidos ficam mais fracas e suaves)
(Puxem este móbile; correntes deslizem)
(Profundezas brilhantes já por baixo de nós... rodeiam com uma auréola
os móbiles do meu amigo resplandecente Isthp, Gama-brilha-através-do-
Feldspato-fundido)
Ahm: Vale a pena... Criar móbiles artificiais e construir máquinas
artificiais? Máquinas que falham como todos os objetos materiais, efémeros.
Bllr, Rhm, Tfod: Técnico Mng!
Mng: Quinhentos anos volvidos e ainda não te resignaste a um acidente.
Deram-te um bom nome, Ahm, que é Escuridão-Ausência-de-Radiação.
(Comecem o primeiro alinhamento)
(Como brilham... Como eu brilho)
(Brilhem na Escuridão)
(Brilhem)
Ahm: Foi um voo espacial que trouxe a verdadeira escuridão às nossas
vidas. O objetivo do séssil do corpo é permanecer fixo para tentar alcançar a
perfeição do espírito e do móbile, e não cair como um grão de areia no vazio
entre os planetas.
(Agrupem-se)
(Formem a primeira figura)
(Poças de lama cintilante, vermelho-acinzentada)
Isthp: O «vazio» do espaço está cheio de luz, se alguém tem móbiles que
a vejam. Radiação estranha que ainda treme na minha memória. A
tecnologia liberta o séssil como a meditação liberta a alma. Por isso os
séssiles transformam-se nos móbiles de Deus.
(Juntem-se para formarem as figuras)
(O peso da densidade da rocha sólida)
(É belo de se ver)
Ahm: Heresia, Heresia! Blasfemo.
(Juntem-se, móbiles meus)
(Criação pura. Raça pura)
Mng: Ahm, fazes-me perder o controlo...!
Isthp: Paz, meu caro Mng, Música-das-Nuvens. Não estou ofendido.
Como os nossos Vivos diferem dos nossos Velozes, assim as nossas próprias
almas diferem de um ser para o outro. Nunca fomos feitos para mergulhar
calmamente nas profundezas, tu e eu.
(Devagar, tu que és forte, move-te com cuidado)
(Ondulações da vibração envolvem a praia; poças de lama-ficam calmas)
(Passam por baixo, passam pelo meio)
Mng: Ahm, tens de pensar nas gerações futuras. Por que é que os nossos
móbiles respondem agora à Chamada, mas para criarem novos séssiles, quem
criará novos móbiles? O nosso espaço aqui diminuirá à medida que formos
aumentando, e em breve ficará semelhante ao nosso planeta... E então será
muito pior. Não temos meios, nem equipamento nem tempo para reestruturar
a vida no espaço. És egoísta...
(Afasta-te, sussurro da brisa neutrónica)
(A pressão desloca a rocha)
(As gavinhas roçam)
Zhek: Tu és egoísta! Tu só queres voltar para o espaço para nos
obrigares a sofrer mais perigos e privações por causa das tuas máquinas
pervertidas, esses móbiles mecânicos.
(Fluxo suave de cor sobre formas brilhantes)
(Primeiro movimento de receptividade)
Scwa: Lembro-me de uma escuridão esbatida e de um frio glacial...
Angústia em todos os meus móbiles, enquanto transportam o receptáculo do
meu séssil sobre a crosta do planeta inexplorado. Ja sofremos de mais por
causa da falha da nave; poucos de nós chegaram aqui com vida. Não estou
preparado para mais atribulações. Prestem atenção aos móbiles! Entrem numa
nova fase do modelo...
(Todos se juntaram em círculo)
(Teçam redes de vida, resplandecente)
(As formas multiplicam-se)
Rhm, Tfod, Zhek, Kle: Combinado, combinado.
Isthp, Mng: Temos de entrar em contacto com a criatura brilhante!
***
Jary estava deitado na mesa de observação enquanto Orr examinava o
seu corpo em busca de ossos partidos e sondou-o com um medidor de
radiação. Ele conseguia ver a caixa vazia dos espécimes pelo canto do olho,
ainda no chão onde Orr a deitara quando entrou na tenda. Orr fizera-o esperar
enquanto falava com Corouda no exterior — mas ainda não dissera mais nada
sobre a perda dos trogloditas. Jary gostava de saber o que Corouda tinha visto
— ou se tinha visto alguma coisa. Nunca ninguém olhara para ele como
Corouda no fundo da fenda... E por isso não podia ter a certeza do seu
verdadeiro significado.
— Não tens nada que precise ser tratado. — Orr fez um gesto para que
ele se levantasse. — Pequenas fraturas nalgumas costelas.
Jary sentou-se na beira da mesa, um pouco aliviado, comprimindo a mão
na fria superfície de metal. Orr estava furioso; ele conhecia todas as linhas
naquele rosto inexpressivo. Mas Orr talvez estivesse furioso apenas por ele
ter perdido os espécimes.
— Tens alguma coisa que te preocupe?
— Tenho — respondeu ele para a nuca grisalha de Orr, porque Orr já se
tinha virado para as caixas de armazenagem. — Dei-deixou-me cair. Não
deixou? — Descobrira que a corda de segurança estava untada e o engate
solto na ponta.
Orr voltou-se, surpreendido, e olhou para ele.
— Sim, deixei. Tive de soltar a corda senão podias ter-me arrastado para
dentro da fenda juntamente contigo.
Jary soltou uma gargalhada.
Orr acenou com cabeça, como se tivesse encontrado uma resposta.
— Foi por isso que fizeste aquilo?
— Quê?
— Soltaste os espécimes. Porque te deixei cair... É isso?
— Não. — Jary olhou contrafeito para a caixa no chão. — Que-quero
dizer, a-abriu-se, só isso! Eu disse-lhe. Quando ela ca- caiu. — Gaguejava
mais quando se enervava.
— Por que não me disseste isso logo?
— Não sabia! — As mãos comprimiram-se no metal; desceu da mesa,
escorregando.
— Fica aí! — Orr colocou um tabuleiro de instrumentos e pratos de
amostras sobre a mesa ao lado dele.
— Aqueles fechos não se «abrem sozinhos». Abriste-a e deixaste-os
sair... Por despeito.
— Não. — Ele abanou a cabeça, suportando o exame monótono de Orr.
— Não me mintas. — A expressão de Orr mudou um pouco, enquanto o
rosto de Jary se mantinha impassível. — O sentinela Corouda disse-me que te
viu abri-la.
— Não. — Desta vez a palavra morreu antes de chegar à boca. Os olhos
mexeram. Olhou para os pés, descobriu uma cicatriz.
— Então foi isso. — De novo o aceno de satisfação. Orr estendeu a mão
e agarrou-lhe o pulso. — Sabes como aqueles animais são importantes. E
sabes como vai ser difícil e arriscado recuperá-los. — Orr baixou à força a
mão de Jary e puxou-a para cima da cabeceira da mesa brilhante, com a força
que era sempre uma surpresa para ele. Orr pegou num bisturi.
Os dedos de Jary cerraram-se convulsivamente.
— Eles de-desenvolvem-se outra vez!
Orr não olhou para ele.
— Preciso de algumas amostras de tecido. Tu vais fornecê-las. Abre a
mão.
— Por favor. Por favor, não me fira as m-mãos.
Orr serviu-se do bisturi. E Jary gritou.
— Que está a fazer aqui dentro, Orr?
A voz forte e irada de uma mulher encheu a tenda. Jary pestanejou para
ver melhor e deparou com a sentinela Soong-Hyacin parada à entrada, com
um olhar duro de indignação. Olhou para o bisturi que Orr ainda empunhava
(o bisturi), para o sangue que se juntava na mão de Jary. Chamou por alguém
do lado de fora da tenda; Corouda apareceu ao lado dela na entrada.
— Vê-me isto.
Corouda seguiu o olhar dela e fez um esgar.
— Que é que se passa?
— Nada que vos diga respeito, sentinelas. — Orr franziu as
sobrancelhas, mais aborrecido que embaraçado.
— Tudo o que acontece no nosso planeta nos diz respeito — disse
Soong-Hyacin. — E isso inclui a sua tortura...
— Xena. — Corouda fez-lhe um sinal com o cotovelo. — Que é que ele
te está a fazer, Jary?
Jary reprimiu um soluço, sem voz, e encolheu os ombros sem olhar para
Corouda, não querendo ver o seu rosto.
— Estava a tirar umas amostras de tecido. Como podem ver. — Orr
pegou num prato de amostras, pousou-o. — O meu trabalho, e a função dele.
Não tem nada a ver com o «vosso planeta», como disseste.
— Porquê das mãos dele?
— Ele sabe porquê, sentinela... Piper, vai lá para fora e espera. Chamo-te
quanto precisar de ti.
Jary contornou a mesa, comprimindo os lábios para não vomitar quando
olhou para o tabuleiro dos instrumentos; passou pelos sentinelas e escapou-
se, reconhecidamente, para o ar puro.
Corouda viu Jary afastar-se, arrastando os pés à luz do sol do entardecer,
concentrou de novo a sua atenção no interior da tenda.
— Se não deixares de interferir no meu trabalho, sentinela Soong-
Hyacin, vou queixar-me à Dra. Etchamendy.
Xena levantou a cabeça.
— Ótimo. Está no seu direito. Mas não se admire se ela nos apoiar. O
senhor conhece as leis do domínio. Obrigada, Juah-u... — Ela virou-se para
se ir embora, olhou para ele inquiridoramente.
Corouda acenou com a cabeça.
— Num minuto. — Ele viu Orr tratar dos pratos das amostras e começar
a pôr de parte o equipamento.
— Que queria dizer quando afirmou «ele sabe porquê»?
Orr empurrou com o pé a caixa de carga, vazia.
— Perguntei-lhe onde estavam os trogloditas e ele disse-me que os
soltou por despeito.
— Despeito? — Corouda lembrou-se da expressão do rosto de Jary sujo
de lama por detrás da armadura, no fundo da fenda. E Jary dissera a Orr que o
fecho se partira, depois de o içarem... — Foi assim que conseguiu que ele
confessasse. — Apontou para a mesa.
— Claro que não... Irritação. — Orr limpou a mesa e as mãos. — Disse-
lhe que tu o tinhas visto.
— Disse-lhe que não vi nada.
Orr sorriu, irritado.
— Se me disseste a verdade ou não, não interessa. Só queria arrancar-lhe
a verdade. E consegui.
— Deixou-o pensar que...
— Isso interessa-te? — Orr inclinou-se sobre a mesa e observou-o com
curiosidade clínica. — Francamente não percebo por que havias de te
interessar por isto. Afinal tu e Hyacin, e os quinze biliões de cidadãos da
Confederação, julgaram Piper Alvarian Jary. Eras um dos que consideravam
os seus crimes tão abomináveis, daí ele merecer ser castigado sem
compaixão. Permitiste que ele se tomasse a minha cobaia, propriedade minha,
para eu me servir dele como quisesse. Agora dizes-me que pensas que estavas
errado?
Corouda voltou-se e saiu da tenda, deixando a pergunta sem resposta.
Piper Alvarian Jary sentou-se sozinho no seu rochedo, como sempre
fazia. A luz do entardecer lançava a sua sombra na direção de Corouda como
um dedo acusador; mas não levantou os olhos, mesmo quando Corouda parou
à frente dele. Corouda viu que ele tinha os olhos fechados.
— Jary?
Jary abriu os olhos, levantou-os, depois baixou-os, fixando-os nas mãos.
Corouda não desviou o olhar do rosto macilento de Jary.
— Disse a Orr que não vi o que aconteceu. Só lhe disse isso. Ele mentiu-
te.
Jary estremeceu um pouco e depois soltou um suspiro.
— Acreditas em mim?
— Por que razão te da-darias ao trabalho de mentir? — Jary ergueu
finalmente a cabeça. — Mas por que razão te da-darias ao trabalho de me
dizeres a verdade...? — Encolheu os ombros.
— Não tem importância.
Qualquer coisa se assemelhava à inveja perpassou no rosto de Jary.
Curvou-se, apanhando distraidamente uma pedra do monte no meio dos pés.
Corouda viu que era um pedaço de obsidiana: vidro vulcânico, preto como a
noite, macio como a seda ou a água, sarapintada de impurezas cinzentas,
como flocos de neve. Jary conservou-a nas mãos laceradas e em concha por
um instante, depois deixou-a cair como uma pedra de carvão quente,
estremecendo. Caiu de novo no monte, numa reação em cadeia, com um
arco-íris de cores e texturas. Duas gotas rápidas e vermelhas da mão de Jary
caíram nas cores; fechou outra vez os olhos com as palmas das mãos viradas
para cima, pousadas nos joelhos, a cogitar. Desta vez Corouda ficou a olhar,
esforçando-se, e viu o sangue estancar. Perguntou a si mesmo, com uma
espécie de fascinação mórbida, que outras estranhas habilidades tinha Jary.
Jary abriu novamente os olhos; parecia surpreendido por ver Corouda
ainda à frente dele. Soltou uma gargalhada, subitamente, inquietantemente.
— Podes brincar com as minhas pedras, sentinela, porque me deixaste
jogar squamish. M-mas não jogarei contigo. — Puxou para a frente uma
pedra com o pé.
Corouda curvou-se para a apanhar: um godo da cor da flor de alfazema,
salpicado de quartzo transparente, polido por evos rolados nos rios de um
outro planeta. Riu-se da sua estranha frieza e solidez; o sorriso desapareceu
quando compreendeu que ela devia significar muito mais para Jary.
— Orr deixa-me ficar com as pedras — dizia Jary. — Comecei a
colecionar quando me mandaram para o Instituto. Se ficasse sossegado e
fizesse o que me mandavam, às vezes deixavam-me sair e andar pelos
campos... Gosto de rochas. Elas não m-m-morrem. — A voz modificou-se
inesperadamente. — Que viste lá na caverna, s-sentinela?
— O bastante. — Corouda sentou-se no chão e atirou outra vez a pedra
para o monte. — Por que fizeste aquilo, Jary?
Os olhos de Jary moveram-se sem destino, procurando os bosques perto
da boca da caverna.
— N-não sei.
— Quero dizer... Aquilo que fizeste às pessoas em Angsith. E em Ikeba.
Porquê? Como é que alguém podia...
Os olhos de Jary fixaram-se de novo no rosto dele, turvos com a dor
terrível de um homem que é obrigado a olhar para o Sol.
— Não me recordo. Não me recordo... — Talvez se tivesse rido.
Corouda teve uma visão dupla, súbita e chocante de Jary uniformizado,
com um andar pomposo, que ajudara a transformar planetas em ossuários... E
Jary, a Cobaia, que colecionava pedras.
As mãos de Jary fecharam-se.
— Mas eu fi-lo. Sou P-Piper Alvarian Jary! Sou culpado. — Abriu de
novo os dedos com uma pequena arfada; das palmas das mãos escorria
sangue brilhante como uma revelação. — Quinze b-biliões de pessoas não
podem estar erradas... E eu tenho tido sorte.
— Sorte? — Disse Corouda, despropositadamente.
Jary baixou a cabeça na direção dos pés.
— Foi uma sorte terem-me dado a Orr. Alguns dos outros... Ouvi
contar... Não se interessavam a quem eram entregues. — Depois, como se
pressentisse a pergunta que Corouda não formulou: — Orr só me castiga
quando faço alguma coisa errado. Ele não é cruel comigo... Não precisa de ter
a certeza de que eu não sinto d-dor. Ele não se importa com aquilo que eu fiz.
Sou apenas uma coisa que ele usa. Pelo menos sou útil. — O tom de voz
subiu um pouco: — Estou grato por me ter vindo embora. Assim só passei
metade do tempo da sentença cortado como um v-verme espalmado ou
deitado com febre e diarreia, a vomitar ou a ser alimentado por tubos ou a
tirar as tripas de animais m-mortos. — As mãos de Jary pararam perto do
rosto. Limpou-o com a manga da bata e levantou-se, espalhando as pedras no
chão.
— Jary, espera um minuto. — Corouda pôs-se de joelhos. — Senta-te.
O rosto de Jary estava uma vez mais sob controlo. Corouda não podia
dizer se ele voltara atrás de boa vontade ou apenas por obediência. Sentou-se
com violência, sem mãos que o guiassem.
— Tu compreendes, se querias ser... Útil... — Corouda lutava com a
ideia ainda em embrião. — Aquilo que me fizeste, quando analisaste aquelas
plantas, a forma como consegues sintetizar antídotos e vacinas. Podias ser
muito útil, trabalhando num planeta novo... Como este.
Jary olhou para ele de boca aberta.
— Que queres d-d — mordeu os lábios — dizer?
— Haverá alguma possibilidade de Orr te deixar trabalhar para outro
grupo qualquer?
Jary ficou calado, enquanto a sua incredulidade se transformava em
desconfiança e desaparecia. A boca formava a imitação de um sorriso que
Corouda já tinha visto.
— Transformarem-me num milagre b-bioquímico ficou muito caro,
sentinela. Não tens meios para me comprar... A não ser que Orr me
renegasse. Depois não seria de ninguém.
— Queres dizer que ele te podia deixar partir? E serias livre?
— Livre. — A boca de Jary contraiu-se. — Se eu o en-enfurecesse
bastante, acho que sim.
— Meu Deus, então por que é que o não enfureceste bastante?
Jary levou as mãos ao peito, friamente.
— Algumas pessoas gostam de o-olhar para as minhas cicatrizes,
sentinela. Se eu não pertencesse a um instituto de investigação, podiam fazer
mais que se limitarem a olhar. Podiam fazer tudo o que quisessem...
Corouda tentou encontrar palavras, e tirou um cardo da manga castanho-
escura da camisa.
Jary mexeu-se sobre o rochedo, mexeu-se uma vez mais.
— O Simeu Institute protege-me. E Orr precisa de mim. Teria de o
enfurecer mais que nunca antes de correr comigo. — Encontrou de novo os
olhos de Corouda, estranhamente irritado.
— Piper!
Jary levantou-se instintivamente ao ouvir a voz de Orr. Corouda viu que
ele parecia aliviado e compreendeu que o alívio era a principal emoção no
seu próprio espírito. Diabo mesmo que Orr vendesse Jary, o emprestasse ou
renegasse... Como é que ele sabia que os outros sentinelas iriam aceitar?
Xena talvez, se estivesse disposta a aproveitar a sua própria retórica. Mas
Albe nem sequer pediu desculpe por ter provocado a queda de Jary...
Jary passara por ele sem uma palavra, dirigindo-se para o laboratório de
Orr.
— Jary! — Corouda chamou-o subitamente. — Continuo a ser de
opinião de que Piper Alvarian Jary merece ser castigado. Mas penso que
estão a punir o homem errado.
Jary deteve-se e virou-se para olhar para ele. E Corouda percebeu que a
expressão no rosto dele não era de gratidão, mas algo mais próximo do ódio.
***
— Muito bem, passaste para o outro lado sem que nada te acontecesse.
Esperarei aqui por ti.
Jary ficou sozinho na escuridão no extremo da Fissura, encurralado no
feixe luminoso da lanterna do capacete de Orr. Acenou, respirando com
dificuldade, desconfiado da sua voz.
— Sabes o caminho a partir daqui e o que deves fazer. Vai e faz o que te
mandei. — A voz de Orr foi sarcástica, Orr estava novamente furioso, porque
Etchamendy aceitara a queixa de Soong-Hyacin.
Jary baixou-se para apanhar a caixa de carga que estava aos seus pés.
Fechou os olhos quando se serviu da mão, levantou a tira de couro com um
sacão e colocou-a ao ombro. Virou as costas a Orr sem responder e começou
a caminhar para o interior da caverna.
— Não voltes sem eles!
Jary reprimiu o sabor de uma fúria invulgar e continuou a caminhar. Orr
mandava-o para a caverna completamente só para trazer os trogloditas, para
completar a sua penitência. Como se as mãos dormentes, envoltas em
ligaduras, não fossem o suficiente para o convencerem de que tinha sido um
louco. Perdera metade da ceia no chão, porque as mãos mal conseguiam
segurar uma colher... No dia seguinte iria sofrer por ser desastrado no
trabalho do laboratório... Nem sequer poderia ter o consolo de tocar nas suas
pedras. Orr não se importava que ele partisse as pernas e tivesse de rastejar
até chegar ao coração da caverna e voltar atrás... Or não se importava que ele
partisse o pescoço ou se afogasse na lama radiativa...
Jary parou de repente na escuridão. Que se passava com ele? Por que se
sentia assim...? Olhou para trás, embatendo na parede quando a dança louca
da lanterna do capacete o entonteceu. Não havia nenhum reflexo de luz; Orr
já não se avistava; Cerrou as mãos, deliberadamente, sobressaltando-se com
uma praga para recuperar a razão. Orr não o teria obrigado a fazer aquilo se
achasse que ele podia morrer; Orr detestava perder.
Jary afastou-se da parede, olhando para os pedaços de lama seca que
ainda estavam agarrados ao fato. A maior parte caíra enquanto caminhava: os
dosímetros mal registavam o que tinha ficado. Continuou a andar,
deslocando-se mais devagar, caminhando cautelosamente no cascalho onde o
rebordo estreitava. Afinal não estava com pressa de trazer mais trogloditas;
para permitir que Orr provasse uma vez mais que tinha sido inútil soltá-los...
Como tinha sido vão o seu próprio sofrimento! Como tudo era inútil...
E, de repente, compreendeu. Era Corouda.
— Corouda...! — Lançou a palavra na escuridão como um desafio. O
maldito Corouda estava a fazer-lhe aquilo. Corouda, que executara a
verdadeira tortura... Aquele velhaco do Corouda, que fingira interesse para o
fazer falar e depois se servira da falsa compaixão como um bisturi na sua
sanidade: dizendo-lhe que ele estava inocente só porque não se conseguia
lembrar dos crimes, que estava a ser castigado injustamente. Procurando
convencê-lo de que tinha sofrido em vão anos de ódio e calúnia. Não, ele era
culpado, culpado! E Corouda fizera-lhe aquilo, porque Corouda era igual aos
outros. O universo inteiro odiava-o, excetuando Orr. Orr era tudo o que ele
possuía. E Orr mandara-lhe trazer os trogloditas, quando não... Escorregou
subitamente e caiu, batendo com os cotovelos para salvar as mãos. Orr era
tudo o que ele possuía...
Isthp: Temos de fazer que o móbile brilhante nos compreenda. Como
iremos fazê-lo, Mng? Eles não entendem a nossa comunicação.
(Escuridão ténue)
Mng: Mas vêem-nos. Temos de lhes mostrar um artefacto... Um fato de
pressão, talvez, para mostrarmos simultaneamente o nível da nossa tecnologia
e da nossa condição.
(Lagoas de lama vibram com gases)
(Figuras de luz)
Isthp: Exatamente! Despertarei o meu segundo Vivo; é o mais pequeno,
talvez ainda possas usar um fato... Eu ordeno...
(Procurem o fato e tragam-no para cima)
(Façam um círculo)
Ahm: Não permitiremos que faças isso. Somos a maioria; proibimos o
contacto com o móbile desconhecido. Iremos impedir-te se tentares.
(Fluido frio a bater no basalto)
Isthp: Mas o séssil dele é uma criatura bem-intencionada, até tu tens de
admitir isso, Ahm... Ele libertou os teus móbiles.
(As minhas figuras são subtis)
(Pulsam suavemente e cintilam)
Ahm: Vejo enormes dedos brilhantes a estenderem-se na minha
direção... Medo, esperança... Para libertar os meus móbiles... Mas devemos
comunicar que queremos que nos deixem em paz! Deixem-nos usar o móbile
brilhante com um aviso, se os inimigos voltarem outra vez. Ele pode tornar os
inimigos invisíveis em visíveis, e deixem-nos fugir a tempo.
(Aproxima-te do círculo)
(Aproxima-te)
(Radiância estranha)
Mng: Não, temos de fazer mais exigências! Mostra que somos uma
forma de vida inteligente, embora estranha. Temos de tentar obter a sua ajuda
para nos tirar deste lugar abandonado!
(Fechem o cerco)
(Aproximam-se móbiles)
(Uma luz na escuridão)
Ahm, Scwa, Tfod, Zhek: Não.
(Radiância, luz estranha)
Isthp: Sim, caro amigo. Mng... Teremos a nossa liberdade e as estrelas!
Olha, olha com todos os teus móbiles; ele mostra-se! Brilha...
(Estranha radiância)
(Luz que tremula como gama através da galena)
(Depressa! Levem o fato para cima)
Ahm; O móbile brilhante volta! Acautelem-se, acautelem-se...
(Fragmentos de radiância aproximam-se)
Blir: Desfaçam a formação, preparem-se para fugir. Façam que a sua luz
seja a nossa advertência.
(Brilha)
(Preparem-se para o voo)
(Preparem-se)
Mng: Que ele seja a nossa esperança!
(Fragmentos de radiância)
(Brilha)
***
Ecos da queda chegaram de novo a Jary de uma distância imprevista;
pensou que já devia estar perto da câmara principal. Pôs-se de pé com
esforço, incapaz de rastejar e passou devagar pelo fragmento escorregadio de
metal em bruto. Lançava prata na luz da lanterna quando olhou para baixo,
obrigando-o a fechar rapidamente os olhos. Os marcos vermelhos do caminho
desapareciam por detrás dele; desceu a rampa áspera às apalpadelas,
chegando quase a escorregar, tateando, sentindo o teto e as paredes
afastarem-se à sua volta.
Ali, na câmara principal, uma superfície de basalto, sólida e coberta de
veios de minério, estendia-se até se encontrar com a superfície da água das
profundezas radiativas; ali tinham encontrado os trogloditas. Passou um pilar
estreito, eriçado de espinhas de quartzo cor-de-rosa, tocou num, de raspão,
com as costas da mão. Viu ao longe o reflexo da borda da água, projetando
no ar gavinhas de vapor. O estômago comprimiu-se, mas ele quase não deu
por isso: mais perto, a filigrana dos veios de minério enredava a luz — um
grupo de trogloditas estava na margem. Varreu a superfície com a lanterna do
capacete, viu outro grupo e mais outro, as suas formas cegas, desprotegidas,
que se moviam calmamente numa mímica bizarra de uma dança ritual.
Nunca tivera oportunidade de ficar a observá-los; e por isso fê-lo
naquele momento. E a convicção assustadora começou a apoderar-se do seu
espírito; estava a ver algo que era apenas instintivo; algo incompreensível.
Mas não passavam de animais! Mesmo que se preocupassem com o que
acontecera aos seus companheiros; mesmo que tivessem arriscado a vida para
os salvarem... Era apenas por instinto.
Começou a caminhar para eles, tentando dobrar os dedos, esforçando-se
por não pensar na dor quando tentou agarrar o corpo de um troglodita, que se
contorcia... Parou uma vez mais, franzindo as sobrancelhas, quando a dança
rítmica dos trogloditas cessou repentinamente. Os pequenos maciços
formados pelos corpos alinharam-se, virando-se quase como um todo para o
enfrentarem, como se pudessem ver. Mas era impossível, ele sabia que não
podiam ver um ser humano...
Uma dúzia de trogloditas, recuou, roçando a água, e desapareceu na
lagoa; os outros andavam em círculo, indecisos. Ele parou, ainda a cinco
metros da margem. Olhavam fixamente para ele, tinha a certeza disso, só que
pareciam estar a olhar para os seus joelhos, como se ali estivesse metade do
seu corpo. Arriscou-se a dar um passo, e depois outro — e apenas dois
grupos de trogloditas fugiram para a lagoa. Ficou quieto, quase desesperado,
e aguardou.
O corpo entorpecido começara a contorcer-se impacientemente antes de
outro troglodita se mexer. Mas desta vez avançou. Depois os outros
começaram a arrastar-se lentamente em direção a ele, com um objetivo.
Rodearam os seus pés, a olharem pasmados para os joelhos com a reverência
de adoradores oftálmicos. Pôs um joelho em terra com todo o cuidado e
depois o outro; os trogloditas escorregaram para trás. Avançaram uma vez
mais visto que ele não fez mais movimentos, os quartos traseiros semelhantes
a lemes gotejavam lama. Continuaram a avançar até chegarem aos joelhos e
começaram a dar puxões nas pernas do fato enlameado. Manteve-se na
mesma posição como uma estátua, esforçando-se por alçançar o objetivo
deles com um espírito que ficara irremediavelmente vazio. Dedos compridos,
providos de membranas, agarraram o fato, e dois dos trogloditas começaram
a trepar para ele acima, sujando-lhe o fato com lama fresca. Não se serviu das
mãos para os tirar, apesar de o seu corpo estremecer com a presença das
formas que se seguravam com firmeza. Os ponteiros no interior do capacete
começaram a tremer e a subir.
Ele fechou os olhos...
— D-deixem-me em paz! — Abriu-os novamente, passado algum
tempo.
Quase como se o tivessem ouvido, os trogloditas soltaram-no e
desapareceram. Acocoraram-se todos uma vez mais à frente dele, olhando
agora para o peito coberto de lodo. Compreendeu finalmente que devia ter
sido a lama radiativa que eles viram que fazia que o fato brilhasse com uma
luz que eles podiam ver. Estariam a tentar descobrir desastradamente o que
ele era? Riu-se em voz baixa, rouca.
— Sou P-Piper Alvarian Jary!
Mas isso não tinha importância. O nome não lhes dizia nada. Os
trogloditas continuaram a observá-lo, imóveis. Jary desviou finalmente os
olhos quando outro troglodita emergiu na lagoa. Ficou a olhar pasmado,
enquanto a lama lhe caía da pele; nunca vira uma pele como aquela num
troglodita, com uma cor prateada, luminosa, que refletia a luz. A pele inchava
e esticava de uma forma estranha, inorgânica, quando andava, e andava com
dificuldade. Agora todos os trogloditas olhavam fixamente para ele; e,
enquanto Jary tentava pôr-se de pé e aproximar-se, arrastaram-se à sua frente
para cercarem o troglodita prateado. Depois, abruptamente, precipitaram-se
para a beira mais trogloditas; ele observava, confuso, enquanto aquela massa
atacava o troglodita prateado, obrigando-o a entrar na lagoa de lama, fazendo
desaparecer os poucos que resistiam com ele.
Jary ficou à espera na escuridão enquanto os segundos se transformavam
em minutos, mas os trogloditas não voltaram. Bolhas de gás formavam
pequenas ondas, que se desfaziam ao longo da margem deserta, mas nada
mais agitava a superfície da água. Pôs-se de cócoras a olhar para as pegadas
na lama fresca onde tinham estado os trogloditas, a olhar para o fato
enlameado.
Eles não iam voltar; agora tinha a certeza. Mas por que não? O que era o
troglodita prateado e por que razão ainda não tinha visto nenhum? Por que
razão o atacaram os outros? Ou estavam apenas a protegê-lo dele?
Talvez se tivessem apercebido repentinamente daquilo que ele era: não
Piper Alvarian Jary, mas um dos monstros invisíveis que os atacavam
inesperadamente.
E ele deixara-os fugir. Porquê, quando começaram a trepar pelo fato
acima, suplicando que os atirasse para dentro da caixa? Mas vieram ter com
ele, confiantes, entregaram-se nas suas mãos, sem saberem o que era.
Sem o conhecerem...
E a partir daquele momento sabia que nunca falaria a Orr do salvamento,
nem da dança nem do troglodita prateado — nem da forma como os
trogloditas se reuniram, olhando fixamente para ele. A sua vida secreta
estaria segura com ele... Todas as vidas estariam seguras com ele. Tocou no
fato enlameado. Inadvertidamente, tinham-lhe mostrado a maneira de terem a
certeza de que podiam ser prevenidos sempre que ele voltasse com Orr. Se
tivesse sorte, talvez Orr nunca mais visse outro troglodita... Jary fechou as
mãos, tomando mais firme a sua resolução. Maldito Orr! Aquilo iria fazer-lhe
bem.
Mas se Orr descobrisse o que ele fizera? Por causa disso Orr até o podia
renegar, abandoná-lo ali... Mas naquele momento a ideia não o assustou.
Nada do que lhe pudessem fazer agora tinha realmente importância — porque
a sua decisão não tinha nada a ver com a sua vida no meio de homens, onde
ele vivia apenas para pagar uma dívida que nunca poderia saldar. Por mais
que sofresse, no universo dos homens trazia a marca de Caim e nunca
deixaria de ser Piper Alvarian Jary.
Mas ali, naquele universo estranho, o seu crime não existia. Podia provar
aquilo que nunca seria capaz de provar no seu próprio mundo, que tinha a
mesma liberdade para fazer a escolha certa ou errada. O que quer que fosse
que lhe acontecesse a partir daquela hora, nunca apagaria o conhecimento de
que tinha sido um salvador num lugar, e não um demónio: uma luz na
escuridão...
Jary pôs-se de pé e começou a subir novamente a rampa, levando
consigo uma caixa vazia.
POSFÁCIO
«Correr riscos para salvar outros» é uma dessas histórias que sofrem
mutações à medida que se desenvolvem. Ao princípio fiquei intrigada com a
velha anedota na qual os ratos tentam pôr um guizo num gato para que ele
não possa saltar-lhes em cima, apanhando-os desprevenidos. Geralmente a
história envolve um rato que é escolhido para levar a cabo a ação, e
descreve a maneira como esse rato «Jack, o Assassino do Gigante» a
concretiza sem se transformar no jantar do gato. A minha premissa original
era sobre seres minúsculos e estranhos que procuravam proteger-se dos
enormes humanos que eram, em essência, «os gatos» da história. Mas a
certa altura, na história, compreendi que para colocar o guizo no gato era
preciso obter a sua cooperação. A semente mutante foi deitada à terra e
nessa altura o personagem Jary, o Catspaw, o instrumento de outros seres
humanos (porque o gato é um instrumento), começou a crescer — um gato
que, pelos seus próprios motivos, podia decidir juntar-se aos ratos. Enquanto
trabalhava com o personagem Jary, ele começou a tomar conta da história;
alguns personagens «nascem» com personalidades fortes que afetam a
história em que estão inseridos de uma forma imprevisível. Neste caso as
relações de Jary com os inimigos e os outros humanos tornaram-se mais
importantes que o confronto direto entre humanos e seres desconhecidos. Em
consequência disto, a história passou a ser o primeiro compasso, e
transformou-se numa exploração mais séria das ambiguidades dó bem e do
mal, da natureza, da justiça e castigo, culpa e redenção. No fim Jary tem de
se reconciliar consigo mesmo... Porque no fim de contas todos nós somos a
autoridade máxima de nós mesmos.
Esta história, além de ser a história de Jary, não deixa, contudo, de ser
uma história sobre o contacto com o desconhecido. E, como tal, é realmente
uma das minhas mais ilusórias histórias. No entanto, ainda não conheci
ninguém que compreendesse inteiramente o conceito sobre o modo como os
seres desconhecidos atuavam — um facto que me tem desiludido muito.
Escritores e admiradores envolvem-se muitas vezes em discussões sobre o
comportamento de seres estranhos, e queixam-se geralmente que os
chamados «desconhecidos» na literatura não são mais que seres humanos
que usam fatos esquisitos — com efeito, comportam-se exatamente como
seres humanos, e não de uma forma estranha. Mas ao tentar criar seres que
sejam realmente estranhos, o escritor corre o risco de os tornar
simplesmente incompreensíveis para o leitor. Talvez tenha acontecido isso
com estes seres estranhos... E por isso são necessárias algumas palavras de
explicação:
Os seres estranhos em «Correr Riscos», são obras-primas da
especialização genética. Há inúmeros exemplos de especialização na Terra.
Os Cuatás não têm dedo polegar; os polegares atrofiaram e desapareceram,
porque o dedo atrapalhava quando saltavam por entre as árvores. As girafas
desenvolveram pescoços longos para chegarem à folhagem a que outros
animais não podiam chegar. Os carnívoros e herbívoros, com os seus cascos,
unhas e garras, são exemplos da engenharia genética da natureza. Os seres
estranhos nesta história levaram esta tendência a um extremo — adaptaram-
se a um ambiente altamente radiativo; e os seus «séssiles» são
essencialmente os cérebros, que permanecem estáveis e protegidos enquanto
os diversos «móbiles» ou partes do corpo (que têm funções básicas
diferentes, dependem da configuração geral do corpo) são totalmente
independentes. Livres para se ordenarem a grandes distâncias, guiados por
cérebros autónomos, mas muito primitivos, os móbiles estão em permanente
«contacto radiativo» com os séssiles, enviando e recebendo dados
continuamente. Os séssiles têm níveis de concentração que confundiriam um
cérebro humano, que lhes permitam controlar os vários móbiles. Criar
partes novas no corpo é um processo relativamente simples e um passatempo
bastante esotérico para os seres estranhos, mas que se recriam, efetivamente,
criando uma consciência nova. E um processo muito mais complexo e foi este
ritual que os humanos estavam a desfazer inadvertidamente.
Esta é uma das minhas mais obscuras histórias — sei de pessoas que se
envolveram em discussões porque a maioria nunca a tinha visto e juravam
que eu nunca tinha escrito nenhuma história com aquele nome. Fico contente
por ela ter finalmente um público leitor mais vasto.
VISTA DAS ALTURAS
Sábado, dia 7
Quero saber por que faltavam aquelas páginas! Como é que eu posso
acompanhar a minha investigação se omitem páginas...?
(Um longo suspiro.)
Ouve-te a ti mesma, Emmylou: Estás a ouvir o som do medo. Foi uma
distração, tu sabes disso. Ninguém te fez isso de propósito. Descontrai-te,
estás a ficar com a Febre da Quinzena. Amanhã receberás as páginas, e uma
desculpa também, se Harvey Weems sabe o que lhe convém.
Mas, mesmo assim, cinco páginas inteiras, e o índice. Como foste capaz
de omitir cinco páginas? E o índice.
Como hei de saber que não houve um golpe? O Noroeste controla
finalmente, e estão a censurar os órgãos de comunicação social — e tal como
o Homem sem País, tudo o que me enviarem a partir de agora terá cortes.
Na Ciência?
Ou talvez Weems tenha decidido enlouquecer-me...
Oh, meu Deus... Seria uma viagem curta. Olhem só para mim. Fiquei
sem unhas.
(— Arrwk. Olá, beleza. Está lá? Está lá?)
(— Ozymandias! Sai do seu cabelo, meu diabo. — Gargalhadas. —
Polly quer um biscoito duro? Aqui tens... Devagarinho! Lindo menino.)
É belo quando voa. Nunca me canso de o ver, nem de olhar para ele,
mesmo depois de vinte anos. Vinte anos... Que é que os Psittacidae fazem
para terem o direito de usar um arco-íris como plumagem? Embora a forma
como os perseguimos por causa disso, podiam dizer que foi uma bênção
mista. Como algumas outras coisas.
Vinte anos. Como é estranho ouvir aquelas palavras e saber que são
verdadeiras. Há cabelos grisalhos quando olho no espelho. Já se veem
algumas rugas. E Weems é calvo! Calvo como um ovo, e vesgo por detrás
dos óculos. Como Ficámos assim, sem nos apercebermos? O tempo é ao
mesmo tempo mais longo e mais breve do que imaginas, e geralmente tudo
acontece de uma só vez.
Vinte anos é muito tempo para esperar que alguém retribua a tua visita.
Há muito que passaram vinte anos. Mas sinto-me como se tivesse saído de
casa apenas na semana passada. Mantenho os circuitos perfeitos,
examinando-os vezes sem conta, projetando aqueles filmes de casas de saúde
para doentes mentais até que às vezes chegava quase a poder entrar naquela
outra realidade. Mas nessa altura olho sempre para baixo, e lá está aquele
abismo terrível cheio de espaço e tempo, e compreendo que não posso voltar.
Não posso regressar a casa.
Principalmente quando se está há quase cem unidades astronómicas no
espaço. Está quase, o primeiro degrau da escada. A próxima quinta-feira é o
dia. Oh, aquela garrafa de champanhe que está à espera há tanto tempo! Oh, a
visão da paralaxe! Tenho à minha disposição o que equivale ao melhor
equipamento em todo o espaço próximo da Terra, e uma panorâmica do
universo que nunca ninguém teve; e a sua utilização fez de mim a única
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astrofísica que ganhou um Ph.D. em pleno espaço. Fala do teu campo de
trabalho.
É estranho pensar que, se o Observatório Avançado tivesse acumulado
menos que as suas mais de mil toneladas, teria sido substituída por uma
máquina. Mas, em virtude de a instalação ser tão grande, eu, na minha
flexibilidade humana infinita, mesmo com o meu apetite humano infinito,
tornei-me a encarregada legal mais eficiente. E quanto mais longe chego mais
importante se torna a minha capacidade de avaliar o que acontece e de dar
uma resposta. A primeira — e talvez a última — sonda interestelar tripulada,
numa viagem só de ida para o infinito... Para um universo não obscurecido
pelos gases e pela poeira do nosso próprio sistema... Equipada com olhos que
veem tudo desde gama a comprimentos de onda ultralongos, e ouvidos que
ouvem a música das esferas.
E Emmylou Stewart, a audiência cativa. A deriva numa estrela... Se
aprovares a ideia de que todos os pedaços de detritos inertes que flutuam no
espaço, por mais pequenos que sejam, têm a potência de uma estrela. Estrelas
escuras, com brilho nos corações ocultos, impedidas apenas pelo destino, que
não deixam que ele refulja, que lhes negou a massa crítica para atingirem o
ponto de inflamação.
Por falar de inflamação... O raio laser chegou há pouco tempo para me
ajudar todos os dias, fazendo-me andar um pouco mais depressa. Assim
embrenhar-me-ei mais no universo. Céu azul à hora de deitar; sempre gostei
da noite. Tenho a certeza de que não projetaram a vela solar para filtrar a luz
como o céu... Mas estou contente por ter acabado por dar esse resultado.
Azul-celeste foi sempre a minha paixão — a cor, textura, pureza fluida. Esta
cor não está completamente certa, mas não tem importância, porque já não
me lembro da razão. O céu é um aspirador do Sol. Um enorme guarda-sol
azul. Mas o original também era, do lugar onde costumava estar. O céu é um
enorme guarda-sol... Será que já alguém disse isto? Se ninguém sabe, que
fale...
Será que está alguém a ouvir? Será que alguém alguma vez estará?
(— De qualquer maneira, quem se importa? Vá lá, Ozzie... Embarca.
Desçamos no pórtico de observação enquanto eu medito e tento recordar
como eram os dias.)
Weems, diabos te levem, exijo uma satisfação!
Domingo, dia 8
Aquele idiota. Aquele atrasado mental insuportável — como foi capaz
de me fazer uma coisa daquelas? Passado tanto tempo, pensavas que te
deveria conhecer melhor? Fazer-me esperar doze dias, ansiosa e receosa:
doze dias com todas as paranoias possíveis, enfadonhas, que eu podia urdir
com as minhas mãos e mente inativas, tomando-me infeliz, a arranjar lenha
para me queimar...
E dando-mo em seguida. Meu Deus, ele deve ser um sádico. Se ao
menos pudesse chegar-lhe, e fazê-lo sofrer como sofri nestas últimas horas...!
Só sei que não teve culpa das notícias, e que ele não queria magoar-me...
E assim nem sequer posso diminuir a minha dor fazendo-a recair sobre ele.
Não sei o que teria feito se a sua imagem não tivesse seis dias de atraso
quando chegou aqui. Que teria feito, se ele estivesse perto quando eu estava à
escuta, que teria dito? Talvez aquilo que disse.
Que podes dizer quando tomas consciência de que desperdiçaste toda a
tua vida?
Lá estava ele sentado atrás da pasta desbotada, a brincar com a caneta, a
apanhar as pedras de recordação da lua e a pousá-las — esquadrinhando o
mundo inteiro como um homem com uma bomba de relógio na gaveta da
secretária — e disse:
— Não te preocupes, Emmylou. Não há problema... — Repetiu aquilo,
de uma maneira ou da outra, durante cinco minutos, até dar por mim a gritar:
— Que está errado, diabo?
— Pensei que nunca darias conta daquelas folhas... — Com aquele seu
sorriso de esguelha.
E enquanto murmuro ele diz:
— Posso ter estado vinte anos na prisão celular, Harvey, mas isso não
transformou os meus miolos em papa. Portanto, talvez fosse melhor explicar,
em primeiro lugar. — E a expressão do seu rosto... Oh, a expressão do seu
rosto...! — Houve um afloramento biomed. Se estivesses aqui na Terra tu...
Bem, as reações de imunidade do teu corpo podiam... Normalizar... — E
então baixou os olhos, como se pudesse ver de facto a expressão do meu
próprio rosto.
Tornar normal. Tornar normal. É só o que ouço. Nasci sem imunidades
naturais. Sem defesa contra a doença. Sem nada que a combata. Nada. Nada,
nada, nada, sempre ouvi isto, durante toda a minha vida na Terra. Através
das paredes plásticas do meu quarto, fechado; através do capacete do meu
fato fechado... E agora tudo mudou. Conseguiram curar-me. Mas não posso ir
para casa. Sabia que isto podia acontecer; sabia que um dia isto teria de
acontecer. Mas resolvi ignorar aquela realidade, e agora é tarde de mais para
fazer o que quer que seja.
Então por que razão não posso esquecer que podia ser 1-livre...
... Hoje não respondi a Weems. O sovina do Weems. Não há nada para
dizer. Mesmo nada.
Estou tão cansada.
Segunda-feira, dia 9
Não consegui dormir. Aquilo não me saía da cabeça... Por fim, tomei
alguns comprimidos. Dormi todo o dia, senti-me mal. Estúpido. Não
desapareceu. Estava à minha espera, continuava à espera, quando acordei.
Não é justo...!
Não me apetece falar nisso.
Terça-feira, dia 10
Já terça-feira. Nada fiz durante dois dias. Nem sequer comecei a
examinar o retransmissor luminoso, e aquele maldito tem de ser lançado esta
semana. Não tenho força; tenho a impressão de que não me movo, apenas
fico sentada. Mas tenho de voltar ao trabalho. Tenho de...
Em vez disso li hoje o artigo do computador. Na esperança de encontrar
uma falha! Como se não fosse a maior ironia de toda a minha vida. Esperei
duas décadas que alguém descobrisse uma cura para mim. E não me
preocupei durante mais duas décadas. Irei passar as duas próximas décadas a
odiá-la, agora que já foi descoberta?
Não posso... A odiar-me! Podia ter sido livre, podiam ter-me curado, se
tivesse ficado na Terra. Se tivesse sido paciente. Mas agora é tarde de mais...
Durante vinte anos.
Quero ir para casa. Quero ir para casa... Mas não podes ir para casa de
novo. E verdade que disse isto, com tanta alegria, há tão pouco tempo? Tu
não podes! Tu, Emmylou Stewart. Estás na prisão, tal como estiveste sempre,
presa.
Vem-me tudo à memória com tanta intensidade. Porquê eu? Por que
tenho de ser a última vítima? Em toda a minha vida nunca cheirei o vento do
mar, nem colhi bagas de um arbusto nem as comi ali mesmo! Nem senti os
beijos dos meus pais na minha pele, nem o corpo de um homem... Porque
para mim eram coisas terríveis.
Lembro-me quando era garota, e ainda vivíamos em Victoria — tinha
apenas 3 ou 4 anos, à beira de compreender que era o único prisioneiro no
meu mundo. Lembro-me de ver o meu pai sentado a dar lustro aos sapatos de
manhã, antes de ir para o museu. E eu sorria, com tanta astúcia, «Papá... Eu
ajudo-o a fazer isso, se me deixar sair.»
E ele aproximou-se da parede da minha bolha e enfiou os braços nas
luvas presas a ela, e disse, com tanta ternura: «Não!» E depois começou a
chorar. E eu também comecei a chorar, porque não sabia por que razão o
fizera infeliz...
E todas as crianças na escola, com as piadas do «homem do espaço»,
apontando para a anormal; todos os anos de pessoas insensíveis que faziam as
mesmas perguntas estúpidas sempre que tentava ir a qualquer lado... O pior
de tudo; aqueles que não eram estúpidos nem insensíveis. Como Jeffrey...
Não, não pensarei em Jeffrey! Nessa altura não podia pensar nele. Nunca
poderia aproximar-me de um homem, porque nunca seria capaz de lhe tocar...
E agora é tarde de mais. Estava a comandar o meu destino, quando me
ofereci para esta viagem sem regresso? Ou estava apenas a fugir de uma vida
em que estava desamparada, impossibilitada de fugir das coisas que
detestava, impossibilitada de abraçar as coisas que amava?
Fingia que isto era diferente, e importante... Mas aquilo em que
realmente acreditava? Não! Só queria rastejar para dentro de um buraco
donde não podia sair, porque tinha tanto medo.
Com tanto medo que um dia rompesse as paredes plásticas, ou tirasse o
capacete e o fato; sair livremente para respirar o ar, ou caminhar num regato,
ou sentir carne contra carne e morrer por causa disso.
Portanto, agora enclausurei-me neste tumulto hermeticamente fechado
para levar uma vida pior que a morte. Um meio completamente asséptico, no
qual o meu corpo nem sequer apodrecerá quando eu morrer. Sem nunca ter
vivido de facto, nunca morrerei realmente. És pó e em pó te hás de tornar.
Um meio completamente asséptico; em todo o sentido da palavra.
Fico muitas vezes a olhar para o meu corpo no espelho depois de tomar
banho de chuveiro. Olhos da cor da avelã, cabelo castanho com grandes
ondas e muito poucos cabelos grisalhos... E uma boa figura, não muito
perfeita, mas atraente. E nunca ninguém o viu assim a não ser eu. A noite
passada voltei a ter o sonho... Há muito tempo que o não tinha... Desta vez
estava sentada sobre um animal esculpido em madeira no parque ao lado do
Provincial Museum em Victoria. Mas não como criança envergando o meu
fato. Como uma universitária, com calções brancos e uma camisa de algodão
brilhante, sentindo o sol nos meus ombros, e... Os braços de Jeffrey à volta da
cintura... Deambulámos ao longo da margem da baía de mãos dadas, à luz
dos postes vitorianos com os cestos de flores brilhantes, suspensos, e tudo o
que faço é novo e espontâneo e cheio de significado. Mas sempre, sempre,
precisamente no momento em que ele acaba finalmente por me abraçar,
quando estou para... Acordo.
Quando morremos, despertamos da realidade finalmente, e todos os
nossos sonhos se realizam? Quando eu morrer... Serei levada para as
profundezas sem fim do espaço desconhecido neste túmulo computadorizado,
sem ser chorada nem lembrada. Na devida altura toda a atmosfera acabará; e
o meu belo cadáver, deitado como o da Branca de Neve num sono inviolado,
será chupado até à última gota de humidade, até ficar reduzido a um
pergaminho mumificado de couro ressequido e ossos protuberantes...
(— Está lá? Está lá, querida? Sim, não, talvez… Awk. Hora de comer!)
(— Oh, Ozymandias! Sim, sim, eu sei... Não te dei de comer, desculpa,
Eu sei, eu sei...)
(Tinidos e ruídos.)
Por que razão sou tão egoísta? Só porque não consigo comer, espero que
ele jejue, também... Não. Esqueci-me.
Ele não compreende, mas sabe que algo está errado; sobre o poste do
candeeiro como um bem com três pés, servindo-se deles e do bico, e olha
fixamente para mim com aquele olho de pássaro, pequeno e brilhante como
vidro, olha e olha e murmura coisas. Como um lunático! Até sentir vontade
de o fechar num armário, ou coisa assim. Mas depois desliza ao longo do
meu ombro e beija-me — uma carícia tão terna na minha face, com aquele
bico adunco, preênsil, que era capaz de esmagar uma noz como se fosse um
bago de uva — para que eu saiba que está preocupado e que se interessa. E eu
afagava-lhe as penas para lhe agradecer e para lhe dizer que está tudo bem...
Mas não está. E ele sabe disso.
Será que ele alguma vez se sentiu amargurado com a vida? Sentiria isso,
se pudesse? Afastado da sua própria espécie, criado numa bolha esterilizada
para ser um pássaro engaiolado para um humano engaiolado...
Sou apenas um pássaro numa gaiola dourada. Quero ir para casa.
Quarta-feira, dia 11
Por que razão guardo este diário? Creio realmente que um dia algum ser
desconhecido encontrará este, ou uma nave em forma de estrela do futuro
glorioso da Terra me alcançará... Futuro glorioso, inferno. Loucos estúpidos,
egoístas, míopes. Arrancaram os pontos essenciais do programa do espaço
depois de me mandarem embora, agora ninguém jamais me seguirá. Terei
sorte se não me derem como morta ou se se esquecerem de mim.
Como se alguém se preocupasse com o que uma mulher completamente
só numa sonda espacial pesada pensava dia após dia durante décadas. Que
conceito monstruoso.
Hoje lubrifiquei os rolamentos no telescópio grande. Fiz isso tudo. Fi-lo
para a virar em direção à Terra... Em direção ao Sol... Em direção a todo o
maldito sistema. Porque nem sequer o posso ver. Todos os planetas distantes
e próximos de Saturno, todos os planetas que os antigos viram, estão
amontoados no espaço dos diâmetros das duas luas; e demasiado indistintos,
pequenos e distantes por baixo de mim para os ver à vista desarmada. Até o
Sol não passa de uma estrela viva que nem sequer me faz fechar os olhos
rapidamente. Por isso procurei-os com o telescópio...
Não é engraçado como se veem todos aqueles desenhos e modelos do
sistema solar com planetas enormes, cheios de protuberâncias e sulcos
dourados a flutuarem à volta do Sol, quando se é criança? Seja como for uma
pessoa está sempre à espera que tenha outro aspecto quando o observa
diretamente. E aqui estou eu, a mil unidades astronómicas a norte do polo
solar, a olhar do alto... E tem um aspecto completamente diferente. Não se
assemelha a nada mesmo visto através do telescópio. Uma enorme mancha de
luz, e todas as rodelas pálidas e minúsculas como diamantes de planetas e
satélites à volta dele, que mal se distinguem de meia centena de estrelas
indistinguíveis, encurraladas no mesmo arco de obscuridade. Tão
inexpressiva, tão insignificante... Tão frustrante.
Hoje passei cinco horas a ouvir o meu diário, a rever e a tentar
descobrir... Alguma coisa, não sei, uma coisa que deixei de ter de repente.
A princípio tive-a. Era horrível! Polyanna Gradstudent a pular e a cantar
pelos compartimentos do meu próprio observatório. Parecia o paraíso, e uma
vida inteira passada dentro dele talvez não fosse suficientemente longa para
tudo aquilo que ia realizar e descobrir. Nunca me aborreceria, não, eu não...
E havia tanta coisa para aprender sobre o potencial deste lugar, antes de
chegar ao que talvez interessasse e haveria coisas novas que atrairiam os
meus maravilhosos sentidos ampliados... Enquanto podia ainda comunicar
facilmente com o meu querido mentor, o Dr. Weems, e o mundo. (Quem
pensaria, quando o velho lúbrico era o meu conselheiro de tese em Harvard, e
dizia piadas aos outros alunos sobre «os esforços que algumas mulheres farão
para proteger a virgindade», que iríamos ser obrigados a passar a vida
juntos?)
Havia a primeira palavra de Ozymandias... E o meu primeiro dia de anos
no espaço, e o meu primeiro aniversário... E finalmente o meu doutoramento,
imprimido pelo computador com arabescos feitos de pequenos x e preso com
fitas na parede...
Depois, dia e noite, dia e noite, espancando-me com azul e preto... O
meu quinto aniversário, o oitavo, a minha década. Atravessei o intervalo do
magneto para me tomar no primeiro viajante no espaço interestelar... Mas
nessa altura já não havia ninguém com quem conversar, com quem partilhar o
acontecimento. Até as transmissões da rádio e da televisão vindas da Terra
eram difusas e raras; havia cada vez menos contactos com a realidade
exterior. A rotina pesada, o tédio estupeficante — até que às vezes percorria
os salões a gritar por alguma coisa nova; escutando os ecos que ninguém
jamais ouviria, e fingindo que acabariam por vir, esforçando-me tanto por
acreditar que havia alguma coisa para ouvir que não fosse a minha voz, o
meu eco, ou Ozymandias a escarnecer.
(— Olá, beleza. É um cangalho. Está lá, está lá?)
(— Ozymandias, afasta-te de mim...)
Mas sempre tive aquela crença profunda na minha missão: que estava
aqui com um fim, não apenas por causa dos meus motivos egoístas, ou da
NASA (ou o que quer que seja que agora lhe chamam), mas por Causa da
Humanidade e da Ciência. Através da meditação aprendi o verdadeiro valor
do silêncio interior, e pensava que criando uma paz interior alcançara o
equilíbrio com os silêncios exteriores. Pensava que a meditação me tinha
disciplinado, que estava em contacto comigo mesma e com a alma do
cosmos... Mas não tenho sido capaz de meditar desde que... Aquilo
aconteceu. O silêncio interior enche-se com a minha própria cólera, que berra
comigo, até não ser capaz de me lembrar com que paz se assemelha.
E até agora, que descobri realmente? Quase nada. Nada em que valha a
pena desperdiçar a minha análise ou todas as minhas belas teorias — ou a
minha liberdade. O espaço é ainda mais vazio do que alguém imaginou,
podia-se contar em ambas as mãos os bocados de pó frio ou mundo pequeno
em que entrei durante todo este tempo, almas perdidas a caírem
desamparadas no vácuo quase perfeito... Todos nós juntos. Com a minha fita
métrica, astronómica e absurdamente longa, fixei com precisão a distância da
NGC 2419 e algumas outras características, e a partir daí fiz novas
estimativas sobre alguns mais distantes. Mas não descobri um buraco negro
muito pequeno a rarefazer-se insaciavelmente no vácuo; não perscrutei as
nuvens invisíveis que ocultam as ondas ultralongas como bruma; não
descobri que existe vida para lá da Terra na forma mais experimental.
Recordando o sistema solar, já não vejo nada que mostre claramente que
existimos. Quando sondo, só ouço barulho eletromagnético, nenhum
pensamento coerente. Somente Weems à noite de doze em doze dias, como o
último homem vivo... Meu Deus, ainda não lhe respondi.
Para quê incomodar-me? Que sue. Para quê incomodar-me com o que
quer que seja? Para quê desperdiçar o meu precioso tempo?
Vinte anos — sobrevivi durante todo esse tempo. Pensava que estava a
salvo. E, vinte anos depois, a minha fachada de disciplina e autodomínio
desmorona-se com um toque. Tenho sido uma hipócrita iludida. Sabem que,
há dezoito anos, disse que o céu era um guarda-sol? E possivelmente voltei a
dizê-lo há quinze anos, e dez, e cinco...
3
Amanhã ultrapasso 1000 UA .
Quinta-feira, dia 12
Estraguei o telescópio. Estraguei o telescópio. Deixei-o apontado para a
Terra e, quando o laser se aproximou à noite, incidiu diretamente na boca do
telescópio e queimou-o. Estou tão envergonhada... Fi-lo de propósito,
subconscientemente?
(— Boa noite, luz das estrelas. Arrk. Boa noite. Boa...)
(— Inferno, quero ouvir outra voz humana...!)
(Ecoando, «voz, voz, voz, voz, voz...»)
Quando vi o que tinha feito, fugi. Corri sem parar pelos salões... Mas só
corria num círculo! Este observatório, a minha prisão, eu mesma... Não posso
fugir. Acabo sempre por voltar, para este quarto de paredes verdes com a
secretária e os terminais, os armários a abarrotarem de cem mil dúzias de
objetos, papel higiénico e fita magnética e reservatório de oxigénio... E posso
dizer-lhes com exatidão quantos passos são até ao meu quarto ou quanto
tempo levei a fazer o afghan em croché sobre a cama... Quanto tempo estive
sentada às escuras e em silêncio, a colocar em posição o programa de
exposição ou a tentar ouvir a fraca onda sonora da rádio de uma galáxia a
dois biliões de anos-luz. Nunca haverá algo de diferente, nunca mais.
Quando voltei finalmente aqui, havia uma mensagem à espera. Weems, a
sorrir para mim, saindo quase do écran «Parabéns», gritou ele «neste
momento histórico! Emmylou estamos a comemorar aqui no laboratório. Não
te importas que nos associemos a ti na tua celebração, a mil unidades
astronómicas de casa...?» Nunca o vi embriagado. Deviam ter planeado fazer-
me alguma coisa agradável com cinco dias de antecedência...
Para comemorar disse-lhe obscenidades em voz alta que nem sequer
sabia que conhecia, até ficar quase sem voz e com a garganta irritada.
Depois sentei-me à secretária durante muito tempo com a navalha aberta
na mão. Não queria morrer — tive sempre demasiado medo da morte para o
fazer — mas queria ferir-me. Queria fazer uma ferida para desviar a minha
atenção da coisa terrível que me suga para dentro de mim mesmo como uma
estrela suplicante. Ou talvez apenas para me castigar, não sei. Mas pensei na
possibilidade de me cortar com bastante calma, enquanto uma parte do meu
ser contemplava aterrorizada. Cheguei a apertar a navalha contra a carne... E
depois detive-me e pu-la de lado. Provoca um sofrimento demasiado grande.
Não posso continuar assim. Tenho deveres, obrigações, e não sou capaz
de as enfrentar. Que faria sem os automecanismos de emergência?... Mas é o
resto da minha vida, e eles não podem continuar a fazer o meu trabalho
interminavelmente...
Mais tarde.
Só tive uma visita. Por estranho que pareça. Mais estranho ainda — foi
Donald Duck. Hoje consegui ver metade da exibição de desenhos animados
de uma criança, a primeira peça coerente de transmissão televisiva não
direcional, não emitida, que registei em meses. E penso que nunca ficarei
mais feliz por ver alguém na minha vida. Que surpresa tão agradável, fiquei
tão contente por me fazeres uma visita... Ozymandias adora-o; fica suspenso
de cabeça para baixo no balouço debaixo da estante com um biscoito duro
numa pata, a cacarejar e a dizer. «Dá-nos um beijo, smack-smack-smack»...
Vimo-lo três vezes.
Até sorri, por instantes; até que me lembrei. Ajuda. Talvez o veja outra
vez até à hora de ir para a cama.
Sexta-feira, dia 13
Sexta-feira, dia 13. Engraçado. Pobre sexta-feira, dia 13, que teria feito
para merecer esta reputação? Mesmo que tivesse algum poder para tomar a
minha vida miserável, não se podia comparar com o resto da semana. Parece
uma eternidade desde o último fim-de-semana.
Hoje consertei o telescópio; substituí as partes queimadas. Tive de me
preparar e sair para fazer parte do trabalho... Há já algum tempo que não faço
nenhuma manutenção no exterior. Como é estranho! Sempre que saio da
bolha de ar, completamente só, para o espaço, sinto-me ao mesmo tempo
hilariante e aterrorizada. Uma pessoa está completamente só, tão longe de
uma possibilidade de ajuda, tão longe de tudo. E naquele momento
duvidamos de nós mesmos, subitamente, terrivelmente... Apenas por um
momento.
Mas depois arrastamos o umbilical atrás de nós e fazemos ruído ao longo
do invólucro com as botas magnetizadas, o que dá uma sensação tão
tranquilizante como um balastro de chumbo. Ligam-se as luzes e procura-se o
problema, descobre-se e começa-se a trabalhar; deixa de nos preocupar....
Quando a nossa vida parece ter-se escapado e andar livremente no ar, cria
uma espécie de uma âncora para trabalhar com as nossas mãos; quer esteja a
fazer um trabalho rotineiro ou a reparação mais complicada.
Houve um momento de pânico, quando vi efetivamente fios
carbonizados e metal derretido, quando pensava que o dano era tão grave que
não o podia reparar de novo. Parecia tão sólido, tão... Forte. Segurei-me lá
com os pés e lamentei-me e fechei as mãos dentro das luvas por instantes,
como uma criança grande, brilhante. Mas, depois, baixei-me e comecei a
espreitar aqui, a desatarraxar ali e a torcer um componente para o soltar... E
pouco a pouco pus tudo de novo no lugar. Um passo de cada vez como na
vida.
Quando terminei senti-me bastante calma, pela primeira vez em dias; a
coisa que tem tentado estrangular-me nesta última semana parecia vacilar um
pouco com a minha demonstração de competência, Desde então respiro com
mais facilidade; mas continuo a não ter muita energia. Gastei toda a energia
que possuía, só para vencer a minha própria inércia.
Mas apaguei as luzes e dei um passeio a pé à volta do invólucro durante
um breve espaço de tempo, mais tarde — não podia suportar a ideia de ter de
ir de novo lá para dentro logo a seguir: olhar para o prato preto, convexo, da
asa solar em que estou metida, a levantar os olhos para o prato mais pequeno
da antena de rádio que tapa as estrelas quando o cilindro do observatório roda
continuamente junto do centro do guarda-sol giratório...
Aquilo entonteceu-me, e por isso olhei para os campos de estrelas que
existem em todo o lado. Mesmo com os meus fracos sentidos, que não se
desenvolveram, aqui fora há muito mais para se ver, sem ser impedido pela
atmosfera ou poeira, sem ser dominado pelo brilho intenso do Sol. O
esplendor da Via Láctea, as profundezas das estrelas, da névoa e da galáxia
mais distante suspensas ansiosamente... como eu. A consciência de que estou
perdida para a eternidade num oceano inexplorado.
Estranhamente, embora aquele pensamento despertasse uma emoção
muito forte quando se apoderou de mim, não era de forma alguma um
pensamento negativo: Pertencia inteiramente a outra escala de valores; como
o próprio universo. Era como se o próprio universo estendesse o dedo para
tocar em mim. E ao tocar-me, ao escolher-me, apenas fez aumentar a
consciência da minha própria insignificância.
Isto era de certa maneira muito reconfortante. Quando uma pessoa
enfrenta a indiferença absoluta da magnitude e vistas tão esmagadoras, o ego
inchado do sofrimento, convencido da sua própria importância é reduzido...
E recordei-me de uma das coisas que foi sempre tão importante para
mim sobre o espaço — que aqui qualquer pessoa tem de vestir um fato
espacial antes de sair para o exterior. Somos todos forasteiros, ninguém está
melhor equipado que o outro para sobreviver. Aqui sou tão normal como
qualquer pessoa.
Tenho de me agarrar a esta ideia.
Sábado, dia 14
Ha uma razão para eu estar aqui. Há uma razão.
As primeiras horas do dia consegui meditar. Não como antigamente,
como era usual, esvaziando o espírito. Mas deixando que as perguntas
enchessem o espaço, sem as combater, deixando-as fundir com as
recordações de tudo o que já desaparecera. Pus música a tocar, aquele grande
estimulador mnemónico; deixando as imagens que cada gravação evocava
associarem-se livremente e atuarem umas sobre as outras.
E acabei por poder acreditar uma vez mais que a minha presença aqui
era o resultado de uma opção. Ninguém me obrigou. Os motivos que me
levaram a oferecer-me voluntariamente foram da minha inteira
responsabilidade. E deram-me este cargo porque a NASA acreditava que
prometia ter mais êxito que qualquer outra pessoa que pudessem ter
escolhido.
Não importa que alguns dos meus motivos fossem por acaso um medo
vago ou a vontade de fugir de coisas a que não podia fazer frente. Realmente
não importa. As vezes a fuga é a única alternativa à destruição, e só um louco
é que não consegue reconhecer a verdade disto. Só um louco... Existe alguém
«são de espírito» na Terra que não seja secretamente um fugitivo de alguma
coisa insuportável na sua vida? E, no entanto, trabalham normalmente.
Se correrem, correram para alguma coisa, também, não fogem
simplesmente. E eu fiz o mesmo. Já escolhi a profissão de astrofísica antes de
jamais ter sonhado fazer parte deste projeto. Em vez disso podia ter sido
investigadora médica, trabalhado sozinha para descobrir uma cura para o meu
estado. Podia ter crescido com aversão ao espaço e aos «astronautas», a viver
aos tropeções no meu maldito, horrendo e esterilizado fato...
Mas lembro-me de quando tinha 6 anos e da primeira vez que vi um
filme de astronautas a trabalharem no espaço... Pareciam tal qual eu! E
ninguém se ria. Então como poderia deixar de adorar o espaço?
(E como podia deixar de amar Jeffrey, com o cabelo escuro como a
noite, e o fato azul de voo com o remendo em forma de estrela no ombro.
Pobre Jeffrey, pobre Jeffrey, que nunca se apercebeu do seu sonho de espaço
antes de cortarem o programa debaixo dele... Não falarei de Jeffrey. Não farei
isso.)
Sim, podia ter ficado na Terra e esperado por uma cura! Mesmo nessa
altura sabia que um dia havia de haver uma. Era simultaneamente mais fácil e
mais duro optar pelo espaço, em vez de ficar.
E creio que aquilo que realmente me levou a decidir foi o facto de
aquelas pessoas terem bastante fé em mim e nos meus dons para acreditarem
que eu era capaz de dirigir este observatório e a minha própria vida sem
problemas desde que eu vivesse. Biliões de dólares e um milhar de toneladas
de equipamento pousadas em mim como o Atlas a exibir o seu mundo.
Até mesmo Atlas tentou livrar-se do seu fardo; porque, por mais vital
que fosse o seu trabalho, a responsabilidade continuava a ser um fardo para
ele. Mas também aceitou de novo o seu destino, não aceitou?, o bom e o
mau...
Hoje trabalhei. Dei tudo por tudo para fazer todo o trabalho de uma
semana, respeitante ao processamento e manutenção de dados, e ainda não
estou liquidada. Descobri enquanto trabalhava que Ozymandias se servira
daquelas cinco páginas que faltavam assim como dos relatórios diários:
defecou em cima deles. O que senti concretamente? Desatei a rir.
Penso que talvez viva.
Domingo, dia 15
As nuvens separaram-se.
Isto não é retórico — entre os dados recentemente processados figura
uma série de reconstruções fotográficas nas ondas ultralongas. E existe um
intervalo no gás de obscurecimento mesmo por cima de mim, uma falha nas
nuvens, que atinge trinta ou quarenta anos-luz. Talvez cinquenta! Fantástico!
Que panorama! Que panorama abarco daqui, de todas as coisas, com a minha
visão infinitamente alargada: do caminho à minha frente, do cenário que
passa — ou olhar para trás na direção da Terra.
Olhar para trás. Nunca deixarei de olhar para trás e de desejar que tudo
tivesse sido diferente. Pelo menos podia ter existido outra como eu, alguém
que estivesse aqui, alguém que podia ter sido normal lá na Terra. Assim não
teria de ficar dilacerada para sempre pelas mágoas...
(— Olá, que aconteceu, doutora? Basta!)
(— Cuidado! Se bebes, não voas.)
Maldito pássaro... Se estou a tornar-me piegas é porque tive uma festa
hoje. Bebi uma garrafa inteira de champanhe. Sim, tive a festa... Tivemos.
Ozymandias e eu. A nossa celebração privada 1000, UA. Vale mais tarde que
nunca, suponho eu. Pelo menos tínhamos alguma coisa concreta para
comemorar — as fotografias. E se a celebração não foi tão alegre quanto
podia ter sido, mesmo assim creio que ela terá o mesmo aspecto quando eu a
recordar na próxima celebração, a 2000 UA. Agora as celebrações irão
suceder-se com mais rapidez. Talvez até esteja viva para comemorar a de
8000. Que diabo, vou chegar à 10 000...
Depois de acabarmos o champanhe... Ozymandias acha que o 98 foi um
ano bom; graças a Deus que ele consegue beber tão depressa como eu... Pus a
tocar as minhas valsas de Strauss e a Barcarolle. Oh, a Berliner
Philharmonic! O seu toque é o que deve ser o beijo de um amante. Projetei a
vista exterior no écran grande, um salão de baile de estrelas, e eu dancei com
a minha sombra. E parte do tempo não dançava por cima do abismo com um
fato de salto e auscultadores, valsava em jardas de cetim e renda no soalho de
um salão de baile em Viena no século XIX. O que eu não daria para lá estar
por um momento, fora do tempo. Não uma vida inteira nem mesmo um ano,
mas apenas uma noite; só para dançar uma valsa.
Outra coisa que nunca farei. Há tantas coisas que não podemos fazer,
nenhum de nós, sejam quais forem as razões — tempo, talento, caprichos
duros da vida. Empreendemos todos uma viagem para o infinito, uma viagem
sem retomo. Se tivermos sorte dão-nos algum trabalho da vida em que
tenhamos interesse, ou alguma pessoa. Ou ambas as coisas, se tivermos sorte.
E eu tenho o Weems. As vezes vejo-o a ele e a mim como um velho
casal, que se tomou tolerante e compreensivo com o passar dos anos. Deus
sabe que nunca fomos duas almas gémeas, mas sentimo-nos bem com os
nossos silêncios...
Creio que já é altura de lhe responder.
POSFÁCIO
«Vista das Alturas» saiu muito ordenadamente de um parágrafo de um
artigo da Analog. O artigo, escrito pelo Dr. Robert L. Forward, falava de um
observatório astronómico, tripulado, que empreendia uma viagem sem
retorno, saindo do sistema solar para o espaço. No artigo, o Dr. Forward
especulava com brevidade sobre o tipo de pessoa que decidiria consagrar a
vida inteira a uma tal viagem. Esta história foi uma tentativa para responder
a esta pergunta.
Muitos escritores não podem falar de uma ideia nova antes de a história
estar escrita, porque falar da ideia faz desaparecer a necessidade de a
expressar, e assim a própria história nunca é confiada ao papel. Pertenço ao
grupo de escritores que precisam efetivamente de falar de uma ideia —
verifico que o compromisso de a partilhar revela possibilidades em que
nunca tinha pensado; a informação transmitida estimula a minha
criatividade. Falei desta história a Vernor — que desempenhou a função de
conselheiro técnico e editor geral em todas estas histórias, até um certo
ponto — e a ideia básica de uma mulher sem reações de imunidade surgiu
nas nossas discussões. O papagaio apareceu, porque eu queria que ela
tivesse alguma forma de companhia, e queria que fosse uma companhia
duradoura. Uma vez que os papagaios têm uma vida longa, ela tinha uma
boa oportunidade de ter Ozymandias enquanto vivesse. Sinto-me orgulhosa
desta história por muitas razões — mas em especial porque penso que existe
uma universalidade na crise de Emmylou e na sua superação. Todos nós
empreendemos uma viagem com um só sentido — de facto nenhum de nós
pode voltar atrás. A única hipótese que temos é tirar o melhor partido de
todas as opções que já fizemos em face das alternativas que nos restavam.
«Vista das Alturas» é de facto o primeiro conto com êxito que escrevi. A
extensão normal das minhas histórias parece ser maior — na minha opinião
uma história «curta» tende a rondar as 15 000 e as 25 000 palavras.
Atualmente, um conto (com menos de 7500 palavras) é talvez o tipo de
composição em prosa mais difícil de fazer; requer muita disciplina e muito
trabalho para se criarem personagens e para se desenvolver um cenário tão
depressa. (Talvez seja por isso que o evitei.) Mas, por outro lado, as ideias
das histórias têm extensões naturais construídas dentro delas — para que
uma história resulte, a ideia básica tem de ser deixada à vontade, até um
certo ponto, não deve estar espartilhada num molde preestabelecido. Um
conto que foi excessivamente alongado até se transformar numa novella é
geralmente fastidioso, tal como uma novella comprimida até ficar um conto é
frustrante, como uma dose de sobremesa demasiado pequena. Como escrevo,
comecei a desenvolver um sentido de extensão que a história deve ter antes
de a iniciar. Pensei que esta ideia estava destinada a ser um conto, e a sua
composição efetiva não resistiu a este sentimento. O produto final era algo
que me fazia sentir bem, aliviada. (Contudo, o sexto sentido do escritor nem
sempre está livre de falhar). Terminei finalmente um conto «normal» de 60
000 palavras — que se veio a verificar ter chegado quase às 200 000
palavras. Escrever não é nada senão uma experiência instrutiva.
HOMEM DA COMUNICAÇÃO SOCIAL
O som do silêncio enchia o vácuo preto e prateado do campo junto à
doca Mecca, ecoava nas torres cintilantes da destilaria; os sacos de gases
armazenados que resplandeciam com uma luz fosforescente, as formas dos
navios de carga semelhantes a insetos, surgiam de entre o nevoeiro. Mas
enchia apenas o capacete do fato de Chaim Dartagnan por um esforço de
vontade, quando o seu espírito bloqueou o clamor desagradável dos
auscultadores do capacete:
— Demarch Siamang, demarch Siamang...!
—... É verdade que vais...
— Que vais trazer?
—... Socorrer os abandonados...?
— Hei, Dartagnan, vá lá, Red, dá uma oportunidade aos teus velhos
amigos!
Dartagnan sorriu, soltou a amarra para reajustar com indiferença a
correia da câmara no ombro. Sofram em silêncio, desgraçados. Qualquer um
de vós ter-me-ia partido o pescoço para estar aqui no meu lugar. Lançou um
olhar ao saibro arenoso, brilhante e cheio de marcas do campo. Mesmo à
frente da multidão de curiosos, do outro lado do portão, viu o desespero dos
companheiros da comunicação social, que abriam caminho com os cotovelos,
com as câmaras penduradas na barreira; os guardas da segurança
empurraram-nos para trás com uma espécie de satisfação. Todos
independentes, rastejando uns por cima dos outros para obterem a grande
crónica, ou o ponto único, que atrairia a atenção do dirigente de uma
corporação e lhes valeria um lugar nas fileiras do pessoal candidato à
promoção numa corporação. Aí vou eu graças à boa vontade de Siamang e
Filhos... Ele vencera, lisonjeando o velho Siamang; tivera oportunidade de
provar a sua habilidade em fazer reportagens e captar imagens como o único
homem da comunicação social nesta viagem histórica (viu isto na retórica),
um salvamento audacioso para um Siamang Scion, a missão de misericórdia
de uma família filantrópica... Meu burro, pensou Dartagnan. Viu os dois
operadores de uma corporação a filmarem a sua passagem, com as
braçadeiras coloridas que faziam deles os homens de Siamang; o estômago
contraiu-se a uma dor aguda de esperança.
Levantou os olhos para a pureza da escuridão que a atmosfera não
deteriorou; para as estrelas. Algures debaixo dos seus pés, através de
quilómetros de rocha quase sólida, estava o minúsculo e pálido espinel de sol
Heaven. Voltaria a vê-lo, dentro em breve — Concentrou-se na forma
grotesca, indefinida, presa na extremidade da amarra, bifurcada pela aresta
brusca do horizonte do asteroide: a nave transformada que os levaria através
do Main Belt e de lá para o segundo planeta do Espaço, para recolher um
homem a bordo... E um tesouro. Os três diques flutuantes, salientes, que
mantinham os foguetões, movidos a energia nuclear, afastados das
instalações da tripulação, tinham presos cilindros rígidos em vez do usual
saco fraco de matéria volátil; transportava um foguete de carburante líquido
para a descida na superfície do planeta.
O resto do grupo reunia-se já debaixo da nave, ele arrastou-se ao longo
dos últimos metros do cabo, tirou do ombro a correia da câmara e verificou o
sinal da pressão, meteu o macaco de gravação no rádio do fato. Começou a
filmar, identificando uma figura humana da outra pelos desenhos
geométricos, complicados e coloridos dos seus fatos. Lá estava o velho
Siamang, elogiando a dignidade de uma vida humana; nenhum esforço
deveria ser demasiado grande para salvar este homem — e um salvamento
podia beneficiar todas as pessoas de Demarchy. Dartagnan abanou a cabeça
por detrás da armadura de proteção. Demarchy era uma democracia absoluta,
e a sua filosofia era salve-se quem puder, a não ser que houvesse uma
oposição demasiado forte... Ou que esse alguém tivesse algo que outros
desejavam.
Chaim sabia, porque tinha obrigação de saber, que um prospetor tinha
ficado em apuros no planeta Dois quando a nave de aterragem avariou. Os
sinais de socorro do prospetor enviados pela rádio tinham sido verificados
cuidadosamente; e sabendo, como toda a gente, que ninguém o viria socorrer
a não ser que valesse a pena, informara que tinha descoberto um importante
esconderijo de artigos recuperados antes da guerra, incluindo programas de
computador que podiam tomar mais eficiente o tratamento de matérias
voláteis de qualquer destilaria.
As destilarias contavam-se entre as raras corporações independentes e de
pequena dimensão de Demarchy que tinham meios para enviar uma nave em
seu socorro, e a descoberta dele deu-lhes a motivação. A Siamang e Filhos
tinha tanta motivação como qualquer outra, mas também tinha fundos
suplementares, cruciais: só eles é que tinham os motores acionados por
foguetão disponíveis para uma nave de aterragem. E, por isso, a Siamang e
Filhos seria a primeira a chegar ao planeta Dois, o que, certamente faria, que
também obtivesse os direitos ao prémio.
O velho Siamang terminara o seu discurso, e o punhado de
representantes de outras destilarias respondeu, com toda a sinceridade que o
seu aplauso silencioso implicava. Sabu Siamang, o filho e herdeiro do velho,
acrescentou algumas palavras, igualmente fingidas. Mas que cópia notável.
Siamang mandava o seu próprio filho numa viagem, ao desconhecido, um
desembarque num planeta não só com um poço de gravidade considerável,
mas também com a impressibilidade de uma atmosfera. Talvez não houvesse
mais ninguém em quem o velho Siamang confiasse; mas Dartagnan ouvira
um rumor de que havia outros motivos para que o velho desejasse que o
futuro diretor da corporação enfrentasse um pouco da realidade, e
responsabilidade. O jovem Siamang despediu-se do pai — qualquer
ressentimento que existisse foi dissimulado com um respeito gracioso — e da
mulher. Dartagnan surpreendeu-se por uma mulher da sua posição ter vindo à
superfície, ainda que por breves instantes. A voz era calma, segura, como a
do marido. Chaim não sabia se ela o fizera para salvar as aparências ou
porque quisera; ele sentiu outra emoção forte, inesperada, mas ignorou-a, sem
mesmo ter a certeza do que era.
Filmou o ritual das vénias cordiais, as despedidas, os outros a retiraram-
se atravessando o campo; a filmar e a ser filmado, seguiu Sabu Siamang e
entrou na nave que os esperava.
***
Dartagnan livrou-se do fato com um pontapé, no recanto escaninho, com
a graciosidade inconsciente de um homem que passara a vida inteira em
planetoides onde a gravidade era praticamente inexistente. Transpôs a porta
que dava para a sala de controlo, arrastando o corpo, assumiu o comando nos
painéis dos instrumentos. Siamang encostou-se ligeiramente a um, mexendo
descuidadamente nas filas de botões escuros.
— Não toques naqueles...! Por favor, Demarch Siamang. — A voz
suave, quase efeminada, tinha um laivo de irritação que enfraqueceu
repentinamente com uma deferência recordada.
Dartagnan desviou os olhos de Siamang na penumbra; viu o piloto, o
terceiro e último membro da expedição. Uma criança, pensou ele,
surpreendido. Um rapaz esguio com um fato de salto, escuro, informe, com
cabelo curto, preto como o céu, de estatura mediana, a sua própria altura,
talvez dois metros. Pregas epicanthic cobriam quase a irritação nos olhos
negros do rapaz virados para cima.
Siamang lançou um olhar à sua volta, surpreendido com o tom; uma
expressão de desculpa simulada formou-se no seu rosto.
— Oh, desculpa. — Um sorriso largo fez sobressair a pele escura, o
cabelo ainda mais escuro. Dartagnan lembrou-se despropositadamente de
focinhos de animais pintados a fresco numa mesa antiga. (Nunca tinha visto
nenhum animal maior que um inseto; eram raridades desde a Guerra Civil.)
Chaim nunca tinha a certeza da cor dos olhos de Siamang, apenas que eles
projetavam uma luz intensa, que cegava, como um holofote. Viu o piloto
vacilar e baixar o olhar. Siamang olhou para Dartagnan, descontraindo-se.
Chaim enfrentou sem esforço o olhar ofuscante, habituado a não ver um
rosto. Siamang estava na casa dos trinta, talvez dez anos mais velho que
Dartagnan, e o bordado rico do casaco solto, o corte perfeito das calças
apertadas, o brilho das botas, eram ofuscantes por direito próprio. O
«Demarch» bem vestido...
— Ainda não te apresentei o nosso piloto, pois não? Mythili Fukinuki...
O nosso pequeno repórter, Mythili...
Qualquer coisa na voz de Siamang deu um duplo sentido ao apelido do
piloto. Dartagnan olhou para o piloto, arregalou os olhos, quando a suspeita
se converteu em realidade. Meu Deus, uma mulher...? Não o disse em voz
alta; ficou contente quando ela levantou os olhos de repente, cheios de
hostilidade. Nunca vira uma mulher piloto; eram uma raridade como um
animal vivo. Apercebeu-se tardiamente de que Siamang não o apresentara e,
aparentemente, não tencionava fazê-lo. Perguntou a si mesmo se Siamang já
se tinha esquecido do nome dele.
— Uh... Chamo-me Chaim Dartagnan. Os amigos chamam-me Red. —
Levantou uma mão, apontou para o cabelo ruivo, ondulado, sobre a pele
castanho-clara.
O piloto classificou-o com um olhar a que ele se acostumara.
A gargalhada espontânea de Siamang encheu o espaço incómodo entre
eles.
— Pensava que os homens da comunicação social não tinham amigos.
Dartagnan soltou também uma gargalhada, acrescentou uma nota
prudente de autocrítica.
— Acho que devia ter dito «conhecidos».
— Aqui o Red pertence às fileiras dos órgãos da comunicação social,
Mythili. Se fizer um trabalho bom, o papá via contratá-lo permanentemente.
Portanto, seja amável para com ele. Talvez tenha de o ver muitas vezes. —
Piscou os olhos, e a expressão do piloto mudou ligeiramente. Chaim
calculava que a temperatura no compartimento tivesse baixado para dez
graus. — Red, qual é a sensação de estar agora aqui em cima, em vez de estar
lá em baixo com o resto do corpo dos coprófagos?
Dartagnan riu-se outra vez, intencionalmente.
— Muito boa, chefe. Ótima. Tenciono fazer dela um hábito.
— A partida está marcada para daqui a um quilossegundo, demarch
Siamang — disse o piloto. — Talvez fosse conveniente examinar a sua
cabina para se certificar de que está a bordo tudo o que lhe pertence. Logo a
seguir ao corredor... — Ela apontou para o buraco no meio do chão, cercado
por um corrimão de alumínio.
— Boa ideia. — Siamang afastou-se do painel, passando perto dela ao
ser quase arrastado para o poço. — É bom estar a bordo, Fukinuki. — A mão
dele deslizou pelas nádegas quando passou por ela.
Se os olhares pudessem matar, seríamos homens mortos. Dartagnan
examinou o chão à espera de ser transformado em pedra.
— Então?
Ele levantou os olhos, sem os fixar.
— Tem o dormitório da tripulação só para si. Quer verificar ou não os
seus haveres? — Sugeriu ela outra vez. Afastara-se do poço de saída.
Ele acenou com a mão na direção da câmara e do saco do material, do
casaco puído, sem adornos.
— É só isto. Viajo com pouco bagagem. — Ele sorriu insinuantemente e
não obteve nenhuma resposta. — Sabe... Uh... Tenho o mesmo problema.
Estão sempre a perguntar-me: «Onde estão os Três Mosqueteiros?» — Era
um assunto que lhe provocava uma satisfação mórbida, que o homem mais
estúpido e iletrado parecia ter ouvido falar daquele romance obscuro do velho
mundo.
— Não sei de que está a falar. — Aproximou-se do painel de controlo,
agarrou-se a uma correia, começou a examinar os dados.
— Que é que...
— E antes que você pergunte que faz uma rapariga simpática como eu
num trabalho como este, eu vou dizer-lhe. É porque quero estar aqui. E sim,
não, não e não. Sim, sou estéril. Não, não nasci assim. Não, não estou
arrependida de o ter feito. E não, não consegui o emprego por ter concordado
em exibir-me aos meus passageiros, consegui-o porque sou um piloto muito
bom! Mais alguma pergunta, repórter?
— Não! Acho que isso responde a todas elas. — Levantou as mãos,
palmas viradas para fora em sinal de rendição. — Mas, na realidade... —
Disse ele, mentindo — só tencionava perguntar-lhe se se importava que eu
filmasse a nossa partida no seu écran.
— Claro que importo. A sala de controlo é uma área restrita no que diz
respeito aos passageiros.
— É o meu trabalho...
— É o meu trabalho. Não aproxime a câmara dela.
Ele encolheu os ombros, fez uma vénia e entrou no poço.
***
Os víveres e o equipamento tinham sido guardados no local reservado à
tripulação, enchendo quase todo o espaço do teto ao chão, de parede a parede.
Dartagnan descobriu o único beliche livre no meio da parede, segurou-se e
subiu para cima dele, reconfortado com a sensação de proximidade,
habituado como estava a ele. Meu Deus, está realmente a acontecer...?
Fechou os olhos, pôs as mãos debaixo da cabeça, descontraiu o corpo brusca
e completamente, como se tivesse desligado uma máquina. Recordações do
tempo em que ele pilotara a nave do seu pai mostraram-lhe as imagens que
teria visto no écran desta nave, enquanto levantavam quase silenciosamente,
quase sem nenhuma sensação de movimento, da superfície de Mecca. A
imaginação expandiu-se, para uma visão de todo o sistema Heaven, a voltear
num mar de trevas.
O sistema Heaven era constituído por uma estrela classe G com quatro
planetas em órbita. Os dois planetas interiores, sem nome, eram
essencialmente inabitáveis, um demasiado quente, outro demasiado frio, com
atmosferas quase inexistentes. Os dois planetas exteriores eram gigantes de
gás: Discus, um escaravelho de cornalina colocado dentro de vinte faixas
separadas de poeira prateada pelo sol e gases gelados; Sevin, verde-claro e
inatingível desde a Guerra Civil. Estes dois planetas eram também inabitados.
Mas entre o planeta Dois e Discus estava situada uma cinta de
asteroides, o Heaven Belt, que outrora tivera uma colónia humana, próspera,
ainda mais rica que a Terra-mãe. Mas a guerra Civil destruíra Heaven Belt,
dizimando cerca de cem milhões de pessoas, a maior parte da população; e
agora o Belt era na sua maior parte uma imensa ruína, onde os que ainda
viviam pilhavam os artefactos dos mortos para continuarem vivos. Entre os
pequenos grupos isolados de seres humanos que ficaram, o Demarchy
sobrevivera quase intacto, devido à sua localização. O Demarchy estava
situado nos asteroides troianos, uma lágrima de asteroides com 140 000 km,
encurralados para sempre, a sessenta graus de distância de Discus na sua
trajetória orbital. O Demarchy tinha podido continuar a negociar dentro das
suas fronteiras, e com outra subcultura sobrevivente, os habitantes dos
escombros presos pelo gelo, que se deslocavam em círculo do outro lado dos
anéis do próprio Discus. Os Ringers forneciam a matéria volátil — o
oxigénio, o hidrogénio— e os hidrocarbonetos indispensáveis à vida, como
em tempo os tinham fornecido a todo o Heaven Belt. Em troca, o Demarchy
provia os Rings com minerais puros e minério refinado, que possuía em
grandes quantidades.
Mesmo antes da guerra, as corporações que dominavam a economia e o
comércio de Demarchy eram essencialmente pequenas e fragmentadas. A
natureza egoísta do Governo do Demarchy, com base em assembleias de
cidade, desencorajou os monopólios, e assim a inerente concorrência do
capitalismo foi levada a um extremo. A mesma sofisticada rede de
comunicações que mantinha em funcionamento a democracia radical do
Demarchy fornecera também um meio para a expressão da rivalidade entre
corporações, e como consequência disso os cidadãos do Demarchy eram
importunados por um fluxo contínuo de notícias com cariz de promoção,
promoções com cariz de notícias. A necessidade permanente de um
trapaceiro, de uma distorção mais eficaz da verdade, tinha criado um novo
nicho ecológico na sociedade Demarchy, um que fora preenchido pelo
escritor contratado, o homem da comunicação social, dispostos a dizer
qualquer coisa, a vender qualquer coisa, sem qualquer dúvida, ao preço mais
alto. Dispostos a fazer qualquer coisa para impressionar o diretor de uma
companhia...
Dartagnan, inconscientemente, foi-se tomando rígido; uma dor
apunhalou-lhe o estômago. Comprimiu-o com as mãos para aliviar a dor,
suspirou, lembrando-se dos subornos, das mentiras, das visitas frequentes a
escritórios e corredores, dos longos, longos, megassegundos que levou para
conseguir que o velho Siamang o ouvisse, numa lavandaria pública... A
adulação que fora precisa para conseguir uma entrevista e, no seu escritório,
os ângulos da câmara cuidadosamente escolhidos, o louvor excessivo. Sabu
Siamang também estava lá, calmo, amável, fascinante, o cavalheiro perfeito.
Dartagnan utilizar a mesma adulação para o abordar, com diversos resultados.
Sabu perguntara o nome dele, inquieto, e perguntou: «Que aconteceu aos
Três Mosqueteiros?» Dartagnan soltara uma gargalhada demasiado
estridente.
Dartagnan estremeceu mentalmente, abriu os olhos, fitando a parede...
Mas o velho Siamang tinha gostado do seu trabalho, oferecera-lhe esta
viagem bizarra como prémio... A dez megassegundos da civilização,
afastando-o de tudo o que precisava de saber. Mas se fizesse bem o trabalho,
isso não teria importância; quando regressasse à cidade de Mecca seria
homem de Siamang, e a sua vida estaria finalmente protegida.
Pensou em Mythili Fukinuki, Goody Two-Shoes, Eu-não-me-exibo-para-
os-passageiros, perguntou a si mesmo como é que ela conseguira conquistar o
coração do velho. Uma mulher piloto, por amor de Deus — uma dessas
mulheres que colocam interesses egoístas e ambição pessoal acima da sua
própria função biológica como mulheres, mães, como a defesa do futuro da
humanidade.
Antes da Guerra Civil não havia nenhuma razão para que as mulheres
não pudessem trabalhar ou viajar no espaço; mas a guerra alterara muitas
coisas, mesmo para o Demarchy. O Demarchy ainda possuía os meios para
preservar o esperma, mas não os óvulos; devido aos elevados níveis de
radiação a que os homens estavam expostos a bordo das naves — resultante
tanto das tempestades solares como da cisão das baterias de poeira atómica
das suas próprias naves — geralmente eram esterilizados, e era guardada uma
certa quantidade de esperma em bom estado para a altura em que eles
estivessem preparados para criar uma família. Mulheres saudáveis, férteis,
não tinham nenhum recurso semelhante, e, por isso, eram encorajadas, até
forçadas, a permanecer na segurança relativa das cidades, protegidas por
paredes de pedra, sustentadas pelos maridos. Mas com a radiação
relativamente elevada das fontes de energia conspurcadas do após-guerra,
mesmo nas cidades «protegidas» a percentagem de nascimentos anormais
estava a aumentar. As mulheres que conseguissem gerar uma criança
saudável eram consideradas um dos bens fundamentais do Demarchy. Mas
para alguns isso ainda não era o bastante... Ela tinha contactos. Essa é a
única maneira de alguém conseguir alguma coisa.
Ele ouviu alguém a mexer-se na plataforma contígua; levantou-se,
levando a câmara com ele. Mythili Fukinuki estava a aquecer vasilhas de
comida na copa. Subiu a flutuar, atrás dela, olhou para cima do seu ombro.
— Hora de almoço?
Ela torceu-se para olhar para ele, espantada; uma luz dançou ao longo
dos dentes do garfo que tinha na mão.
Chaim recuou brusca e desastradamente, dando quase um salto mortal.
Endireitou-se com as mãos no ar.
— Olhe cá, eu só quero almoçar!
O seu rosto distendeu-se num sorriso trocista; perguntou a si mesmo
quem estava a ser ridicularizado.
— Aqui tem as vasilhas, escolha a que quiser. Não se esqueça de fechar
bem as tampas. Isto é um aquecedor infravermelho, além está o lixo. Coma
quando quiser, limpe aquilo que sujar. — Ela virou-se, fixou os recipientes
com um estalido ao tabuleiro magnetizado e afastou-se, dirigindo-se para a
mesa.
Ele foi ter com ela com o seu tabuleiro, meio sentado no ar na gravidade
quase normal da aceleração constante da nave. Ela franziu um pouco as
sobrancelhas, continuou a comer, em silêncio. Constrangido, começou:
— Estou impressionado. É uma bela nave. Eu...
— Bem, parece que vocês os dois estão a dar-se ainda melhor do que
imaginava. — Siamang passou através do buraco no teto.
— Red, fala a meu favor... Se fores mais longe.
Dartagnan ergueu os olhos, sentindo o gume da voz de Siamang.
Ofereceu um sorriso.
— Claro que sim, chefe... Se for mais longe.
O piloto pegou no tabuleiro sem dizer uma palavra, deu uma grande
volta em direção ao buraco de entrada, e desapareceu. Chaim ouviu a porta da
cabina dela fechar-se ruidosamente e, no silêncio, o estalido do fecho. Desta
vez foi Siamang que soltou uma gargalhada demasiado estridente. Siamang
relanceou o olhar pela copa, a mesa vazia, o garfo a espetar-se num pedaço
pegajoso de legumes com molho, perto da boca de Dartagnan. Siamang
levantou as sobrancelhas e usou os olhos.
Dartagnan baixou o garfo, notou qualquer coisa de diferente e peculiar
nos olhos.
— Só comecei agora, chefe, se quiser ficar com o meu. Posso aquecer
outro. — Ofereceu com as mãos, afastou-se da mesa.
— Tens a certeza de que não te importas? Obrigado, Red. — Siamang
aproximou-se com satisfação da mesa quando Chaim se afastou. A voz saiu
pouco clara, quase sem se perceber. — Uma coisa que tu deves ter e eu não
tenho é um certo jeito para lidar com mulheres... Se se pode chamar mulher
àquela. Deve ser de todas as mentiras que dizes. — Pegou no garfo. —
Impressionas-me, Red. Como é que vocês, homens da comunicação social,
podem dizer tantas mentiras, com tanta convicção? Nascem assim?
Chaim concentrou-se durante meio segundo nos olhos de Siamang,
procurando certificar-se do que via. Os olhos de Siamang sondavam as trevas
secretas do seu espírito como um holofote; ele desviou o olhar, desfocado.
Um agressor... A palavra desarticulada ardia nas pálpebras como uma
imagem posterior. Mas os olhos estavam demasiado brilhantes, vítreos, as
pupilas dilatadas até não se conseguir ver nenhuma íris. Siamang estava sob a
influência de alguma droga. Dartagnan não sabia o que era, não queria saber.
Sorriu tolamente.
— Não, chefe, ninguém nasce assim. É preciso prática, muita prática. —
Baixou com um movimento brusco a capa das lentes da câmara, com
indiferença, e dirigiu-se para a copa. De repente pensou com pesar que não
iria haver muitas cenas dignas de serem gravadas durante a viagem para o
planeta Dois. Disse uma oração rápida, silenciosa, a ninguém em particular,
para que Siamang lhe desse uma metragem decente quando chegassem lá.
— Diz-me outra coisa, Red... — A voz de Siamang continuava, trocista,
vagamente condescendente.
Dartagnan sorriu, sem ver Siamang, a sala, nem mesmo a nave, mas
somente o vazio estrelado ao longe. Vai ser uma viagem longa. Ao menos que
não seja em vão.
***
Passados os primeiros cem quilossegundos, Dartagnan deixou de trazer a
câmara com ele, deixou de fazer quase tudo o que o pusera em contacto com
os outros. Siamang continuava fechado no quarto, passando o tempo num
mundo que Chaim não estava interessado em visitar; só saía à hora das
refeições, para um ataque ocasional, trocista, aos escrúpulos de Dartagnan, ou
para se fazer à mulher piloto. O piloto continuava fechado à chave na sua
própria cabina, Dartagnan não sabia a fazer o quê, não estava interessado em
saber, e só saía para comer e verificar os dados na sala de controlo, evitando
os dois.
Mas ele aproveitou a oportunidade da ausência dela, finalmente, para
não fazer caso das suas restrições arbitrárias e introduziu-se na sala de
controlo. Filmou as estrelas que apareceram no écran, demorou-se a olhar pra
o écran no silêncio agradável, quebrado apenas por estalidos, fugindo ao
tédio do seu quarto desarrumado e de paredes nuas no piso inferior.
Os seus olhos começaram a afastar-se pouco a pouco do écran central,
examinando cuidadosamente séries de números, as filigranas geométricas e
complexas que apareciam nos écrans periféricos. Distraidamente, olhou para
o ângulo do Sol, de sobrancelhas carregadas, a posição do resguardo leve no
topo da neve que impedia que a luz do Sol incidisse diretamente no módulo
de aterragem. Estendeu finalmente o braço, fez uma pergunta ao computador,
prestou atenção quando a série de números se alterou num écran e começou a
brilhar com uma luz intermitente.
— Que é que pensa que está a fazer?
Ele estremeceu com um sentimento de culpa, agarrou-se ao painel
quando se virou, viu o piloto entrar na sala.
— Tenho a impressão de que um dos tanques impulsores no módulo de
aterragem está a aquecer. Talvez queira ajustar a proteção contra o sol...
— Afaste-se daí. Disse-lhe que a sala de controlo era uma zona proibida!
Que é que fez... — Ela afastou-se dos degraus que circundavam o perímetro
do poço, e aproximou-se do painel. — Grande estúpido. — Os olhos dela
percorreram os números cintilantes no écran, desceram e fixaram-se de novo
no painel. A mão indagou, obteve a mesma resposta. — Tem razão. —
Levantou novamente os olhos como se nunca o tivesse visto. — Como é que
soube?
— Os homens da comunicação social sabem tudo. — Ele viu a
expressão do rosto dela começar a mudar outra vez. — Bem... Na realidade,
sou um piloto qualificado.
— Você? — Ela pestanejou. — Não pensava...
— Engraçado. Penso as mesmas coisas das mulheres.
Ela voltou para junto do painel; ele observou-a enquanto ela posicionava
de novo a proteção contra o sol. Disse muito suavemente, defensivamente:
— Geralmente não cometo erros como aqueles. Mas não tenho vindo
com a frequência que devia... Eu não o devia deixar aproximar-se de mim!
— Siamang?
Ele acenou com a cabeça, sem olhar para ele, a curva da boca, suave e
com uma sombra, ficou mais apertada.
— Sim. — Ele encolheu os ombros. — Não é propriamente o que se
poderia chamar fácil de amar, pois não? Mas acredite em mim, já conheci
pior...
— Ele é um sádico! — A voz dela tremeu.
Dartagnan sentiu a garganta a fechar, engoliu.
— Que quer dizer? Quer dizer que ele...
— Não, não. É «civilizado» de mais para isso. É um sádico psicológico.
Quando está com o pai, com os outros homens da companhia, é delicado,
encantador, normal. Mas quando é alguém que ele não... Respeita... Ele... —
Calou-se, tentando encontrar a palavra —... Ele...
— Ele «pede com insistência». — Chaim acenou com a cabeça. —
Mostro-lhe as minhas marcas se me mostrar as suas. — Ele hesitou. — Por
que razão suporta isso?
— Gosto do meu trabalho! Ele... Não viaja muito.
Ele ouviu um barulho em baixo; o seu sorriso lento alargou com a
falsidade quando olhou na direção do poço.
— Cabeças no ar.
Siamang apareceu, prendeu-os ao painel com o olhar quando se puxou
para cima, passando pelo rebordo do poço.
— Com que então estão aqui! — Falou com demasiada amabilidade.
Segurava na mão um balão com uma bebida, chupava uma palha.
— Olá, chefe. — Dartagnan fez uma vénia. — Estávamos precisamente
a falar no prazer que é trabalhar para a Siamang e Filhos.
Siamang riu-se, incrédulo.
— Pensava que devíamos circunscrever o nosso convívio ao piso
inferior.
— Estava só a fazer uma curta metragem das estrelas, um pequeno
trabalho com pretensões a arte. Com a supervisão do piloto... — Ele levantou
as mãos como quem pede desculpa.
— Ele ia já a sair — disse Mythili, a sua voz tremeu.
— Ótimo. Não queremos infringir os regulamentos, pois não, Red? —
Siamang atirou ao ar o balão com a bebida. Chaim viu-o descer lentamente,
formando um arco em direção ao metal frio do soalho. — É altura de
reabastecimento. — Mergulhou, como o balão, desapareceu debaixo do nível
de soalho. A porta abriu-se, fechou-se.
— Está sempre a render-se, não está, Dartagnan? Sempre a mentir.
Dartagnan olhou de novo para o rosto severo do piloto, sentindo a sua
antipatia, e baixou os olhos para as mãos, ainda no ar com as palmas viradas
para fora. Puxou-as e encostou-as às ilhargas, subitamente envergonhado, e
tentou dominar a dor aguda no estômago.
— Sim. — Limpou as mãos no casaco. — Sempre deitado de costas,
enquanto todo o universo dá cabo da minha integridade. — Entrou no poço.
***
Mythili Fukinuki agarrou-se ao teto para não continuar a flutuar até ao
dormitório. Dartagnan olhou para cima, quase surpreendido.
— Importa-se?
— Não, se você não se importa. — Ele empurrou a câmara para o lado
no beliche. — Esteja à vontade. Sou inofensivo.
Ela desceu a flutuar; os joelhos dobraram ligeiramente quando chegou
ao chão, firmando-se. O cabelo curto e brilhante deslocou-se suavemente de
um lado ao outro da testa; a pele era da cor do ouro antigo na luz forte.
Chaim desviou o olhar, perturbado.
Os seus olhos negros perscrutaram o vazio, evitando-o.
— Por que razão faz isto, se...
— Que é que um rapaz simpático como eu faz num trabalho como este?
— Ele sorriu ironicamente, observando-a como o Cheshire Cat. Ela
enrubesceu. O sorriso desapareceu, deixando-o para trás. — Alguém tem de o
fazer.
— Mas você não. — Ela puxou para trás o cabelo. — Não, se você
realmente o detesta assim tanto.
— A voz da experiência? — Ele espicaçou-a com as coisas que ela não
disse. — Goody Two-Shoes, mulher piloto, diga aos nossos espectadores
como chegou à posição que tem. E não me diga que foi com uma vida
honesta. Fora contactos com pessoas influentes.
Os lábios cerraram-se-lhe.
— É isso. O meu tio era piloto de dirigíveis de carga; o meu pai
conseguiu que ele usasse a sua influência. Mas fizeram-no porque era o que
eu queria.
— Então, foi a sorte deles, foi a sua sorte. Todos devíamos ter essa sorte.
Se tivéssemos, talvez estivesse na sua posição, em vez de estar como estou.
— Há outros empregos. Você não precisa de influência... —... Para
despejar fertilizante num tanque com plantas o resto da vida? Para partir
rochas numa refinaria? Claro. Todos os trabalhos no universo nos quais não
se pode progredir, lá em Delhi... Sendo da comunicação social, pelo menos
tive a oportunidade de ganhar dinheiro, de fazer contactos... Talvez de me
libertar, de arranjar de novo uma nave, um dia. Se é isto que tenho de fazer
para o conseguir... Seja lá o que for que tenha de fazer... Fá-lo-ei.
Ela sentou-se devagar sobre uma caixa.
— Oh... Que aconteceu à sua nave? Que tipo de nave era?
— A nave não era minha... Era do meu pai. Ensinou-me tudo o que sei,
como se costuma dizer. — Ele riu-se dum modo um tanto ou quanto estranho.
Era prospetor, era um monte de sucata, que voava. Só a vi quando tinha
dezoito anos. Quase nunca o via. A minha mãe firmou um contrato.
— Oh... Quase pesar.
Ele acenou com a cabeça.
— Quando tinha dezoito anos o meu pai apareceu-me de repente como
um meteoro, e disse-me que eu ia fazer prospecção. Passei cinquenta
megassegundos a aprender a pilotar uma nave, a procurar artefactos em
rochas com nomes de que nunca tinha ouvido falar, quase sem ver ninguém a
não ser ele... E muitos cadáveres. — Riu-se outra vez, sem ouvir. — Pensei
que ia enlouquecer. Acabou por desistir e deixou-me ir para casa. Depois
ouvimos dizer que ele asseverava ter feito a descoberta da sua vida... Depois
soubemos que tinha morrido. Tinha despedaçado a nave, e ele ficou feito em
bocados num maldito acidente ao entrar na doca. Uma companhia qualquer
apanhou o seu achado, nunca recebemos nada. Então tive de começar a fazer
alguma coisa para sustentar a minha mãe... E eis-me aqui. Pensava que ia
gostar de ser repórter, ao fim de cinquenta megassegundos de prospecção...
Agora até a reclusão sabe bem.
— Por que é que a sua mãe o deixou fazer isto? Ela não sabe...? — A
compaixão suavizou as linhas marcadas e direitas do seu rosto.
— Que é que ela devia fazer? Despejar fertilizante no meu lugar? — Ele
encolheu os ombros. — Ela é bonita, casou-se, talvez há cem
megassegundos. Agora não tenho muitas notícias dela. O marido não gosta de
mim, por razões evidentes... Enquanto o meu pai era vivo, ela nunca firmou
nenhum contracto para ter filhos de outro homem qualquer. Engraçado... Ele
ficou connosco talvez sete vezes em seiscentos megassegundos, nunca lhe
deu nada a não ser eu, mas amava-o, penso que contou sempre que ele
casasse um dia com ela. — Resmungou. — Aquilo não constituiria um
motivo de interesse humano... Desculpe, não tenho estado a contribuir com a
minha quota-parte nesta conversa compulsiva neste último megassegundo. —
E, observando-a, fê-lo tomar consciência, imediatamente, de outra carência
que não era satisfeita há muito tempo. O facto de ela não fazer nenhum
esforço para se tomar sensual, transformou-a numa mulher irresistivelmente
sensual. Desabotoou o colarinho alto do casaco solto, verde-acinzentado,
deslocou-se constrangidamente por cima da borda do beliche, perdendo quase
o equilíbrio.
— O meu pai — disse ela, baixando o olhar, sem se aperceber — queria
um filho. Mas não podia tê-lo... Um problema genético. Foi por isso que me
deixou ser piloto. Era como se tivesse um filho. Mas isso não tem nada de
mal. — A voz subiu um pouco de tom. — Porque pilotar é aquilo que eu
sempre quis fazer.
— É? Ou teria sido porque queria ser agradável ao seu pai? — Ele
perguntou a si mesmo o que o levara a dizer aquilo.
Ela levantou os olhos de repente.
— Era o que eu queria. Se um homem da comunicação social não está
satisfeito por estar no seu «posto», por que razão hei de eu estar?
Qualquer coisa no seu olhar quebrou a barreira do seu aspecto público,
invulnerável. Ele acenou com a cabeça.
— Não é fácil, pois não? Nunca facilitam as coisas...
Ela esboçou um sorriso.
— Não, Dartagnan... Nunca facilitam. Mas você talvez tenha ajudado,
um pouco.
— Trate-me por Chaim.
— Pensei que os seus amigos o tratavam por «Red».
— Não tenho amigos.
Ela abanou a cabeça, ainda a sorrir. Levantou-se, afastando-se da caixa,
e subiu em direção ao poço de entrada.
— Claro que tem.
Sozinho, pensou em estrelas até ao desejo enfraquecer, deixando um
calor no seu espírito que não tinha nenhuma relação com sexo. Saboreou-o,
enquanto a ouvia aquecer a comida na sala comum por cima da sua cabeça;
ouviu outra coisa, a voz de Siamang:
— E se me aquecesse alguma coisa, Mythili?
— Sou piloto, e não cozinheira, demarch Siamang. Terá de ser você a
fazê-lo.
— Não foi isso que quis dizer.
— Dartagnan ouviu um tabuleiro magnetizado fazer barulho no balcão,
um ruído abafado de indignação.
— Faça-o você, também!
Um som mais fraco, fechou-se uma porta. Chaim deixou entrar de novo
a imagem dela no seu espírito, sorriu-lhe, com um ar de desventura. Bem, a
tua amizade é melhor que nada, pobre «Goody Two-Shoes»...
Mas pouco mais viu dela, como amiga ou sob qualquer outro aspecto,
nos quatro megassegundos e meio que se seguiram. A antipatia mútua por
Siamang e o receio de o provocar, continuava a meter-se de permeio,
constituindo uma barreira intransponível.
Até que por fim o planeta Dois surgiu no visor: estranho, imenso, a
paleta de um pintor com tons cinzentos e áridos — azul-acinzentado, verde-
acinzentado, castanho-acinzentado. A voz grata de um náufrago soou no
altifalante: localizando na rádio a posição da neve, Mythili colocou-os numa
órbita polar, quebrando o fluxo hipnótico de cinzentos com a brancura
ofuscante de picos cobertos de gelo. Pela primeira vez, Chaim viu nuvens —
bandeirolas pálidas e finas de vapor gelado presas no alto, na camada
atmosférica do planeta. Registou tudo, e sentiu-se invadido por uma rara
admiração de ser um dos poucos seres humanos no sistema Heaven a vê-lo
diretamente. Veio-lhe ao espírito que as nuvens pareciam mais comuns do
que se lembrava ter visto em fotografias. Conseguiu entabular uma conversa
inteligente sobre isso, mantendo-se ao lado de Mythili. E, enquanto faziam os
preparativos finais para entrarem na nave com linhas deselegantes que os
levaria para fora da órbita, ela pediu-lhe discretamente que a ajudasse na
aterragem.
***
Ele sentou-se na cadeira excessivamente acolchoada, preso com correias
ao lado dela, na cabina que parecia exígua até para ele. Siamang sentou-se
atrás deles, aparentemente sóbrio, taciturno, o que era de admirar. Chaim
estudou os movimentos de Mythili, viu o seu próprio nervosismo refletido no
rosto dela, mas que tornava os seus movimentos mais vivos, mais precisos,
como se aumentasse a sua perícia. Libertou-os da prisão da nave principal,
disparou o primeiro foguetão que os fez sair da órbita... E deu início à
manobra de descida que nem ela nem nenhum piloto vivo no sistema Heaven
jamais tinha feito, à exceção do homem abandonado lá em baixo.
Entraram na atmosfera superior; lançou o segundo foguetão. Ela teria de
manter um equilíbrio crucial: uma descida demasiado rápida teria como
consequência a sua destruição... Mas uma descida demasiado lenta esgotaria
as reservas de combustível da nave enquanto eles estavam ainda muito
afastados da superfície. Há cerca de dois biliões de segundos que não eram
construídas naves no sistema Heaven que pudessem utilizar a atmosfera do
planeta para reduzirem a velocidade da descida — porque desde a guerra não
havia necessidade de uma nave como essa, até àquele momento. Nenhum
foguetão acionado por energia nuclear podia produzir a aceleração necessária
para uma aterragem planetária. E por isso esta nave, que podia fornecer a
impulsão necessária para reduzir a velocidade da descida, fora construída de
peças de emergência e com tecnologia de emergência, em escassos dois
megassegundos.
Chaim leu a altitude e a velocidade da descida nos instrumentos que
nunca tinham sido calibrados para uma precisão milimétrica a seiscentos
metros por segundo; agarrou o painel dos instrumentos com as mãos suadas,
lutando contra o seu próprio peso, súbito, invulgar. Mythili desceu-os na
direção do sinal luminoso da rádio, o visor praticamente inútil, bloqueado
pelo brilho intenso e intermitente dos foguetões e pelo ângulo de descida. Ela
reprimia um suspiro, ou uma praga, sempre que eram sacudidos ou afastados
da linha da sua trajetória pela força terrível da turbulência atmosférica,
invisível.
E aos mil metros ela deu início ao lançamento do último foguetão.
Chaim levantou a voz quando o som dos foguetões chegou aos seus ouvidos,
aumentando de intensidade:
—... Seiscentos metros, vinte metros por segundo, quinhentos metros...
— Ele sentiu a impulsão a aumentar —... Quatrocentos metros, dezoito
metros por segundo... — Ela reduziu de novo a impulsão, a velocidade de
descida estabilizou. —... Cinquenta metros, dez metros por segundo...
Quarenta metros... Trinta... Vinte metros... Mythili, estamos... — Ela
aumentou a impulsão ao máximo; dez metros por segundo em ângulo reto
atiraram-no para a cadeira. O visor ficou coberto de pó, a nave balançou, o
barulho abafou a sua voz, a vibração fez-lhe bater os dentes como uma
matraca. — Depressa de mais!
O impacte sacudiu-lhe o corpo, quase um anticlímax. Mythili desligou
os motores; passaram segundos antes de reinar de novo o silêncio. Ele
pestanejou junto ao écran, ainda cinzento, em turbilhão, e puxou-se para
cima na cadeira, lutando contra a mão estranha da gravidade.
— Parabéns — disse ele a rir, ofegante —, é um planeta... E eu não
consegui filmar nada de toda a descida!
Ela inclinou-se, triunfante, rindo como ele.
— Se estivesse a filmar em vez de ser o meu copiloto, penso que não
estaríamos aqui para nos preocuparmos com isso.
Ele baixou e levantou a cabeça.
— Muito gentil. — Como se ele lhe tocasse com os olhos. Ela olhou-o a
sorrir.
***
— É imaginação minha ou está a ficar frio aqui? — Dartagnan viu o
bafo a congelar quando falou. Procurou libertar-se do fato espacial, sentindo-
se pesado como chumbo e desajeitado. Ouviu Siamang praguejar de irritação
no espaço exíguo atrás dele.
— Não é imaginação sua. A atmosfera desempenha a mesma função que
a água, está a aspirar todo o calor dos nossos corpos através da estrutura. —
Mythili massajou os braços quando examinou o visor. — Os engenheiros de
Siamang predisseram algo semelhante a isto.
Chaim viu a cúpula da estação experimental abandonada, a cerca de um
quilómetro de distância do outro lado da planura, a planura subpolar e, mais
próxima, a massa disforme da nave do prospetor. Nós os dois fizemos uma
aterragem melhor que aquela a que tínhamos direito... Ainda mais longe, ao
longo do horizonte incrivelmente longínquo, ele pensou ver uma mancha de
neve clara salpicada de enormes e baixas crateras: a camada gelada no polo
sul do planeta Dois. Pensou na riqueza imensa em matéria volátil que este
planeta representava; lembrou-se de repente de que estavam todos no fundo
de um poço de gravidade.
— Vá lá, Red. Vai buscar a tua câmara e partamos. Foi para isso que
viemos! — A voz de Siamang denotava bonomia e ansiedade. Chaim sentiu
uma onda de alívio, tendo esperança de que o comportamento de Siamang em
assuntos profissionais iria ser mais fácil de gravar que a sua vida privada.
— Já vou a caminho, chefe... Você não vem? — Ele olhou para trás,
para Mythili. — Caminhar num planeta não é uma coisa que toda a gente
tenha feito.
Ela acenou com a cabeça.
— Eu sei. Mas tenho de ficar perto da nave, não está inteiramente
preparada para suportar os efeitos de uma atmosfera. Tenho de manter a
cabina bastante quente para que os instrumentos não gelem, e tem de ser
drenada uma quantidade suficiente de combustível dos tanques para que não
rebentem. E, além disso — ela baixou o tom de voz —, não me meto nos
assuntos das companhias.
— Compreendo. Mostro-lhe os filmes da minha terra quando voltar. —
Ele colocou o capacete na cabeça, fechou-o, pegou na câmara. Cambaleou,
espantado com o peso dela. A gravidade na superfície do planeta Dois era
cem vezes superior ao normal; subitamente, pensou que teria sido melhor se
tivesse aceite a oferta da companhia de uma câmara muito leve como as que
havia antes da guerra, em vez de ter insistido em trazer a dele.
— Despacha-te, Red!
Seguiu Siamang através do corredor, descendo os degraus perigosos da
escada. A pressão atmosférica impedia que o fato inchasse; agarrava-se-lhe
ao corpo quando caminhava, com mãos de gelo.
— C’os diabos! — Siamang cambaleou, atingido por um soco invisível.
Dartagnan percebeu que era vento quando o atirou de encontro à parte lateral
da nave. O capacete bateu em metal produzindo um som vivo. O ar na
superfície estava calmo quando desembarcaram, o vento estava já a tomar-se
mais forte, fazendo andar à roda o pó cinzento-azulado, formando cortinas
translúcidas. No intervalo das rajadas, ele divisou um corpo minúsculo a
dirigir-se para eles, afastando-se da cúpula.
Atravessaram com dificuldade o prato pouco fundo, inflamado, da zona
de aterragem da nave, prosseguiram através da superfície coberta de pó fino e
macio.
— Agora estamos os dois com a cara suja, chefe — disse ele com
jovialidade, com mais jovialidade que a que sentia. A poeira batia com força
na viseira; ele fechou os olhos para a não ver, começando a transpirar, já a
tiritar. Siamang não respondeu, esforçando-se por não se desequilibrar; o seu
rosto estava carrancudo, mal se vendo por detrás do vidro do capacete.
Dartagnan ergueu os olhos para o céu, o Sol, como um espinel, parecia maior
sobre um azul estranho como o do lazúli. Pensou na safira, a única coisa de
que ele se conseguia lembrar que possuía a mesma pureza de cor. Deviam
ter-lhe chamado Azul em vez de Dois... Inferno Azul. Baixou outra vez os
olhos, através da planície cinzento-azulada junto à cúpula, pouco maior,
fixou-os na figura humana, que envergava um fato e que já se aproximava
deles, o que provava que estavam efetivamente a avançar. Deixou escorregar
a câmara do ombro, que estava a ficar dormente, enrolou a tira de couro numa
mão dormente, enluvada.
— Se bem que vocês não sejam um espetáculo agradável! — A voz de
um desconhecido ressoou nos auscultadores do capacete; o prospetor, o
náufrago, a comissão de boas-vindas, constituída por uma só pessoa. O
homem estendeu as mãos quando chegou ao pé deles, cumprimentou-os,
fazendo vénias, subitamente. Caminhava quase sem esforço, notou Chaim,
sentindo inveja.
— Não é apenas isso que não é agradável — disse Siamang, a sua
congenialidade parecia forçada. — Vamos entrar e sair desta maldita
atmosfera.
— Claro, certamente. Deixe que eu lhe leve isso, estou habituado a isto.
— O homem estendeu a mão para pegar na câmara de Dartagnan.
Chaim fez-lhe sinal com a mão para que ele se afastasse, lembrando-se
da sua função.
— Não, obrigado, estou encarregado de fazer a reportagem... Deixe-me
filmar isto... — Saiu, tomando o peso à câmara, ligou-a, focou-a, premiu o
botão, tropeçando nos seus próprios pés. Momento Histórico. Salvamento
Histórico. Cenário Histórico... Operador Cinematográfico Dá Cabo do
Traseiro... Passavam perto da nave abandonada do prospetor. A voz de
Siamang chegou-lhe aos ouvidos:
— Red, filma aquilo.
— Está bem, chefe. — Filmou de muito perto o nome pintado na
estrutura e a silhueta de um inseto. — A Abelha Esso? — Riu-se
cepticamente, ouviu rir os outros, divertido e surpreendo com a identificação.
Virou-se para trás para olhar na direção do rosto ensombrado do prospetor.
— Suponho que é Kwaime Sekka-Olefin? — Lembrou-se dos detalhes do
primeiro noticiário. O homem abandonado era herdeiro de uma fortuna em
destilarias, mas a atual companhia tinha sido destruída durante a Guerra
Civil: Sekka-Olefin Volatiles, Esso por uma questão de abreviatura, e esta
estação experimental «secreta» fora dirigida por eles antes da guerra.
— Exatamente e estou muito contente por vos encontrar! — O homem
deu outra gargalhada. — Meu Deus, é maravilhoso!
— O prazer é nosso — disse Siamang facilmente. — Temos o prazer de
estar ao serviço de um homem ou de toda a humanidade.
Chegaram à cúpula inferior, finalmente. Dartagnan filmou-a para a
posteridade, filmou a desolação de vento, poeira e neve, fez todos os
possíveis para que os dentes que batiam não ficassem gravados. Respirando
com dificuldade, avançou penosamente para filmar a chegada, deparou com a
entrada escura e acolhedora do abrigo. Quando atravessaram o
compartimento com uma porta hermeticamente fechada em cada
extremidade, constatou que havia um corredor abrupto que conduzia ao piso
inferior; percebeu que a parte principal da instalação devia ser subterrânea,
para ajudar a manter uma temperatura uniforme no interior. Reparou que uma
parede do corredor estava serrilhada de uma maneira pouco vulgar. Recuou
lentamente em direção a ela, filmando, quando, de repente, Sekka-Olefin
correu para ele.
— Cuidado! — A voz de Sekka-Olefin ressoou como uma matraca no
seu capacete. A luva de Olefin agarrou-se ao braço dele, não o conseguia
segurar, quando Dartagnan deu um passo em falso e ficou no ar.
O ar deixou-o cair e, com um grito de surpresa, caiu para trás pelas
escadas abaixo. A câmara bateu-lhe no estâmago. Ficou estendido no chão,
aturdido e dorido, a arquejar, vendo estrelas sem tentar. Os outros chegaram
ao pé dele, fazendo todos os possíveis por não lhe caírem em cima. Tiraram-
lhe a câmara de cima, levantaram-no.
— Estás bem, Red?
— Não viu os degraus lá além...?
— Degraus? — Disse ele com os dentes quase cerrados. — Que quer
dizer? Uh!... O tornozelo direito torcido debaixo de uma parte do corpo, a dor
subia pela perna acima e pela espinha dorsal como um choque elétrico. — A
minha perna... — Encostou-se à parede do corredor, equilibrando-se num só
pé. — Dói como o diabo.
— Este lugar é que é o Inferno — murmurou Siamang, enojado. — E a
tua câmara? — Deixou-a cair nos braços de Dartagnan.
Dartagnan desequilibrou-se, Olefin estendeu a mão e agarrou-o. Sacudiu
a caixa fechada, examinou-a, virou-a e olhou pelas lentes. Doía-lhe o peito.
Meteu de novo a alavanca de gravação.
— Não parece estragada... Devo ter filmado o teto quando caí para trás.
— Sentiu o sabor do sangue que vinha do lábio rachado. — Penso que a
desgraça caiu em cima de mim, de propósito.
— Ainda bem que é mais forte que tu — disse Siamang —, senão talvez
ficasses desempregado, Red.
Dartagnan riu, sem energia. Olhou para o corredor: a finalidade da
parede serrilhada era terrivelmente óbvia para ele, depois do que acontecera;
degraus, uma série de planaltos para reduzir a força cinética descendente sob
uma gravidade elevada. Para além da lesão é um insulto... Ele fez um esgar.
O prospetor ofereceu-lhe um ombro para ele se apoiar e continuaram a
percorrer o corredor.
***
— Que tal uma bebida para celebrar o acontecimento? Para celebrar por
não ter de beber sozinho. — Olefin apanhou uma garrafa do chão, no
cubículo desarrumado que tinha sido o seu lar nos últimos dez
megassegundos. Dartagnan reparou noutro monte de garrafas, vazias na sua
maior parte.
— É uma ótima ideia. Podia usar um pouco de anticongelante. Este sítio
provoca morte imediata. Como é que o frio chega aqui? Devem estar zero
graus Kelvin... — Siamang friccionou os dedos para a circulação se voltar a
fazer. Tinham despido os fatos devido à insistência de Olefin; noutras
circunstâncias o ar estaria terrivelmente frio.
— Não... Não, só desce a cerca de duzentos e trinta graus Kelvin depois
de o Sol se pôr. Isto é sem contar, claro, com o fator frio. — Olefin sorriu
ironicamente.
Dartagnan sentou-se na cama-rede vazia, com a perna levantada e o
tornozelo a inchar dentro da bota. Olefin lançou-lhe um olhar interrogador.
Chaim reparou que os olhos eram verdes, salpicados de castanho por baixo de
umas sobrancelhas grossas, arqueadas. Olefin estava na casa dos 50 e bem
conservado para um homem que passara quase toda a sua vida no espaço. O
cabelo desgrenhado e comprido começava a rarear na testa, a ficar prateado
nas têmporas, um brilho surpreendente em contraste com a pele morena.
Distinto Scion de Old Money... Não sabia que eles eram pessoas de carne e
osso. Dartagnan abanou a cabeça.
— Não, obrigado... Sou abstémio.
Siamang parecia admirado.
— Fins medicinais? — Perguntou Olefin, gesticulando com a garrafa.
— É por isso que eu não bebo. — Ele abanou de novo a cabeça, cheio de
remorsos. — Não posso beber. Arranjei uma úlcera. — Limpou o lábio
ensanguentado.
A surpresa de Siamang corporizou-se num ataque de riso.
— Uma úlcera? Com que tens de te preocupar, Red?
— Preocupo-me por ter de recusar uma bebida de graça. Bem podia
aproveitar uma.
Olefin deitou vodca em taças hemisféricas; o líquido transparente ficou
equilibrado e não transbordou quando ele o deitou. Receoso de começar a
sentir pena de si mesmo. Dartagnan procurou chegar à câmara.
— Diria que teve sorte em encontrar aqui tanta coisa intacta, demarch
Sekka-Olefin? Parece que todo o sistema de manutenção ainda está
operacional. Salvou-lhe a vida? Que aconteceu aos investigadores
estacionados aqui, depois da guerra? — Quase lhe soube bem, depois de sete
megassegundos de silêncio forçado.
Olefin inclinou o corpo para a frente no banco, partilhando o desejo
ardente de ouvir a sua própria voz.
— Sim, não há dúvidas de que tive sorte. Teria sido fatal a bordo da
Abelhas Esso (Esso Bee). Mas, efetivamente, não aconteceu nada que
pudesse danificar esta estação durante a Guerra Civil. Ninguém sabia que ela
estava aqui à exceção da Esso. Depois da guerra ninguém estava em
condições de vir aqui... Pelo aspecto das coisas, a tripulação deve ter morrido
à míngua.
Dartagnan engoliu. Meu Deus, o público vai adorar isto...
— Mas... Uh, as descobertas que fez significarão que eles não morreram
em vão? As descobertas deles irão ajudar os vivos...?
— Sim... Sim! Em formas que eu nunca imaginei. — A voz de Olefin
assumiu um tom vagamente fanático. Sabia que...
Siamang andava de um lado para o outro com impaciência. Poisou a
taça.
— Demarch Sekka-Olefin, Red. Se não estou a abusar — (não havia
nenhum traço de sarcasmo) —, gostaria de pedir que a entrevista fosse adiada
até termos tido oportunidade de discutir assuntos mais importantes.
— Oh, certamente... — Olefin calou-se, de repente parecia quase
satisfeito com a interrupção. — Tudo o que eu possa fazer, tendo em conta o
que você fez por mim.
Siamang deu outra expressão ao rosto quando Dartagnan virou a câmara
para ele.
— Claro, o assunto mais importante, a razão básica por que percorri
quatrocentos milhões de quilómetros, é...
Mais dinheiro, pensou Dartagnan.
—... Para o afastar deste planeta infernal. — Tirou uma coisa
embrulhada em espuma de borracha de dentro da pasta fina. — Esta é a
unidade de substituição com as instruções para o componente que ficou
danificado quando a vossa nave aterrou aqui no planeta Dois.
Olefin irradiava alegria como uma criança com um presente de
aniversário; mas Chaim viu o brilho escuro de outro tipo de humor que se
moveu atrás dos olhos cor de avelã.
— Por falta de uma lasca, a nave perdeu-se! Quando penso no tempo e
dinheiro que gastei a aperfeiçoar a Esso Bee e um núcleo elétrico que pudesse
arrastar metade de um planeta, o melhor desenho possível... Para ir tudo por
água abaixo, porque uma única peça eletrónica foi colocada nó exterior,
quando devia ter sido colocada no interior... Obrigado! Praticamente não lhe
posso agradecer, demarch Siamang, mas farei o melhor que puder. —
Levantou-se e estendeu a mão para apertar a de Siamang com cordialidade.
Sentado uma vez mais, encheu de novo a taça, ergueu-a para fazer um brinde
e bebeu de um trago.
— Bem, pode compensar-nos, em certo sentido... — Siamang fez uma
pausa, sério, reticente, de modo a desarmar qualquer pessoa. —... Dando à
Siamang e Filhos a oportunidade de ser a primeira companhia a fazer uma
oferta de compra dos programas para computador que diz ter descoberto.
Olefin fez um aceno curto com a cabeça, quase imperceptível, que não
exprimia concordância.
Siamang prosseguiu, sem prestar atenção:
— Como sabe, seria vital para tomar mais eficientes as nossas técnicas
nas destilarias...
— E simplificaria o processamento de muitas outras destilarias — Olefin
interrompeu com uma afabilidade inesperada. — Demarch Siamang
tencionava fazer um leilão público de todos os objetos recuperados na
presença dos órgãos da comunicação social, quando regressasse ao
Demarchy. Tinha em mente oferecer-lhe, ou a quem viesse socorrer-me, uma
percentagem substancial da receita como recompensa.
A expressão de Siamang tomou-se mais tensa, imperceptivelmente.
— O que nós tínhamos em mente, demarch Sekka-Olefin, estava mais
relacionado com uma oferta com uma taxa uniforme sobre os programas para
computadores. Não estamos interessados em mais nada. Porém, você podia
negociar com quem quisesse. Mas é muito importante para nós, naturalmente,
que a Siamang e Filhos seja a primeira firma a obter esses programas.
E um leilão geral não garantiria isso. Dartagnan escondeu um sorriso
atrás da câmara. De repente compreendeu por que a Siamang e Filhos tinha
querido uma gravação editada e não uma transmissão direta, sobre esta
missão de salvamento: transações comerciais nunca deviam ser negócios
públicos.
— Compreendo o que sente, Siamang. Eu próprio descendo de uma
família ligada a destilarias. Mas tenho a impressão de que um acordo secreto
com uma firma é demasiado monopolista, desrespeitando as tradições do
Demarchy no que concerne ao comércio livre... E, além disso, para ser
franco, tenho grandes planos para o dinheiro que obterei com estes achados, e
pretendo fazer um negócio tão bom quanto possível. Aquele programa para
computador é de longe a parte mais valiosa.
— Entendo. — Os olhos de Siamang pestanejaram quando se fixaram na
peça sobresselente colocada em segurança nos joelhos de Olefin. Chaim
adivinhou sem esforço o desejo que ele formulou. — Então, se não se
importa, vou fazer uma vez mais aquele trajeto agradável até à nossa nave e
entrarei em contacto com a companhia por intermédio da rádio para lhes dar
conhecimento da sua posição. — O seu sorriso era a luz do sol no gume frio
da sua voz. — Talvez me deem um pouco mais de flexibilidade para fazer
uma oferta... — Fez uma vénia.
Chaim levantou-se, aguilhoado por um mal-estar indefenível; voltou a
sentar-se bruscamente.
Siamang lançou um olhar para trás, vestindo o fato.
— Tu ficas aqui, Red. Acaba a tua entrevista. Só me irias empatar. Não
tenciono passar mais tempo lá fora que o estritamente necessário. — Fez
outra vénia delicada a Sekka-Olefin e saiu do quarto.
Dartagnan ouviu o ruído estranho de pés que se arrastaram e afastavam,
e praguejou, ofegante, tomado pela dor e frustração. Levantou novamente a
câmara, compulsivamente, com uma cor protetora. Viu Olefin através das
lentes, a abanar a cabeça, com a mão no ar, que estendeu para encher uma vez
mais a taça. Chaim baixou a câmara, irritado, mais aliviado ao ver que o
prospetor não estava a beber de um trago como fizera anteriormente. Havia
muito tempo para a entrevista; com o intervalo entre as comunicações,
Siamang só estaria de volta daí a três mil segundos.
Olefin sorriu ironicamente.
— Um pouco disto solta as línguas e toma a vida mais fácil. Em excesso,
solta os miolos e transforma a vida num inferno. Tento pôr um termo... A
queda foi pior do que quer admitir, não foi? Onde lhe dói?... Talvez seja
melhor dar uma vista de olhos a esse tornozelo. — Levantou-se.
Dartagnan encostou-se à parede fria, riu-se uma vez.
— Pergunte-me onde me dói! Preto, azul e verde por toda a parte...
Obrigado! Mas já me devia ter cortado a bota, e esta é a única que tenho. Não
importa, regressaremos em breve e deixarei de ter problemas. Agora só tenho
de fazer o trabalho. — Estremeceu quando os dedos de Olefin lhe sondaram o
tornozelo.
— Primeiro o trabalho! E mesmo seu, hem? Então, você é uma arma
antiaérea da companhia... — A mão de Olefin deu uma pequena pancada na
sola da bota —, empregado da Siamang?
— Espero... Espero vir a ser! — Disse por entre os dentes cerrados. —
Assim, quando ele me manda saltar, não pergunto porquê nem como...
Limito-me a perguntar: «Tem altura suficiente?»
— Não irá dar saltos durante algum tempo, às ordens de ninguém. Tem
uma entorse, talvez uma fratura. — Os olhos verdes e castanhos examinaram-
no, divertidos; ele gostaria de saber onde estava a piada. Olefin afastou-se
para ir buscar a bebida que estava sobre uma prateleira coberta de pó. —
Acha que eu não aguentaria trabalhar para mais ninguém. Isso acontece a
quem é criado no meio de ricos ociosos, suponho...
— Não precisa de ser rico, acredite no que eu lhe digo. — Dartagnan
apoiou-se num cotovelo e a cama-rede rangeu.
Olefin olhou para ele, as sobrancelhas grossas levantaram-se.
Ele sorriu automaticamente.
— O meu pai era prospetor. Encontrou poucas rochas, até ao dia em que
morreu... Precisamente no momento em que finalmente descobria uma coisa
importante, pelo menos foi o que ele disse. — Estabelece uma ligação com o
assunto, consegues uma entrevista melhor... Pensou.
— Nesse preciso momento? Como se chamava ele? — Um interesse
encorajador surgiu no rosto de Olefin.
— Dartagnan... Gamai Dartagnan.
— Sim, conheci-o. — Olefin acenou à taça com a cabeça. — Não sabia
que ele tinha um filho. Só lhe falei umas quatro ou cinco vezes.
— O senhor e eu. Todavia, levou-me com ele. Precisamente antes da
última viagem que fez.
— É isso... Ouvi falar do acidente. Lamento profundamente.
Chaim mudou de posição.
— Disseram que foi um acidente.
Olefin sentou-se, pesou as palavras:
— Está a dizer que pensa que não foi?
Ele encolheu os ombros.
— O meu pai era prospetor há muito tempo. Tinha conhecimentos
suficientes para não cometer um erro daquela envergadura. E parece-me uma
coincidência que estivesse lá uma companhia na altura, para recolher o seu
achado.
— Alguém tinha de ser o primeiro a lá chegar. — Sekka-Olefin abanou a
cabeça. — Suponho que no seu ramo de trabalho não vê o melhor lado da
política corporativa. Mas poucos cometem esse tipo de baixeza, seria um
suicídio, se isso alguma vez se viesse a saber. Talvez os instrumentos
tivessem falhado. Os acidentes acontecem, as pessoas cometem erros... O
espaço não nos dá uma segunda oportunidade.
Dartagnan acenou com a cabeça, baixou os olhos.
— Talvez. Talvez fosse isso que aconteceu. Creio que o senhor saberia a
verdade se ninguém soubesse. Você representa as duas partes... Ele segurava
aquele monte de sucata com cuspo gelado...
Olefin bebeu lentamente, impassível.
— Que o levou a abandonar a prospecção e a abraçar a carreira de
repórter?
Dartagnan, inesperadamente, perguntou a si mesmo quem era o
entrevistador e o entrevistado.
— Prospecção. Talvez não me apercebesse da sorte que tinha.
— Mas agora é tarde de mais.
Ele não sabia ao certo se aquilo era uma pergunta ou um parecer
moralista.
— Não, se eu for bem-sucedido neste trabalho...
Olefin acenou com a cabeça para qualquer coisa.
— Não gostaria de outro emprego mais duradoiro?
Chaim sentou-se, sem esconder a sua ansiedade.
— A fazer o quê? Prospecção?
— A dirigir uma campanha dos órgãos da comunicação social.
Dartagnan deixou-se cair para a frente, estranhamento desapontado.
— Isso é... Um elogio dos diabos da parte de uma pessoa estranha. Está
a falar a sério? E que tipo de campanha...? Que tenciona vender?
— O planeta Dois.
Dartagnan voltou a sentar-se.
— Quê?
— A colonização do planeta Dois pelos habitantes de Demarchy.
Meu Deus, uma oferta de emprego feita por um maníaco. Um maníaco
rico... Ele estendeu a mão para pegar na câmara. Isto pelo menos não vai ser
enfadonho.
— Deixemos isso por agora. — Olefin abanou a cabeça. — Dir-lhe-ei
tudo o que quiser se aceitar o emprego. Mas ouça-me até ao fim, antes de me
rotular de excêntrico.
Chaim sorriu com um ar envergonhado.
— Como queira. Brincou com as lentes, colocando-as, em posição, no
sítio onde estava. Carregou no botão ON. Um ruído penetrou no tímpano
esquerdo, quase imperceptível, com o registo do som no máximo. Tinha
quase a certeza de que o ouvido de Olefin não era suficientemente apurado
para o captar. Há mais de um processo para obter uma boa entrevista... Um
emprego na mão vale mais que dois hipotéticos. — Então está bem! Importa-
se de continuar a expor os seus motivos para querer estabelecer uma colónia
num buraco infernal como o planeta Dois? — Reclinou-se, massajando a
perna ferida com as mãos.
Olefin riu-se, ficou com um ar mais sério.
— Quantos megassegundos pensa que ainda restam no Heaven Belt?
Dartagnan olhou para ele sem expressão.
— Antes de quê?
— Antes de a civilização se desmoronar por completo, antes de nos
juntarmos aos cem milhões de pessoas que morreram logo a seguir à Guerra
Civil.
Dartagnan lembrou-se da cidade de Mecca, um geode feito pelo homem
no coração da massa rochosa, torres como tumores de cristal em todos os
cambiantes imagináveis de cor de pedras preciosas. Tentou imaginá-la como
um local de morte e não foi capaz.
— Não tenho conhecimento de que os animais que se alimentam de
cadáveres tenham voltado ao Main Belt, mas não vejo nenhuma razão para
que o Demarchy não possa continuar a existir indefinidamente, como sempre.
— Não vê?... Não, creio que não. Ninguém vê. Suponho que não querem
enfrentar o inevitável, a morte. E quem sou eu para os censurar?
— Todos temos de morrer um dia.
— Mas quem acredita realmente nisso? Talvez o facto de a Esso ter sido
destruída pela guerra, o facto de eu estar a esbanjar o que resta da fortuna da
família, me tenha feito compreender isto: que a existência do género humano
aqui tem um limite... E esse fim está à vista. Por falar dos erros que se
cometem, nós cometemos um erro crasso... A Guerra Civil... E um erro em
Heaven e vocês estão condenados. Mortos...
— A vida na cinta de um asteroide depende exclusivamente de um
ecossistema artificial. Tudo o que é vital para a vida tem de ser transformado
ou de ser feito com as nossas próprias mãos... Ar, água, alimentos, tudo. Mas
como qualquer outro ecossistema, mais que a maioria, é destruído em parte e
nada do que fica pode sobreviver durante muito tempo. Tem de fugir, senão
morre. Lá no Solar Belt podem fugir para a Terra, se forem obrigados a isso,
onde tudo o que é essencial à vida brota naturalmente. Mas, quando o Heaven
foi colonizado, isto não lhes aconteceu, por isso não previram a necessidade.
Quando os Belters antigos colonizaram este sistema, imaginavam que os
elementos em estado natural... Os metais e os minerais, os gases gelados à
volta do Discus... Eram tudo aquilo de que precisavam. Nunca ocorreu a
ninguém que um dia não poderiam transformá-los.
— Mas foi isso que aconteceu. A maior parte da indústria essencial em
Heaven foi destruída durante a guerra. O que ficou mal chega para nós, e não
há nenhum processo de o podermos aumentar ou substituir. Diabo, o Ringers
já mal conseguem sobreviver e, se eles soçobram, não sei como é que as
nossas destilarias vão conseguir... É capaz de reter o fôlego?
Dartagnan soltou uma gargalhada, constrangidamente.
— Mas... — Tentou encontrar uma réplica, encontrou o espírito vazio...
Como a visão súbita do futuro. — Mas... Está bem. Talvez tenha razão,
estamos a aproximarmo-nos do fim... Se não há nada que possamos fazer
para nos salvarmos, para quê preocuparmo-nos com isso? Limitemo-nos a
tirar o melhor partido daquilo que temos, enquanto o temos.
— Mas essa é que é a questão! Há uma coisa que podemos fazer! A
partir de agora podemos estabelecer uma colónia aqui no planeta Dois,
lutando contra o tempo em que a tecnologia falha e o Demarchy já não nos
pode sustentar.
— Não percebo. — Dartagnan abanou a cabeça. — É ainda mais difícil
sobreviver aqui que no espaço. Mesmo dentro de um fato, o senhor morreria
de frio! A atmosfera absorve o calor do seu corpo, mesmo agora, quando o
Sol está acima do horizonte. E a gravidade...
— Aqui, a gravidade é apenas um quarto daquela a que o corpo humano
pode resistir. Quanto ao frio... O nosso equipamento não foi projetado para
fazer face a ele, mas seria bastante fácil adaptá-lo. Só precisamos de um
isolamento mais adequado. Isto não é pior que algumas zonas da Terra. A
Antártida, por exemplo. Não é mais quente que isto e estão enterrados na
neve até aqui, mas não se importam. A melhor coisa que os seres humanos
têm a seu favor é a adaptabilidade! Aqueles de rostos sujos conseguiram, um
Belter também consegue. — As mãos de Olefin saltaram com ênfase, os
olhos brilharam como ágatas, iluminados por uma visão interior. — De facto,
parte da minha ideia para a campanha dos órgãos da comunicação social seria
rebatizar este planeta com o nome Antártida. «Voltem para a natureza,
abandonem o ambiente artificial, vivam da maneira para a qual o homem foi
destinado a viver...»
— Não sei... — A cabeça de Dartagnan moveu-se de novo em sinal de
contradição. — Tem a certeza de que este lugar não é mais frio que a Terra?
Além do mais, a atmosfera continua a ser irrespirável.
— Mas não é! Este é um dos pontos mais cruciais e para o qual o
público tem de ser consciencializado. Um dos projetos experimentais
efetuados aqui foi um estudo das condições atmosféricas... E deu provas
convincentes de que este planeta é mais denso que era quando entrámos pela
primeira vez no sistema. A forma como as várias periodicidades da sua órbita
se adicionam neste preciso momento está a provocar o degelo das neves
polares, libertando os gases. A atmosfera é rarefeita e seca, em comparação
com aquilo a que estávamos habituados, mas é respirável. Eu sei,
experimentei.
— Por quanto tempo? — Dartagnan sentiu de repente um pânico
opressivo, só de pensar em tentar respirar uma atmosfera estranha. Levou a
mão à garganta. — Como é isso possível? Como pode haver oxigénio puro
em quantidades suficientes?
— Não sei. Mas existe! Estive no exterior dois, três quilossegundos de
cada vez.
Dartagnan baixou o olhar, dando lustro à bota usada de vinil.
— Teria de viver debaixo da terra, suponho, para ajudar a conservar o
calor. Mas fazemos isso duma maneira ou de outra. E a energia solar... Está
muito mais próximo do sol...
— Está a ver! — Olefin acenou com a cabeça impacientemente. Está a
começar a ver as possibilidades. Essa é a resposta. Temos de encontrar uma
resposta, é isso. Isto pode fazer a sua carreira! Com o dinheiro que ganhar
com estes achados, podemos lançar uma campanha dos órgãos da
comunicação social que pode transformar o Demarchy inteiro. Qual é a sua
opinião, Dartagnan?
Chaim parou de dar lustro, não virou a cara.
— Preciso de tempo para pensar no que me disse ao princípio, demarch
Sekka-Olefin. Ainda não sou capaz de ver este sítio como o Jardim de Alá...
Dou-lhe a minha resposta antes de descolarmos, está bem? — Ele
compreendeu que a pergunta para a qual precisava de uma resposta era se
aquilo era o que desejava fazer da sua vida... Ou se tinha realmente alguma
alternativa. Mas uma espécie de excitação cresceu dentro dele como o desejo
de preencher o vazio que o futuro de Olefin criara, com a certeza de que se
ele se vendesse a Sekka-Olefin, talvez não se estivesse a vender.
— Bastante razoável — dizia Olefin, a sorrir, como se já tivesse a
resposta dele. — Pode contar que as sanguessugas que me rodeiam vão ficar
prostradas pela dor quando tiverem conhecimento dos meus planos para o
dinheiro destes salvados. Não gostaram que eu gastasse o que ficou da
herança da família neste projeto. Não fui eu que pus o nome àquela nave que
está lá fora. Puseram-lhe o meu nome... Riu-se da sua própria facécia.
Dartagnan esboçou um sorriso, ouviu o som de passos no vestíbulo e
sentiu de novo o rosto a perder toda a expressão. Tirou a perna ferida de cima
da cama-rede, pousou-a cuidadosamente no chão. Levantou-se e, de repente,
teve medo de se mexer.
Olefin curvou-se perto dele, puxou uma vara comprida, marcada com
um T, de debaixo da cama-rede, e ofereceu-lha. Chaim viu que as
extremidades estavam envoltas em trapos.
— Tome — disse Olefin —, use a minha muleta. Caí naqueles malditos
degraus, às escuras, quando cheguei aqui pela primeira vez.
Chaim sorriu desta vez, quando Siamang chegou à porta com o capacete
debaixo do braço. Os olhos de Dartagnan deslocaram-se do rosto de Olefin
para o de Siamang. Compreendeu, repentinamente, que tinha tomado uma
decisão. Fez uma vénia.
Siamang retribuiu-lhe o cumprimento com o olhar protegido pelo
decoro.
— Espero não o ter maçado, demarch Sekka-Olefin. Estou certo de que
deseja efetuar reparações e sair deste planeta miserável o mais cedo possível.
— Ele friccionou os braços no fato para os aquecer. — O meu piloto diz-me
que teremos de descolar antes do pôr-do-sol, nós mesmos. As nossas baterias
de acumuladores estão a ficar fracas na tentativa de manterem as
temperaturas no interior da nave. Mas tenho boas notícias... Permissão para
fazer o que for necessário para chegar a um acordo consigo relativamente aos
programas de computador. — Um raio de luz, como uma lasca de gelo, saiu
dos seus olhos. Dartagnan tentou ver se as pupilas estavam dilatadas mas não
conseguiu.
— Então está bem. — Olefin acenou com a cabeça. — Afinal talvez
possamos discutir negócios.
— Também espero. Mas, em primeiro lugar, se não se importar, gostaria
de dar uma vista de olhos à mercadoria que vamos negociar.
Olefin parecia um pouco surpreendido; Dartagnan perguntou a si mesmo
o que Siamang pensava poder dizer só de olhar para bobinas de programas.
Olefin encolheu os ombros.
— Se você não se importa de voltar lá para fora, demarch Siamang...
Tenho-os a bordo da Esso Bee.
Siamang fez um trejeito.
— Era isso que receava. Mas mesmo assim gostaria de os ver.
Abriram caminho através da poeira de ardósia que andava no ar até ao
ponto onde aterrara a nave de Olefin. Dartagnan parou, olhando fixamente
para a escada que subia a massa do módulo de carburante sólido do meio de
pés de vagens, salientes. Os músculos contraíram-se de fadiga, o tornozelo
soltou um grito de queixume nos corredores dos seus nervos.
Siamang olhou fixamente para a viseira levantada.
— Nunca conseguirás chegar lá acima, Red. — A voz de Siamang
dentro do seu capacete era estranhamente impassível e pouco clara, muito
pouco clara. — Não te preocupes, tens muitas metragens. Grava só o som... E
pensa na maneira de entrares a bordo na nossa própria nave. — A luva de
Siamang fechou-se levemente no seu ombro, alegremente, inopinadamente.
Surpreendido, viu-os subir a escada e desaparecer por detrás da porta
hermeticamente fechada.
Dartagnan sentou-se num degrau da escada, grato porque naquele
momento o ar, pelo menos, estava calmo e mantinha as suas mãos invisíveis
longe dele. O Sol descia do seu zénite na concha lazúli do céu. Viu
minúsculas manchas de um branco transparente cravadas na pureza
imaculada de um azul-safira, lá bem no alto. Percebeu que eram nuvens vistas
de baixo. Começou a tremer, perguntou a si mesmo quando os outros iriam
terminar o negócio, e se isso seria antes de ele morrer de frio. Discutiam
preços com prudência, num tom de voz monótono, enchendo-lhe os ouvidos;
começou a sentir sono, anestesiado pelo frio...
Abanou a cabeça bruscamente, levantou-se, acordando com a sua própria
dor. Então apercebeu-se de que a conversa fantasmal dentro do seu capacete
deixara de ser monótona e educada, ouviu Siamang a proferir ameaças.
— Esta é a minha última oferta, Olefin. Aconselho-o a aceitá-la, senão
terei de...
— Não me venha com essa conversa. Siamang. As ameaças não surtem
efeito comigo. Tenho uma longa experiência da vida e do mundo...
Dartagnan ouviu ruídos vagos, dissociados, um grito, um baque. E, por
fim, a voz de Siamang:
— Olefin, Olefin? — Entorpecido por outra espécie de frio, Chaim
focou a câmara na escotilha e esperou.
Siamang apareceu a arrastar o corpo mole de Olefin, que envergava um
fato. Deu-lhe um empurrão; Dartagnan tropeçou quando este caiu como um
projétil na poeira à sua frente, ficando prostrado, torcido e sem se mexer.
Estupefacto, continuou a filmar: o cadáver; Siamang a descer a escada; o fim
de um sonho.
Siamang dirigiu-se para ele através da poeira brilhante, arrancou-lhe a
câmara das mãos sem vigor. Soltou a cassette do filme do tamanho de um
dedo polegar e atirou-a fora. Dartagnan viu-a cair em arco, desaparecer
algures no aluvião infinito, cinzento-azulado, da planura: o seu próprio
futuro, o futuro da humanidade, a última vontade e o testamento de Sekka-
Olefin, perdidos para os seus herdeiros — perdidos para a humanidade, para
sempre.
— Aquilo agora não daria uma cópia boa, pois não? — Siamang deixou
cair a câmara, calcou a abertura das frágeis lentes com o pé enfiado na bota.
Apanhou-a de novo, entregou-lha. — É uma pena que a tua câmara se tivesse
partido quando amorteceste aquela queda. Mas nós não desgraçamos um
homem desde que ele coopere. Tenho a certeza de que posso contar com a tua
cooperação como recompensa pelo incentivo adequado?
Dartagnan tentou falar:
— Ele... Ele está mesmo morto? — Nenhuma companhia desceria até
ao homicídio, Olefin tinha dito...
Siamang acenou com a cabeça; a mão mexeu ligeiramente. Dartagnan
viu o brilho escuro do metal. Siamang estava armado. Uma pistola de dardos;
veneno que não deixava nenhum vestígio.
— Posso contar contigo, não posso, Red? Gostaria que isto ficasse claro.
Dartagnan sussurrou distraidamente:
— Sou seu vassalo, chefe... Corpo e alma. — Mas pensar: Há de pagar
por isto; nem que seja a última coisa que eu faça.
— Era o que eu imaginava. Foi um acidente, caiu, era frágil de mais,
estava no espaço há muito tempo. Nunca quis matá-lo. Mas isso pouca
diferença faz, nestas circunstâncias. Portanto, acho que vamos dizer só que
ele estava vivo quando o deixámos. O corpo dele gelará aqui fora, ninguém
pode provar que ele não caiu depois de nos termos ido embora... Se alguma
vez alguém se der ao trabalho de investigar. Qualquer pessoa via que ele
bebia de mais.
— Sim... Qualquer pessoa. — Começava a levantar-se vento, batendo de
encontro ao corpo de Dartagnan; a poeira movia-se sob os seus pés, tomando
precária a estabilidade.
— Estou certo de que consegues elaborar um relato comovedor da nossa
missão, mesmo sem filme... Uma descrição escrita do velho reconhecido, da
conclusão feliz da nossa transação comercial... — Siamang passou os dedos
no recipiente metálico preso na cintura do fato. — Faz um trabalho de
qualidade, convincente, e eu recompensar-te-ei. — Dartagnan sentiu mais do
que viu nos olhos do agressor a sondarem-no por detrás do vidro do capacete
de Siamang. — Qual é o teu maior desejo, Red? Chefe do pessoal da
informação? Piloto da companhia? Talvez uma nave só para ti! Diz, será teu.
— Uma nave — balbuciou ele, surpreendido. — Quero uma nave! — E
pensou, desvairado, O homem de negócios astuto conhece o seu cliente.
— Combinado. — Siamang curvou-se cerimoniosamente, estendeu a
mão enluvada. Chaim agarrou a mão, apertou-a.
A bota pesada de Siamang deu um pontapé na base da bengala e ela
saltou. Dartagnan caiu de costas na terra.
— Não te esqueças do lugar que ocupas, Red, e não tenhas ideias loucas.
— Siamang afastou-se, caminhou em direção à nave, atravessando a planura
sem vida.
***
Dartagnan caiu pesadamente de barriga para baixo no compartimento
com duas portas hermeticamente fechadas, ficou a arfar alguns segundos,
antes de se pôr de pé e começou a rodar a escotilha. Tirou o capacete,
apanhou a muleta, entrou na sala de controlo depois de Siamang. A visão de
Mythili formava como que uma flor frágil na desolação do seu espírito:
obrigou o rosto a assumir uma expressão vaga, submissa, fez votos para que
ela se mantivesse, quando a imagem no seu espírito se tomou realidade.
Ela estava perto do painel, de braços cruzados, a ouvir
circunspectamente as mentiras fáceis de Siamang. Chaim entrou na cabina
exígua. Ela lançou-lhe um olhar quando Siamang disse:
— Não é só isto, Red?
— Acho que sim, chefe. — Ele acenou com a cabeça, sem saber ao certo
como tinha concordado. Parou, equilibrando-se com dificuldade, quando o
olhar dela o atingiu como uma bofetada.
— Receio que não seja só isto, demarch Siamang. — Mythili afastou-se
do painel, fixou o olhar de ódio e aversão no olhar impenetrável de Siamang.
Uma faca pequena cintilou subitamente na sua mão. — Há o caso do
assassínio. — Ela teve a satisfação de ver a presunção de Siamang estiolar-se
repentinamente. — Não gostei do que ouvi quando conversou com o seu pai
e, por isso, verifiquei cuidadosamente o registo sonoro do rádio do seu fato.
Ouvi tudo... — Fixou uma vez mais os olhos em Dartagnan e desviou-os. —
E tenciono contar tudo, quando chegarmos ao Demarchy. Não vai escapar
sem castigo.
— Nunca se subestime o poder de uma mulher. — Siamang sorriu com
azedume, torcendo as mãos. — Creio que não será necessário dizer-lhe que
se me denunciar ficará desempregada; ao passo que se estiver disposta a
colaborar, poderá ter o emprego que quiser.
— Não — disse ela. — Não, não é necessário. Nem todos se compram.
— Não esperava que você se vendesse. Mas suponho que está a ter um
prazer enorme com aquilo que me está a fazer, Fukinuki... Infelizmente, há
outro ditado antigo. «Nunca subestimes o teu inimigo!» Prescindo dos seus
serviços, Mythili. Não vai ter oportunidade de falar. — Siamang exibiu uma
pistola, levantou-a.
Ela ficou tensa, levantou a cabeça em ar de desafio.
— Não me vai matar. Sou o seu piloto, precisa de mim para regressar.
— Aí é que você se engana. Como você referiu, aqui o Red é um piloto
qualificado. Portanto, já não preciso mais de si. Não faz falta nenhuma.
Largue a faca, Mythili. — A mão dele cerrou-se. — Largue-a ou mato-a já.
Os dedos abriram-se lentamente e a faca caiu no chão, produzindo um
ruído metálico. Siamang apanhou-a.
Dartagnan praguejou em voz baixa.
— Mas, chefe, não estou apto a pilotar uma coisa como esta...
— Uma nave é uma nave. — Siamang franziu as sobrancelhas. — Vais
conseguir.
— Chaim — ela virou-se para ele, desesperada —, ajude-me. Ele não
nos matará, nunca seria capaz de chegar ao Demarchy se o fizer! Juntos
podemos impedi-lo, não deixe que ele fique impune...
— Matarei os dois se for preciso, e eu mesmo pilotarei a nave. — Os
olhos de Siamang ficaram com uma expressão de morte; Dartagnan, então,
viu claramente, as pupilas dilatadas... E acreditou nele.
— Ele está a ver se nos engana — disse Mythili.
Chaim viu por um momento o seu olhar suplicante.
— Mythili, por amor de Deus, mude de ideias. Diga-lhe que não falará.
Concorde com ele. Não vale a pena, seria arriscar a sua vida.
Ele desviou os olhos dele, recusando-se a prestar atenção.
— Está calado, Red. De qualquer maneira, não confiaria nela... É
demasiado íntegra. E, além do mais, odeia-me. Ela nunca mudará de ideias.
Esteve só à espera de uma oportunidade como esta, olha para ela. — A cólera
alterou-lhe a voz. — Não, acho que a vamos abandonar em qualquer parte
entre este planeta e o Demarchy e deixar que ela regresse a pé. E, entretanto
— avançou de repente para ela — também nos podíamos divertir um pouco.
— Ele barrou-lhe a passagem quando ela tentou fugir, atirou-a contra o painel
dos instrumentos, abrindo o fecho do fato de salto.
— Não!
Siamang virou-se, agarrou-a, lutando, embatendo no painel. Dartagnan
entreviu o rosto, que o corpo de Siamang ocultava, a aversão e o terror, puro,
súbito, a pele brilhante e dourada. Siamang afastou-a do painel com um
empurrão, torcendo-lhe o braço atrás das costas.
— Está bem, Red, se queres ser o primeiro a possuí-la... De qualquer
maneira ela tem um fraco por ti... — Empurrou-a para junto de Dartagnan.
Chaim agarrou-a, deixou cair a muleta, esforçando-se por manter o
equilíbrio.
— Mythili...
Ela cuspiu-lhe na cara, fechando o fato de salto. Siamang riu-se.
Chaim deu largas à sua cólera.
— Esqueça! Não estou interessado.
— Não me faça favores, homem da comunicação social. — Ela parecia
sílex sobre aço de encontro ao corpo dele; a sua indignação queimava-o como
uma chama.
Soltou-a, limpou a cara, disse com rudeza:
— Pode crer que não lhe estou a fazer nenhum favor... Mas, que Deus
me ajude, talvez esteja a salvar a sua vida... E a minha. — Virou-se para
olhar para Siamang, baixou-se para apanhar a muleta, ocultando uma
inspiração súbita. — Tenho uma ideia melhor. Em vez de a abandonar no
espaço daqui por algum tempo, ponha-a lá fora, agora, com um fato com a
válvula apertada. O Sol está a pôr-se... Ela sufocará ou ficará gelada... E nós
podemos ficar a ver para termos a certeza de que está morta. Um acidente
trágico. — Sentiu a angústia dela, a sua raiva inútil; sentiu uma dor forte e
penetrante no estômago.
Siamang sorriu com o que poderia acontecer.
— Sim, é uma ótima ideia... Está bem, Red, faremos como dizes. Mas
não há nenhuma razão para que não possa ainda divertir-me um pouco com
Fukinuki, primeiro... — Levantou a mão, começou a desabotoar o casaco.
— Claro que há.
Siamang olhou para ele.
— Oh?!
— Está a fazer-se tarde, as baterias da nave estão a descarregar. E, além
disso, o vento está a aumentar. Se quer que eu descole para sairmos daqui
sãos e salvos... Não quero perder mais tempo. Não sente prazer suficiente só
de a ver morrer lá fora? — A voz de Dartagnan subiu de tom.
Siamang sorriu de novo, lentamente.
— Está bem, Red. Venceste... Vista um fato, Mythili, antes que eu mude
de ideias.
Ela passou por Dartagnan sem proferir uma única palavra, agarrando-se
aos farrapos da sua indignidade; ele viu-a vestir um fato. Tateava, desastrada,
desajeitadamente, devido à gravidade e ao nervosismo. Querendo ajudá-la,
Chaim ficou parado, como uma rocha.
Ele virou-se finalmente para eles, à espera, com o capacete debaixo do
braço.
— Muito bem — disse, quase sem se ouvir a si própria —, estou
pronta...
Siamang atravessou a cabina, postando-se ao lado dela, passou-lhe a
mão por detrás da cabeça para chegar à válvula do ar junto à nuca. Dartagnan
viu-o apertar o botão que cortava o oxigénio, viu o corpo dele a retesar-se
com o esforço.
— Ponha o capacete.
Ela respirou fundo, colocou-o. Siamang apertou-o, fez-lhe sinal para que
se dirigisse para a escotilha. Ela caminhou em direção a esta, entrou aos
sacões como uma boneca partida.
— Red. — Siamang fez um gesto. — Tu fazes as honras.
Dartagnan coxeou até à chapa de controlo, a contar mentalmente os
segundos. Mal conseguia ver o rosto dela, virado, a olhar fixamente para ele,
viu a boca a mexer-se silenciosamente. Desgraçado, desgraçado,
desgraçado...! Pensou ver lágrimas nos seus olhos, mas não estava certo.
Ele acenou com a cabeça, sussurrando:
— Adeus, Goody Two-Shoes. Boa sorte! — A mão tremeu; premiu um
botão, a porta fechou-se.
Voltou com Siamang para junto do painel de controlo, ficou a olhar para
o écran, esperou. Os segundos passaram, a escotilha rodou. Ela surgiu de
repente no écran. Caminhava aos tropeções quando o vento soprava com
rajadas, caiu, levantou-se outra vez, voltou a cair ao tentar correr, tentou
alcançar a cúpula protetora, estava longe de mais. O pó azul-escuro e sem
brilho, arrastado pelo vento, deslizava sob os seus pés. Caiu uma vez mais,
tentou levantar-se, não conseguiu. Por fim, viu-a esforçar-se por soltar a
válvula gelada, uma última vez... E depois desapertar o capacete. Levantou a
cabeça, estava longe de mais para lhe ver o rosto; respirou fundo para deixar
entrar o ar nos pulmões torturados. Levou as mãos ao pescoço, ao rosto,
tentou agarrar de novo o capacete, freneticamente... Caiu no pó com o corpo
todo dobrado, ficou enrolada como um feto, imóvel.
Dartagnan esforçou-se por olhar para Siamang; desviou os olhos outra
vez, enjoado. Deixou-se cair pesadamente na cadeira do piloto, procurou
chegar ao cinto de segurança. Siamang afastou-se do écran, a obscenidade do
seu prazer ia-se transformando em repugnância estonteante.
— Tira-nos deste cemitério. — Passou perto de Chaim, dirigindo-se para
a cadeira acolchoada; estacou, virou-se para trás. — A propósito, desta vez
foi homicídio premeditado. E foste tu, Red. Não te esqueças.
Dartagnan não respondeu, olhando fixamente para o écran, olhando para
a cadeira vazia ao seu lado.
***
Descolou sem incidentes, deslocando a nave através da atmosfera,
constatando que era muito mais fácil levantar na superfície de um planeta que
aterrar em segurança. Colocou a nave na posição estabelecida, encaixando
finalmente o módulo de aterragem nos dedos da nave principal, que se
assemelhavam aos de um aracnoide, ouviu a voz do pai, que orientava,
guiava, encorajava... Sabendo com uma espécie de certeza que, depois do que
fizera e vira lá em baixo, não poderia cometer nenhum erro naquele
momento.
De novo a bordo da nave principal, percorreu os pisos na sala de
controlo, encontrou as coordenadas de voo já no computador.
Mecanicamente, tirou a nave da órbita, quase sem ter consciência do que
fazia; quando se afastou do painel, Siamang felicitou-o com aparente
sinceridade. Dartagnan avançou, passando por ele, sem proferir uma única
palavra, mergulhou no poço orlado de alumínio. Chegou à porta da cabina de
Mythili Fukinuki, deteve-se e, com um impulso masochista, abriu-a e entrou.
Fechou-a suavemente, flutuou até à cama, tirando o casaco, a camisa, uma
bota. Fez entrar à força o corpo dorido no saco-cama, deitou-se de mansinho
a sussurrar:
— Boa sorte, Goody Two-Shoes... Boa sorte... — E, por fim,
reconhecidamente, adormeceu.
Quando voltou a acordar, o rosto ardia debaixo dos seus dedos, o
tornozelo estava quente e inchado dentro da bota. Desceu e entrou na sala
comum, esforçou-se por comer, descobriu um frasco de antibióticos e engoliu
uma mão-cheia de comprimidos, precipitadamente. Em seguida voltou para a
cabina, fechou a porta à chave e adormeceu outra vez.
Repetiu o ciclo mais quatro vezes, evitando Siamang, antes de a febre
ceder e de se lembrar de verificar o curso da nave. Fez pequenas alterações na
rota, deixou-se ficar perto do écran alguns segundos, perscrutando a
escuridão em busca de uma coisa que nunca encontraria. Depois tentou usar a
rádio e ensurdeceu com o aumento brusco das interferências. Compreendeu
que Siamang tinha feito qualquer coisa na antena de longo alcance enquanto
dormia; não haveria mais nenhum contacto pela rádio até estarem de novo no
espaço do Demarchy. Verificou o cronómetro: tinha decorrido menos de
metade de um megassegundo de voo. Mesmo sem a massa adicionada dos
tanques impulsores que transportavam na viagem de ida, ainda lhes restavam
mais de três megassegundos.
— Como está o nosso curso?
Ele virou-se e deparou com Siamang atrás dele.
— Bem, tanto quanto eu sei. — A sua própria voz surpreendeu-o,
inopinadamente.
— E como está a tua consciência?
Dartagnan soltou uma gargalhada estridente, cheio de nervosismo.
— Que consciência?
Siamang sorriu. Dartagnan ousou olhá-lo nos olhos. Estavam claros, as
pupilas não estavam dilatadas; perguntou a si mesmo se aquilo era bom ou
mau.
— Gostava de saber se estavas a sentir as dores do remorso. Não estás
com muito bom aspecto. — Escárnio velado, censura velada, desconfiança
velada.
Chaim coçou a face barbuda, cautelosamente inexpressiva.
— Só as dores de uma queda pelas escadas abaixo. — Baixou os olhos
para o casaco desabotoado, para o galão barato e sujo de lama da camisa com
as fraldas quase de fora das calças. Olhou de novo para Siamang, impecável,
como sempre. Levantou as mãos. — Ia limpar-me agora mesmo. — E
retirou-se.
Os segundos caíram como de um crivo através da ampulheta do tempo, a
nave atravessava a escuridão, aumentando lentamente a velocidade. A
perseguição casual que Siamang infligira na viagem de ida tomava-se agora
mais calculada e mais subtil; até Dartagnan começar a sentir que Siamang
vivia apenas para o seu tormento pessoal, um demónio privado surgido do
seu próprio inferno. Alimentava-se de leite de soja, quando a tensão crónica
lhe irritava a úlcera; começou a ter insónias, quando o exame de Siamang
descobriu as feridas ocultas do seu crime. Sentia a armadura da sua
indiferença, conquistada com dificuldade, estudada, a ficar mais fraca; queria
saber até que ponto ia a sua resistência. E perguntou a si mesmo que
patologia levava Siamang a destruir metodicamente a lealdade da única
«testemunha» de defesa...
Até que Dartagnan compreendeu subitamente que não se tratava de
nenhuma patologia, mas sim de um teste friamente racional. Apesar daquilo
que ele era, apesar de tudo, Siamang não confiava nele... E, a menos que
Siamang estivesse plenamente convencido da sua submissão, fruto da
intimação e do seu interesse pessoal completamente amoral, talvez ainda se
registasse um terceiro acidente trágico antes do termo desta Odisseia de
mentiras e morte. Seguiam em segurança a rota de regresso à pátria; ela
deixaria uma vez mais de ser indispensável. Três mortes deveriam ser difíceis
de explicar, mas Siamang tinha meios para influenciar a opinião pública em
qualquer julgamento — desde que não houvesse ninguém que depusesse
contra ele.
A repentina tomada de consciência do perigo que corria ao caminhar
sobre o abismo do seu desespero, fez que Dartagnan se mantivesse firme no
arame. Suportaria qualquer coisa, faria tudo o que devia; agora só duas coisas
tinham importância — a sua própria sobrevivência e o prémio que ele teria
ganho mil vezes... Não uma nave, a liberdade, mas a certeza de que a
Siamang e Filhos iria pagar. Iriam pagar para trazerem Mythili Fukinuki para
o Demarchy; iriam pagar pela morte de Sekka-Olefin... Nem nunca poderiam
começar a pagar o bastante pelo que tinham feito ao futuro do Heaven.
E, por isso, aguentou, insinuando-se, obedecendo, sorrindo — sorrindo
sempre. Ele vivia para o futuro, o presente era uma escuridão por detrás dos
seus olhos; era um homem em cima de um arame por cima do vazio
recamado de estrelas, entre o passado e o local de destino. E no refúgio da
sua cabina, encontrou o mundo privado de Mythili Fukinuki numa arca cheia
de livros e papéis. Envergonhado a princípio, remexeu em tudo, descobrindo
as impersonalidades exatas de manuais de astronáutica... Livros de poesia e
filosofia, não só modernos mais também traduções em anglo das diversas
culturas da sua herança na Terra. Foram assinaladas passagens com
parênteses, pontos de interrogação, pontos de exclamação; os seus
pensamentos, partilhados nas margens das páginas de plástico brilhante ou
espalhados por toda a parte, enchiam agendas.
Começou a ler, como ela lera, para preencher o espaço de tempo vazio.
Sentia a sua presença em tudo o que lia, em cada pequena descoberta; mais
que cólera ou pesar profundo, ela dava-lhe conforto força... E ele
compreendeu, finalmente, que detestara a prospecção porque detestava a
solidão; e isso por causa do seu ressentimento: estar com o pai tinha sido o
mesmo que estar só. Mas viu-se na sua própria nave, imaginou Mythili
Fukinuki como companheira — e sabia que não necessitaria de mais nada,
não precisaria de mais ninguém para se sentir feliz... Um livro de poemas
folheado muitas vezes caiu e abriu-se de novo nas suas mãos, e viu a sua letra
simples, inclinada para trás numa margem: Será triste estar morto, mas não
pode ser muito mais triste do que estar vivo...
Descobriu um lápis de graxa no saco dos seus haveres e, lentamente,
como se tivesse ficado sem força na mão, escreveu Sim, sim, sim... A visão
do seu corpo enrolado, a poeira do planeta Dois, que girava em turbilhão,
paralisaram-lhe a memória; fechou o livro com um estalido. Não, eu não
estava errado! Meteu o livro no saco com todo o cuidado, e depois daquilo
deixou de ler.
Mas compreendeu então que, se estava errado, se a culpa era tanto dele
como de Siamang... Se Mythili Fukinuki tinha morrido por causa dele, então
mesmo que ele conseguisse sobreviver para prestar declarações, seria apenas
a sua palavra contra a de Siamang, e isso talvez não fosse o suficiente.
Siamang era um homem influente; ele não tinha nada — não possuía
nenhuma prova, sem Mythili. E, se ela estivesse morta, ele precisava de ter a
certeza de que Siamang não escaparia sem castigo. Tinha de descobrir de
uma maneira ou de outra um meio de obrigar Siamang a incriminar-se. Mas a
câmara estava destruída, a rádio estava desligada; nem sequer trazia um
gravador... Ou trazia?
Levantou-se sem fazer barulho e esgueirou-se do quarto.
***
Já se encontravam no espaço do Demarchy; ainda faltavam cem
quilossegundos para aterrarem em Mecca. Dartagnan entrou finalmente em
contacto atrás da rádio, enquanto Siamang observava, e marcou uma
conferência com a imprensa para a chegada. Cem quilossegundos... E ele
continuava sem provas.
— Vá lá, Red, celebremos o nosso regresso iminente à civilização. —
Siamang fez um gesto, sorrindo abertamente, sem sarcasmo. — Meu Deus,
vai ser um alívio regressar ao mundo real! Tudo isto é uma experiência que
eu não quero senão esquecer.
— E eu também, chefe. Quanto mais cedo melhor. — Dartagnan seguiu-
o até ao piso inferior, cedendo à sua aparente boa disposição. Chaim bebeu
leite de soja misturado com água, procurando acalmar os espasmos crónicos
do estômago; Siamang bebeu uma coisa que ele pensava ser bastante mais
forte. Mas Siamang continuava calmo e amável, falava sem grande coerência,
inofensivo, astuto, apenas ligeiramente condescendente.
— Pelo menos bebe um copo comigo, Red. — Siamang fez deslizar uma
das taças magnetizadas na superfície metálica da mesa. — Dói muito?
— Dói bastante, pode crer, chefe. Gostava de beber, se gostava, mas é
que não posso beber bebidas alcoólicas.
— Não é vodca. — O tom de voz de Siamang tomou-se conspiratório e
um pouco áspero. — Quero que bebas comigo, Red. Não admito recusas.
— Não, desculpe.
— Vá lá, bebe. — Siamang riu-se. Chaim sentiu o estômago contrair-se.
— Bebe, é um favor que me fazes.
Dartagnan hesitou, brincando distraidamente com a tira larga de metal
que lhe cingia a garganta por debaixo do colarinho alto do casaco.
— Está bem, chefe, só um... Se em troca me fizer uma favor.
Siamang estremeceu.
— Que é que tens em mente?
— Quero já a minha remuneração. Quero que me dê uma nota de crédito
da sua companhia pelo valor do meu trabalho.
Siamang franziu as sobrancelhas.
— Estou disposto a transferir o crédito diretamente para a tua conta
bancária...
Ele abanou a cabeça.
— As vezes as transferências diretas de crédito não... Não são registadas.
Quero um documento antes de fazer o que puder para o ilibar daquele
homicídio.
Siamang mostrou um semblante mais severo, abrandou lentamente.
— Está bem, Red... Faço-te a vontade. Espero que não me deixes ficar
mal se eu o fizer. Uma vez que tu e eu estamos metidos nisto até às orelhas,
afundar-te-ás comigo. — Saiu da sala.
Dartagnan sentou-se, preocupado, a olhar fixamente para a taça. Que
diabo, não fez nada a Siamang... Rodou lentamente o colarinho de metal no
pescoço. Diabos, vale a pena uma dor de barriga; tudo vale a pena para ter
a certeza de que consigo o que preciso.
Siamang voltou, passou-lhe a nota de crédito por cima da mesa.
— Está bem assim?
Dartagnan agarrou-a como um homem esfomeado com comida na mão.
Durante um segundo, a consciência do que aquele dinheiro podia significar
para o seu próprio futuro apossou-se do seu espírito e entonteceu-o.
— Está — disse com uma voz rouca —, está perfeito. — Dobrou-o e
meteu-o dentro da bota. Levantou a taça da mesa: — Brindo a isso. — Bebeu
pela palha.
Não lhe soube a nada, sentiu apenas a doçura suave do sumo de pera.
Continuou a beber e, surpreendido, bebeu-o todo.
Siamang bebeu com ele, sorriu.
— Que vais fazer com uma nave, Red? É verdade que não gostas de ser
um homem insignificante para a humanidade?
— Reaproveitei quase todo o lixo que nunca quis ver, chefe. Tudo o que
posso suportar... — Fechou rapidamente os olhos; a luz que o tampo da mesa
refletia feria-lhos. Deixa-te disso! Isso é impossível... De repente sentiu medo
de que não fosse.
— Vais ser prospetor como Sekka-Olefin?
Ele virou-se para olhar para Siamang.
— Não como Sekka-Olefin. Ele... Cometeu um erro. — A voz de
Siamang contendeu-lhe com os nervos. Sentiu um formigueiro na pele,
começou a sentir-se como se o corpo estivesse amarrado a fios carregados de
eletricidade. — Como o meu velho... Não vou cometer aquele erro. — Cala-
te! Abanou a cabeça, a luz decompôs-se em prismas.
— Que erro foi esse, Red? Que erro poderia ser que um homem que
enverede pela tua profissão ainda não tenha cometido?
Chaim quase o proclamou em voz alta, a tremer de raiva incontrolável.
Sufocou as palavras na garganta, amordaçado pela aversão que sentia por ele
mesmo. Por que é que Siamang não sente isto? E então compreendeu que
Siamang não tinha estado a beber nada, a não ser sumo de fruta. Siamang
estava completamente sóbrio; e ele estivera a ser submetido a um derradeiro
teste...
***
A cidade de Mecca abriu-se à sua volta, vibrante, brilhante, bela, uma
flor estranha... O seu espírito cantava, um coro de vozes, a voz da cidade,
vida eterna. Segurou a vida nas mãos em concha, e bebeu... A vida corria
lentamente pelo prisma dos seus dedos em chuva de estrelas de luz. Era
eterno, soltou uma gargalhada, aspirando a fragrância do som, cordões de
cinamono e cravo-da-índia, leitmotiv de gardénia... De corrupção da cidade,
uma fragrância que aumentava, que o ensurdecia, que lhe despedaçava os
ouvidos, que lhe despedaçava a alma como cristal, que despedaçava a cidade
de cristal... Um cheiro pestilento e enjoativo de decadência tapava-lhe o
nariz, a boca, os pulmões, como poeira de ardósia; as torres frágeis
definhavam, esbatendo-se, contraindo-se à sua volta: como corpos
enfraquecidos, traídos... A morte era eterna, só morte. E o rosto dela, todos os
rostos voltados para ele, condenados à ruína, a serem devorados pelos
vermes, o apodrecer, podres... Eu conheço-te... Mythili, conheço-te... Ele não
tinha voz... Sei que não estás!... Conheço-te... Ouviu-a soluçar, como flores,
gotas ácidas de cristal a devorarem-lhe as vísceras como se estivesse a
apodrecer. Não quero! Não quero morrer... Quero viver... preciso... Quero
viver... Embalado nos braços da morte, crivado de vermes, viu a sua carne a
apodrecer, a desprender-se dos ossos... E era o fim, o fim do mundo...
***
Dartagnan acordou, moveu-se sem força no soalho do quarto de banho
da cabina, tentando lembra-se de como lá tinha ido parar, por que razão
comera brasas... Por que estava a chorar. Ficou prostrado, imóvel, cansado de
mais para se mexer, escutou o grito dissonante de um admirador... Do
admirador exausto. Lembrou-se então de que estava enjoado. Passou a mão
no rosto coberto por uma camada fina de humidade, suor e lágrimas — e
vomitado. Meu Deus, ele saíra-se mal. Levantou-se com esforço, arrastou-se
até ao lavatório para fazer desaparecer o admirador. Viu-se ao espelho,
fechou os olhos, praguejou de fúria e humilhação...
Siamang. Baixou-se, arrancando a bota, praguejou de novo quando
torceu o tornozelo ainda inchado. Mas riu de satisfação quando a mão se
fechou sobre o prémio amarrotado, que flutuava, a nota de crédito. Ainda lá
estava... Tentou de novo, inutilmente, recordar-se do que acontecera para
além daquilo; sabendo que Siamang o drogara por alguma razão, e ele podia
ter dito alguma coia, teria dito alguma coisa, e qualquer coisa que podia ter
sido a coisa errada. Mas tinha a nota em seu poder.... E ainda estava vivo. Um
lampejo de pesadelo, uma descontinuidade, fizeram-no estremecer; passou as
mãos pelo corpo tomado de pânico. Ainda estava vivo. O colarinho de metal
estava ainda no pescoço; tinha o que precisava. Talvez, só desta vez, algo de
bom iria acontecer...
Despiu-se, foi para o chuveiro, fechou-se lá dentro juntamente com as
roupas puídas e abriu a torneira. Deixou correr a água, sem se preocupar com
o desperdício, com a água que daria para três banhos, um quilossegundo
completo, até se começar a sentir limpo. A vida e — quase— o amor-próprio,
despertaram preguiçosamente dentro dele uma vez mais, enquanto o calor da
lâmpada fazia desaparecer o brilho da água na pele, queimava a vergonha e
removia os restos da inflexibilidade do espírito e do corpo. Barbeou-se, fez o
que pôde com as roupas húmidas e frias, vestiu a única camisa lavada que
reservara para o regresso a Mecca. O aspecto era tudo tinha de ter bom
aspecto quando enfrentasse os olhos das câmaras dos repórteres. Examinou o
tornozelo; a pele morena ainda estava manchada com feias equimoses, mas
estava a cicatrizar, lentamente, como o passar do tempo. Fê-lo entrar à força
na bota outra vez, deu lustro às duas botas com a camisa suja. Pensou noutras
feridas, e perguntou a si mesmo quanto tempo seria ainda preciso para
sararem também.
— Dartagnan?
Ouviu Siamang bater à porta de mansinho, e depois com mais força.
Dirigiu-se para ela, abriu-a, o rosto ficou imperturbável. Siamang arregalou
os olhos. Chaim não sabia se ele estava a fitar a roupa asseada ou o seu rosto
macilento.
— Que deseja?
Quase difidentemente, Siamang estendeu-lhe uma taça. Dartagnan sorriu
ironicamente.
— E leite, podes crer. Olha, lamento o que te aconteceu, Red. Não te
devia ter dado uma dose tão grande, não me lembrei que não estavas
acostumado.
Não me venha com essa conversa, pensou Dartagnan.
— Quero que saibas que lamento o que aconteceu. Como te sentes?
— Como ficarei contente quando me puder esquecer disso. Quanto
tempo falta para chegarmos a Mecca?
— Foi por isso que bati à porta! Apenas cinco mil segundos. Estás em
condições de aterrar?
Dartagnan quase sorriu, compreendendo a razão para a súbita solicitude
de Siamang.
— Acho que sim. Assim espero. — Saiu para o vestíbulo, hesitou,
tentando dar um tom natural. — Espero que não tenha... Dito nada de
inconveniente, chefe. Eu... Lembro-me de muito pouco.
— Disseste-me que odiavas a minha falta de escrúpulos, Red.
Ele ficou paralisado.
— Desculpe, chefe, foi sem querer, não sabia o que dizia...
Siamang sorriu em sinal de perdão.
— Está bem, Red. Não te censuro. De facto, era só isso que eu queria
ouvir... Queria ouvir-te dizer aquilo que realmente pensavas, só uma vez.
Porque disseste também que eu te tinha dado o que querias, e que era só isso
que importava. Agora sei que posso confiar em ti, Red porque tenho a certeza
de que nos entendemos. Não é assim? — A ironia transpareceu nas palavras.
A sua mão bateu ao de leve no ombro de Chaim.
Dartagnan sorriu.
— Claro, chefe. Tudo o que o senhor disser.
***
Dartagnan viu o crescente alongado do asteroide de Mecca a aumentar
no visor e a eclipsar-se a pouco e pouco quando ele conduziu a nave para a
sua sombra. Siamang manteve-se atrás dele a observar, absorto. Chaim
divisou apenas o desenho intrincado das luzes no solo, estranhamente
familiares, que dilatava por baixo deles. Começou a descortinar naves — os
vagões-cisterna que pareciam carrapatos gigantescos, inchados e vazios: os
pequenos rebocadores vermelhos. Ouviu as transmissões da rádio,
desarticuladas, dispersas, chegou a pensar que podia ver as naves a abrirem-
lhe caminho. Falou calmamente com o controlador de terra, dizendo-lhe
quem era, e aumentou o som para Siamang ouvir a resposta: os
encorajamentos, as saudações de boas-vindas — entremeadas com as
coordenadas concisas, ansiosas, que orientariam um piloto inexperiente até à
superfície brilhante e cheia de marcas do campo de aterragem. A nave ia-se
aproximando do mundo real. Dartagnan sentiu o impacte fraco, trepidante, de
uma aterragem perfeita a propagar-se à estrutura. Na sua mente comparou a
cerimónia morosa da aterragem à terrível urgência da descida na superfície
do planeta Dois. Lembrou-se de partilhar o orgulho de um trabalho bem
executado. Sorriu durante meio segundo.
***
O campo estava curiosamente deserto, os auscultadores do capacete
estranhamente silenciosos, enquanto eles desembarcavam finalmente e se
dirigiam para a saída do campo ao longo de um cabo de amarração. Um
guarda foi ao encontro deles, saudando Siamang com deferência, deixou-os
descer pelo corredor com portas hermeticamente fechadas em cada
extremidade, que os conduziria ao centro do asteroide.
— Onde diabo estão todos, Red? O meu pai devia estar aqui. Onde estão
os homens da imprensa que iam fazer a cobertura? — A voz de Siamang
tomou-se mais áspera. — Pensava que tinhas anunciado a nossa chegada pela
rádio.
— Anunciei, chefe! O senhor ouviu. Devem estar à nossa espera lá
dentro. — Têm de estar...
E estavam! Dartagnan seguiu Siamang ao longo do corredor que os
levava em direção ao interior, longe da superfície, a câmara estragada
balouçava no ombro, e viu os colegas da imprensa agrupados na plataforma
situada na periferia da cidade à espera deles. Uma multidão,
surpreendentemente dispersa, de curiosos, surpreendentemente silenciosos,
chocavam uns com os outros e andavam de um lado para o outro no meio
deles. Com medo...? Pensou ele. Gostaria de saber se os rivais de Siamang de
outras destilarias tinham mantido afastados os seus trabalhadores. A ironia
causava-lhe satisfação, mas reparou que não acontecia o mesmo com
Siamang.
Viu a multidão avançar para ir ao encontro deles, deixou que ela os
rodeasse, deixando que os homens da imprensa captassem aquilo nos seus
sistemas.
— Demarch Siamang... Demarch Siamang... Hei, Red...? — Ele
relanceou o olhar pela cidade, por todos eles... Um quilómetro de diâmetro,
torres, que tremiam ligeiramente, que cintilavam nas correntes de ar. Plástico
esticado sobre estruturas frágeis enchiam cada metro quadrado de teto,
parede, soalho, ali onde a gravidade pouco mais era que uma abstração. Um
tributo do homem à generosidade magnânima da natureza, e o esplendor do
Heaven Belt. O esplendor esterilizado, porque a natureza virava as costas ao
homem, o traidor, que se traíra a si próprio. Chaim viu o futuro de Sekka-
Olefin, num pesadelo inopinado de pavor, que cobria cada parede de cristal
facetado, o rosto de cada desconhecido que se aproximava do dele... Meu
Deus, meu Deus... E eu sou a única pessoa que sabe! — Controlou-se,
aspirando o odor acre do ar perfumado, fazendo um apelo a toda a sua
energia e determinação.
E depois levantou as mãos, levantou a voz no tom monótono e familiar
de um homem da imprensa.
— Senhoras e senhores... Conterrâneos do Demarchy... — Começou a
fazer-se silêncio. — Tenho a certeza de que todos conhecem e reconhecem
demarch Siamang. Mas existe uma faceta que nenhum de vós conhece... —
Ele estendeu o seu silêncio até reinar à sua volta um silêncio absoluto; cada
olhar, cada lente implacável das câmaras, estava fixo nele, no lugar onde se
encontrava como Siamang, complacentemente a seu lado. Respirou fundo. —
Este homem... É um assassino. Percorreu quatrocentos milhões de
quilómetros até ao planeta Dois para salvar Kwaime Sekka-Olefin e acabou
por o matar por causa daquela caixa de... Programas para computador...
Roubados, que veem na mão dele. — Voltou-se para se retemperar, viu o
rosto de Siamang, a imagem perfeita da estupefação.
Os olhos de Siamang deixavam transparecer uma raiva que só ele
conseguia compreender.
— Este homem é um psicopata. Não sei do que está a falar. Recebi estes
salvados da mão de Sekka-Olefin numa transação comercial legítima. E ele
estava vivo quando o deixei...
Um desconhecido avançou, tocou no braço de Dartagnan; uns olhos da
cor do ouro exigiam a sua atenção, seguros, analíticos.
— Você é Chaim Dartagnan?
Chaim acenou com a cabeça, confuso. Siamang calou-se repentinamente.
— Quem é o senhor?
— Chamo-me Abdhiamal e sou negociador do Governo... Demarch
Dartagnan, que provas possui que confirmem a sua acusação?
— Agora preste atenção, Abdhiamal — interrompeu Siamang,
indignado. — Aqui ninguém precisa de nenhuma interferência
governamental, isto não passa de...
— Demarch Dartagnan tem a palavra — disse Abdhiamal, calmamente,
sem nunca desviar os olhos do rosto de Chaim. — O senhor poderá falar
quando for a sua vez. Dartagnan?!
Dartagnan quase soltou uma gargalhada; o triunfo enchia-o, a gratidão
avassaladora entontecia-o. Manteve os olhos fixos nas câmaras — a sua
condenação, a sua salvação, a sua arma...
— Ele apoderou-se da minha câmara, não tenho o filme do homicídio.
Mas ele subornou-me para encobrir tudo... Esta é a nota de crédito da
companhia, redigida em meu nome. — Desdobrou-a entre as mãos, mostrou-
a aos milhares de olhos ávidos atrás de cada lente das câmaras.
— É um documento falsificado
— E isto — Dartagnan abriu o colarinho do casaco — é uma gravação
da transação. — Rodou o botão de emergência do aparelho registador que
arrancara do fato espacial; ouviu a sua própria voz: «...quero um documento
antes de poder fazer alguma coisa para o ilibar daquele homicídio.» E a de
Siamang: «Está bem, Red.»
— Foi um acidente! — A voz de Siamang descontrolou-se. — Não
queria matar Olefin, foi um acidente! Mas peça-lhe informações sobre
Mythili Fukinuki, sobre o nosso piloto. Isso não foi um acidente. Ele matou-a
a sangue-frio, não pude fazer nada para o impedir. Ele é louco, um maníaco
homicida...
— Mythili Fukinuki não está morta. — Dartagnan virou-se para esperar
um segundo, que foi o tempo que levou a registar o rosto de Siamang. Ele
sorriu; virou-se de novo para Abdhiamal, ficou surpreendido com a surpresa
que descobriu nos olhos da cor de ouro.
— Pelo menos... Penso que ela não está morta. Quando fiquei a sós com
Sekka-Olefin, este afirmou que um ser humano podia sobreviver na
atmosfera do planeta Dois, disse que ele mesmo a tinha respirado. Siamang
queria abandoná-la no espaço, porque tinha ouvido o assassínio de Olefin por
acaso... Disse-lhe que em vez disso a deixasse na superfície. Ele esta
drogado, não o pude impedir, caso contrário ter-nos-ia morto. Foi a única
coisa de que me lembrei... Envergonhado, baixou os olhos, tentando
esquecer-se do rosto dela, Desgraçado, desgraçado... Se eu estava errado, se
ela morreu, então sou tão culpado quanto ele. O Demarchy pode fazer-me o
que quiser, eu mereço. Agora tudo o que me importa é que alguém tenha
conseguido regressar para dizer a verdade. E para fazer que a Siamang e
Filhos pague para a trazer de volta... Porque não acredito que ela esteja...
Morta... — Uma reação súbita embargou-lhe a voz. — Sabe se receberam
alguma mensagem pela rádio? Há alguma informação?
— Melhor que isso, no que lhe diz respeito. — Abdhiamal sorriu, sem
contentamento. — Mythili Fukinuki regressou ao Demarchy antes de vocês,
na nave daquele prospetor. Ela gravou tudo o que aconteceu... Só não gravou
que você não tentou matá-la, Dartagnan.
Dartagnan riu-se cepticamente.
— Meu Deus, ela não faria... Ele não faria isso!
Abdhiamal sorriu outra vez de qualquer coisa no rosto de Dartagnan.
— No que respeita ao Demarchy, o seu depoimento está dependente do
facto de ela querer manter as acusações contra si da tentativa de homicídio.
Mas com uma confissão e a sua prova e a dela, diria que o caso contra
demarch Siamang fica um pouco mais definido... Compreenda, demarch
Siamang — ele olhou para trás —, isto não é uma conferência de imprensa.
Considere-a mais como um interrogatório preliminar. O Demarchy já estava a
par do testemunho e da prova de Mythili Fukinuki antes de o senhor chegar.
O seu pai é considerado como cúmplice, sujeito a um interrogatório posterior.
Só precisávamos da sua versão... E já a temos.
Nunca se menospreze o poder de uma mulher. Dartagnan sorriu irónica e
irresolutamente. Reparou que Siamang já estava cercado por «espectadores»,
vigilantes, voluntários da Polícia requisitados para a ocasião. O olhar de
Siamang varreu-os com desdém.
— Isto é uma afronta. Isto é uma armadilha. — Ele virou-se e olhou para
as câmaras. — Povo de Demarchy, vão ficar aí parados enquanto um cidadão
do Demarchy é vexado pelo Governo?
— As pessoas pediram-me para eu vir aqui, Siamang. Guarde a retórica
para o julgamento. Entretanto é obrigado a ficar em casa... E eu retirarei a
queixa dos programas para computadores. — Abdhiamal estendeu a mão.
Chaim viu uma espécie de recompensa no rosto do homem do Governo. Viu
que Abdhiamal pouco mais velho era do que ele, por detrás da máscara de
confiança. No Demarchy, um agente do Governo recebia menos atenções que
um homem da comunicação social e tinha muito menos influência.
Siamang entregou-lhe a caixa, uma vez mais completamente controlado.
Olhou de novo Dartagnan de frente, finalmente. Dartagnan tentou decifrar a
expressão por detrás dos olhos dele, mas não conseguiu. Siamang estendeu a
mão abruptamente, arrancou-lhe a nota de crédito da mão. Chaim viu-o
rasgá-la, viu os bocados flutuarem quando se dirigiam para as linhas da força
gravitacional.
— Agora nunca mais terás uma nave, Red. — Um escárnio final surgiu
nos seus olhos, marcou-lhe a voz. — Mas espero que nunca deixes de querer
uma, assim odiar-te-ás sempre por causa disto.
Dartagnan sorriu, cheio de um orgulho terrível. Sorriu com uma
sinceridade que não sabia que ainda tinha dentro dele. Abanou a cabeça,
encontrou por fim o olhar do agressor.
— Pode crer, chefe, que nunca desejei uma nave nem qualquer coisa
com metade do ardor com que desejei que isto acontecesse... Ver a verdade
vencer neste assunto ignóbil, apenas uma vez, por minha causa. — Voltou o
sorriso para as câmaras e para os homens atrás dele.
A escolta de Siamang levou-o para longe até à beira da proeminência
onde aguardava um aeroplano. O pequeno grupo de repórteres correu atrás
dele, subiu para o aeroplano, entrou em táxis aéreos;
Dartagnan olhou fixamente para a massa ondulante de dosséis listrados,
hélices que giravam num torvelinho. O que restava da multidão de
desconhecidos à volta dele começou a dispersar, passando por cima da
proeminência e entrando na cidade, deixando-o sozinho com Abdhiamal.
— E eu?
Abdhiamal encolheu os ombros.
— Você não vai a lado nenhum, pois não? Mais tarde será preciso o seu
depoimento quando marcarem o julgamento. Seja como for, espero que
queira estar presente. Não gostaria de ver Siamang ser ilibado neste
momento.
Dartagnan franziu as sobrancelhas.
— Ele não vai ser ilibado, pois não?
— Duvido. A opinião pública teve tempo de mais para se insurgir contra
ele. O pai não pôde fazer grande coisa por ele, porque não estava
suficientemente informado... Você sabe, os seus colegas da imprensa
parecem estar muito mais interessados no assassino que na sua denúncia. —
Abdhiamal olhou para ele.
Dartagnan sorriu, sem energia.
— Parece que acabo de lhes fazer a maior afronta que seria capaz de
imaginar. Além disso, um homem da comunicação social segue o cheiro do
poder... Tem o mesmo cheiro que o dinheiro, para o caso de o senhor estar
interessado em saber. — Curvou-se, apanhou um canto da nota de crédito,
feita em bocados. O impacte daquilo a que tinha renunciado, feriu-o como
um soco. — Conforme veio, assim se foi. — Ele soltou uma gargalhada,
penosamente, ficando embaraçado consigo mesmo. — Isto faz-me lembrar...
E que vai ser dos programas para computador, dos salvados? Agora o que vai
acontecer ao dinheiro de Sekka-Olefin?
— Os artefactos serão vendidos num leilão público. Claro que a
Siamang e Filhos ficará impossibilitada de licitar. Os parentes de Sekka-
Olefin apresentaram queixas contra ela. O dinheiro será repartido entre eles,
uma vez que ele não deixou nenhum testamento a dizer o que queria que
fosse feito com ele.
— Mas disse! Disse-me o que queria que fosse feito com ele. Não queria
que fosse para os parentes. Quer que seja usado para a instalação de uma
colónia no planeta Dois, para quando o Demarchy deixar de ser habitável. —
Chaim calou-se, apercebendo-se do verdadeiro significado das suas palavras.
Abdhiamal olhou para ele com um ar reservado.
— Tem alguma prova?
— Tenho. De tudo, em filme... No fundo de um poço. Um poço de
gravidade. — Praguejou. — Os malditos parentes nunca me darão ouvidos.
Ele tinha razão! E foi tudo em vão por causa de Siamang. — Viu a cidade de
cristal por entre a bruma de morte, sabia que teria de a ver sempre assim
enquanto vivesse; as torres em ruínas, o frágil fio da vida a quebrar-se. —
Aquele miserável... Espero que votem o abandono dele no espaço. Porque foi
isso que ele fez ao futuro deles, e nunca chegarão a saber... — A voz tremeu,
com amargura e desespero.
— Pelo menos fez alguma coisa para tentar compensá-lo. — A voz não
era de Abdhiamal.
Ele virou-se, incrédulo.
— Mythili? — Ela estava ao lado dele, materializando-se no meio da
multidão reduzida; Abdhiamal afastara-se discretamente. — Mythili. Ele
encaminhou-se para ela, ela afastou-se. Ele parou, apertou as mãos. —
Desculpe... Estou... Estou contente. Contente por a ver. — Ele reparou nas
manchas cor-de-rosa, na pele que cicatrizava, nas faces e no nariz. — Está
bem?
Ela acenou com a cabeça.
— Algumas ulcerações causadas pela geada. Algumas queimaduras do
frio. Estive atrapalhada durante algum tempo. Mas estou bem.
Ele acenou também com a cabeça, distraído.
— Fico contente. Então o velho estava certo... Sekka-Olefin. Disse-me
que era possível viver...
— Eu sei. — Ela baixou repentinamente os olhos, coçou-os com as
costas da mão. — Eu ouvi-o.
— Você acredita?
Ela continuou com os olhos baixos.
— Sim... Sim, agora acredito em si, Chaim. Mas por que razão fez
aquilo? Podíamos tê-lo detido. Você podia ter...
—... Ter feito que ele nos matasse? — A vergonha despertou a cólera. —
Por que não se limitou a ficar calada, como eu fiz? Assim não teria havido
problemas.
Ela levantou os olhos de repente.
— Porque não sou como você!... Eu sei, foi uma estupidez. Agora sei...
Mas, seja como for, não teria sido capaz de o esconder; ele acabaria por
saber. Não sou lá muito boa a esconder aquilo que sinto. — Mordeu o lábio.
— Não sou como você, Dartagnan.
Ele expirou lentamente, disse estupidamente, outra vez:
— Fico contente por você estar bem... Vi-a no écran, vi-a tirar o
capacete. E compreendi então que estava errado, que você...
— Eu também pensei o mesmo. — Ela riu-se timidamente do fantasma
da memória. — O ar era tão rarefeito, tão frio. Pensei que não podia respirar.
Entrei em pânico e perdi os sentidos. O barulho e o calor da descolagem da
nave salvou-me, despertou-me, senão teria morrido gelada. Estive quase para
não me levantar outra vez... Pensava que já tinha morrido.
— Consertou a nave de Olefin?
— Consertei... É uma nave boa, uma nave fantástica, ele deve ter gasto
uma fortuna...
— Gastou. Tudo. Num sonho.
— Trouxe o corpo dele. Um companheiro agradável para uma viagem de
mais de três megassegundos. — Ela estremeceu. — Três megassegundos e
um quarto com um morto, com os pulmões queimados pelo frio e uma
recordação... Meu Deus, como o odiei, Chaim! Como o odiei... E, no
entanto... — Ela não olharia para ele.
— Eu compreendo — disse ele —, eu compreendo. Três megassegundos
e meio com Siamang e uma recordação, desejoso de o matar e cheio de medo
que ele me matasse. Mas você estava lá, eu sentia a sua presença a ajudar-me
a chegar ao fim. Ajudando-me a sobreviver para que fosse feita justiça.
Sempre tive em mente dizer a verdade, Mythili, não tencionei fazer outra
coisa.
— Então o fim justifica os meios? — A voz vacilou.
Ele não respondeu, não foi capaz.
— Não manterei a acusação contra si. — Ela afastou-se.
— Mythili, não se vá já embora. — Ela virou-se e olhou para ele; ele
tentou encontrar as palavras certas. — Que... Que vai fazer agora? Vai
continuar a trabalhar para Siamang e Filhos?
— Não. Siamang, sénior, despediu-me, depois de eu fazer as acusações.
— Ela esboçou um sorriso, sem querer. — Conto que um dos seus rivais me
ofereça emprego... Desesperadamente. Agora também não terá uma nave só
para si?
— Não. — Ele baixou os olhos, fixando-os no canto rasgado da nota de
crédito ainda amarrotado na mão. — Agora não... Mas hei de tê-la, um dia. E,
quando a tiver, quero que seja a minha companheira. Quero que você... —
Fique comigo. O espírito, os olhos terminaram a frase, em vão.
— Adeus, Goody Two Shoes — sussurrou ela. Abanou a cabeça. Os seus
olhos eram espelhos da memória para o rosto de um homem que tentara
matá-la, um homem que mentira bem de mais. — Talvez lhe perdoe... Mas
como poderei esquecer? — Um brilho angustiado prateou o espelho dos seus
olhos, afastou-se uma vez mais.
— Mythili, espere! — Vasculhou no saco dos seus haveres, tirou um
livro de poemas. — Espere, isto pertence-lhe. — Estendeu-lho.
Ela voltou atrás, tirou-lho da mão sem lhe tocar. Uma raiva confusa
sobressaltou o seu rosto quando reconheceu o título. — Que faz isso nas suas
mãos? — Dor e pesar. — Shiva, não há nada em que não tenha metido o
nariz? Você nunca terá uma nave! Será toda a vida um repórter, porque
sempre foi esse o seu destino. — Ela podia ter dito «prostituir-se».
— Hei de ter uma nave. Nem que leve toda a vida a conseguir... E,
quando a tiver, hei de encontrá-la! Mythili...
Ela não se virou, desta vez. Viu-a chamar um táxi, entrar nele; viu-o sair
das fileiras e descer, desaparecendo na imensidão do ar da cidade. A dor
atingiu-o no estômago; cerrou os dentes.
— Dartagnan — Abdhiamal apareceu ao lado dele, com um olhar
inquiridor, complacente. — Não?
— Não. — Chaim mostrou um sorriso, colou-o apressadamente sobre os
lábios. — Mas a vida é assim. A única recompensa da virtude é a virtude...
Que vá para o Inferno. — Pegou no saco, reajustou a correia da câmara. —
Uma pessoa não se pode dar a esse luxo, na minha profissão... Ainda foi bom
a câmara estar estragada: algum dos meus colegas talvez a partisse na minha
cabeça quando voltasse ao trabalho. Ninguém gosta de um repórter honesto...
Não se pode confiar neles.
Abdhiamal sorriu.
— Não concordo.
Dartagnan riu-se, ainda a olhar para a cidade ao longe.
— Toda a gente sabe que é preciso ser-se doido para se trabalhar para o
Governo. — Os olhos ardiam-lhe de tanto os arregalar.
— Está com ar de quem precisa de uma bebida. Por minha conta?
Abdhiamal fez um gesto na direção da cidade.
— Por que não? — Dartagnan acenou com a cabeça, com a mão a
comprimir o estômago. — Sim... É disso mesmo que estou a precisar.
POSFÁCIO
«O homem da comunicação social» foi uma das raras histórias cujo
enredo me veio efetivamente ao espírito completamente claro. Geralmente
tenho de começar por fragmentos; um princípio, um fim, um incidente aqui e
ali no meio. Neste caso, sentei-me para escrever um resumo da ideia básica e
verifiquei que, quando cheguei ao fim, tinha praticamente o enredo de toda a
história. Também se enquadrava perfeitamente na «história futura» de um
romance em que trabalhava, Os Foragidos do Céu, que já lhe dava o
ambiente básico. (Quando se escreve ficção científica, uma das coisas mais
difíceis — a não ser que uma pessoa se concentre numa história futura,
específica, previamente planeada, como fazem alguns escritores — é ter de
se criar um universo totalmente novo para cada história. Até agora
experimentei com uma variedade de futuros possíveis — embora tenha
criado um em tempos, reservo sempre o direito de inserir nele outras
histórias se tenho uma ideia, como esta, que parece ajustar-se.)
A inspiração original para «O homem da comunicação social» veio de
um filme transmitido na TV — um desses filmes em que o herói ingénuo e
virtuoso vê o vilão a cometer um crime de morte sem motivo aparente, e diz
com firmeza: «Vou dizer à polícia!» Evidentemente que o vilão tentou matá-
lo também, imediatamente, e este passou o resto do filme a fazer os possíveis
para não ser a próxima vítima. Sempre me pareceu que qualquer pessoa
razoável procuraria aplacar o vilão — para o convencer de que estava do
lado do vilão — para sobreviver até conseguir ajuda. (E nessa altura
denuncia-o.) Este foi o anzol que me levou a escrever a minha versão;
embora fosse de opinião, tal como Dartagnan, de que, ainda com o melhor
ou o pior dos motivos, não é tarefa fácil convencer o inimigo de que a honra
tem sempre um preço.
Uma das facetas interessantes desta história é a reação das pessoas ao
desfecho. Verifiquei que, em geral, as mulheres sentiam que as duas
personagens principais voltariam a juntar-se depois do fim da história,
enquanto que os homens sentiam que isso não aconteceria. Não sei se isto é
devido ao facto de a mulher ter rejeitado o homem na história ou
simplesmente por as mulheres terem tendência para serem mais otimistas no
que respeita a relações, ou se está em causa algum fator sociológico
completamente alheio à história. Ninguém parece saber qual a razão que os
levou a chegar a tais conclusões. Sempre supus que as personagens se
reconciliariam. Um projeto promissor é escrever a história como aconteceu.
A NAVE DE CRISTAL
A Nave de Cristal movia-se continuamente em órbita, presa por cima do
planeta coberto de pequenas nuvens. Dentro das suas paredes, nos diversos
compartimentos, os sonhadores buscavam o esquecimento na beleza. Agora
poucos mais eram de quinze e nenhum se lembrava por que razão os seus
antepassados tinha vindo para ali, e nem sequer se preocupavam. Mas mesmo
assim continuavam a vir, passados quinhentos anos, como se fosse um ritual.
No interior do toro de teto alto, os sonhadores olhavam fixamente para o
espaço por cima do crescente brilhante do seu planeta ou ficavam em êxtase
nas pregas líquidas de uma poltrona ou de uma cadeira. O xarope de chitta,
da cor do rubi, congelava nos rebordos transparentes de taças tombadas,
como gotas de sangue.
A chitta pintava de vermelho os lábios de Tarawassie, enquanto as
estrelas dançavam nas pontas dos seus dedos, e ela punha de parte as falsas
barreiras da existência e da percepção para se transformar numa delas com o
universo ilimitado, informe, intemporal, esquecido... Tarawassie sonhava
como sempre sonhara — como sonharia sempre, quanto mais não fosse por
causa da demência de Andar.
***
Cores que se desvaneciam no céu ao pôr-do-sol, pétalas que se
desfaziam em pastel, uma fragrância de que ficara apenas a lembrança.
Barreiras suaves cercavam-na; laços de carne, grades de osso colocaram-se à
sua volta quando Tarawassie se dominou de novo com pesar.
— É verdade! É verdade! — Um ruído súbito lhe bateu, irrompendo na
cabeça numa incandescência com cheiro a almíscar.
As mãos ergueram-se, sem saberem o que haviam de tapar; os ouvidos,
os olhos — um rosto pálido, brilhante, aumentou à sua frente; ela foi
arrastada, trémula e abalada, através de um túnel de som reboante.
— Olha para tititi... Não te importas... Animais, que apodrecem,
apodrecem...! — Exclamou ela debilmente, renascendo para lutar quando a
dor a deixou e a atirou de novo para o sofá ondeante.
O rosto afastando-se dela, tomou-se real e tomou forma. Reconheceu
Andar, o seu manto brilhante a ondular como o vento num canavial quando
este gritou:
— Eu sei a verdade! Mas tu não a podes ver! — As suas mãos
agarravam, aproximavam-se, rejeitavam outras enquanto atravessava os
quartos aos tropeções. Ela levantou-se instintivamente e seguiu-o através dos
salões transparentes, viu-o cair sobre outras formas inertes quando se dirigia
para o coração de toda a beleza — o Poço das Estrelas. — Amo-te, odeio-te!
— Ria ou soluçava. — A tua vida é pior que a morte! Sou o único... O único
vivo e já não te suporto. — Ele chegara à beira do poço. Ajoelhou-se,
pairando sobre as profundezas frias, palpitantes. — Sei o teu segredo — (para
o seu próprio rosto sombrio) — e estou pronto, estou pronto... Para passar
pelo dragão e entrar no abismo sinistro. Aceita-me! Existe um paraíso, é a
morte... — Já a soluçar, caiu no poço, abraçando a sua ambiguidade umbrosa.
Ondas de fosforescência alastraram na mina, cheia de água marinha. Ele
ficou imóvel. Tarawassie olhava, espantada, debatendo-se com a realidade.
E ele jazia imóvel, absolutamente imóvel. Os outros que tinham visto e
podiam compreender, vieram juntar-se à volta dela, movendo-se lenta,
silenciosa e interrogativamente através dos quartos para se deterem
finalmente perto da beira do poço.
O corpo de Andar estava por baixo deles, não flutuava nem estava
amparado, parecia suspenso. Ondas de sombra verde-azulada batiam nele
suavemente, fazendo oscilar o manto cheio de motivos decorativos, o cabelo
comprido e loiro, prendendo os seus dedos crispados. Tarawassie sabia que a
sua própria mão não encontraria nada, não apanharia nada e, no entanto, seria
refrescada ao ser mergulhada naquele verde-azulado. O mistério que o
envolvia nunca a perturbara; nunca pensara em saber o porquê. As estrelas
pareciam muito grandes, muito próximas, como se estivessem a dormir nas
profundezas de seda.
— Andar... Andar? — Alguém estendeu a mão em vez dela, agarrou
uma mão inerte, puxou com força. Nenhuma reação. Viu Sabowyn arrastar o
corpo de Andar para o rebordo, virá-lo suavemente, ainda suspenso.
— Qual é o problema?
— Que é que ele fez?
Vozes abafadas sussurravam perguntas, Sabowyn abanou a cabeça.
— Não sei. Penso... Penso que ele... Morreu. — A sua mão tocou os
lábios de Andar. A boca de Andar estava arqueada, fixa para sempre num
sorriso de alívio e júbilo. Os olhos estavam abertos. Sem pestanejar, olhava
para as estrelas através da cúpula de cristal e para o espaço, absorto em
pensamentos. Tarawassie desviou o olhar do seu rosto, evitando a onda de
uma emoção indesejada que este despertava nela. Olhou para o seu próprio
rosto, refletido obscuramente na superfície enganadora do poço: olhos verde-
azulados que se fundiam no vazio; cabelos pretos que caíam para a frente
para se unirem ao reflexo espectral.
— Ele está morto — disse Mirro, colocando a mão dela sobre o seu
peito.
— Como é que pode estar morto? Como pode ele morrer?
— Ele disse que queria morrer.
— Estava louco?
— Mas como pôde...?
As vozes teceram uma rede de incredulidade à sua volta. Tarawassie
afastou-se da sua imagem.
— O Poço... O Poço das Estrelas. Satisfez o desejo dele.
— É um poço dos desejos? — Alguém soltou uma gargalhada atrás dela,
com uma certa hesitação. — Aquilo é isso?
— Pobre Andar. Era louco... Foi sempre louco. Não era feliz.
— Agora deve esta feliz. — Sabowyn estendeu-se, fazendo gestos. —
Olhem. Olhem, o seu rosto parece tão sereno. — Suspirou, afastando o
cabelo do rosto e voltou a sentar-se.
— Mas ele nunca nos fez nada. Refiro-me ao poço.
— Não sei. — Sabowyn abanou a cabeça. — Isso não tem importância.
Pobre Andar, agora é feliz. Isso não tem importância.
— Que vamos fazer com o corpo?
— Vamos enviá-lo para a cidade. Alguém tratará dele.
— Pobre Andar.
— Pobre Andar... Pobre Andar. — As vozes deram uma bênção. — Mas
agora é feliz.
Tarawassie fechou os olhos, ainda acocorada, com a cabeça a balouçar
dum lado para o outro quando o içaram e o levaram aos ombros. Será?
— Tarawassie. — As mãos de Mirro pousaram ao de leve nos seus
ombros. — Agora vou sonhar. Vais tecer no tear?
Tarawassie pôs-se de pé, consciente de uma rigidez dolorosa nas
articulações. Abanou a cabeça, conscientemente, desta vez.
— Não, não sou capaz. Agora tenho de ir à cidade.
— Porquê?
— A minha mãe está doente. — Repetia isto pela milésima vez. Parecia
que ninguém se lembrava; mas não ficava surpreendida nem zangada. —
Tenho de ver a minha mãe.
— Oh! — Mirro afastou-se, indiferente ao que o rodeava, desceu a
rampa em espiral. — Hei de encontrar alguém.
Tarawassie seguiu os homens que levavam o corpo de Andar até ao piso
inferior da Nave de Cristal. O cabedal macio dos sapatos informes movia-se
silenciosamente nas superfícies transparentes. Chegou ao local onde eles
esperavam, em silêncio, pelo avião de passageiros. Ela ficou com eles a olhar
para baixo através da transparência, placidamente, indiferente ao vazio
terrível por baixo dos seus pés. O planeta, um ovo de pássaro pintalgado, azul
e da cor da ferrugem manchado de branco, com as cores já meio escondidas
pelo eclipse da noite. Ela podia envolvê-lo no círculo dos seus braços —
passou um momento perdida nas sensações do possível.
— Já lá vem — alguém disse.
Ela desviou o olhar, viu o brilho fraco do Sol no interior do ovo, ainda
mais pequeno, do avião que se aproximava. Viu-o subir para ir ao seu
encontro, sentiu o tremor quase imperceptível penetrar no seu corpo quando a
forma minúscula foi absorvida pela estrutura mais ampla da própria nave para
o interior da rampa de atracagem.
Ouviu-se uma harmonia de sons. Ela voltou-se ao mesmo tempo que os
outros quando, na parede atrás deles, se abriu uma escotilha de um verde
vivo. Esperou enquanto eles colocavam Andar numa cadeira na cabina
estreita do avião de passageiros e amarravam correias à volta do seu corpo.
Ela avançou finalmente para entrar, quando eles terminaram.
— Também vais? — Perguntou Sabowyn.
Ela olhou para trás no corredor estreito da cabina, sentou-se noutra
cadeira, prendeu o cinto de segurança.
— Vou. A minha mãe está doente. Tenho de ver a minha mãe.
— Oh! Então quando lá chegares... Tu sabes.... Se vires alguém, diz-lhes
que tratem dele. — Sabowyn baixou os olhos, o cabelo preto quase lhe
ocultando o rosto.
— Está bem. — Ela acenou com a cabeça.
Sabowyn esfregou o prato prateado colocado na parede e, quando a
escotilha se fechou no meio deles, o avião passou a ser uma vez mais uma
entidade independente, um todo. Como uma gota de chuva, soltou-se da
ponte tubular da rampa de atracagem, desprendendo-se da nave, iniciando a
longa descida à terra. Tarawassie ergueu-se contra a teia de correias, o seu
peso desapareceu também quando deixaram ficar para trás a nave. Ela olhou
para cima, fazendo pressão com a cabeça nas costas da cadeira cinzenta,
acolchoada. Viu a Nave de Cristal a retroceder, transformando-se para ela,
finalmente, num todo, uma baga multifacetada semeada de luz.
Fechou os olhos, esgotada pelo seu sonho chitta, sentido a Nave de
Cristal a ficar insignificante por cima dela, enquanto o planeta se tornava
maior e mais importante por baixo de si. Tentou concentrar-se na sua função
ali, enquanto o espírito se esforçava por fugir ao peso invulgar da realidade e
sofrimento. A mãe estava agonizante e não havia nada que ela pudesse fazer.
Satisfazer apenas as suas necessidades, mitigar uma dor para a qual não
existia nenhum alívio que alguém pudesse dar e depois fugir de novo para a
Nave de Cristal, para o mundo onírico onde todas as penas eram olvidadas.
Abriu os olhos, fechando-os momentaneamente devido à imensidão
súbita e indescritível da orla do planeta toldado de azul, enchendo
completamente o céu já à frente deles. Um pesadume, que era mais que o
regresso gradual de peso, fê-la recostar-se uma vez mais na cadeira. Uma
vibração sussurrante propagou-se à sua pele, um simulacro de antecipação.
Virou ligeiramente a cabeça: ao seu lado, Andar arquejava, cego, perante um
planeta majestoso — que o transcendia e transcendia todos os planetas. Ele
sorria fixa e serenamente.
— Andar! — A consciência despertava já dentro dela. Voltou-se na
cadeira para olhar para ele. — Oh... — Friccionou o rosto, tomada por uma
confusão súbita; apalpou o cabelo, o anel dourado que o mantinha afastado
dos olhos, apalpou os dedos... E a mão dele que estava pendente, fria e
translúcida, com o mármore, quando ela estendeu a sua própria mão. Não o
conhecia bem; não conhecia ninguém, apenas como alguns deles a
conheciam. Mas conhecia-os a todos, o punhado de pessoas da cidade e da
Nave de Cristal, e amava-os a todos como se fossem uma família, pelos seus
modos afáveis e sonhos partilhados. Mas Andar nunca estivera em paz, e os
seus sonhos ora eram pesadelos de pranto ora coisas belas.
O olhar plácido de Andar passava por ela para se fixar no céu por baixo
deles.
— Agora és feliz. — Não era uma pergunta, porque já tinha sido
respondida. — Mas porquê? — Tendo consciência de que nunca obteria essa
resposta, perguntou a si mesma se a resposta seria apenas o desejo de pôr fim
a todas as perguntas.
Mas o Poço das Estrelas... Recordou a sua própria voz: «Satisfez o
desejo dele.» Nunca fizera nada a ninguém, por ninguém, desde que soubera
da sua existência. E, todavia, ele, na sua loucura, dirigira-se para lá, cansado
de viver, cansado de sofrer. Pedira-lhe que o recebesse, que o matasse — e
ele respondera-lhe, ela tinha a certeza disso. Tinha a certeza. Morrera sem
dor, alegremente, e não sofreria mais... Nunca mais...
As nuvens juntaram-se para irem ao seu encontro, tomando forma;
envolveram-nos e separaram-se uma vez mais, deixando-a ver as
concentricidades da cidade. A vibração aumentou contra o seu corpo
enquanto a cidade se agigantava lá em baixo, e, por fim, desceram pela
cúpula chanfrada do hangar, penetrando na penumbra. A escotilha abriu-se
suavemente na parte lateral do avião. Ela soltou o cinto de segurança e saltou
para as trevas do hangar, que ecoavam. Estava deserto, como sempre; não
havia ninguém a quem falar do corpo de Andar. Outros aviões, grandes e
pequenos, estavam pacientemente alinhados, a transparência manchada por
finas camadas de pó. Ela não reparou no pó; nunca vira nenhum em uso.
Rajadas contínuas de vento outonal vergastavam as pregas garridas da
túnica enquanto atravessava as longas ombras das ruas desertas em direção ao
apartamento da mãe. Caminhava depressa, devagar, novamente depressa,
indiferente ao vento frio que lhe fustigava a carne arrepiada. Iria falar de
Andar à mãe... Não, não, como poderia fazer tal coisa? Viu uma série de
imagens a deslizar ao longo das paredes dos prédios, que as refletiam
sombriamente, tropeçou no passeio irregular, levantado pelas árvores,
escondido por turbilhões de vento castanho de folhas em forma de pá.
Chegou à esquina da rua onde a mãe morava, contornou um pequeno monte
de cascalho. Os passos afrouxaram uma vez mais. O vento fazia pressão
sobre as costas, com insistência, até entrar aos tropeções no pátio sombrio do
prédio e começar a subir as escadas. A mãe recusara-se a mudar para um
andar mais baixo ou para um prédio onde os outros já viviam. A doença e a
idade tinham-na tomado obstinada; agarrara-se aos modelos de familiaridade
duradoura, opunha-se à forma incerta do futuro. Agora já não conseguia sair
da cama. O idoso e trémulo Zepher visitava-a de vez em quando, depois de
Tarawassie se ir embora. Estava velho de mais para se dar ao trabalho de
fazer a viagem até à Nave de Cristal, e agora era o único inquilino nos seis
pisos do prédio abandonado.
— Tarawassie... És tu? — A voz fraca da mãe chegou até ela. Agora, a
mãe pouco tinha que fazer a não ser mentir e escutar.
— Sim, mãe. — Tarawassie seguiu o caminho escuro e reluzente que os
seus pés tinham aberto no pó até à porta, e entrou.
Ali o ar era sempre abafado e desagradável, mesmo para o seu fraco
sentido do olfato. A mãe queixara-se, mas não podia abrir as janelas.
— Mãe, como está? — Respirou fundo e não expirou, sentindo a
compressão no peito.
— Feliz, agora. Feliz por ver a minha filha. — Não havia nenhuma
censura na sua voz, mas havia uma amargura estranha nos seus olhos baços
quando estes tocaram em Tarawassie, e subjacente a ela a compreensão da
angústia desesperada que mantinha a filha longe dela.
Tarawassie percorreu a pequena extensão do soalho até à cabeceira da
cama; ajoelhando-se, apertou a mão da mãe, que escaldava, contra a face,
sentindo a aspereza da pele flácida, sentindo o sorriso da mãe.
— Oh, mãe... — Quando as lágrimas começaram a brotar para molharem
a mão frágil presa na sua, pôs-se de pé e escondeu-as num monte de
almofadas. A mãe soltou um suspiro, um som fraco, áspero, quando
Tarawassie alisou o cabelo cinzento de pó.
— Vou aquecer alguma coisa para o jantar. — Tarawassie fez que as
palavras saíssem imbuídas de otimismo enquanto se dirigia para o frigorífico.
Tirou o único prato meio cheio de guisado de arbat que encontrou. Franziu as
sobrancelhas, tomada por uma preocupação fugaz. Não se podia esquecer de
ir à casa de donativos no dia seguinte para trazer mais alimentos — desta vez
não se podia esquecer.
Colocou a marmita no aquecedor do tampo da pequena mesa; a tampa
fechou-se com um estalido, viu acender-se a luz. Luz... Apercebeu-se de que
o quarto estava a ficar escuro, foi limpar o globo de um candeeiro, que
encheu o espaço de tons suaves de cinzento e prata, que vestiram a nudez
chocante do quarto.
Tarawassie deu uma colher cheia de guisado aquecido à mãe, viu-a
abafar convulsivamente, abanar a cabeça.
— Não... Mais não, Tara. Não consigo comer. — Deitou-se, vencida,
enquanto Tarawassie lhe limpava o rosto. Caíram lágrimas nas covas das
faces. Há dois dias que não comia nada.
— Mãe, deixe-me trazer-lhe um pouco de chitta para que... Possa sonhar
outra vez. — A voz tremeu; baixou os olhos. — Tente, por favor.
— Não. — A mãe afastou-se, como se de repente lhe fosse penoso olhar
para ela, contemplando a cidade ao crepúsculo através da janela. — Arde cá
dentro, faz doer. Já não estou em idade de sonhar. — As lágrimas
tremeluziram quando um tremor a sacudiu, cristais no globo do candeeiro.
— Mãe... — Tarawassie sentia as palavras a quererem romper a barreira
da sua recusa, atraídas por uma necessidade mais premente. — Mãe, hoje
aconteceu uma coisa estranha. Andar morreu. Não sofreu. Sorria...
Os olhos da mãe fixaram-se de novo no rosto dela, esquadrinhando,
perguntando.
— Como é que isso aconteceu?
— Não sei. Mas eu... Mas ele tinha um ar tão sereno. Quando ele nunca
esteve em paz. — Enterrou o rosto nas mãos. — Disse: «Existe um paraíso;
é... A morte.»
A mãe tocou-lhe no braço, trémula do esforço.
— Sim, Tara. Gostaria de ir para a nave, e tentar. Estou tão cansada...
Tão cansada.
Tarawassie saiu do quarto, procurou o velho Zepher. Com a ajuda dele
levou o corpo enfraquecido da mãe, embrulhado em cobertores, através das
ruas que escureciam, até ao hangar. Viu, com satisfação, que alguém tinha
descoberto o corpo de Andar e o tinha levado. Deitou a mãe em três cadeiras,
acomodando-a o melhor que pôde; a mãe ficou muito sossegada, os músculos
do rosto contraíram-se. Tarawassie premiu um botão de sinalização e o avião
fechou-se e subiu, deixando atrás de si uma corda de vibração silenciosa,
afastando-se uma vez mais da Nave de Cristal. A mãe não falava com ele,
olhava para o espaço como Andar, para algo que os olhos não abarcavam.
***
Sabowyn, em resposta ao pedido dela, levou a mãe através dos
compartimentos da Nave de Cristal, até à beira do Poço, que esperava.
Tarawassie seguiu-o. Avançavam, serpenteando nos fios de estímulo que
Mirro conseguia extrair pacientemente do tear. A magia de luz e música
obstruíam-lhes os sentidos; tentou libertar o espírito dos fragmentos de
sonhos passados que a afastavam da realidade. Agarrou-se à visão do rosto
lívido da mãe, ao qual a tecedura de cores irreais dava uma vida sinistra. Uma
centelha de estranha emoção brotou de dentro para encher os olhos da mãe
quando ela os baixou pela última vez para o planeta em forma de crescente.
Pouco a pouco, Tarawassie foi-se apercebendo de que os outros eram atraídos
para junto deles, saindo dos seus sonhos, seguindo-os através da pavane
chamejante de um cortejo fúnebre.
Tarawassie estava, uma vez mais, perto da beira do Poço das Estrelas,
perscrutando profundezas fantasmais, escurecidas finalmente pelas
profundezas infinitas da noite, com medo de descobrir a sua imagem
refletida. Sabowyn ajoelhou-se ao lado dela, com o rosto sem expressão, para
pousar a mãe no rebordo.
A mãe mexeu-se um pouco, levantando a cabeça. Tarawassie encontrou
o olhar dela, baixou-se para a abraçar, desatando a chorar.
— Mãezinha, não quero que vá! — Uma mão inerte estendeu-se para lhe
afagar o cabelo negro como a noite.
— Tenho de ir... Tenho de ir, Tarawassie. Porque me amas, deves
ajudar-me. Repete o que disse Andar...
— Disse que estava pronto. Disse: «Existe um paraíso: é a morte.»
— Sim — sussurrou a mãe. — Sim! Deixa-me ir, Tarawassie... — A
mãe ficou hirta nos braços que cingiam, abandonando-a, abandonando a vida.
Tarawassie soltou-a lentamente e deixou-a cair na água do sonho iluminada
pelas estrelas.
A mãe suspirou, fechando os olhos como se um enorme cansaço tivesse
saído dela, e sorriu. Um verde-azulado passou-lhe por entre os dedos. Ficou
imóvel.
Tarawassie curvou-se, a mão fechou-se sobre a mão da mãe pela última
vez. As lágrimas caíram em gotas no poço, caíram silenciosamente. Voltou
de novo para o mundo de cor e som, para o sonho que podia partilhar. Ouviu
os sussurros de espanto dos que a cercavam, apercebeu-se uma vez mais da
sua presença, ao mesmo tempo que sentia que eles já se começavam a
separar. Alguém retirou o corpo da mãe do poço e o levou. Tarawassie
sentou-se nos calcanhares, quase sem saber que estava a chorar — a perda de
um contacto, o conforto de um abraço, que nunca mais teria.
— Ela está feliz, o seu desejo foi satisfeito. — Sabowyn continuava
perto dela. Pôs-lhe a mãe no ombro. Feita aparecer como por artes mágicas,
ofereceu-lhe uma taça prateada cheia de chitta. — Sê feliz, também. O
sofrimento acabou.
Tarawassie aceitou a taça, engoliu o xarope da cor do rubi,
concentrando-se na sensação de ardor na garganta. Levou-a pela rampa em
espiral até à sala dos sonhos. Reclinando-se na viscosidade dúctil de um sofá,
atravessou a membrana fina que separava a realidade do êxtase.
***
Tarawassie acordou, as lágrimas correndo-lhe pelo rosto abaixo, sem
saber se começara naquele momento ou se chorara durante horas. Levantou a
cabeça. Sala, estrelas, uma sinfonia de cores e figuras separaram-se
lentamente quando pestanejou para se libertar das lágrimas e da confusão...
Não havia beleza! — O espírito concentrou-se no terror do desapontamento,
da desilusão, das cores envoltas em corrupção, em ruído... Nenhum conforto,
nenhuma visão, somente fealdade! Nunca tivera um sonho como este! Como
poderia suportar...?
Sabowyn estava deitado no sofá, longe dela, com o olhar vago. Ela
percorreu o crescente baixo da mesa com as pontas dos dedos em direção a
ele, abanando-o, mas em vão, como Andar a abanara. Andar... Todos os seus
sonhos teriam sido como este? Confusa, levantou-se e seguiu o mesmo
caminho até à beira do Poço das Estrelas, vacilando em busca do seu rosto ou
do da mãe, mas descobrindo apenas o seu, distorcido pelo nada. Subiu para o
poço, reteve o fôlego; o frio envolveu-lhe os tornozelos. De repente, uma
vertigem apoderou-se dela, oscilou como um junco na água, ao vento
invisível. E não aconteceu nada.
Ficou à espera, até começar a compreender que não iria acontecer nada
— compreendeu com mais clareza aquilo que tentara fazer. Subitamente,
receosa da superfície lisa e mole que lhe apertava os pés, receosa de cair no
poço de estrelas, recuou para a borda do poço.
Desceu uma vez mais a rampa em espiral, encontrou Mirro sozinho, a
brincar com o tear. Tarawassie entrou no quarto, abrindo caminho através da
tecedura de Mirro. Quanto mais se aproximava do tear mais profundamente o
seu estímulo a afetava — a sensação de luz e som que eram meramente
superficiais, as harmonias mais puras, que provocavam ressonâncias mais
profundas na fibra dos seus nervos. Penetrou no cone de silêncio que cercava
o tear.
— Mirro — sussurrou Tarawassie num tom mais alto que os fracos
cambiantes de som. — Como é que o poço pode dar a morte? Que é? Por que
é que está ali? E por que é que... Por que razão não pude morrer também?
— Queres morrer? — Mirro olhou-a cheio de curiosidade.
O rosto dela assumiu de novo linhas fundas de hábito. O seu dedo
deslizou por baixo dos fios brilhantes. Cintilavam cores na barra transparente,
inflamavam bruscamente os fios, teciam um pano de luz em filigrana.
Tarawassie fechou os olhos para não ver o fluxo hipnótico, para não
recordar um sonho fracassado.
— Não sei. Mas... Não fui capaz de sonhar.
Mirro virou-se de novo para o tear, a túnica tingida da cor do fogo
lançou reflexos com o movimento.
— Estavas triste. Mas isso passa. Passa sempre. És jovem. Vais ver!
— E o Poço das Estrelas? Tu compreendes o tear... Não me podes falar
do Poço das Estrelas.
— Não sei nada acerca dele. — Mirro encolheu os ombros. —. Ninguém
sabe. Isso não nos afeta, não tem importância. Não te preocupes.
— Mas eu quero saber. Como posso aprender...
— Não podes. Aqui ninguém sabe.
— E na cidade? E os nativos? Andar passou pelas casas de donativos e
soube a resposta. — Tarawassie puxou pela manga da sua própria túnica,
desfiando-a.
Mirro abanou a cabeça; o cabelo prateado e preto ondulou.
— Andar estava louco. Não devia ter ido. Tu não devias ir, não adianta.
Tarawassie transpôs de novo a barreira da sensação, desceu ao último
piso onde esperava o avião. Tirou uma capa e um globo de candeeiro do
monte de objetos fora de uso, espalhados no chão. Olhou para trás uma vez,
quando chegou à entrada do avião, mas não havia ninguém a despedir-se
dela.
***
Tarawassie iniciou a viagem através dos desfiladeiros da cidade, que iam
ficando mais brilhantes, dirigindo-se em primeiro lugar à casa dos donativos,
onde os nativos lhes deixavam comida, tecidos resplandecentes e adornos —
e chitta, em potes de barro e às vezes em jarros plásticos. Os nativos e outras
criaturas selvagens tinham vindo para partilhar a cidade com o seu povo, que
não via utilidade nem interesse nas enormes quantidades de vidro e pedra. O
seu povo já não saía das parcas habitações perto do hangar, e estava
satisfeito.
Uma plataforma sobrelevada, que talvez em tempos tivesse albergado
alguma coisa, pouco mais tinha que as carcaças limpas de pequenos animais,
tigelas de fruta de Outono, seca, cestos de grão grosseiro. Ergueu-se qualquer
coisa, deselegante e que se agitava, e fugiu ao vê-la, soltando gritos sinistros.
Vagamente desapontada por não encontrar mais nada, nenhuma criatura que
pudesse interrogar, sentou-se na beira da plataforma, a tiritar ao frio da
aurora.
A fome despertou dentro dela ao ver comida, quase uma náusea. Não se
conseguia lembrar de quanto tempo passara desde que comera pela última
vez. A carne crua repugnava-a; comeu a fruta insípida. Um jarro de chitta
esperava também, levando minúsculos mosquitos à destruição na superfície
do xarope pegajoso. As mãos tremeram, o olhar fixou-se nele como o dos
mosquitos. Virou o rosto. Mais tarde. Viria mais tarde, quando precisasse...
O limite da cidade estava muito perto, ali: podia ver a planura por entre
as torres baixas e largas, a extensão cinzenta e dourada de relva arrancada a
espalhar-se ao vento, as magnólias chamejantes e carregadas de frutos. O céu
coberto de nuvens aclarou, o cor-de-rosa, o amarelo e o verde suave
fundiram-se para manchar de roxo a cúpula e inflamar as suas emoções
lentas.
Perscrutando a manhã, quase não deu conta do movimento vacilante no
perímetro da praça. Uma figura humana hesitou, embrenhando-se de novo
nas sombras mais carregadas quando ela parou e gritou:
— Espera! — Atravessou a praça a correr, gritando outra vez, mas
deparando apenas com uma rua meio obstruída por arbustos, sem vida. Ao
longe ouviu um ruído de qualquer coisa que se desprendera e caíra; o silêncio
que voltou a reinar oprimia-a enquanto os ecos se extinguiam. Ficou parada
por instantes, a arfar da brusquidão dos movimentos e desconfiada de tudo.
Mas tinha estado ali alguém, e esse alguém podia dar-lhe uma resposta. De
que outra forma poderia Andar ter ficado a saber o segredo do Poço das
Estrelas, no coração da cidade? Ainda indecisa, entrou na rua.
Durante o longo dia, esquadrinhou as ruas silenciosas e tortuosas da
cidade. Às vezes ouvia ruídos, distantes e distorcidos; outras vezes o seu
espírito sentia a presença de um observador — ou seria apenas a sua
imaginação? Nunca soube. Ela gritava e os ecos respondiam, ou a corrida de
criaturas muito pequenas com o corpo coberto de escamas, um bater de asas
nas árvores por cima a sua cabeça. Uma gelosia de vigas pesadas e filamentos
mais finos deixava cair redes de sombra de um lado ao outro do caminho,
para terminarem abruptamente em presas envolvidas em plantas trepadeiras
sobre um monte de pó e metal retorcido. Traiçoeiras cascatas de pedra com
vidros brilhantes barravam-lhe a passagem.
Estranhamente relutante, não tentou entrar num dos edifícios vazios
antes do meio-dia. Por fim, com o coração a palpitar, transpôs uma porta em
arco, vazia, para a escuridão do interior. O globo do candeeiro iluminou-se
um pouco, revelando-lhe uma parede ornamentada com mosaicos,
representações da vida humana. Um ronco abafado e o latido de um raposo,
fizeram-na fugir de novo para o sol. Desesperada e aterrorizada, não tentou
entrar noutro edifício.
Enquanto as sombras se alongavam uma vez mais, aumentava a
irritabilidade dentro dela. Compreendeu finalmente que não era capaz de se
lembrar do motivo que a trouxera ali, e o que queria encontrar. O corpo doía-
lhe com o esforço desusado, doía-lhe o estômago da fome... Fome... Uma
fome devoradora...
Ela sabia que ansiava por chitta. Passara muito tempo, o resto de euforia
que preenchia as horas de vigília entre os sonhos dissipava-se, abandonando-
a para que ela enfrentasse as emoções que nunca quisera conhecer. Precisava
de chitta, precisava dela....
Subiu de novo a rua, a caminhar depressa agora, o novo objetivo
definido no seu espírito, até começar a perceber que nunca seria capaz de
percorrer o mesmo caminho a partir da praça. Debatendo-se com o medo
crescente, viu que teria de trepar a um ponto elevado que lhe permitisse
descobrir um marco familiar que a orientasse.
Escolheu uma rampa em espiral, que servia de suporte à gelosia
delicada, suspensa com trepadeiras que formavam um arco sobre a rua:
Interrogou-se fugidiamente sobre a sua finalidade — se tinha sido projetada
para pés humanos ou se alguma vez tivera alguma utilidade. Mas isso não
interessava; só a chitta interessava... Só a chitta. Pôs um pé sobre a rampa
com todo o cuidado, segurou-se com as mãos. A rampa era muito íngreme,
mas os mocassins agarravam-se à superfície danificada pelo tempo. Não
olhou para baixo. O caminho estreitava, e ouvia estalidos fracos de cada vez
que pousava um pé.
Ouviu-se um som forte. O pé resvalou. Ela caiu para a frente e ouviu a
sua própria voz gritar na escuridão.
Tarawassie abriu os olhos, pestanejou para tirar a poeira, limpou a lama
seca dos lábios, do nariz. Lambeu os lábios, soube-lhe a sal, não
reconhecendo o sabor do sangue. À sua volta havia um monte de pó e
qualquer coisa afiada que se lhe enterrou na ilharga quando se estendeu.
Juntou as mãos, cautelosamente, para se pôr de pé; um pulso lançou-lhe um
aviso rápido pelo braço acima. Caindo abruptamente, levantou o rosto,
fechou outra vez os olhos para ver melhor.
O observador mudou de posição, agachou-se longe dela e encontrou o
seu olhar com apreensão. O observador não era humano. Os olhos eram
cinzentos, com pupilas compridas e oblíquas numa íris sem córnea. O rosto
era afilado, mais parecendo um focinho... Um focinho... O rosto dele?
Classificou o sexo instintivamente, segundo padrões que não eram
inteiramente apropriados. Um nativo? A estupefação afastou o resto da sua
mente — o mal-estar, a incongruência da sua presença ali. Sentou-se
freneticamente, antes de com a dor, perder o sangue-frio. Assustado, pôs-se
de pé dum salto e deu outro para trás, com agilidade.
— Não. Espera! — Ela agitou a mão, a voz embargou-se-lhe.
O nativo estacou, indeciso; um pelo prateado cobria o couro cabeludo
com ondulações longas e delgadas, pelos ombros abaixo. Levantou um pé,
esfregou-o vigorosamente no tornozelo da outra perna; os pés estavam
protegidos com sapatos acolchoados de cabedal macio, como os dela.
Deixou cair o braço e curvou-se cheia de dores, exausta. Enfrentou o seu
olhar, querendo falar outra vez, sem saber o que dizer, lembrando-se de que
os nativos eram muito tímidos — e muito estúpidos.
O nativo recuou na sua direção, com qualquer coisa no olhar que talvez
fosse preocupação. Acocorou-se de novo, ainda longe dela, erguendo a
cabeça e batendo com a cauda, que parecia um chicote, nas canelas das
pernas. A cauda era quase implume na ponta, e cinzenta, como as palmas das
mãos entrelaçadas no regaço; o resto do corpo era prateado, com pelo curto.
Trazia uma espécie de tanga enrolada à volta das ancas, um justilho informe e
sem mangas de tecido vermelho desbotado, colares. Um saco de cabedal
estava preso à cintura, juntamente com um punhal. Os olhos dela fixaram-se
no punhal; olhou para as mãos dele. As mãos eram invulgarmente magras;
notou que tinha só três dedos em cada uma, em vez de quatro.
De repente, levantou uma das mãos, apontando para ela; a ponta de uma
unha retráctil ostentava marfim. Emitiu uma série de sons, que se
assemelhavam a chilreios ou latidos, e sentou-se outra vez, observando-a
expectantemente. Ela não reagiu. Ele repetiu a série de sons, mais devagar,
ficou novamente à espera.
Ela abanou a cabeça, sem saber o que ele queria. Os olhos desviaram-se
dele, perscrutaram os muros escurecidos. Apenas as cristas das torres, como
unhas douradas, eram banhadas pela luz do Sol, mas as pontas dos dedos de
luz estavam invertidas. Estivera ali toda a noite? Estremeceu. Mas havia algo
de mais estranho e subtil naqueles desfiladeiros, que se iam tomando mais
brilhantes. Por que razão estavam desertos? Ossos... Havia ossos na rua.
Olhos negros de vidraças esmigalhadas olhavam fixamente para ela, montes
de cascalho que davam origem a novas paredes a partir de arcos antigos que
se esboroaram... Esta não era a sua cidade, a cidade de que ele se lembrava.
Ontem não estava assim!
Tapou a boca com as mãos, reprimindo os gritos de loucura.
— Qual... O problema? — Perguntou o nativo.
Ele curvou-se na direção do sítio onde ela estava, esticando o pescoço,
como se procurasse chegar-lhe por entre as grades de uma jaula. As palavras
eram hesitantes, deformadas, pouco claras — mas ela percebeu-as. Mesmo
assim, os olhos pareciam humanos da tensão e da preocupação.
— Estás mal?
— Mal? — Ela baixou as mãos; riu-se... Inesperada e tremulamente. —
Mal?
O seu rosto desanuviou-se com a resposta.
— Mal... Aqui? — A ponta da cauda bateu no corpo acocorado. — Ou
mal... Aqui? — A cauda deu-lhe uma pancada leve na cabeça; era a imagem
perfeita do desespero.
Tarawassie deixou-se cair de novo na terra seca.
— Mal... Ambas as coisas, suponho. — A voz tremeu. — Como... Como
aprendeste a falar? — Não lhe ocorreu perguntar como aprendera a falar a
língua dela; não lhe ocorreu que pudesse existir outra.
— Não aprender. — A cabeça prateada balouçava de um lado para o
outro. — Saber. Saber sempre. — O prateado ondulou quando a testa se
enrugou, como se estivesse a formar palavras, ou o próprio ato da fala. Era
um trabalho difícil para ele. — Eu humano, todos os humanos saber.
— Não és um ser humano! — Gritou-lhe ela. Levantou-se com esforço,
os músculos torceram, com a pele coberta de arranhões em carne viva.
Encaminhou-se para o reflexo escuro da janela mais próxima. Ficou imóvel
durante muito tempo a olhar fixamente para o espantalho envolto em pó,
pano velho, o mistério lúgubre do rosto ensanguentado — a incompreensão
nos olhos encovados, verde-azulados, tudo o que restava da Tarawassie
sonhadora que ela sempre conhecera.
E depois, sem graça, bateu na vidraça e escorregou, ficando estendida no
pó, imóvel.
***
Tarawassie abriu de novo os olhos na penumbra, deitada de lado sobre
um monte de trapos. Mas a luz do Sol, envolta em pó, passava através da
fenda na parede esboroada, e uma luz tremeluzia de uma forma estranha nas
suas costas, aquecendo-a com o sol. Olhou em redor. O nativo acocorou-se
perto de uma pequena fogueira, a cabeça prateada coroada de dourado, numa
atitude de concentração; ele esfregou metodicamente o globo do candeeiro. A
cauda curvou-se independentemente e apanhou um pau para meter na
fogueira. Uma cafeteira de cobre estava pendurada num gancho sobre as
chamas. Ela sentiu a fragrância — o cheiro de comida cozinhada,
infinitamente mais estimulante e apetecedor do que ela se recordava...
— Estou com fome.
O nativo levantou os olhos, sobressaltado. Pousou o globo, caindo de
joelhos.
— Eu ouço-te! — A cabeça balanceou-se com os olhos a brilharem, não
apenas com luz refletida. Exibiu uma chávena de bela cerâmica, mergulhou-a
na cafeteira e ofereceu-lha. Ela examinou os caules delicados de flores de
fantasia na superfície poliédrica enquanto engolia pequenas quantidades de
caldo espesso, fumegante. Saboreou o gosto doce de ervas, a riqueza da
carne. Alimentar-se há muito que se tornara um dever fastidioso, e a comida
uma coisa insípida, sem textura, desagradável, tragada para impedir a
fraqueza. Nunca sentira assim uma fome, nunca conhecera a satisfação de a
saciar. O enjoo, o cansaço, o mal-estar desapareceram: o espírito desanuviou.
Lembrava-se do aspecto do seu corpo faminto, do reflexo de uma realidade
terrível. Porque era verdade, agora tinha a certeza disso. O eu e a realidade
que ela conhecera tinham sido um sonho, um sonho. Mas não uma fantasia.
Lembrava-se da morte da mãe, do Poço das Estrelas. Teria sido este mundo
em ruínas e a sua própria desventura que a mãe vira sem chitta? E teria sido
isto que Andar vira?
Um latido de júbilo saiu da boca do nativo. Levantando de novo os
olhos, viu o globo ficar mais brilhante nas suas mãos, finalmente. Ele olhou
para ela, produzindo um som vibrante, peculiar.
— Queres mais?
— Quero. — Ela estendeu a taça. — É bom. — Ele mergulhou-a na
cafeteira, deu-lha outra vez. Pegou uma vez mais no globo, desta vez
passando a mão sobre ele, quase com veneração. Ela teve consciência do
tempo que fora necessário para ele fazer surgir luz dentro dele. Bebeu
lentamente a sopa. — Demoras sempre tanto tempo?
Ele levantou de novo os olhos, o sorriso desvaneceu-se e acenou com a
cabeça.
— Para mim sempre difícil. Mas a bola de sol durar mais tempo, ser
melhor que o archote.
— Trouxeste-me para aqui?
Ele acenou outra vez com a cabeça.
— Trazer. Esperar que os humanos venham à cidade para lhes mostrar...
— Pôs-se de pé para se lembrar de qualquer coisa. Músculos filamentosos
deslocaram-se suavemente sob a pele prateada quando ele mudou de posição.
Talvez fosse mais forte do que parecia. — Tu ver mais... Nativos, quando tu
chegar?
— Não. — Perguntou a si mesma se isso seria importante. — Só um,
ontem, que fugiu. Eu... Eu vim à cidade para... Encontrar alguém com quem
falar, para ficar a conhecer o meu povo — disse, apercebendo-se subitamente
de que precisava de obter respostas não apenas para o mistério do Poço das
Estrelas antes de poder regressar à Nave de Cristal. As mãos crisparam-se no
regaço.
— Sim...? — O nativo acocorou-se de novo, a ansiedade venceu o
constrangimento. Ela pensou nas duas crianças que conheceu; a sua
franqueza pareceu-lhe infantil. — Eu, também... Conhecer star people!. Um,
com pelo amarelo, também vir aqui. Ele atirar coisas, magoar-me. Não
deixar-me entrar. — A cauda bateu, lembrando-se do medo e frustração.
— Entrar aonde?
— Andar... Teria visto Andar?
— Prédio, além. — A cauda fez um movimento brusco e vago na
direção da porta. Star People deixar muitas coisas boas. Mas porta não me
deixar entrar. Porta deixar entrar Pelo Amarelo. Ele não me deixar entrar. —
O rosto virou-se com confiança. — Tu deixar-me entrar?
— Deixo, se me levares lá!
Ele sentou-se de repente, a fazer ruídos. Ela compreendeu imediatamente
que ele se estava a rir.
— Meu amigo, meu amigo!... Ensinar-te tudo o que sei! — Ele cingiu os
joelhos com os braços; os olhos fixaram-se novamente nela, as pupilas
dilatadas quase os tomavam pretos na penumbra. — Outros star people nunca
mais vir cá; só vir eu.
— Por que nos chamas Star People?
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— Porque vocês vir de Fixed Star , lá em cima no céu. — Para ele era a
coisa mais evidente do mundo; ela pensou que devia ser, afinal. Vira a Nave
de Cristal no céu da noite, cuja beleza a hipnotizava — uma joia constante
que apenas a lua suplantava, a meia distância no céu no meio de constelações
que giravam. Gostava de saber qual seria o aspecto que teria para ela naquele
momento, se a descobrisse no meio das estrelas naquela noite.
— Real People — (a cauda do nativo bateu-lhe no peito, como se o seu
corpo fosse uma coisa separada do espírito) — viver sempre aqui, no planeta,
há muito tempo. Dizem que quando Star People vier tempo real acabar para
sempre. Eu dizer tempo real vir com Star People — (as mãos estenderam-se
para acariciar o globo) — mas ninguém me dar ouvidos. Ninguém deixar
mostrar-lhes... — Caiu bruscamente para a frente. A amargura fez chocalhar
os colares de encontro ao peito.
— Eu deixo que me mostres. — Ele endireitou-se, quando ela falou; ela
sentiu os seus próprios ombros a levantarem, com uma visão inesperada. —
Penso que, de certa forma, também perdemos o nosso tempo real. — Ergueu
uma mão coberta de areia grossa. — Talvez tenhamos encontrado um sonho e
perdemo-nos.
O nativo olhou para ela duma maneira estranha e coçou as costas com a
cauda.
— Qual é o teu nome? Como é que eles... Te chamam?
— Moon Shadow. — A mão aberta deu uma pancada no peito; o rosto
assumiu uma expressão perversa de orgulho. — Moon Shadow Starman.
— Starman? — Ela franziu as sobrancelhas. — Estás a falar a sério?
Disseste que eras humano! Mas não, não pareces humano... — Parecia uma
estupidez, mas ele não tinha ar de quem ficara ofendido.
— Aqui não — ele apontou para o corpo —, aqui! — Bateu na cabeça.
— Eu último Starman Kith. Há muito, muito tempo, nós sermos parecidos
com Star People. Eles parte de nós, parte de mim. Eu ser último Real e
Starman.
— Oh! — Ela sorriu, hesitantemente. — Eu sou Tarawassie — disse.
— Nomes humanos não ter justificação. Que... — Ele fez um esgar,
concentrando-se — que... Significar?
— Não significa nada. É o meu nome. — Ela sorriu de novo. — Tem de
ter algum significado?
— Todas as real people ter um nome. E nome de nascimento indicar
signos quando elas nascer... Quando eu sair da bolsa, o Monstro da Noite
engolir Lua. Pessoas fazer muito barulho, Monstro da Noite cuspir ela, mas
eu sair enquanto Lua desaparecer. Dizem... — Deu um puxão aos colares,
partiu um fio para que caíssem nos joelhos ossudos —... Dizem, eu ser
esquisito... Filho de Moon-Shadow. Eu ser o último Starman, criança má,
nascida com o espírito do mal. Sempre quando eles me mostrar coisas, pensar
eu ser esquisito... E isso acontecer. — Apanhou as contas espalhadas por toda
a parte, deixou-as cair no saco preso à cintura. Tarawassie reconheceu
estranhos pedaços de fio e vidro, pequenas partículas brilhantes de metal
gravado a água-forte.
— Como te sentes... Esquisito?
— Os espíritos dos antepassados de Starman guiar-me. Mas Real People
dizer que Star People ter espíritos do mal e não espíritos reais. Dizer que só
Real People revelar maneira de fazer as coisas, não valer a pena aprender
outras coisas. Tentar impedir-me de conhecer isto, a minha cidade. Mas eles
também viver na cidade de star people. Eles ser doidos, eu não!
Tarawassie lembrou-se da casa dos donativos na praça, lembrou-se de
que sempre soubera que os nativos traziam a comida que mantinha vivos os
humanos... E que nunca se interrogara sobre o motivo que os levava a fazê-lo.
Lembrou-se do nativo que fugira.
— Por que é que a tua gente tem medo de nós? Nós não somos «reais»
também?
Mas não somos verdadeiros para nós mesmos.
Moon Shadow pôs-se a pensar, o pelo acamou.
— Mas nós só Real People. Star People gostar... Gostar de espíritos
Muitos no céu, ter muita magia. Star People fazer mudar tempo real. Meu
povo não se lembrar porquê, há muito tempo, mas lembrar-se de ter medo de
gente-fantasma, dar-lhes muita chitta...
— Chitta — exclamou ela. — Dão-nos chitta! Claro... Claro! — Ela
produziu um som breve que não era de facto uma risada, que lhe irritou a
garganta. — Mas, onde todos são cegos, quem sente a falta do dia, quem dá
conta da escuridão?
— Eu chamar-te Star Woman — disse Moon Shadow, a pensar em voz
alta. — Ser um nome verdadeiro... Como Moon Shadow.
Tarawassie acenou distraidamente com a cabeça.
Ele sorriu, mostrando uns dentes brancos, afiados.
— Moon Shadow, Star Woman, nós ser amigos. Eu revelar-te os meus
segredos. Agora? — Curvou-se, estranhamento concentrado. — Eu mostrar-
te uma coisa agora?
— Sim. Podemos ir ao lugar onde viste Andar... Pelo Amarelo? — Pôs-
se de joelhos, esperançada de que não fosse muito longe.
Ele recuou, baixando o olhar como se ela o tivesse repelido.
— Mas quero que sejas tu a mostrar-me...? — Ela franziu as
sobrancelhas, confusa. — Não me podes dizer onde é?
A cauda deu um estalo como um chicote, em vão.
— Poder mostrar apenas o que eu já saber. Ainda não conhecer os
segredos do sítio novo! Mostrar-te outros, ir lá depois; então tu ver
mercadoria boa, como eu.
Tarawassie abanou a cabeça, a paciência perdeu-se na agitação das
emoções há pouco libertadas.
— De que estás a falar? Queres dizer que primeiro queres transmitir-me
o que aprendeste? É isso?
— Eu não ir dizer-te! — A sua própria impaciência embateu no muro da
incompreensão entre eles. — Mostrar. Eu mostrar-te. Aqui... — Por fim
estendeu a mão para agarrar a dela, puxando-a para a frente.
Ela começou a levantar-se, mas ele puxou-a outra vez para baixo, com as
mãos cravadas no seu pulso.
— Não vamos...? Larga-me! — Ela puxou com toda a sua força,
conseguindo soltar-se, quando ele tentou encostar a mão ao pelo prateado do
estômago. — Que estás a fazer?
Moon Shadow estremeceu.
— Fazer-te mal, não! Só mostrar-te, só mostrar-te... Por favor, Star
Woman. — Balouçou-se lentamente apoiado nos joelhos, com as mãos
crispadas, os olhos cinzentos, ansiosos. — Ninguém me deixar mostrá-los,
ninguém ser meu amigo...
— Mostrar-me o quê? — O rosto dela brilhava de estranha indignação.
— Por que razão tenho de tocar em ti?
Ele deixou de se balouçar.
— Tu não teres bolsa. Não saber!
— Como havia de saber? Eu não sei nada! — Pousou com força as mãos
no chão coberto de pó. A dor do pulso magoado libertou-a do jugo de
sentimentos que não conseguia controlar. — Desculpa.
Moon Shadow acenou com a cabeça.
— Isso passa... Eu compreender. Eu tentar... Dizer-te. — Ele suspirou.
— Como Real People, bebé crescer na bolsa da mãe, não sair durante muito
tempo, até ser forte. Na bolsa, a mãe mostrar muitas coisas ao bebé. Depois
de o bebé nascer, o pai mostrar, amigos mostrar. Homem ter bolsa também.
— Bateu no estômago, examinando o rosto dela em busca de compreensão.
— Não poder trazer, mas poder mostrar aos pequenos, mostrar amigos. —
Os dedos torceram-se, as unhas projetaram-se para fora, como se pudesse
extrair clareza do ar. — Tu pôr mão na bolsa e aquilo que amigo saber, tu
saber agora mesmo. Não falar, ver com os olhos do amigo. Amigo mostrar...
— Disse como se esperasse conseguir fazê-la compreender, à força de o
repetir, bem alto. Abriu as mãos à espera.
Tarawassie voltou a sentar-se, peneirando as palavras no espírito.
— Vejo que não se trata apenas de contar. Mas, mas não se assemelha a
nada que eu conheça. Não podemos tocar numa pessoa e ler o pensamento.
Seja como for, como poderia ler o teu? Nem sequer sou uma nativa. Não
podes dizer-me?
— Não poder dizer, Star Woman. — Ele sorriu, com um ar desolado. —
Não ter palavras suficientes, não ser capaz. — Deu a sensação de que ele
escolhera os ombros. — Falar difícil de mais. Mas poder mostrar-te. Eu
Starman porque ser assim. — Ele estendeu a mão.
Ela levantou um pouco a dela. Mas baixou-a outra vez, receosa, indecisa.
— Ainda não. Ainda não estou... Preparada. Vais mostrar-me... Levas-
me ao sítio de que falámos, agora? Depois... Verei.
A mão dele caiu; acenou com a cabeça, cheio de desalento.
— Eu levar-te. Cumprir a minha palavra. — Uma ténue ênfase na
palavra minha. — De qualquer maneira — endireitou-se —, eu entrar! Ir
agora, sim. — A cauda levantou o globo, atirou-lho às mãos. Ele pôs-se de
pé, atirando terra na fogueira com os pés, abafando-a.
Tarawassie pôs-se de pé, curvada como uma mulher idosa. Outra espécie
de fogueira queimava-lhe os músculos retesados.
— Não ser longe. — Ele sorriu, encorajadoramente. Ela supunha que ele
queria que ela não o repelisse de novo. A cauda contorceu-se na direção da
entrada brilhante. — Caminhar fazer-te bem.
Ela apertou a mão ferida de encontro à coluna vertebral.
— Espero que me faça bem a muita coisa.
— Aqui. Pelo Amarelo carregar aqui. — Moon Shadow fez força com as
palmas das mãos nos dois painéis de marfim com incisões à altura do peito
nas portas altas e negras. Não aconteceu nada. — Depressa Star Woman. O
meu povo ficar furioso se nos ver aqui.
Tarawassie avançou, passando por baixo do pórtico a coxear, arrastando
os pés por entre as folhas secas. Ficou a olhar espantada para a altura da
entrada durante algum tempo, entontecida por ela.
— Eram gigantes? — Sussurrou ela, assustada, a tremer de frio e
ansiedade.
— Não — disse Moon Shadow com impaciência, coçando os braços,
amarfanhando o pelo. — Eles como tu, como tu. Nós entrar agora? — Olhou
para a rua.
— Não eram como nós. — Ela olhou para baixo. — Não, nunca como
nós... — Como num ritual, ergueu lentamente as mãos e colocou-as sobre os
fechos. As portas pesadas separaram-se, como água a correr, como um ruído
levemente metálico. A luz da tarde projetava as sombras distorcidas à frente
deles até ao interior. Tarawassie vacilou, indecisa. Moon Shadow parou ao
lado dela, repentinamente deprimido. Ela tirou-lhe o globo das mãos,
segurando-o à sua frente como um talismã. No retângulo de luz dupla, as suas
sombras altas perderam a cor, transformaram-se.
— Gente-fantasma — murmurou Moon Shadow.
— Os nossos espíritos. — Tarawassie inspirou, reteve o fôlego,
inconscientemente. — Talvez sejam gigantes, afinal...
Transpuseram a soleira e, como em sinal de boas-vindas, tremeluziu uma
incandescência à volta deles, enchendo a escuridão imensa com uma luz
artificial. Ficaram imóveis, estupefactos, a olhar para o alto: os olhos
trepavam pelas paredes da cave com teto abobadado em que se encontravam.
Algures, entre os segredos escondidos deste lugar, Andar descobrira a
verdade que o enlouquecera e o libertara. E que libertara a sua mãe. E. agora,
tinha de saber a verdade pelos seus próprios meios...
— Não adiantar! — A voz irritada de Moon Shadow saltou de superfície
em superfície, derramando ecos sobre as suas cabeças. — Aqui nada bom,
nada real!
... coisas... coisas... coisas...
Tarawassie tapou os ouvidos para não ouvir os ecos.
— Que queres tu dizer? Foi aqui que Andar veio para saber, não foi?
— Aqui só palavras. Não valer a pena. Não compreender palavras, só
coisas. — Ele apontou para o globo. — Coisas funcionar, eu pôr elas a
funcionar. Mas palavras... — Fez um gesto, como se atirasse qualquer coisa
ao chão, rancorosamente. — Palavras! — Não ser bom em palavras... —
Terminou debilmente. Ele virou-lhe as costas, escondendo o rosto. —
Sempre, antepassados dizer-me que este ser um sítio bom, sítio importante.
Agora eu saber que ser apenas palavras. — Disse qualquer coisa que ela não
percebeu, que parecia ameaçador. — Tu não precisar de mim, Star Woman.
Agora ir-me embora.
— Espera, Moon Shadow. — Ele parou, virando o rosto, quando ela
gritou. Não me deixes sozinha... Não conheço este lugar. Preciso que me
ajudes a conhecê-lo... Como funciona este lugar.
Ele encolheu os ombros, mas a voz tomou-se mais viva.
— Eu arranjar-te caixas de palavras. — Trabalho bem com elas. —
Voltou-se. — Mas tu nunca encontrar aqui palavras certas, durante muito
tempo. ... Muitas... Muitas palavras. — Ele olhou para cima, para cada
pavimento.
— Seja como for, Andar conseguiu encontrar alguma coisa. Não teve
muito tempo.
— Talvez ele a deixar ficar, talvez não. — Nós procurar, embora...
Moon Shadow afastou-se, examinando o pavimento. — Aqui. Eu ver Pelo
Amarelo entrar aqui muitas vezes... Por aqui... Para levantar a caixa. Nós
subir. — A cauda fez-lhe sinal para que o seguisse.
Ela seguiu-o, a olhar para o chão, mal conseguindo detectar um desenho
de marfim sobre marfim que manchava a camada clara de pó do pavimento.
Entrou no elevador com Moon Shadow, ficando atrás para o ver tocar nos
símbolos da parede com um movimento floreado, um de cada vez.
Subiram, envoltos numa vibração suave, até ao segundo piso. Moon
Shadow perscrutou o pavimento, abanou a cabeça. Subiram mais dois pisos
antes de ele acenar com a cabeça e deslizar para as telhas de marfim do
mezanino. Ele ia à frente, caminhando ao longo da metade da circunferência.
Tarawassie olhou para cima e para baixo, para o tapume baixo com gelosias,
tentando imaginar que mistérios antigos estavam cativos naquele lugar.
Ouviu uma exclamação rouca, viu Moon Shadow desaparecer por um
dos corredores laterais. Foi atrás dele, deparou com um pavimento com o
dobro da largura, entre taludes, que chegavam ao teto, com compartimentos
minúsculos. A passagem estava atulhada de mesas e cadeiras polidas. As
mesas estavam apinhadas de mecanismos que ela não conseguiu identificar e
cobertas de discos ovais do tamanho de um dedo polegar. Alguns dos
inúmeros compartimentos ao longo das paredes abriram-se de través como se
tivessem sido forçados.
— Aqui que Pelo Amarelo vir. Talvez ser isto que tu querer. Muitas
palavras aqui. — Ele passou a mão pela mesa.
— Onde? Como...? — Tarawassie sentiu o ressentimento cego a crescer
de novo dentro dela, por causa da sua impotência, pelo facto de um nativo de
espírito obtuso saber mais dos segredos do seu povo que ela.
— Em caixas de exibição. — Moon Shadow pegou num disco, atirou-
lho. — Pôr dentro da caixa de exibição, ovo falar, ou fazer visão ou fazer
apenas palavras. Ter ovo... Não funcionar se a abrires!
Tarawassie deixou de espreitar, irritada.
— Sair magia, só pó lá dentro... Ovo verde falar, o preto mostrar
gravura, o vermelho só para fazer palavras. — A maior parte dos discos sobre
a mesa eram vermelhos. — Caixa de exibição não mostrar como o Real
People... Não se lembrar depois, esquecer muito.
A mão dela fechou-se sobre o disco vermelho.
— Qual é a diferença entre «fazer palavras» e falar? É a mesma coisa,
não é? — Abriu de novo a mão, olhando para baixo.
Moon Shadow abanou a cabeça.
— Esta caixa de exibição só mostrar palavras... — Estendeu a mão, fez
qualquer coisa a uma das estranhas construções em cima da mesa. Um prato
escuro e quadrado encheu-se repentinamente de luz, ornamentado com belos
símbolos verdes.
— Não são palavras.
Ele acenou com a cabeça, enfrentando-a com orgulho e exasperação.
— Traçar desenhos com palavras, contar história para os olhos. Eu ver!
— O dedo esticou-se, a unha contornou. — E... Morte. — Calou-se a coçar a
orelha.
Tarawassie deitou fora o disco vermelho.
— Não, não é justo! — Ela segurou-se à mesa com firmeza. — Quero
uma resposta.
Moon Shadow voltou para junto dela. Ela sentiu as palmas frias e
cinzentas a fecharem-se nos seus ombros, obrigando o seu corpo rígido a
sentar-se numa cadeira.
— Calma, Star Woman. Anda mau contigo. Nós ir embora agora.
Amanhã, depois de amanhã...
— Não quero esperar! Quero uma resposta agora! Já desperdicei toda a
minha vida. — Inclinou-se para a frente, apoiando-se nos cotovelos sobre o
tampo duro da mesa, com as mãos presas no cabelo emaranhado e sem vida.
— Então mais um dia não fazer diferença. — Moon Shadow sentou-se
na cadeira ao lado, desastradamente, como se se aborrecesse raras vezes. —
Que Pelo Amarelo saber que ser tão importante? Porquê tu vir aqui? Que te
forçar a vir?
— Ele tinha informações sobre o Poço das Estrelas. — Ela ergueu a
cabeça. — Está situado na Nave de Cristal. Ele fê-lo morrer ou deixou-o
morrer. E... Deixou que a minha mãe morresse. Estava doente e padecente e
ela... Morreu. Eu deixei-a morrer. Deixei-a partir. Mas ele não me levaria.
Quero saber como é que ele julga uma pessoa, e quero saber por que ninguém
tem conhecimento disso!
— E tu pretender saber se espírito da mãe encontrar refúgio.
Ela encontrou os olhos cinzentos, surpreendida.
— Sim.
— Tu ter cerimónia com chitta, depois?
— Depois de ela... Morrer? — Tarawassie acenou com a cabeça. —
Bebi chitta...
— E tu não ter sonho bom.
— C-como soubeste?
— Eu saber. Saber razão da tua vinda... — Moon Shadow mexeu-se na
cadeira, constrangido. — Acontecer às vezes com o Real People, também.
Um morrer, Kith, ter cerimónia com chitta, abrir-se ao espírito, espírito de
amigo morto vir para o meio deles para sempre. Mas às vezes o amigo do
Kith sofrer muito e não deixar entrar espírito. Amigo não ter paz, espírito não
ter refúgio. Aquele que sofrer ter de sair sozinho, procurar, procurar coração.
Quando compreender tudo e... Aceitar tudo, então espírito entrar nele.
Espírito encontrar paz, ele encontrar paz, todos os kith ficar contentes, todos,
outra vez.
— Como é que aceitas perder a única pessoa que tinha importância para
ti, que amavas? Como podes voltar a ter alegria, tendo consciência de tudo
aquilo que não fizeste e não podias fazer e que devias ter feito por essa
pessoa? Limitei-me a deixá-la morrer. E nunca lhe disse, nunca lhe disse... —
A voz embargou-se-lhe quando mergulhou nas águas da dor. — «Amo-te,
mãe.»
— Só morrer o corpo. Espírito sair de nós... Parte de nós. — A voz
grosseira estendeu-se para lhe tocar, como uma mão reconfortante. —
Antepassados viver para sempre, tomar-se parte de amigos. Com chitta, sentir
isto, sentir beleza de espírito quando amigo estar em nós.
Existe um paraíso, é a morte. Tarawassie esfregou os olhos, molhando
as mãos, os arranhões ardiam. Mas aquilo não era o que Andar queria dizer.
— Nós não acreditamos nisso... Que a chitta mostre os espíritos dos
mortos a uma pessoa.
— Não acreditar? — Disse quase sem se ouvir.
— Não. São apenas sonhos, não têm nenhum significado.
— Talvez morte diferente para Star People, o Real People...? — Moon
Shadow procurou o seu reflexo no tampo da mesa. — Mas todas as pessoas
morrer. E os meus antepassados, eles ser espíritos humanos... Mas eu ser
último Starman, e ninguém me mostrar. — Moon Shadow levantou os olhos,
baixou-os outra vez, ela ouviu-o suspirar. — Sair daqui agora, Star Woman,
antes de vir alguém. Tu descansar. Amanhã nós encontrar respostas.
Tarawassie pôs-se de pé, aceitando o apoio do seu braço forte, frágil, e
perguntou a si mesma se existia alguma pergunta que conduzisse a uma
resposta e não a outra pergunta.
***
Quando regressavam ao acampamento de Moon Shadow, Tarawassie
perscrutara o pedaço de céu em busca de um ponto neutro e brilhante da Nave
de Cristal, mas as nuvens, que se iam tomando mais escuras, tinham-se
fechado como uma tampa por cima da cidade. O vento era frio e obrigou-a a
aconchegar-se na capa, ferida e oprimida pelo isolamento de tudo o que lhe
era familiar.
Agora, flocos de neve, pálidos e tremeluzentes, materializavam-se à
entrada do abrigo, enquanto o vento soprava em rajadas nas trevas
longínquas. A neve desfazia-se ao tocar no chão, mas Tarawassie aproximou-
se da fogueira, aquecendo as mãos numa taça de sopa grossa e quente. A
cauda de Moon Shadow atirava paus para a fogueira enquanto ele engolia o
repasto; o pelo mantinha-se afastado do corpo, isolando-o do frio.
— Como... Como aprendeste a decifrar os desenhos com palavras que
nós vimos, Moon Shadow? Como conseguiste... — Ela mediu
cuidadosamente as palavras —... Imaginar o que significavam?
Ela conseguiu ouvir o ruído de satisfação no crepitar da fogueira.
— Saber sempre, porque eu Starman.
— Queres dizer que não aprendeste de nenhuma maneira, em nenhuma
parte? Não há um lugar onde eu possa aprender?
Ele abanou a cabeça disparatadamente.
— Por que é que não me disseste isso? Como é que eu agora vou...?
— Eu mostrar-te. — Olhou para cima, com as pupilas dilatadas,
atrapalhando-a. A mão tremeu sobre o joelho. — Eu mostrar-te, Star Woman,
se tu desejar.
Ela acenou com a cabeça, desesperada de frustração e fadiga.
— Então mostra-me! Mostra-me. — Ela estendeu penosamente a mão.
Ele agarrou-a hesitantemente, puxou-a para ele presa na sua. — Não vai
doer?
Ele abanou a cabeça.
— Não magoar-te. Não magoar a minha amiga.
Resolutamente, ela não a puxou para trás, sentiu os dedos a roçarem no
pano áspero do justilho desbotado, no pelo cinzento-prateado do estômago; o
pelo tinha a consistência das nuvens, o brilho da água. Assustada, vagamente
embaraçada, fechou os olhos quando a mão guiada com firmeza entrou na
bolsa estreita e quente na carne, onde — uma parte do seu ser tentou rir
obstinadamente— onde devia ser o umbigo.
Durante um longo momento sentiu apenas um calor constante, estranho.
E depois, gradualmente, como se os dedos estivessem pousados numa
superfície carregada de eletricidade, começou a aumentar uma sensação de
formigueiro. Como um entorpecimento, abria caminho através dos nervos do
seu braço. Tentou tirar a mão, mas a mão de Moon Shadow prendeu-lhe o
braço.
— Espera! — Parecia uma súplica. O rosto e os olhos estavam
concentrados. — Eu ver... Tu ver.
O formigueiro tomou-se mais forte, chegando quase a provocar dor,
quando alastrou ao ombro e lhe subiu ao rosto. Mas a sensação conseguiu
penetrar no seu espírito, o medo e a expectativa perderam-se numa
tempestade de radiância que tomava mais clara a escuridão. E, para além
dela, os olhos ornamentaram-se do interior com uma estática de imagens
imprecisas, ardentes. Paralisada, acocorou-se, ficando imóvel como uma
pedra, apanhada num sonho intemporal concebido por outra pessoa,
alimentada a partir da fonte de uma percepção desconhecida.
***
Tarawassie começou a pestanejar, a pestanejar, apercebendo-se
lentamente de que via com nitidez, uma vez mais. O centro brilhante como o
fogo, a orla da escuridão povoada de sombras, tomaram forma à sua frente, e
Moon Shadow, prateado e dourado, caiu pesadamente sobre um cotovelo a
olhar com ar espantado.
— Moon Shadow? — Ela fez que a voz chegasse até a ele, sem força
para erguer uma mão.
Ele levantou os olhos, com um olhar vago, abanou a cabeça para ver
melhor.
— Tu... — Ele abanou outra vez a cabeça —... Ver palavras agora? Eu
mostrar-te...
Saltaram imagens por detrás dos seus olhos, fazendo-os lacrimejar.
— Não sei o que vejo. Anda tudo à roda... Coisas que não têm lugar no
meu espírito. — Comprimiu as têmporas com as palmas das mãos, obrigou a
concentração a fixar-se na sua própria realidade. — Não resultou.
Ele acenou grosseiramente com a cabeça, pondo-se de pé.
— Lutar comigo. Eu sentir... Tu entrar dentro de mim, sem querer. Ser
mau. — Ele apontou para a cabeça. — Mau sentir isto, nunca sentir isto com
o Real People... Nunca. — Fez um trejeito, os dentes cintilaram. — Mas os
antepassados, antepassados dizer ser bom! — Olhou fixamente para a
fogueira, as pupilas ficaram reduzidas a ranhuras oblíquas.
Tarawassie massajou o braço. Estava quente e inchado; pintas
vermelhas, como picadas de alfinete, marcavam-lhe as mãos.
— Como pode ser bom, se não resultou? — Ela deitou-se abruptamente
em cima do monte de trapos, inspirando o cheiro a pó e fumo, e enrolou a
capa à volta do corpo. Viu o penacho de pelo orlado e dourado a eriçar-se da
irritação, baixar outra vez. Com um gemido de cansaço ou descontentamento,
enroscou-se à beira da fogueira, afastando-se dela.
A tiritar de frio, com o espírito e o corpo a doer das feridas e da derrota,
acolheu o sono com prazer, que era uma espécie de morte.
Havia muitos sonhos, mas nenhum igual aos que já tivera. Em pormenor
vivo, separavam e ordenavam uma desordem que ela conseguia perceber —
que não perturbava o sono, mas que, por outro lado, guiava o inconsciente até
atingir uma paz mais profunda.
Acordou com um ruído súbito, com uma sensação de totalidade e bem-
estar. Procurando localizar o som, viu Moon Shadow a baixar a cabeça
quando entrou no edifício, desenhado em silhueta sobre um brilho intenso,
plúmbeo — e a afastar-se ao longo da parede, a transpor uma porta fechada à
chave, assinalada com um letreiro: SAÍDA.
Moon Shadow avançou em direção a ela, em direção à fogueira; as mãos
seguravam duas carcaças pequenas de kirvat e um emaranhado estranho de
três tiras de couro e três pedras redondas enroladas na ponta da cauda. Viu o
bafo a congelar quando ele se aproximou, viu, quando a luz da fogueira
iluminou o seu rosto, a desilusão, que tomava mais fina a boca sem lábios.
Deixou cair as duas carcaças pequenas de animal perto da fogueira e
acocorou-se, tirando o punhal do cinto.
— Moon Shadow. — Ela sentou-se, recordando-se de tudo,
repentinamente (uma novidade para ela), envergonhada. — Moon Shadow,
olha para aquela palavra! Saída! Sei o que significa. Eu sei... Ler! — Disse,
na esperança de que aquilo tivesse mais significado para ele que qualquer
desculpa. — Tu mostraste-me!
A cabeça rodou, os olhos procuraram o seu rosto, a raiva esquecida.
— Sim? Sim? Ser verdade, Star Woman? Mostrar-te bem?
— Sim! — Ela acenou com a cabeça, o riso aflorou-lhe os lábios, vindo
do fundo do seu ser. — Tudo se encaixa, compreendo tudo... — Sentiu
fragmentos de novas recordações, mais estranhas, a redemoinharem no
perímetro da consciência.
— Talvez — Moon Shadow hesitou, lutando com alguma emoção que
ela não entendia —, talvez agora eu ver o que tu ver. Eu não perceber bem as
palavras. Mas o teu espírito entrar no meu, como o star people há muito
tempo atrás. Talvez tu mostrar a mim o que tu... Ler. Eu mostrar-te tudo o
que eles saber.
— Juntos podemos encontrar todas as respostas! E então... — Ela calou-
se, franzindo as sobrancelhas. — E então...
— Agora nós ir ao lugar das palavras. — Moon Shadow acenou
impacientemente com a cabeça. Ele continuou a arranjar as carcaças, e ela
não olhou para ele com os mortos.
***
Em primeiro lugar Tarawassie dirigiu-se ao leitor que já continha uma
fita magnética na alcova exígua da biblioteca deserta, onde Andar guardara as
suas verdades. Moon Shadow estava curvado perto do seu ombro, guiando as
mãos dela na fila de botões do leitor, dando instruções num tom recitativo,
como se as tivesse aprendido de cor com um professor desconhecido. Ela
alegrou-se com a sua recém-descoberta inteligência, quando começou a
identificar sons com símbolos, um após outro; e depois palavras inteiras, uma
frase completa. A inteligência elementar daquele que criara pela primeira vez
símbolos, concebidos como sons para preservar um pensamento através de
milhas de distância ou milhares de anos, encheu-a de coragem e esperança.
E, no entanto, uma pequena parcela do seu espírito rebelava-se contra o
tédio grosseiro e insuficiente de palavras e símbolos. Tão sem significado, tão
inútil, tão desnecessário, quando se podia mostrar simplesmente. E,
surpreendida com a clareza da verdade, não a reconheceu como sua, mas
como o receptáculo de uma resistência obstinada, embrutecedora, que
pertencia a Moon Shadow, para quem o número excessivo de palavras não
passava de uma confusão do essencial. Para Moon Shadow, para os nativos,
somente os padrões mais evidentes da vida quotidiana precisavam de
palavras. Para eles nenhum pensamento, sentimento, conhecimento ou
erudição mais íntimo ou complexo seriam revelados e partilhados
diretamente, de espírito para espírito. E a própria atitude do emissor era
igualmente transmitida, fixando uma matriz completa de atitude-ideia na
mente do receptor.
O seu próprio espírito tinha uma matriz de experiência alheia que lhe
permitia separar as suas convicções das dele — e, todavia, ela quase não dera
por isso. Crescer num grupo onde a própria absorção de fragmentos da mente
de outra pessoa era algo que começava mesmo antes do nascimento — como
é que alguém se poderia conhecer a si mesmo a partir das atitudes que o
constituíam? Dos pais, dos vizinhos? Dos antepassados?
Moon Shadow olhou para ela, como se sentisse os seus olhos fixos nele;
sorriu com um olhar interrogador, sem precisar de palavras.
E, pegando numa frase de cada vez, sempre com menos dificuldade, ela
começou a ser.
***
Quem pode venerar a morte e viver? Um credo, e um epitáfio. Existe um
paraíso, é a morte...
Tarawassie afastou-se do prato do leitor, com um movimento rígido,
como alguém petrificado por uma visão terrível. A beleza horrível da morte
passara pelos seus olhos, oculta nas geometrias simples das palavras
gravadas... O cheiro forte e desagradável da morte enchera o seu ser naquela
tarde, e ela obtivera a resposta...
Moon Shadow passara a primeira parte do dia em passeios nervosos até
à entrada do edifício — a montar guarda, disse ele, para o caso de o seu povo
mandar alguém à procura dele. Mas agora estava deitado no chão, a dormitar,
perdendo a paciência e o interesse pela investigação tortuosa de Tarawassie.
Não o acordou, perguntando a si mesma como iria — como poderia —
revelar-lhe esta verdade: que o seu povo se suicidara — individualmente,
coletivamente, o planeta inteiro. Tinham venerado a morte, não como um
meio para atingir um fim, mas como um fim em si. Eles tinham morrido —
morrido de uma maneira que ela nem sequer podia compreender —, mortos
pelas suas próprias mãos, num êxtase de necrofilia. E o seu mundo morrera
com eles, deixando os seus ossos espalhados por toda a parte, expostos ao
tempo e à ruína, a serem devorados pelo tempo, deixando à deriva um
punhado de vivos, como a última carne no esqueleto da cidade que se
esboroava. E ela estava viva... Sozinha... No meio de mortos vivos. Mas
porquê...?
Uma mão roçou no seu ombro; ela estremeceu.
— Algum problema, Star Woman? — As primeiras palavras que Moon
Shadow lhe dirigira, repetia-as agora e, desta vez, ela conseguiu decifrar a
expressão do seu rosto. E, decifrando a incompreensão no dela, ele disse
brandamente: — Eu... Ouvir-te.
Ele virou o rosto.
— Está tudo errado. Quando mais procuro, mais respostas descubro,
mais me arrependo de ter começado. E, no entanto, mais quero saber. Por que
é que me aconteceu isto? Eu era feliz!
— Que tu encontrar nas palavras? Ser mau? Tu tentar mostrar-me e... Eu
sofrer contigo. — Ele ficou parado, expectante, roçando um pé no outro,
como se aquilo fosse uma oferta, uma oferta que não estava acostumado a
fazer.
— Não posso. Não posso revelar-te uma coisa tão horrível sobre... Sobre
nós.
— Sobre o Star People?
Ela acenou com a cabeça.
— Não precisas saber, ninguém devia saber!
Ele tentou encontrar palavras.
— Tu mostrar-me, dor sair de ti... Sofrimento partilhado. Eu saber. Eu
precisar, mas ninguém partilhar comigo... — Brincou com um disco. —
Precisar, precisar partilhar com alguém! — Os dedos crisparam-se; o disco
saltou de um lado ao outro da superfície polida.
Assustada, foi apanhada por uma recordação da infância — tão
brilhante, tão inatingível como as profundezas estreladas de um poço no céu.
Os braços da mãe, o arco-íris da túnica da mãe, o murmúrio sonhador da voz
da mãe a abafarem as lágrimas de uma mágoa perdida. «Não chores, não
chores. Mãos partilhadas, corações partilhados, tomarão leve o fardo, querida
Tara...» Tarawassie acenou com a cabeça silenciosamente, e estendeu a mão.
Desta vez, porque não receava a dor, a dor quase não existia na erupção
vibrante que lhe subia pelos nervos. E, desta vez, era como se os ruídos
estáticos no cérebro sugassem uma parte das suas costas através da ponte de
eletricidade viva que os unia, como se engolisse as imagens fragmentadas.
Lutando contra o ruído mental, estonteante, evocou o êxtase maligno da
morte que saíra do passado para destruir o futuro, o mundo do seu povo. E,
trazendo consigo a imagem do passado, deformada, a sua confusão e
isolamento infiltravam-se na consciência de Moon Shadow... Foram
partilhados... Foram suavizados pela sua aceitação.
Mas depois, como se as imagens tivessem premido um botão no fundo
do seu cérebro, a memória de Moon Shadow começou a encher o seu espírito
com uma imagem análoga. E, subitamente, ela era Moon Shadow, numa
mudança rápida, confusa. Viu-se com os olhos de outra pessoa, viu-se como
uma desconhecida, sentiu pelo prateado a crescer no cimo da cabeça com
estupefação e incredulidade... Mas, quando submergiu numa sensação
estranha, verificou que aquela memória não era só de Moon Shadow, e que
fora sugada, quando ele perdeu o controlo de outro espírito — um espírito
humano, preservado no interior da matriz da memória de Moon Shadow e
que subia ao presente das profundezas do passado de gerações.
***
O seu nome (não Tarawassie, quem era Tarawassie?) era Shemadans.
Shemadans. Voltou a repeti-lo para estabilizar. O coração batia depressa de
mais. Sentiu o cordão do saco dos medicamentos a cortar-lhe o ombro
(Tarawassie fez um trejeito), dolorosamente real. Viera à cidade somente para
ir buscar mantimentos, mas agora regressava ao acampamento com um fardo
infinitamente mais pesado — a percepção dos seus piores receios: a
sabotagem do transportador. Tentou afrouxar o passo, sem se afastar das
arestas umbrosas da rua apinhada de gente. (Tarawassie lançava olhares
desvairados, o pânico alimentava-se da imensa massa humana.) Um pó fino
de neve cobria o chão debaixo das botas. Tarawassie/Shemadans olhou para
as películas de neve suspensas nas trepadeiras, notou com surpresa que já não
tinham utilidade, que as folhas das trepadeiras estavam a ficar cinzentas da
geada...
Umas mãos fecharam-se nos seus ombros; ela quase gritou. Mas o rosto
duro fitou-a da cabeça aos pés, sem expressão; o desconhecido endireitou-se
e continuou a andar. Tarawassie/Shemadans, a tremer, respirou fundo. Era tão
difícil, tão difícil não deixar de crer que era uma historiadora cultural, e não
uma exilada assustada...
Constatou com satisfação que perto dela ninguém se apercebera do
pânico que se apoderara dela; todos eles eram desconhecidos, agora —
estranhos à realidade. Passavam por ela, indiferentes a ela, indiferentes ao
frio, ao dia, ao mundo — cultistas da morte, envoltos num cobertor de sonhos
de chitta, a pensarem que sonhavam com a morte. Sentiu um cheiro
ligeiramente repulsivo ao passar no espaço estreito entre dois prédios;
desesperada não olhou para o lado... Porque sonhar tornou-se uma obsessão
e, se eram impedidos de sonhar, quem podia venerar a morte e viver?
Tinham enlouquecido todos! Agora nenhuma parte da sua mente negava isso.
E aquilo acontecera tão depressa... Por mais quanto tempo podia esta cidade
ou esta colónia continuar a existir, antes de a loucura outonal se transformar
no último Inverno para quem nunca haveria uma Primavera? Que faremos se
o nosso mundo morrer? Não podemos abandonar os nossos amigos! Oh.
Basilione, Basilione... Ela continuou a correr, com o saco dos mantimentos a
bater-lhe na perna. Dobrou a última esquina, viu as pegadas na neve onde ela
as deixara. O que irá ser de nós, agora que destruíram o transportador?
Estendidos na cobertura cor de laranja da vereda coberta de neve, um
objeto brilhante, impossível de se identificar, um monte de farrapos salpicado
de vermelho... Um suicídio? Oh, não. Não! Shemadans parou, gritando
dentro das paredes protetoras do seu espírito, presenciando em microcosmo a
morte de um planeta...
— Não... Não... Não. — Tarawassie voltou para dentro dela, com os
gritos de pavor de outra pessoa a apertarem-lhe a garganta. — Moon
Shadow! — Tapou a boca com a mão dorida, engoliu o sabor amargo do
medo. — Que... Que aconteceu? Quem era? Não eras tu!
Moon Shadow abanou a cabeça. Ela viu os efeitos do terror partilhado a
desaparecerem no seu rosto quando os olhos dele se fixaram.
— Tu chamar, chamar espírito do antepassado, chamar Shemadans... —
Ele debateu-se com a palavra —... Quando tu mostrar. Memória chegar à
memória.
— Ela era humana... — Tarawassie começou finalmente a compreender
como devia ser verdadeira a exigência de um Starman, um humano, um kith
perguntara sem saber, e a pergunta tinha sido respondida — por uma visão do
seu próprio passado (a recordação das ruas cheias de vida surpreendeu-a uma
vez mais), que, de certa forma, passara a fazer parte do dele. Como é que
aquilo acontecera? Há quanto tempo? E que acontecera a Shemadans? De
repente, sentiu um desejo enorme de saber, de saber mais sobre esta sua nova
faceta, deste mundo novo que se lhe abria.
Porque ela já sabia que tudo o que Shemadans receara acabara por
desaparecer; sabia que o povo, o seu mundo, tinham morrido por cauda da
chitta. Agora Tarawassie via isso com tanta clareza na paralaxe angustiada da
perspectiva de Shemadans e da dela. E ela, como que paralisada, perguntava
a si mesma como é que este último punhado de pessoas conseguira
sobreviver tanto tempo nesta imitação de morte — nesta imitação de vida.
Moon Shadow tocou-lhe no braço, fazendo-a abandonar o sonho.
— Ir já? Estar aqui há muito tempo, escurecer. O meu povo ver luz, vir
castigar-me... — Ele hesitou, baixando o olhar. — Eu partilhar contigo coisa
má. Eu tornar menos duro. Eu ser teu amigo?
— És. — Ela acenou com a cabeça, ainda não sabia ao certo se a
resposta que ela encontrara na revelação diminuíra a angústia ou servira
apenas para aumentar, mas tendo consciência de que, de certa forma, era
muito importante para ela agradecer-lhe o tê-lo partilhado com ela. — Sim,
obrigada... Meu amigo. — Ela descobriu um sorriso. E agora que aquela
pergunta fora respondida, sabia que descobrira a fonte do saber autêntico, e
que nunca a poderia deixar até a esgotar. — Moon Shadow — ela estendeu
de novo a mão, esquecendo a advertência dele —, mostra-me o que
aconteceu aos teus antepassados, o que aconteceu a Shemadans.
Ele pegou-lhe na mão. Desta vez não sentiu nenhuma surpresa, quando o
seu espírito e de Moon Shadow se concentraram na pergunta, na sua
necessidade de falar, e o deixaram mergulhar nas profundezas dos
conhecimentos dela/dele, em imagens fragmentadas pela transmissão do erro
e da imperfeição ao longo dos anos, mas que continuavam a surgir para o
deixarem ver através de olhos ancestrais sempre que uma carência ou visão
desta cidade antiga os chamava para o guiarem...
Um instante passageiro estava mudada outra vez. Possuindo ainda mãos
esguias e cinzentas, uma barriga prateada e brilhante, mas não era Moon
Shadow, Tarawassie olhou para um rosto humano, o rosto de um homem
contorcido pela dor. Ela acocorou-se por baixo da saliência carbonizada de
uma barraca calcinada, precisando de toda a sua energia para absorver aquela
dor terrível, quando tentou confortá-lo...
E outra vez. Ela transformou-se num homem — um homem, desta vez. O
seu nome era Basilione (Shemadans — onde estava Shemadans? Onde estava
Tarawassie?)...
***
Basilione virou-se um pouco, baixando a mão, desviando os olhos do
cortejo de veículos da nave que ainda se dirigiam para o acampamento ao
longo do vale junto ao rio. Shemadans...
Certificou-se de que ela estava ao seu lado, um volume informe de roupa
pesada, só se via o rosto corado do frio debaixo do capuz. Ela olhou para trás,
fixando primeiro o rio e depois ele, quando este se virou, como se os seus
movimentos fossem um só. O seu rosto ficou mais sereno quando encontrou
o sorriso dele. Estendeu a mão quando este estendeu a sua, aproximaram-se
um do outro, o movimento atraiu os amigos para junto deles, todos, como
devia ser.
Mas todos não... Ele afastara uma parte — a parte vulnerável, a parte
nativa (o espírito dela/dele protestaram contra a necessidade de uma
distinção, naquele momento). Porque aquilo não era apenas um grupo de
homens que se aproximavam lá em baixo, ele tinha a certeza disso; era uma
turba. Virou-se mais adiante, olhando para trás, no meio de dúzias de rostos
tensos e ansiosos dos amigos. O gemido forte dos veículos da nave, que se
aproximavam, ouvia-se constantemente. Por entre a tundra arrastada pela
neve, perto do acampamento ordenado e deserto, ele podia ver os abrigos
esquálidos, inadequados da principal aldeia nativa, onde este grupo de
sobreviventes desgraçados pela invasão humana vivia sobre líquenes e larvas.
Todos os nativos tinham fugido ao primeiro sinal de distúrbio.
O olhar de Tarawassie/Basilione movia-se mecanicamente através da
paisagem demasiado familiar, abandonada pela glaciação que se afastava — a
superfície de um rochedo escavado, o cascalho de moraina, o pó fino e estéril
que jazia sob a neve, que um dia varreria o sul para pousar nas terras de
cultivo... Mas ali, por baixo da margem do lago glaciar, esta terra era tão
árida como a Lua, e o Real People estava à beira da extinção, e odiava a sua.
Meu Deus, já tinham passado nove anos desde que viera de
transportador do seu planeta? Apenas nove anos, desde que chegara ali para
constatar que os nativos eram sub-humanos, e ele mesmo estava convencido
de que não podiam evoluir, não passavam de animais? A vergonha tremeu
dentro dele. Mas não, já não era preciso sentir vergonha. Esse fora uma outra
pessoa, um homem diferente...
Um ataque forte de memória mostrou-lhe a sua pátria, o seu planeta, o
homem que tinha sido. Primavera — e ele atravessara o pátio antigo da
universidade, ainda com o odor das árvores floridas no ar, para entrar na sala
de conferências onde os estudantes só tinham lugares em pé, porque o seu
mundo só tinha lugares em pé. Um mundo onde ele e a mulher receavam a
intimidade, mesmo entre os dois, porque nesse tempo intimidade significava
uma multidão e nada mais.
Agora estreitava a mulher nos seus braços, sentindo a intimidade mais
profunda de espírito que partilhavam um com o outro e com os amigos —
devido à revelação. Agora nada os podia separar, nem o ostracismo do Real
People nem a raiva dos homens lá em baixo. Se ao menos pudessem fazer
que alguém visse — fazer que ambas as partes compreendessem o que
mantinha os kith unidos, quando enfrentavam a opressão e a perseguição, a
alegria que sentiam em não partirem, as coisas que aprenderam juntos —
coisas que não podiam alcançar isoladamente...
Shemadans encostou-se ao corpo dele; ele ouviu alguém a sussurrar
penosamente a uma criança a espirrar ao vento frio. As quatro pegadas na
neve deixaram de se ver, cinquenta metros abaixo deles. Ele não os perdeu de
vista, enquanto os vigilantes desciam... Quinze... Dezoito... Vinte e quatro;
viu-os apontar e começar a subir a encosta em direção aos terrenos da
universidade. Semicerrou os olhos no vento, começando a distinguir detalhes
— os rostos duros, vingativos, o brilho de luz nas armas, as parkas,
ornamentadas com pele de ébano de um ancião chacinado, o branco-prateado
de uma criança assassinada. Cerrou os dentes para reprimir um grito de dor
que saía de recordações não apenas dele. Shemadans gemeu em voz baixa,
encostando um pé ao tornozelo, como se fosse correr se pudesse. Atrás dela,
Pamello soltou uma praga:
— Carniceiros...
— Não! — Mais para si mesmo. — Podemos dominar a situação, se não
nos descontrolarmos! Sabíamos que eles podiam vir. Desta vez temos razão
para estarmos furiosos e cheios de medo. Uma razão. — Lembrou-se da
reunião do kith há três semanas, quando Shemadans voltara com as notícias
sobre o transportador e a deterioração da cidade.
E aqueles humanos tinham percorrido os quatrocentos quilómetros em
carros para a neve desde a cidade, não em veículos velozes da Polícia da
colónia, que no passado tinham devastado o acampamento. Agora tudo se
desagregava mais rapidamente, estimulado pelo medo. Por assim dizer, estes
homens já nem eram oficiais; desta vez estavam ávidos de sangue.
— Que é que vocês querem daqui? — Perguntou ele.
Os colonos pararam na encosta, a cinco metros dele. Agora via
perfeitamente as terríveis armas de projéteis apontadas para o seu povo, para
ele.
— Fica onde estás. Tu sabes o que queremos. Queremos os teus amigos
— o seu chefe fez questão em continuar a usar uma linguagem obscena —,
amante de cangurus! Onde estão?
— Ele já tinha visto aquele homem ou apenas muitos com ele, muitos
rostos que se tomaram anónimos por causa de um fanatismo cego...
— Foram para um sítio onde não os descobrirás. — Os seus olhos
varreram a turba anónima.
— Havemos de os encontrar. — O chefe fez um sinal, mandando um
grupo para revistar as tendas e o acampamento nativo do outro lado. — E,
quando os encontrarmos, podes ver o que lhes fazemos por terem destruído o
nosso planeta.
— Sabemos o que os cultistas fizeram ao transportador. — Basilione
falou suavemente, sem levantar o tom de voz, com um esforço. — Sabemos
que cortaram as comunicações para que mais ninguém possa juntar-se a nós.
Mas estes nativos não são os responsáveis!
— Então de quem é a culpa? E a chitta que está a destruir o nosso povo,
a enlouquecer-nos a todos! Planearam isto para se apoderarem do nosso
planeta!
— Nós apoderámo-nos do planeta deles. — Ele tinha de se incluir
conscientemente na humanidade. — Pensas que um bando de... De
«cangurus» era capaz de planear uma vingança como aquela? A culpa foi
nossa por perdermos o controlo da chitta.
E, no entanto, ele lembrava-se que Shemadans tinha dito que era uma
espécie de vingança, uma espécie de justiça irónica. Quantas vezes na história
da humanidade houve grupos «primitivos» como o Real People que foram
dizimados e desmoralizados pelos defeitos de uma tecnologia superior? E,
desta vez, fora ao contrário...
— Não vês que o que fizemos aqui estava errado? Temos de mudar se
queremos salvar alguma coisa, as nossas vidas, deste desastre. Temos de
trabalhar em grupo, temos de trabalhar com os nativos...
A sua voz continuou a correr, tropeçando, caindo sobre palavras
desarticuladas, palavras que nunca poderiam captar a essência daquilo que
devia ver através dos olhos de outro ser, para as deixar absorver por seu turno
uma parte de si mesmo e para saber que essa parte viveria para sempre... Se
ao menos lhes pudesse mostrar como o seu egoísmo humano, inveterado,
tinha sido alterado pela presença de outros pontos de vista, por outras
mentalidades; como diminuíra a preocupação de todos os humanos em Camp
Crackpot com eles mesmos, como se tomaram mais tolerantes como eles
mesmos e com os outros — mais interessados com a estabilidade que
parecera sempre fugir à humanidade.
E o real people, também tinha sido mudado pela revelação. Para a sua
espécie, a estabilidade do ritual da revelação transformara-se numa
especialização excessiva, que perpetuava a mediocridade, que rejeitava a
mudança ou a inovação. Partilhar com os humanos contaminara os amigos de
Starman (sentia um orgulho perverso no epíteto nativo) com a ideia dos
humanos de que a mudança era conveniente. E nenhum humano era capaz de
gravar os segredos da tecnologia na mente de um membro do Real People,
diretamente, permanentemente, dando-lhe um conhecimento instintivo de
coisas que a armadilha da evolução lhes teria negado para sempre.
E tudo o que aprenderam podia ser ensinado, instantaneamente, sem
custo, a outro humano.
— Que poderia trazer a cada um de nós a união dos nossos povos senão
o bem? Nunca houve uma união complementar de culturas diferentes, mas
podíamos tê-la agora! Juntos somos capazes...
— Cala-te! — Gritou o chefe da turba, levantando a arma. — És tão
reles como aqueles malditos tontos... Pior! Não somos obrigados a ouvir os
teus disparates. Não precisamos de ouvir isto de um bando de excêntricos,
que adoram animais! Desfaçam este acampamento, façam-no em pedaços,
deitem-lhe o fogo! Desfaçam tudo! O acampamento principal também, não
deixem nada! É assim que eles o querem, deixem-nos morrer todos de frio.
— Ergueu os braços, fazendo dispersar a turba.
De repente, como se o tempo se tivesse virado do avesso,
Tarawassie/Basilione viu a turba começar a dispersar com a água, viu a
pequenita de Pamello pegar numa pedra lisa e redonda, levantá-la e
arremessá-la com força. Viu-a bater em cheio na cara de um homem. O
sangue jorrou, vermelho em contraste com o céu plúmbeo, quando ele ouviu
Shemadans gritar:
— Não! — Mas era tarde de mais, tarde de mais. Vivendo um pesadelo,
viu as armas a virarem, a serem apontadas, mas não se conseguia mexer, e era
tarde de mais, tarde de mais até para correr...
***
Tarawassie recuperou os sentidos, curvada sobre os joelhos, a soluçar
com dores. Endireitou-se lentamente, afastando as mãos do peito. Olhou
fixamente para eles durante um longo momento, olhou para a capa desbotada.
Mas não havia sangue, nem dor, nem necessidade de arrancar a vida da
garganta, tossindo, naquela biblioteca abandonada...
Um gemido, suave, pungente, chegou-lhe aos ouvidos quando os soluços
secos abrandaram. Moon Shadow estava reclinado na cadeira, com os olhos
fechados e as mãos sobre o peito.
— Moon Shadow — mais fraco que um sussurro, — que nos aconteceu?
Que aconteceu? Nós, eles, morreram todos? Todos?
A cabeça dele moveu-se apaticamente, em sinal de negação.
— Eles a mim. Eles a mim. Só eles... — Respirou fundo, abrindo os
olhos.
— Mas eles foram assassinados. Morreram!. E, de certa forma foi tão
real, aconteceu dentro dela, que acreditara. — Curvou-se, com as mãos
entrelaçadas à sua frente sobre o tampo da mesa, quando a bruma de imagens
e derrota começou a levantar, dando-lhe uma visão mais clara e objetiva de
tudo o que vira. E, subitamente, compreendeu o significado da palavra nativo.
— Moon Shadow, tu... Odeias-me? A turba deviam ser os meus antepassados.
E todos os humanos, aquilo que eles fizeram ao teu povo... — As memórias
de imagens de atrocidade surgiram, tão vivas como se ela as tivesse visto
fazer passado... Passados quinhentos anos. Não compreendia o espaço de
tempo. — Sou como eles? — Lembrou-se dos seus próprios sentimentos em
relação aos nativos, a boca cerrou-se.
Moon Shadow abanou a cabeça, sem a olhar.
— Tu diferente deles, Star Woman. Tu como os meus antepassados. Tu
como... Tu como eu.
Basilione não tivera vergonha, porque o fanático era outro homem...
— Sim — ela acenou com a cabeça —, e... Eu acho que tu és mais
parecido comigo que ninguém que eu conheço. — Deu uma gargalhada,
muito brandamente, quando se apercebeu da implicação do que dissera. —
Agora... Mas ainda não sei o que sou.
— Tu minha amiga. — A mão de Moon Shadow tocou no peito. Sorriu.
— A minha amiga.
Um prazer claro, crescente encheu-a como uma luz, quando abarcou o
significado mais profundo da palavra.
— E, seja como for — formaram-se de novo sombras por detrás dos seus
olhos —, o que se fez, foi feito há muito tempo... Ao teu povo e ao meu. A
vossa chitta levou os humanos à ruína, no final. O teu povo é o herdeiro
deles. Tudo o que lhes pertenceu foi-te legado, para que possas provar como
estavam errados quando te julgaram.
— Talvez — Moon Shadow encolheu os ombros, os colares
chocalharam. — Nós viver aqui há muito tempo na cidade dos humanos, mas
ninguém querer magia, ninguém usar! Dizer ainda já conhecer melhor
maneira, não precisar de outra...
— Mas se o Real People é tão primitivo como o que Basilione conhecia,
ele não teria mudado...?
— Coisas insignificantes! Coisas estúpidas. Não coisas importantes.
Poucas.
Tarawassie abanou a cabeça, esfregando as mãos uma na outra, coçando
os braços.
— Mas... Mas as recordações que tens, Moon Shadow. Não podiam
mudar ainda o teu povo com a tua ajuda?
— O meu povo não me deixar mudá-los! — Abanou a cabeça em sinal
de negação. Levantou-se, esfregando o pé no tornozelo num gesto
estranhamento familiar. — Nós ir agora, antes de eles chegar.
— Moon Shadow, espera. — Ela agarrou-o pelo pulso quando este se
levantou. — Mostra-me mais uma coisa, por favor. Ainda preciso de
encontrar a resposta à primeira pergunta que eu... Eu nunca fiz a mim mesma.
Estendeu a mão, o espírito criava uma imagem do Poço das Estrelas. — Seja
como for, alguém no teu espírito deve ter conhecido a Nave de Cristal, o
Poço das Estrelas...
Moon Shadow deixou-se cair com relutância na cadeira, rendendo-se
como um pecador torturado entre o medo e o êxtase. Viu-o fechar os olhos
quando a sua mão dormente deslizou de novo para dentro das pregas quentes
da bolsa, sentiu o prazer a enchê-lo e a apoderar-se dela quando a corrente os
uniu uma vez mais.
***
Shemadans deixou-se cair de pernas cruzadas no seu lugar no círculo de
amigos ansiosos. (Tarawassie olhou através dos olhos dela, recusando-se a
acreditar, para o rosto sombrio, preocupado, de Basilione, para os rostos de
uma dúzia de outros humanos misturados com rostos nativos — todos vivos
— ainda vivos? Shemadans olhou por entre o duplo círculo de rostos, viu a
parede cinzenta da tenda erguer-se com as rajadas frígidas do vento da noite
ao longe. Ordenou os pensamentos que tinham sido só dela durante os
quatros longos dias desde o seu regresso da cidade. Começou a falar, mesmo
quando apareceu a Hunter’s Luck à sua esquerda, pensando que num grupo
com aquele tamanho, ainda havia um lugar e uma ocasião para o emprego de
palavras...
— Desta vez as notícias são muito más. As camadas de neve cederam, a
cidade está a degradar-se, não ficaram pessoas em número suficiente que se
preocupem em fazer alguma coisa. Sessenta por cento já deve estar a usar a
droga, vejo-as em toda a parte. Vagueiam como zombies, quase não
satisfazem as suas próprias necessidades e ignoram o resto... E, se se veem
privados de chitta, eles... Eles matam-se! É verdade, eu mesma vi. Os outros
ficaram obcecados com as mortes. Fascina-os. E já não há chitta que dê para
todos. — A consciência de que não estava sozinha com a recordação fluiu de
novo para dentro dela desde Hunter’s Luck, reconfortando-a...
(E Tarawassie compreendeu, finalmente que tudo aquilo acontecera
antes do confronto final. Shemadans, Basilione, tudo o que não morrera, não
morreria nunca; continuavam a viver — nos corpos dos seus descendentes.
Eles eram Moon Shadow. E agora seriam uma parte dela, enquanto vivesse.)
Shemadans puxou para trás o capuz da capa, concentrando-se de novo
no presente, tomada de tristeza.
— Mas isso não é o pior. — Tarawassie/Shemadans viu os rostos deles,
as cores da carne, as cores da pele a fundirem-se continuamente.
Os cultistas sabotaram o transportador. — Ela retesou-se para enfrentar a
onda de gritos e perguntas, os rostos chocados. — Mas esperem! Esperem.
Eles desmantelaram apenas o receptor, o transmissor não. Ainda podemos
partir, se quisermos. Os humanos podem. Ela baixou os olhos.
— Mas ninguém pode vir ter connosco? Ninguém do nosso planeta? —
Perguntou Basilione.
Ela acenou com a cabeça.
— O dano era irreparável. Os cultistas queriam ter a certeza de que
ninguém podia passar para os deter. Se as pessoas querem partir, eles não
querem saber disso. Eles ficam contentes, contentes por as verem partir... —
Ela imaginou-os a amontoarem-se como moscas na estação do transportador,
arrastados por fantasias mórbidas para contemplarem o cadáver de um que
morrera à deriva em linhas de força azuladas, no meio das estrelas (O
transportador? Tarawassie agarrou-se freneticamente ao fragmento de
imagem — o Poço das Estrelas, o Poço das Estrelas? — mas o espírito de
Shemadans deslocava-se como dunas de neve)... Eles só são violentos com
eles mesmos. Mas os que não estão drogados já estão a entrar em pânico, e
entre estes dois...
— Esta colónia está condenada, no meio dos zombies e das populaças.
— Basilione acenou com a cabeça. — Não é que nós não tenhamos visto que
isto ia acontecer...
— Contribuímos para que acontecesse — disse alguém. — Virá do
nosso planeta, quando os humanos receosos passarem, contam tudo. Os
humanos vão voltar em naves.
— Mas isso vai levar quarenta anos, pelo menos — disse outro.
— E se não vier ninguém... Agora o que vai acontecer ao nosso planeta?
Separar-se-ão se não conseguirem trazer colonos para este planeta.
— Que acontecer aqui, agora? — Tarawassie/Shemadans virou a cabeça
para olhar para Beautiful Sky, cuja vida Basilione salvara, que fora a primeira
membro do Real People a partilhar com um humano. — Os enraivecidos
talvez culpem o Real People. Isto... Culpam-nos também. Então para onde
vamos, que fazemos?
— Talvez não tenhamos de nos preocupar — disse Shemadans
brandamente. — Talvez os humanos se suicidem, talvez se matem uns aos
outros. E o Real People só terá de esperar um pouco mais, e este voltará a ser
o seu planeta. — E esta tragédia provocou-lhe náuseas, mas não pôde negar a
sua justiça.
Ela imaginou o transportador e os fios frágeis que prendiam tão
subtilmente este planeta à realidade, à sanidade; imaginou um já partido — e
o abismo sombrio (Andar, que dissera Andar? Por favor, Tarawassie gritou
silenciosamente, recitando mentalmente: «Para passar o dragão e entrar no
abismo sombrio. Por favor, mostra-me, mostra-me, agora!) E,
obedientemente, o espírito de Shemadans deslizou mais fundo na memória,
encontrou o poema:
Quem se decomporá? Quem coagulará?
Que passará o dragão e entrará no abismo sombrio?
Silenciosamente, sem movimento ele entra no oceano.
O poema de Grattan, o poeta-pintor, que captara, para Shemadans, a
experiência rústica de um rito de passagem, para animar a substância fria do
seu conhecimento da função do transportador...
E Tarawassie absorveu tudo o que Shemadans sabia do Poço das
Estrelas: uma estação de transportador (a nave, a Nave de Cristal!) fora
enviada para este planeta a partir de outro, que era um dos muitos planetas já
unidos por poços de estrelas. Durante quarenta anos, uma nave percorrera
distâncias inimagináveis para depositar matérias cruciais para a fundação de
uma colónia e para o estabelecimento de uma passagem ali no término da
viagem. A passagem era o Poço das Estrelas, fixa no centro transparente da
nave desmantelada que girava interminavelmente sobre o planeta deles, uma
passagem que deixava que a humanidade atravessasse o abismo entre as
estrelas quase no mesmo espaço de tempo que levava a transpor uma soleira.
Mas aqueles que decidiram atravessar pagaram o preço máximo, porque
a passagem entre os planetas era a da morte. O corpo tem de ser abandonado,
antes do espírito — a essência? Cada viajante podia atravessar a escuridão e
renascer à luz de outro Sol. Por um processo que nem sequer
Shemadans/Tarawassie podia imaginar, o mecanismo do Poço das Estrelas
captava a forma, o objeto precioso que fazia de cada homem e de cada
mulher um ser único, é a transmitia, deixando para trás a película exterior de
carne, recriando o ser idêntico num corpo idêntico no seu local de destino.
Mas quem se decomporia, quem coagularia? Todas as pessoas que
resolveram empreender a viagem tinham de compreender e aceitar a realidade
da sua autodestruição. E Tarawassie compreendeu que fora essa a razão por
que o poço nunca aceitara nenhum humano que ela conhecia, antes da mãe e
Andar. Apenas Andar conhecera a verdade. Somente a mãe e Andar estavam
preparados para passar e entrar no abismo sombrio — como outrora devia ter
acontecido com os humanos, aceitando a morte sem vacilar,
inconscientemente, como uma transição, sem nunca verem os seus corpos a
vaguear sem vida atrás deles, conscientes apenas da chegada, da renovação...
— Mas isso significa — dizia Pamello (o espírito de Shemadans
regressou ao presente, o de Tarawassie ao passado) — que durante as nossas
vidas, pelo menos, é possível que se torne tudo mais difícil para nós. Mesmo
que os colonos nos deixem em paz, não teremos acesso ao equipamento, aos
mantimentos. A questão é: podemos sobreviver a isto, agora?
Shemadans abanou a cabeça.
— A questão é: somos capazes de abandonar os nossos amigos?
Ninguém é obrigado a ficar aqui. Mas quem deixar este planeta não pode
regressar. Eu sei isso, no que me diz respeito, agora esta é a minha terra. O
meu lugar, o nosso lugar, — ela olhou de relance para Basilione — é aqui,
aconteça o que acontecer. — Ele sorriu; os seus dedos apertaram os dela
sobre a esteira de pele no meio deles.
— Nunca ninguém disso que alguém queria partir — disse Pamello, um
pouco asperamente. Linhas de preocupação ficaram menos fundas entre os
olhos claros. Os outros humanos, um a um, abanaram as cabeças no círculo.
— Só que agora o Camp Crackpot não vai ser uma estância de luxo...
O riso espalhou-se à volta do círculo, e Tarawassie/Shemadans percebeu
as diferentes ironias e mágoas dos humanos e do Real People que se
escondiam por baixo dele. Ela olhou para a sua mão e para a de Basilione,
ambas gretadas e cheias de calosidades, envelhecidas pelo trabalho desusado.
Desusado. Ela sorriu outra vez, ansiosamente. Certamente que não, ao fim de
nove longos anos. Voltou a levantar os olhos para ver no olhar do espírito
Hunter’s Luck a consertar um aquecedor de raios infravermelhos, que
Basilione trouxera num cabrito montês do ártico, com apenas três pedras
redondas presas por correias. Todos nós mudámos. Podemos aprender a viver
com o futuro, se a isso formos obrigados.
No canto da tenda — onde partilharam tantas refeições, espaçadas,
sentados de pernas cruzadas ou acocorados no chão isolado—, ela via já as
crianças a sentarem-se para a sua sessão de revelação e partilha. Viveriam
para verem um futuro melhor, quando aquela época de privações tivesse
passado — e através deles o seu próprio espírito, e o de todos, continuaria,
multiplicar-se-ia, veria as suas esperanças tornadas realidade, e a sua crença
seria recordada. A seu tempo, o medo e a desconfiança do Real People
desvanecer-se-ia, o amigo de Starman poderia chegar finalmente até junto
deles. E, se viesse auxílio do planeta, talvez já tivessem começado a construir
uma nova colónia, perfeita...
— Mas isso não aconteceu assim... — Tarawassie agarrou-se ao brilho
de esperança e orgulho, que se extinguia, combatendo a sensação de
desolação que encheu o seu regresso ao presente. — Os humanos foram
mortos, e... E o Real People nunca deve ter dado ouvidos aos antepassados.
Que aconteceu, onde está o teu kith?
— Estão todos aqui — disse ele brandamente, sem olhar para ela; levou
algum tempo para perceber que ele estava a falar diretamente com ela. — Eu
último, último Starman. — Vendo a sua incompreensão, curvou-se, deu uma
pancada num disco da fita, fazendo-o tilintar. — Eu mostrar-te o resto.
Ela estendeu a mão cheia de picadas vermelhas; já quase não sentia mal-
estar, fechada num sentido mais profundo da compreensão, um conhecimento
diferente. E, desta vez, quando deslizou de novo para dentro de um corpo
prateado, de um espírito partilhado, sentiu o que era ser o último de um kith.
***
Um mosaico de espíritos, de imagens, de anos, desenhado esta vez na
mente dela e de Moon Shadow, quando este reviveu o passado... No longo e
duro Inverno que se seguiu, a aldeia e o acampamento tinham sido
incendiados, os amigos assassinados, os bens do Star People destruídos. Os
trinta membros do Starman kith, desbaratado, tentaram ajudá-los a
reconstruir, a recuperar, a adaptar — apenas para constatarem que não eram
melhor recebidos por isso. E, sem o estímulo que receberam dos humanos do
kith, viram-se impossibilitados de criar novas ferramentas, coisas novas para
substituírem tudo o que tinham perdido. Onde em tempos foram temidos pela
magia que controlavam, agora, que não tinham poder nem amigos, era
desprezados e ridicularizados, mantidos à margem da sociedade.
A medida que o tempo passava e o Star People desapareceu da região, o
Real People ousara migrar de novo para terras mais férteis e entrar finalmente
nas cidades dos humanos dizimados. Mas, mesmo na cidade —
principalmente na cidade —, o Starman kith era mantido à distância e poucos
membros do Real People partilhavam de bom grado com ele ou se juntavam a
eles. Os atritos aumentaram quando os descendentes descontentes do kith
puseram de lado as suas crenças de proscritos, por opção ou por qualquer
outro motivo, quando partiram para se juntarem a outros bandos errantes ou
foram absorvidos pelo todo. E, quando os números dos antepassados do kith
diminuíram, os casamentos consanguíneos tomavam cada vez mais aberrante
a memória dos antepassados. Não havia amigos suficientes com quem se
pudesse partilhar; não havia difusão de memória suficiente para criar o todo
integrado, aceitável para o seu povo, que começara a considerar o Starman
kith como visionários, possuídos por espíritos malignos, como criaturas que
deviam ser evitadas.
Até que por fim, ele, Moon Shadow, nasceu, o filho único da última
mulher do Starman kith. Perseguido pelas vozes do passado, impelido por
caprichos estranhos de espíritos ancestrais demasiado fortes para que ele os
pudesse controlar, fora obrigado a viver sozinho, como um fugitivo por causa
da censura inflexível do kith de seu pai. A mãe morrera; o seu espírito só
vivia dentro dele. Mas recusara-se a submeter-se ou a juntar-se ao kith do pai.
E por isso foi vigiado e censurado por pesquisar as ruínas por aqueles que
ainda temiam o Star People, a sua memória, e principalmente o seu poder.
Não haveria nenhum amigo do kith que continuasse a pedir chitta para ele,
quando o seu corpo morresse; ninguém que absorvesse o seu espírito e o de
todos os antepassados que permaneciam vivos só no seu pensamento.
Estaria perdido, abandonado, trazendo pesadelos de noite às almas
relutantes que lhe recusaram abrigo. Todo o kith acabaria com ele. Morreria
como ninguém jamais morrera na sua memória; seria esquecido para sempre,
amaldiçoado, uma parte da alma de ninguém...
Tarawassie apertou a sua mão lustrosa e cheia de calosidades, sabendo já
a razão que o levara a fazer tanta pressão para que ela fosse sua amiga. Uma
espécie de imortalidade... Ela reclinou-se. Mas, apesar de saber que se
estimavam, sabia que se sentiriam isolados, alienados, perdidos, porque não
tinham nenhum objetivo ali, nenhuma razão para viverem num planeta
estranho.
— Aqui só há morte! — Embargou-se-lhe a voz; viu no seu espírito a
memória de Shemadans do Poço das Estrelas, pondo à prova este mundo de
loucura, alguém que tinha sido são de espírito... — E se a, minha mãe ainda
está viva? O Poço das Estrelas funcionou, aceitou-a. Talvez ela se esteja a
divertir no nosso planeta, sem a enfermidade, viva e de boa saúde. Ou talvez
as pessoas que podiam-fazer um Poço das Estrelas a tivessem conseguido
curar, e ela está à, minha espera, num planeta belo, mas não pode dizer-me
como chegar até ela, não pode alcançar-me. — Recordou o corpo da mãe e
de Andar a flutuar sem vida no poço. — E eu sei, mas não posso ir. Porque
tenho medo de morrer!
— Talvez Poço das Estrelas não funcionar, talvez ela estar morta.
Ninguém vir aqui, há muito tempo. Talvez Star People ir já embora, ir para
qualquer parte... — Como se ele não soubesse se era bom ou mau. Uma
espécie de sentimento de posse transpareceu na sua voz. — Tu ficar!
— Não podem ter ido embora. Não podem. — Ela abanou a cabeça, sem
o ouvir, tendo perfeita consciência do que Shemadans e os outros sabiam...
Que a sabotagem do Poço das Estrelas podia significar o colapso do planeta.
— Desistiram apenas. Não quiseram mandar mais ninguém para este planeta,
para que não enlouqueça.
— Talvez eles voltar agora, se a mãe ir ter com eles.
— Tens medo que isso aconteça? Tens medo que isso volte acontecer? A
turba, a perseguição...
Ele acenou com a cabeça; a cauda fez desenhos estranhos no pó pálido
atrás deles.
— Mas Moon Shadow, a forma como partilhamos é algo que os
humanos não podem fazer, algo que estimariam se alguém os conseguisse
fazer compreender. Shemadans, Basilione, todos os teus antepassados
acreditavam que... Que podiam proteger-te e defender-te, podia toma-te tão
importante aos olhos dos humanos como eles são importantes aos seus
próprios olhos. Podiam tornar-se os transmissores de todo o conhecimento...
— A confiança de Shemadans no futuro, a visão de Basilione, encheram-na,
transformaram-se nela. — Eu posso ir ao planeta Posso. Quero atravessar o
poço, quero encontrar a minha mãe, e ver... Tudo. Quero ver um planeta
verdadeiramente humano. E, se for, posso convencê-los a voltar aqui e a
encontrar o teu povo. Mostrar-lhes-ei como és diferente. Eles virão. Sei que
virão. E eu regressarei na nave. Os Starman kith viverão, não seremos
esquecidos...
— Eu não morrer? — Moon Shadow pôs-se de pé, o rosto esguio
contorceu-se de emoção. — Sim, sim, tu ir, tu voltar! — Pegou na mão dela,
erguendo-a da cadeira. — Os nossos povos ser um. Meu povo aprender tudo
o que Star People saber... Eu nunca morrer!
"Vir, vir, Star Woman, nós ir agora à Nave de Cristal — (um som
estridente) —, enquanto eu acreditar!
Mas eu sou Tarawassie! As suas dúvidas, os receios sem resposta,
agitaram-se de novo, recusando o desconhecido no seu espírito. Mas Moon
Shadow puxou-a em direção ao elevador e de novo para a torrente da sua
emoção brilhante.
Transpuseram as portas altas e pesadas da entrada da biblioteca, ficando
no crepúsculo frio do Outono.
E, saindo das sombras para o brilho do globo de Tarawassie, cinco
nativos foram ao seu encontro. Tarawassie ficou paralisada quando a luz fria
se desviou das pontas das lanças, parando na sua direção. Ouviu a praga
rouca de Moon Shadow.
— Então, peste? Continuas a desobedecer ao teu povo! — O nativo mais
alto, cinzento-prateado como Moon Shadow, enfrentou-o; os olhos brilhavam
de triunfo. Tarawassie apercebeu-se de que o entendia, embora usasse a
língua indígena. — Desta vez vamos fazer que te arrependas. Deita a lança ao
chão!
Mas ela notou que os outros se mantinham afastados, hesitantes atrás do
escudo formado pelas lanças, com os olhos fixos nela, cheios de medo. Como
se Moon Shadow também tivesse sentido isso, não tirou a mão do tubo
afiado, abanando a cabeça.
— Isto não, irmão. Eu estar sob a proteção do Star People. Tu não tocar
em mim ou arrepender-te. — Ficou ao lado dela, olhando para cada um dos
rostos como se os desafiasse a aproximarem-se. Sub-repticiamente, tocou na
mão tranquilizadora de Tarawassie, em busca de confiança. Os seus dedos
fecharam-se por instantes sobre os dele, dando a resposta que pôde.
— Deixem-nos! — Ele baixou a ponta da lança, retribuindo o desafio.
Dois dos outros recuaram um pouco, e o irmão — de Moon Shadow? —
Manteve-se firme.
— Não te deixar ir, peste. Swift Springer julgar-te, e esta mulher-
espírito, desta vez.
E Moon Shadow acenou com a cabeça, começando a sorrir; os dentes
cintilaram.
— Sim, e então? Desta vez ele não me desmentir... Eu ir para a aldeia
contigo.
O irmão viu o sorriso dele, o pelo eriçou-se um pouco.
— Tu não teres alternativa.
Rodeados por lanças, percorreram as ruas ventosas, em ruínas, cheias de
sombras azuis. Tarawassie olhou para cima, o bafo gelava o azul-arroxeado e
escuro da abóbada celeste, onde brilhavam as estrelas, inclinadas no zénite à
frente dela. A estrela que não era uma estrela, mas que sustinha a ameaça que
estendia a escuridão a todas as estrelas. Ergueu a mão para ela, numa
promessa e numa súplica; a mão caiu de novo, cerrando-se junto à ilharga.
Olhou para os pés em busca de um trilho no cascalho que mal se via.
— Moon Shadow — murmurou ela, mantendo a voz firme. — Que é que
eles nos vão fazer? Quem são? Tu disseste, «irmão».
Ele falou numa voz humana, sem levantar o tom:
— É meio-irmão, filho do pai. Os outros ser amigos. — A voz tomou-se
mais áspera: — Eles levam-nos a Swift Springer. Ele não te fazer mal, Star
Woman. Vê como eles não tocar em ti, ter medo de ti.
— Quem é Swift Springer?
— Shaman! Partilhar com todos os kiths, mostrar muito bem. Swift
Springer saber tudo. Toda a gente partilhar com ele, há muitas, muitas
épocas. Ele dizer: «Esta coisa real, aquela não ser!» Ele dizer eu cheio de
espíritos do mal. Mas mesmo assim ele respeitar-te, e não me castigar desta
vez. Em vez disso, escutar-me, obrigar todos a perceber o que nós fazermos,
a ver o futuro! — Levantou os olhos para ela, com uma espécie de
determinação desesperada a arder dentro dele. — Talvez isto ser coisa boa,
não má... Amiga do kith.
— Amiga do kith — ela acenou com a cabeça, duvidosa. — Assim o
espero...
A última ondulação da rua levou-os a um enorme espaço aberto, como a
praça onde os nativos deixavam as suas oferendas. Ficava situado no centro
de seis ruas, viradas para a frente em seis lados, por reflexão — paredes de
prédios, uma luminosidade já preto-azulada, com pupilas de escuridão mais
fundas e puras, dispostas em fraturas com a simetria de flocos de neve.
No centro do campo descoberto saltava e caía uma fogueira, na palma de
uma pedra. O pulso acelerado da vida zombava dela, refletindo-se nos olhos
escuros e tristes deste vale de espelhos. Os seus sentidos vibravam com
brilho, com calor, com o odor acre a fumo do alburno queimado. E como se
tivesse sabido sempre, sabia agora que outrora ardera ali uma fogueira dos
espíritos, que fora um sinal de que o Real People deveria estabelecer-se ali
para sempre. Quando a fogueira dos espíritos se extinguira, tinham criado a
chama eterna, porque era um sinal sagrado.
Tarawassie esfregou o rebordo de pedra quando passaram, enegrecendo
os dedos com fuligem. Por baixo da pátina de carvão, conseguiu ver um
ligeiro vestígio de cor na superfície polida. E nas chamas coloridas de
dourado e azul, desenhadas em silhueta na fuligem, viu uma figura com uma
graciosidade estranha. Enquanto se interrogava sobre a utilidade que podia ter
tido, num segundo de estupefação, teve uma segunda e rápida visão de beleza
mais estranha que olhos humanos jamais tinham visto, quando se fixaram na
«fogueira dos espíritos», e compreendeu que se destinara apenas à beleza.
Apanhada entre o futuro e o passado, continuou a caminhar com Moon
Shadow e os guardas na escuridão que caía, até chegarem à base de um
edifício, que dava para o perímetro. E viu finalmente que aquele lugar não
estava deserto, entregue ao fogo ritual. Dois nativos observavam-nos de uma
soleira — duas mulheres com kilts pelo joelho, presos com correntes de metal
reluzente e colares.
As mulheres continuaram a andar de um lado para o outro, indecisas,
olhando para ela e depois para Moon Shadow, em silêncio e cheias de medo.
Atrás delas ardiam mais fogueiras, pequenas fogueiras onde as famílias
cozinhavam num grande patamar. Já descortinava outras figuras no interior,
sombras esguias, e perguntou a si mesma quantos daqueles edifícios tinham
sido recuperados pela nova ordem do planeta. De repente apareceu uma
criança no meio das mulheres na soleira; o pelo macio parecia branco-
prateado. Como uma gota de luz de uma estrela líquida, trepou pela perna da
mãe; içada pelas mãos dela, desapareceu miraculosamente na bolsa. O
espírito de Tarawassie encheu-se com uma imagem de calor suave,
segurança, prazer — a comunicação terna dos pensamentos de uma mãe.
Com as mãos a comprimirem o estômago dilatado, a mãe virou-se e
esgueirou-se de novo pela porta.
A outra mulher ficou onde estava, por baixo da saliência que a abrigava,
com o pelo cinzento como o ferro a cintilar, eriçando-se quando o irmão de
Moon Shadow se aproximou dela.
— Swift Springer. — Ele apontou para o chão no meio deles.
Ela acenou com a cabeça e esgueirou-se, rápida e silenciosamente, para
o interior quente. A cauda de Moon Shadow deu um sacão, a lança leve
soltou um desafio suave ao seu lado. Tarawassie aconchegou a capa.
Os longos momentos passaram; o rosto começava a doer do frio.
— O que somos... — Ela calou-se, quando outro corpo encheu a soleira.
Juntaram-se mais nativos ao fundo, tapando a luz. Um homem, que
envergava um manto pelos joelhos, sem mangas, de ombros caídos e a
arrastar os pés, emergiu na luz fria do globo que não pertencia a Tarawassie.
Apoiou-se num bastão; o pelo liso continuava preto como a noite mesmo ali.
O penacho de Moon Shadow eriçou-se.
Swift Springer parou, esboçando um sorriso.
— Que há agora, Shadowman? — Os seus olhos desviaram-se um pouco
para se fixarem em Tarawassie. As pupilas dilataram-se, estreitaram; abanou
a cabeça como se pensasse que os olhos o traíam.
— Eu sou real. — Tarawassie falou na sua própria língua, sabendo
instintivamente que não era capaz de articular os sons metálicos da língua dos
nativos. Avançou para a luz mais forte, puxando o cabelo para trás; ficou
mais direita, consciente da criatura que o velho nativo via, que não era ela —
tentando transformar-se no mistério que nem mesmo ela compreendia
inteiramente. Estendeu a mão para esfregar a bolsa de Moon Shadow e
apontou para Swift Springer.
Desta vez o penacho do velho nativo eriçou-se mesmo. O rosto, sempre
jovem, enrugou de emoção. Ela sentiu o desejo de negar, de recusar, de
castigar Moon Shadow, que ardia nos seus olhos quando tocaram nele. Mas
Swift Springer não podia negar o seu medo, a sua dor, dos antepassados,
ainda recordados, que ela representava.
— Tu honrar, Star Woman. — Era quase uma ordem. Moon Shadow
encontrou o olhar de Swift Springer com um orgulho obstinado.
Chama os velhos, eu mostrar a todos, desta vez. Eu mostrar tudo. Meu
direito!
Swift Springer abanou a cabeça.
— Tu mostrar-me, eu escolher. Tu ter maus pensamentos. Aqui ninguém
querer mente distorcida. Eu escolher, se eles virem.
Tarawassie respirou fundo.
— Chama-os todos. Têm o direito de escolher, se querem saber isto.
Quero que ele mostre a todos! — Ela levantou a mão e encostou a palma,
como vira fazer a Moon Shadow, confiando no tom de voz para se fazer
entender.
Swift Springer irritou-se, endireitando-se. O pelo eriçou-se. Ela
encolheu-se dentro da capa, sem saber se evidenciava autoconfiança,
contando com o fracasso.
— Covarde, Swift Springer! — Moon Shadow deixou cair no pavimento
a extremidade mais grossa da lança com um ruído seco. A voz chegou a Swift
Springer e à multidão sombria de observadores junto à porta. — Excremento
de Swift ter medo que o teu poder vir para mim. Não recear, eu não mostrar
mal!
Swift Springer abanou outra vez a cabeça, violentamente, sacudindo os
pelos.
— Nós ver, Shadowman, quem dar ao seu kith a maior honra esta noite!
— As palavras estavam imbuídas de escárnio; ele virou-se de repente para
abrir caminho através da multidão de observadores.
Tarawassie ouviu o seu discurso: sons ásperos, vivos, ininteligíveis, que
ecoaram no enorme patamar. Uma criança magra e prateada saiu do meio da
multidão junto à porta e passou por eles a correr, desaparecendo na noite.
— Acontece... Acontece! — Murmurou Moon Shadow, quase não
acreditando — Velhos, novos, vir todos, eu mostrar a todos. Desta vez
mostrar-lhes como se muda, mostrar-lhes como se muda para melhor. — Os
seus olhos cinzentos encontraram-na, sorriu. — O que nós fazer esta noite ser
mostrado para sempre!
— Uma espécie de imortalidade — sussurrou Tarawassie, olhando para
o céu sem luar, para uma estrela mais brilhante que todas as outras. — Uma
espécie em que podes ter confiança.
Moon Shadow acenou com a cabeça, o seu júbilo era evidente; ela notou
que o irmão e os guardas tinham recuado. Ele fê-la atravessar de novo a praça
em direção à fogueira.
Tarawassie esperou, segurando o globo e a lança junto a ela, aquecendo
as costas perto da fogueira. Os minutos passaram e uma multidão de nativos
amontoou-se, vendo-a a observá-los. Da multidão avançou uma mão-cheia de
homens e mulheres, chefiada por Swift
Springer, parando entre ela e Moon Shadow. Falaram uns com os outros
em voz baixa. Viu que o pelo cinzento da maioria se tomara preto — o dos
mais velhos, E também aqueles que eram mais perspicazes, disse-lhe a
memória de Moon Shadow, aqueles que eram capazes de distinguir a maior
parte dos detalhes da revelação de outro, conseguiam transmitir aos outros a
imagem, que absorviam, intacta, para a difusão de notícias importantes.
Moon Shadow não olhou para ela, confiando na sua presença,
preocupado com o seu próprio povo e obcecado com a sua necessidade de
revelar. De tempos a tempos sentia os olhos dos outros passarem por ela,
ouvia as perguntas hesitantes. Por fim, viu o grupo escolhido começar a
formar uma cadeia, cada um a colocar cuidadosamente uma mão na bolsa do
do lado, até que Swift Springer estendeu a mão, como se tivesse tocado numa
coisa suja, para entrar em contacto com Moon Shadow.
Um murmúrio percorreu a multidão. Moon Shadow fechou os olhos,
com o rosto extasiado.
A multidão ficou silenciosa. Tarawassie apertou o globo com os braços,
sentindo um calor quase imperceptível, sentindo o calor da fogueira nas
costas e o ar frio a arder dentro da cabeça. — Imaginando a sensação de
formigueiro e calor que lhes passava nos braços. As chamas estalavam perto
dela, como a dissonância elétrica de uma presença estranha no seu espírito,
como a descarga de hostilidade que corria entre dois ódios antigos. Ela tentou
imaginar o que podia encher naquele momento os espíritos de Swift Springer
e dos outros receptores — uma difusão brilhante e tantalizante de magia
humana, o poder oculto do Poço das Estrelas, ela mesma arrastada como um
espírito para outro planeta, levando consigo o segredo do Real People, a
possibilidade de um futuro quando o Real People desse provas dos seus dons
e repartisse irmãmente com o Star People e tivesse toda a magia secreta para
a revelação...
— Malvado...! — Swift Springer afastou-se de Moon Shadow, o elo
mais frágil numa cadeia de esperança. — Espíritos do mal entrar em mim a
partir do espírito do mal! — Os outros, que tinham estado unidos por
intermédio dele, ficaram em silêncio, como se estivessem aturdidos, a olhar
quando ele bateu em Moon Shadow com o bastão. — Malvado!
Moon Shadow titubeou, mas não gritou. Uma expressão estranha,
indecifrável, surgiu no seu rosto.
— Esta peste mostrar ao Star People, dar-lhes poder para o dominarem.
Ele mostrar-nos mentiras, esconder verdade, muito mal! Eu mostrar, todos
ver, este malvado...
Tarawassie inclinou-se para a frente, ansiosamente, sem compreender.
As suas mãos apertaram a lança, quando Moon Shadow começou a recuar,
passo a passo, aguilhoado pelo bastão de Swift Springer.
— Tu não me obrigar! — Disse, num misto de recusa e súplica.
Moon Shadow mexia a cabeça de um lado para o outro, impotentemente.
Swift Springer fez um sinal com a cauda. Dois homens irromperam da
multidão para prenderem Moon Shadow, segurando-o no meio dos braços,
com as caudas enroladas às pernas dele, mantendo-o imóvel.
— Moon Shadow! — Gritou Tarawassie, mas ele já não a ouvia nem a
via, os dentes brilhavam com um rosno de medo, os tornozelos levantados.
Olhava só para Swift Springer, avançando de novo. Um homem agarrou a
mão de Moon Shadow, metendo-a à força na bolsa de Swift Springer; Swift
Springer colocou a mão na de Moon Shadow. Os mais velhos tomaram a
formar a cadeia, o que estava mais próximo meteu também sorrateiramente a
mão na bolsa de Moon Shadow.
Moon Shadow retesou-se, com uma angústia que ela não conseguia
compreender. Um gemido alto e fraco, nascido não de uma dor física, saiu de
dentro dele, continuou, provocando um sussurro entre a multidão. Por que
razão os deixava fazer aquilo? Que estava a acontecer? Ela devia...?
— Parem com isso! Parem com isso! — A sua voz bateu em Swift
Springer em vão. Avançou com esforço, apertando a lança.
Mas precisamente nesse momento a cadeia quebrou-se outra vez. Moon
Shadow vacilou, o grito deixou de se ouvir quando os seus olhos se abriram.
Os dois homens, que o seguravam, soltaram-no nessa altura; ele caiu de mãos
e joelhos, como se toda a força, toda a resistência, todo o orgulho, lhe
tivessem sido sugados de uma só vez, rápida e incompreensivelmente. Swift
Springer desviou os olhos dele e fixou-os nela. Ainda se via a satisfação
virulenta quando os seus olhos encontraram os dela. Ele apontou com o
bastão.
— Para!
Ela parou, mas deixando que a ponta da lança se inclinasse na sua
direção.
— Que fizeste? — Ela falou sem alterar o tom de voz, conforme pôde.
Eles ficaram parados como esgrimistas. Os mais velhos cercaram-nos;
ela sentiu os olhos que tinham tocado nela com uma espécie de reverência,
marcando-a agora com medo e desconfiança, frios como o vento.
Swift Springer levantou a voz para a multidão.
— Eu dar-vos a verdade! Este — o bastão bateu em Moon Shadow — e
esta — ele brandiu-o ameaçadoramente para ela, ainda sem se atrever a bater-
lhe — quer nós ser engolidos por Star People outra vez, como antigamente!
Nós mostrar-te a verdade! — Os mais velhos passaram por eles ao seu sinal,
juntando-se à multidão. — Chitta salvar-nos, dar chitta a Star People, eles
morrer para sempre! Dar chitta a esta agora... Ver ela morrer... — O bastão
bateu na lança como um relâmpago, fê-lo saltar das mãos dormentes.
Ela encostou o globo ao corpo, sentindo-se como eles a viam naquele
momento, despojada dos espíritos ancestrais — um espantalho de cabelo
desgrenhado e esfarrapado, impotente contra a vingança que eles exigiriam
pelo sofrimento dos seus antepassados. Viu Moon Shadow pôr-se de joelhos,
o seu próprio medo e desespero ampliados no espelho do rosto dele.
— Vai — (quase não percebeu as palavras) —, Star Woman, foge!
Ela já se estava a virar para atravessar a multidão. Atravessou a praça às
cegas uma vez mais, mergulhou na boca sombria da entrada de uma rua e
continuou a correr.
Por fim, seguida apenas pela recordação do medo, continuou a atravessar
com esforço os desfiladeiros estreitos da noite, tropeçando, caindo, meio
louca com a cobertura recortada de um planeta sobre outro, memórias de uma
cidade cheia de vida e ruído, que iluminavam os silêncios breves das ruínas
sombrias e desertas. Mas, por fim, nenhuma necessidade, nenhuma visão,
eram suficientemente fortes para obrigarem os pés gelados a caminhar. Parou.
A dor serpeava por baixo das costelas; levantou os olhos para a simetria
destruída da linha do horizonte. A lua que subia, como um rosto prateado e
minúsculo, olhava para ela, para as torres de sombra, enchendo as janelas
escuras com luzes fantasmais como a dela, enquanto o seu espírito as enchia
com espectros do passado. Resvalou qualquer coisa por entre um lamaçal de
luar líquido perto dela, perturbando uma garra de ossos. O grito de susto
bateu de novo nela, fazendo eco, deixando um silêncio asfixiante. Como se
ela fosse o único ser vivo...
Mas, quando compreendeu que estava perdida, em corpo, em espírito o
luar tocou na forma inconfundível do prédio em ruínas onde Moon Shadow
tinha o acampamento, uma mão prateada apontava o caminho para o abrigo.
Ela continuou, arrastando as pernas doridas, reprimindo o pensamento, o
medo, a mágoa, reconhecida. Estendeu a mão em busca da única coisa
concreta neste mundo de trevas.
Descobriu a parede demolida nas sombras esburacadas e esgueirou-se
para o interior vazio. Mas ninguém vigiou a fogueira extinta; não estava
ninguém sentado à sua espera nem deitado no monte de trapos — ele não
viera. Tarawassie caiu de joelhos na cama dele; deixou-se cair para trás com
os lábios a tremer. Viria um dia? Teria morrido também? Teriam visto os
seus segredos, bons e maus, e tê-lo-iam morto depois — como matara a outra
populaça—, como a teriam morto também a ela, tanto pelo bem como pelo
mal, para lhes mostrarem a verdade?
Mas a razão não tinha importância, não tinha significado... Ele morrera!
E ela não tinha poder para chamar a sua alma. Não possuía o poder da
imortalidade, nenhum poder sobre a alma de ninguém, nem mesmo sobre a
dela. Dentro dela ficara apenas um vazio terrível. Moon Shadow, a mãe, não
precisavam de lágrimas, mágoa, sentimento de perda e sofrimento — e ela
fora abandonada com tudo aquilo. E havia tantas coisas feitas ou para fazer
— e agora não as podia alterar. Todas as oportunidades de fazer ou desfazer
estavam perdidas... perdidas...
A dor agarrou-a pela garganta e sacudiu-a com a esterilidade dos seus
devaneios, que já não eram verdadeiros nem tão claros como os sonhos que a
chitta lhe revelava. Por que razão acreditara que o Poço das Estrelas
encerrava a resposta para tudo — para nada? Como fora capaz de esperar que
ele a aceitasse, com o espírito tão cheio de incógnitas, dúvidas e medo?
Como foi capaz de fingir que acreditava que eram insignificantes? Estava
apenas a aprender o que significava estar vivo — quereria morrer tão
prematuramente?
Porque... Como podia ela saber que uma civilização inteira esperava por
ela do outro lado da passagem? Se era uma civilização em que ela quisesse
passar a sua nova vida, se a aceitaria — se se desfizera em pó como a sua? A
mãe estava morta, estivera a morrer aos poucos, e era apenas a dor que a fazia
acreditar, ou a fazia sentir necessidade de acreditar, que um milagre, em
qualquer parte, a deixara viver. Em quinhentos anos não viera ninguém ali
para encontrar o seu povo — agora nunca viria ninguém. Se o espírito da sua
mãe encontrara um abrigo, em parte alguma poderia continuar a vida. Ou
dissipara-se apenas na escuridão, perdida no meio dos silêncios espectrais de
gás e pó gelados? E ela importava-se — saberia mesmo?
— Eu não quero isso! Não quero isso!— Tarawassie endireitou-se com
um movimento seco e brusco, sentando-se sobre os joelhos, nos ecos, que
ricocheteavam, do seu próprio grito de dor. — Não quero que ela tenha
falecido! — Refletiu os ecos. — Não quero saber a verdade, e não quero
desperdiçar a minha vida. — Ela cerrou os punhos no regaço da capa
esfarrapada. — Não sou obrigada. Não há motivo para partir, nem para
tentar. Não sou obrigada!
Ouviu o ruído de passos arrastados, o tinido de cascalho deslocado,
enquanto os ecos fugiam. Contorceu-se como um animal assustado, arrastada
de novo para o presente, olhando de esguelha por entre os dedos de luz que
sondavam o refúgio sombrio da sua toca como a mão de um traidor.
Ela reprimiu outro grito, sabendo bem de mais que a sua voz já a
denunciara.
De repente, uma figura tapou a luz — um nativo. Uma voz chamou, um
som áspero, não urgente, mas estranhamento familiar.
Tarawassie pôs-se de pé com dificuldade, quase sem respirar.
— Moon Shadow? Moon Shadow?
Ele avançou para o interior sombrio, movendo-se desastradamente,
como um coxo. Ela tentou fixar o olhar no rosto com uma auréola de prata.
Ele chegou perto dela no sítio onde estava ao lado do círculo da fogueira,
hesitou um momento, olhando fixamente para o vazio. O seu rosto tremeu;
confusão e algo mais sinistro turvava os seus olhos. Mas depois fixaram-se de
novo nela; ergueu as mãos e pousou-as nos seus ombros, apertando
suavemente, num gesto de reunião. Ergueu as mãos, fez pressão sobre as
dela. Um sorriso triste fendeu-lhe o rosto; o peso das suas mãos arrastou-a
com ele para o chão quando este se deixou cair pesadamente sobre a
almofada de trapos. Ela baixou lentamente o corpo que protestava,
cuidadosamente, para evitar que ele caísse. Manchas de escuridão cobriram o
seu pelo emaranhado.
— Moon Shadow... — Ela baixou uma das mãos dele presa na sua,
vendo o sangue congelado seguro entre os dedos onde fora arrancada uma
unha. Ela abriu as suas mãos magoadas. — Estavam doidos? Ou estávamos
nós...? Como puderam fazer-te mal? — As suas mãos voltaram a fechar-se
sobre a mão magra, com três dedos. — Como? Porquê?
Ele encolheu ligeiramente os ombros, como se tivesse dores. Uma toada
monótona, melancólica, saiu da boca dele como um hino fúnebre.
Ela levantou os olhos, com um pressentimento.
— Que se passa? Qual é o problema? Que fizeram eles?
Moon Shadow abanou a cabeça, evitando os olhos dela. Abriu as mãos
num gesto de vazio, de incompreensão.
— Não me percebes? — Ela levantou o tom de voz. — Que aconteceu?
Que te fizeram? — Calou-se. — Então, como podemos...? — Lembrando-se,
ela estendeu a mão. Quando ela entrou na bolsa, ele soltou-se com um
movimento brusco, o corpo revoltava-se contra o contacto. A mão dela
apertou-se sobre si mesma, vazia. Retirou-a, ferida pela surpresa e desânimo.
Moon Shadow estendeu a mão para lhe agarrar o pulso, acariciando os
dedos, puxando-a para ele, com o olhar cheio de desculpa, o rosto parado de
frustração. Ele meteu-lhe a mão na bolsa; ela sentiu as mãos dele contraírem-
se com uma emoção que ela não conseguia decifrar. E depois, como se fosse
à guisa de explicação, deixou entrar nela a recordação do que lhe tinham feito
à ordem de Swift Springer:
Ela/ele suportaram de novo a sua humilhação, maniatado como um
criminoso, enquanto Swift Springer lhe arrancava o segredo de culpa e lhe
infligia o castigo ao mesmo tempo. Ela viveu a vergonha de uma intrusão —
a revelação imposta de uma recordação dada sob coação, que era igualmente
uma espécie de perversão, cometida à frente do seu povo, permitida por ele,
como se ele fosse menos que nada.
A toada monótona e lúgubre encheu de novo a sua garganta. Os olhos
dela ficaram rasos de água, as lágrimas saltavam e deslizavam pelo rosto
abaixo, livremente desta vez, porque outra pessoa dentro dela sofria. Viu
através dos olhos dele quando Swift Springer se virou contra ela, e ela/Moon
Shadow não pôde fazer mais nada por ela/Star Woman que lhe dizer para
fugir...
E então ela/ele acocoraram-se, sem forças para se levantarem, vendo as
verdades, recentes e terríveis da brutalidade humana, que lhe tinham sido
arrancadas, a estenderem-se como pequenas ondas sobre a água por entre a
multidão, sabendo que a promessa, as esperanças, todas as possibilidades de
uma vida nova que existiram também dentro dele, não seriam levadas por
elas, afundar-se-iam como uma pedra nas profundezas do esquecimento,
perdidas... Perdidas... Ele começou a gemer.
Swift Springer começou de novo a falar, com toda a eloquência hesitante
a que podia fazer apelo. Ouvia-se a ele mesmo, Moon Shadow, chamar-lhe
um perpetrador de perversões com o Star People, um louco que preferia a
loucura dos seus antepassados degenerados às verdades comprovadas do Real
People. Um que os teria feito perder a realidade, voltarem a ser destruídos
pelo mal do Star People, como já tinham sido quase absorvidos pelo Star
People, como este, Moon Shadow, fora tragado pelo Monstro da Noite...
Moon Shadow pôs-se de pé outra vez, com esforço, recuperou a voz,
denunciando Swift Springer num último desafio praticamente formado,
gritando que ali, naquele lugar tomado sagrado pelo fogo eterno, não tinha
sido ouvido nem julgado com imparcialidade...
O bastão de Swift Springer caiu sobre os ombros dela/dele, estendendo-o
ao comprido, e o Real People, contagiado e atiçado pela transferência das
suas próprias recordações de atrocidade humana, reunira-se então à volta
dele, e proclamara a sentença.
— Não! — Tarawassie quebrou o contacto, gritou, dando largas ao seu
pavor, ao pavor dele, ao mesmo tempo que sentia o ódio de uma centena de
espíritos estranhos que entrava à força no dele, rebentando-o, despedaçando-
o; uma sobrecarga de imagens que queimava os circuitos do seu cérebro,
despojando-o da sua identidade, dos seus antepassados, da sua realidade...
Moon Shadow vacilou e caiu em cima dela. Ela soltou o braço,
amparando as costas estreitas, afagou o pelo quente e emaranhado com uma
enorme ternura. Choramingou desesperadamente por saber a razão por que
ele receara o seu contacto, qualquer contacto... Mas como foi possível que
isso acontecesse? Com a sua presença ele controlara a revelação, controlara
Swift Springer — até ao momento em que Swift Springer quebrou a cadeia
da revelação e se virou contra ele. E então rendera-se, perdendo o controlo,
perdendo a confiança, esquecendo mesmo o seu objetivo. Como pôde
acontecer, que fizera com que aquilo lhe acontecesse? Porquê? Porquê?
Moon Shadow mexeu-se, levantou a cabeça do ombro dela, carpindo
baixinho. Tarawassie soltou um suspiro por causa do que descobriu nos seus
olhos, e outro quando começou a desaparecer. Por fim acenou com a cabeça,
suspirando, e encontrou o olhar dele. Ela estendeu suavemente a mão para a
meter na bolsa, concebendo o seu espírito o momento crucial, tentando
transmitir o seu próprio fracasso para procurar saber a causa...
Moon Shadow fez uma pequena exclamação — porquê, ela não sabia ao
certo. A sua mente começou a encher-se com recordações de Swift Springer
— Swift Springer, o xamã, o clarividente, o mais velho dos velhos que
absorvia todo o conhecimento, que julgava a validade e justeza do que era
mostrado. Swift Springer, que encarnava o absoluto em atitude e
comportamento no espírito de cada membro do Real People — mesmo no
espírito de Moon Shadow. Apesar de saber que a sua crença ancestral estava
certa, continuava a acreditar na opinião omnisciente de Swift Springer. Ela
viu de novo Swift Springer a denunciá-lo, sentiu a sua confiança a virar-se
contra ele para o fazer vacilar. E Swift Springer soubera que ele teria de
vacilar e isso era o suficiente. O sistema estático que ele desejara transformar
acabara por o derrotar, porque ele fizera sempre parte dele...
Tarawassie quebrou o contacto uma vez mais, cambaleando com a
tontura repentina da fadiga. Curvando-se para pegar no saco de mantimentos
de Moon Shadow, arrastou-o para junto deles para que pudessem chegar à
provisão de carne seca e fruta. Comeram em silêncio, com um ar de
desânimo, não desperdiçando força com palavras inúteis. Agora as palavras
podiam ser sempre inúteis.
Mas Moon Shadow pegou-lhe outra vez na mão — desta vez a outra
mão, sem estar hirta nem com formigueiro —, deixando-a torcer-lhe agora
sem hesitação. A cabeça dela ecoava com os planos para a travessia do Poço
das Estrelas, e um sentido de urgência, imperiosa... Um desejo de saber, ela
tinha consciência disso, se iria ainda tentar, e uma necessidade urgente da sua
aquiescência.
Ela abanou a cabeça, para aclarar as ideias e recusar. Não podia, não o
faria — deixou que todas as perguntas irrespondíveis, todas as dúvidas e
temores, fluíssem de novo, desordenadamente, para o seu espírito em
resposta. Não havia nenhum motivo e nenhuma necessidade...
Uma explosão de sons de raiva sobressaltou os seus ouvidos; ela abriu os
olhos para ver a raiva no rosto dele. Insistentemente, ele imaginou de novo o
seu plano, a sua ânsia, a sua curiosidade, o rosto da mãe. E o seu espírito
sondou, tateou, fez sair uma visão confusa, fragmentária, de todo o Starman
kith, partilhando os seus segredos e os seus dons invulgares. Ele era o último,
o último Starman, e o seu povo destruíra os seus antepassados. Se ela nunca
trouxesse o seu povo de volta — nunca regressasse para concretizar a sua
esperança—, então ele sofrera em vão! Se ao menos ela pudesse salvar os
antepassados ou torná-lo real novamente! Se ela nunca trouxesse o seu povo
de volta, nunca voltasse para ele, ele morreria também, morreria para sempre.
Ela era sua amiga, a sua única amiga, e prometera... Prometera...
Ela deixou uma vez mais que as suas dúvidas dessem uma resposta,
imaginando o seu povo a partir, como os antepassados dele tinham temido.
Nada se ganharia...
— Mas eu tenho medo! — Afastou-se dele. — Receio por mim. Mais
ninguém tem de fazer isto... Nem tu, nem eles, nem ninguém, só eu. Maldito
sejas! Maldito seja o teu povo! Nunca haverá nada entre eles. São medrosos
de mais, demasiado egoístas! Eu também sou egoísta. Tenho de ter a certeza,
tenho de ter a certeza senão não serei capaz de passar. Tenho de ter a certeza
de que só existe isto, que é o melhor para mim...
Ela deitou a mão a um trapo ao lado do tornozelo, sem olhar para o rosto
dele, vendo as suas mãos a coçarem distraidamente o pelo do estômago. Por
fim ergeu os olhos para a incompreensão e desolação estampada no seu rosto,
que podiam responder apenas à pergunta não proferida com outra pergunta.
Moon Shadow deixou-se cair sobre um cotovelo, e depois sobre uma
ilharga com um som como um grunhido. Os seus olhos fixaram-na por mais
algum tempo, com as pupilas oblíquas dilatadas e pretas; e depois, como se
os tivesse mantido abertos enquanto pôde, as pálpebras fecharam-se.
Suspirou, sem conforto.
Estendeu-se lentamente ao lado dele, relaxando os membros
entorpecidos em cima do coxim estreito de trapos. A débil radiância do calor
do seu corpo juntou-se ao dela no espaço entre eles, acalmando-a,
acalmando-os, sem nenhuma fogueira para os aquecer. Ela inspirava o odor
subtil, vago e estranho do seu corpo, deixando a tensão da resistência libertá-
lo, deixando-a sair.
A respiração de Moon Shadow entrou nos ritmos comedidos do sono.
No entanto, o espírito resistia à exigência do corpo, sondando as profundezas
do seu ser, pesando, medindo, avaliando... Se ela não tentasse entrar no Poço
das Estrelas ou se não conseguisse passar, que lhe restava? Viver ali nas
ruínas com Moon Shadow para sempre, recolhendo os segredos do passado,
sempre com a morte e perda na sua mente. E eles não podiam comunicar para
sempre sobre o passado. Tinham experimentado a ligação que a revelação
podia ter sido entre os seus povos. Mas agora como poderiam comunicar o
futuro ou até mesmo o presente? O seu espírito estropiado seria capaz de
recriar de novo a linguagem dela?
Mas ela não podia regressar à vida como sempre a conhecera, perdida
em sonhos no meio de moribundos — voltar a ter uma vida pior que a morte
no caixão de cristal. Seria melhor? Seria pior? Seria melhor guardar esta vida
sem sentido, sem futuro, só porque era uma coisa que ela conhecia? Ou seria
melhor juntar a vida nas suas próprias mãos e atirá-la para o desconhecido,
onde toda a felicidade e satisfação a podiam recompensar — ou talvez nada
pudesse, nada...?
Abriu os olhos de repente, para olhar fixamente para o rosto sereno de
Moon Shadow. Os seus receios, a sua consciência da morte, criaram estática
brilhante contra a sua recusa, dizendo-lhe que ela devia tentar, por ele/por ela
— para viver, para viver eternamente. Mas ela era apenas Tarawassie!
Tarawassie, não Moon Shadow, nem Shemadans, nem Basilione, nem o
salvador das aspirações de ninguém — Tarawassie. E seria o corpo dela que
flutuaria sem vida no limbo verde-azulado do Poço das Estrelas, e a sua alma
talvez nunca fosse reclamada. Seria tão fácil, muito mais fácil, se ela pudesse
ter partilhado o bastante para acreditar piamente como ele acreditava ou para
confiar no Poço das Estrelas como Shemadans confiara. Se pudesse saber
que alguém estava à espera para recapturar a sua alma, liberta do corpo,
enquanto ela olhava para os mistérios transparentes do Poço das Estrelas...
Para passar o dragão, e entrar no abismo sombrio... Tão fácil, se ela pudesse
ter a certeza. Mas alguma vez alguém teve a certeza, a certeza absoluta, de
alguma coisa? Seria possível conhecer o futuro?
Ela tinha tão pouca experiência, e queria experimentar tanta coisa... E
por mais que medisse ou calculasse não obteria a resposta à pergunta se ela
estava disposta a aceitar os termos do jogo, disposta a arriscar a sua própria
vida, para viver. Só o coração lhe podia dizer, somente o coração — e o Poço
das Estrelas ouviria a resposta...
***
Uma camada fina de neve estendia-se à entrada do prédio com a vinda
de um novo dia; os flocos caíam como a poeira pálida dos séculos. Moon
Shadow caminhava hesitantemente, como se às vezes se esquecesse do seu
objetivo; bateu com uma pedra na lâmina da faca, acabando por fazer uma
fogueira para aquecerem os ossos doridos.
Olhava muitas vezes de relance para ela, os seus olhos examinavam a
expressão do seu rosto enquanto comiam, comprimidos à frente das chamas.
Mas ela mantinha os pensamentos escondidos, reunindo imagens, pondo a
casa em ordem. Por fim chegou-se a ele, mostrando-lhe uma imagem da Nave
de Cristal, sem prometer nada a não ser que iria até lá.
Ele acenou com a cabeça, mas a alegria repentina nos seus olhos
desapareceu, transformou-se numa emoção mais profunda que tinha mais a
ver com a partilha e um entendimento do medo dela. Ela sentiu de novo
dentro de si que uma grande parte do seu ser partilharia o seu sucesso ou o
seu fracasso.
Partiram depois, e através do labirinto de ruas, numa última viagem para
um fim incerto. A nave envolvia-os numa pureza de brancura, que se
agarrava às pestanas e ao cabelo, à capa esfarrapada, ao pelo manchado de
Moon Shadow, anestesiando, disfarçando. Por um momento, Tarawassie
recuou perante a figura que apresentaria, o farrapo que saudaria uma vida
nova se passasse o poço. Mas lembrou-se que o seu corpo não era mais que
um receptáculo para o modelo, o código, a essência que seria transmitida,
derramada no universo — um receptáculo que seria recriado com perfeição,
certamente, sem as cicatrizes superficiais e as feridas do manejo descuidado
da vida. Viu a mãe à sua espera, de boa saúde e forte — agarrou-se àquela
visão para não ver o abismo interminável, sombrio.
Chegaram, por fim, à cúpula coberta de neve do hangar. Ela entrou
devagar, sentindo-se como uma estranha, seguida por Moon Shadow. Ouviu a
marca irregular da sua nova hesitação enquanto caminhava, viu à sua volta os
sinais de ruína, as aberturas artificiais no teto abobadado do hangar. Não
estava ninguém à espera. Mas estava estacionado um avião. Ficou contente.
Não queria que lhe dessem tempo para hesitar, para vacilar.
Parou junto à abertura na capota transparente do avião. Moon Shadow
parou ao lado dela, com os olhos fixos nele com uma incompreensão total.
Ela apontou para o céu opaco através da cúpula, sem obter resposta; depois
estendeu a mão e mostrou-lhe uma recordação desta minúscula faceta de
pedra preciosa que subia para se juntar à Nave de Cristal, onde o Poço das
Estrelas esperava. Ele recuou, o penacho eriçou-se com a visão de voo, com
uma incredulidade terrível no olhar e sem palavras humanas para expressar o
medo. Durante meio segundo a alegria começou a surgir onde estivera medo,
mas, repentinamente, o seu olhar ficou sem expressão, perdeu-se.
A dor apoderou-se dela. Não, ela não podia — ela não podia abandoná-
lo assim, assim não... Devia haver uma maneira de continuarem juntos, uma
maneira de ele explorar este último segredo com ela. Fez-lhe sinal para que
entrasse com ela no avião.
Ele abanou a cabeça, o medo não desaparecera, mas estava sujeito agora
a uma espécie de resolução provocadora. Tocou no peito.
— Eu não esquecer. Eu esperar até vires. Eu nunca esquecer!
Acocorou-se, disse-lhe por meio de gestos que esperaria por ela — o que
quer que fosse que acontecesse, ele esperaria pelo seu regresso.
Ela acenou com a cabeça, aceitando, lembrando-se de que Shemadans
tinha sabido que o Poço das Estrelas nunca fora feito para servir o Real
People. Tinha consciência de que aquela viagem devia ser só sua, que
dependia da sua decisão, da sua coragem, da sua energia, que esta separação
devia ser um pagamento parcial que ela tinha de fazer, um teste de
determinação.
Moon Shadow pôs-se outra vez de pé e colocou-lhe as mãos nos ombros,
apertando suavemente, olhando para os lados e para baixo, como os seus
olhos teriam tocado nele. Ele proferiu em voz baixa uma frase curta, mas de
falsete:
— Minha amiga... Minha amiga...
Ela levantou as mãos de novo para tapar as dele, puxou-o para perto dela
e estreitou-o nos seus braços um longo momento.
— Sim, meu amigo... Meu amigo... Meu amigo! Adeus... — Afastou-se,
antes de que a sua resolução falhasse, e entrou no avião. Via o seu rosto
prateado, estranho através do vidro, com o arco-íris de emoções, viu a sua
estupefação quando o avião começou a subir, viu-o desaparecer de repente
quando ela deixou para trás o hangar, o planeta. E sentiu que lhe arrancavam
uma parte do seu próprio ser, e dentro dela ficou viva para sempre no seu
espírito a parte dele. E tinha consciência de que não estava certa quando
pensou que um perderia o outro para sempre, mesmo nesta despedida... As
nuvens fecharam-se à sua volta, num manto de cinzento.
Tarawassie atravessou a passagem do avião, com os pés sobre cristal, a
cabeça entre as estrelas. Algures havia música, de má qualidade — ruidosa e
dissonante. — Superfícies de parede cobertas com uma cor escura. Ficou
quieta na confusão da área de espera, tapando os ouvidos, fechando
momentaneamente os olhos à sua incredulidade. Não era... O tear? Não era
Mirro e tear? Esta estridência ensurdecedora não era o tecido fino e muito
leve com fio de luz e trama de música? Que mais poderia ser? Fechou os
olhos depois, também, mas não conseguiu bloquear a entrada às violações
mais profundas nas fibras dos seus nervos. Tu sabias como iria ser, sabias,
sabias — desde o momento em que viste o teu próprio reflexo. Continua!
Continua! Enfrenta a realidade...
Continuou a percorrer os corredores, agora quase a correr, até ao
compartimento onde Mirro tocara sempre: onde ela continuava a tecer,
encurralada na teia de sensações distorcidas que não podia distinguir da
beleza. Tarawassie ficou parada a tremer na soleira da porta, sentindo
vontade de lhe gritar, sentindo vontade de a arrancar da consola maltratada
que nunca fora feita para música, e obrigá-la a parar, parar... Mas sabia que
não conseguiria nada contra a chitta e que nunca se alcançaria nada...
Ela prosseguiu, seguida pelos fantasmas do seu reflexo, através dos
pátios de entrada até ao local principal dos sonhos. Os sonhadores estavam
deitados como ela estivera deitada tantas vezes, ou vagueavam sem destino,
contemplando as estrelas. Alguns levantaram os olhos quando ela entrou, sem
interesse nem surpresa. Mantos desbotados pendiam como burel nos seus
corpos emaciados. Rostos que ela conhecera durante anos eram as máscaras
arrancadas de rostos de estranhos, sem olhos e de boca aberta. O cheiro da
chitta e de marasmo e imundice humanos sufocou-a, provocou-lhe náuseas...
Alguém embateu nela. Virou-se e deu com Sabowyn, reconhecido apenas
passado longos e dolorosos segundos. Agarrou-a e puxou-a para ele,
equilibrando-se, sorrindo-lhe tolamente.
— Partiste...
— Sabowyn... — Ela conseguiu soltar as mãos para o agarrar, para o
abanar. — Escuta-me. Não podes beber mais chitta. Por favor, por favor,
escuta-me! — Subitamente, com demasiada clareza, lembrou-se da loucura
de Andar.
— Deixa-me beijar-te, Tarawassie... Agora vou sonhar, mas quero
beijar-te...
A mão afagou o seu cabelo, desastradamente, como se não se
conseguisse lembrar por que o fazia, a barba arranhou-lhe a face. Empurrou-
o, com o rosto contorcido de desespero, viu-o cair em cima de um sofá,
confuso mas ainda a sorrir.
Descobriu a rampa em espiral do outro lado do quarto e não parou até
chegar à borda do Poço das Estrelas. Ajoelhou-se perto dele, a olhar para o
desenho infinito de estrelas que se moviam imperceptivelmente debaixo das
linhas de força azuis. Passou a mão por entre a bruma fria, verde-azulada e
tranquilizadora, procurando os seus próprios olhos de um azul e verde mais
carregado, refletindo. E por detrás deles, debaixo deles, descobriu o rosto da
mãe, e o rosto de Andar — a sorrir, em praz. E, fechada na essência do seu
ser, estava uma parte de um outro que iria sempre com ela, acontecesse o que
acontecesse. Alguém que levava dentro de si uma parte da sua própria
essência, onde quer que ela estivesse. Uma espécie de imortalidade, uma
chama eterna... Levantou-se lentamente e subiu para a borda.
Silenciosamente, sem movimento, entrou no oceano.
EPÍLOGO
E Moon Shadow recebeu o corpo de Tarawassie, que desceu da Nave de
Cristal uma lágrima de cristal, onde estava o Poço das Estrelas. Ele levou o
corpo, e onde ele está ninguém sabe, porque aquele era o costume dos kiths,
para protegerem o corpo dos espíritos do mal. Executou a cerimónia da
chitta, para chamar o espírito da amiga de novo para junto dele desde os
silêncios longínquos, no caso de ele não ter encontrado um refúgio mais
autêntico. Mas se ele sonhava, ou o que sonhou, nunca foi revelado.
Então, como ele prometera, esperou pelo seu regresso. Esperou trinta
anos, escarnecido e desprezado entre o Real People da cidade em ruínas. Mas
nesse espaço de tempo ela não veio nunca. E ao fim de trinta anos ele morreu,
e não havia ninguém no seu próprio povo que mantivesse o chamamento da
chitta ou desse paz ao seu espírito, porque ele era o último Starman.
Assim está apresentada a lenda de Tarawassie e Moon Shadow. Que as
suas almas possam mostrar aos nossos povos o caminho para a verdadeira
compreensão.
POSFÁCIO
«A Nave de Cristal» é uma história que teve a sua origem numa canção,
neste caso a conhecida canção dos Doors, com o mesmo nome. Primeiro tive
a ideia de escrever uma história baseada na canção há cerca de dez anos,
antes de me dedicar a sério à escrita. O enredo da história, que criara na
altura, possuía algumas sementes desta história, mas era um tipo
completamente diferente, basicamente uma aventura. Quando comecei
verdadeiramente a escrever a história, alguns anos depois, decidi que queria
fazer algo mais substancial — algo que tivesse a ver com as questões básicas
da vida e da morte, realidade e ilusão, que a própria canção evoca.
Esta história foi outra em que um personagem começou a dominar
inesperadamente — neste caso o estrangeiro, Moon Shadow. «A Nave de
Cristal» foi a história mais difícil de escrever desta série, em grande parte
porque o seu carácter a levou em direções que eu não tinha previsto, e
envolveu a sua própria vida inextricavelmente com a da heroína. Os seus
problemas tornaram-se igualmente importantes com os dela e obrigaram-me
a dar-lhe a mesma atenção.
«A Nave de Cristal» retratava também, quase inadvertidamente, uma
das minhas mais pessimistas ideias da natureza humana — talvez
simplesmente por causa dos temas de que tratava. Mas uma vez alguém me
perguntou se eu estava deprimida quando a escrevi. Na altura disse que não,
mas, olhando para o passado, compreendo que estava a atravessar um
período particularmente negativo na minha vida, e deve ter sido essa a razão
por que escolhi naquela época para a escrever.
O poema que aparece na história, do artista Russell Grattan, foi um que
descobrira há anos numa reprodução de um dos seus quadros. Mesmo nesse
tempo o poema parecia completar perfeitamente a essência do Poço das
Estrelas e eu não podia imaginar ser capaz de criar algo que desse melhor
resultado. Escrevi a Grattan, a pedir autorização para usar o poema, e ele
concordou, em troca de uma cópia da história. Efetivamente, contactando
com ele e trocando palavras e trabalhos, foi um prazer único escrever este
conto.
Para além de ser a história mais difícil que escrever, «A Nave de
Cristal» teve um problema adicional depois de se imprimir — o desfecho.
Tinha em mente que a última linha da história deixasse que o leitor soubesse
que Tarawassie regressara ao seu planeta, e que os seus sonhos e os de
Moon Shadow se tornaram realidade, mas, infelizmente, fi-lo com demasiada
subtileza — apenas um leitor em dez percebeu que a história não era uma
narrativa aberta. Espero que a versão que aqui aparece tenha diminuído
esse número, e tenha tornado mais clara uma tela negra de palavras.
SOLDADO DE LATA
O navio descia o manto de luz esfarrapado do Plêiades, caía como uma
pérola perfeita na água da meia-noite da baía. E tomava a emergir, para se
balancear suavemente num colar de pérolas cintilantes que se estendia de um
lado ao outro do porto de abrigo na direção do ancoradouro. O olho vigilante
do porto pestanejou uma vez, a nave replicou. New Piraeus, colocado entre os
montes, enviou tributários de luz que desciam em ondas até à baía para dar as
boas-vindas a todos os que chegavam, cheios de som, brilho e promessa
temerária. A tripulação sorriu, expectante. Espreitavam rostos através do
casco transparente, alguém deu risadinhas de nervosismo.
***
O letreiro na porta pesada iluminou-se e deixou ver um boneco vermelho
com uma perna, O Soldado de Lata, azul, cintilando por baixo dele,
COMAM, BEBAM, VOLTEM OUTRA VEZ. Em verde. E eles voltavam
sempre, porque sabiam que podiam.
— Soldado, outra rodada, por favor! — Surgiu música gravada.
O dono do Soldado de Lata, também conhecido por Soldado de Lata,
levantou os olhos do que estava a polir para acenar com a cabeça e sorrir,
baixou-se para tirar garrafas e as colocar sobre o bar. Ele mesmo preparava as
bebidas. O rosto era vulgar, com olhos que eram escuros e pacientes, e o
cabelo era arame farpado de cobre com um pano atado com um nó. Debaixo
do cobre enrolado, sob a pele, a nuca era um prato plástico. Os dedos ágeis da
mão no gargalo recurvado da garrafa eram plásticos, o braço liso era
protético. Às vezes pensava ouvir estalidos quando este se mexia. Mais de
metade do corpo era artificial. Parecia ter cerca de 25 anos; tinha o mesmo
aspecto de há cinquenta anos atrás.
Colocou os copos no tabuleiro e empurrou-o, ficando a vê-lo flutuar
através da sala, e continuou a polir. A superfície de ágata do bar ostentava
permutações confusas de cor, veios, espirais e abismos de bruma de
calcedónia. Encontrara-a no deserto a leste — uma árvore artificial
danificada, como um viajante atacado de estase através dos tempos. Eles
partilhavam o gracejo com a clientela.
—... Venham ver a nossa lenda viva!
Ele levantou os olhos, viu-a entrar com a tripulação do Who Got Her —
709, apercebeu-se de que não a conhecia. Ela ficou para trás quando eles se
juntaram em redor, o cabelo curto da cor da cinza parecia metal martelado à
luz da lanterna com vidro azul. Nova, pensou ele. Talvez com 18 anos, com
olhos de mercúrio muito abertos. Ele sorriu-lhe quando lhes deu as boas-
vindas, e as outras mulheres levaram-na para o bar de ágata.
— Vá lá, irmãzinha — ele ouviu Harkané dizer —, também fazes parte
do nosso grupo. — Ela sorriu-lhe também.
— Não te conheço... Mas deves-te chamar Diana, com a Senhora da Lua,
prateada. — A voz apanhou-o de surpresa.
Os olhos de mercúrio mexeram.
— Não.
Muito nova. E, percebendo o que quase fizera de novo, de repente
desejou-o mais que qualquer outra coisa. Tomado de uma alegria imensa
disse:
— Como te chamas?
O rosto dela tremeu, mas depois encontrou o olhar dele e disse a sorrir:
— Chamo-me Brandy.
— Brandy...
Uma voz conhecida disse:
— Manda-nos o que é costume. Soldado. Mais tarde, sim?
Ele acenou vagamente com a cabeça, procurando garrafas debaixo do
rebordo do balcão. A madeira chiou sobre a pedra quando ela puxou um
banco e se sentou em cima dele, vendo-o encher os copos.
— És muito habilidoso. — Ela tirou nozes de uma tijela.
— Muita prática.
Ela sorriu, sem perceber a piada.
Ele disse:
— Brandy é um bonito nome. E eu acho que o ouvi em qualquer parte...
— O nome completo e Branduin. A minha mãe disse que era muito
antigo.
Ele olhava fixamente para ela. Gostava de saber se ela conseguia ver
uma parte do rosto a corar.
— Que vais beber?
5
— Oh... Tem... Brande ? Creio que é um vinho, nunca ninguém teve.
Mas porque é o meu nome, peço sempre.
Ele franziu as sobrancelhas.
— Com os diabos, não tenho, tenho! Fica aí.
Ele voltou com a garrafa impossível, limpou cuidadosamente a película
cinzenta de muitos anos e pousou-a a cintilar sobre o bar. Reflexos castanho-
avermelhados feriram os seus olhos.
— Deve ter estado à espera todos estes anos. Isto é, onde ouvi falar
dele... Brande genuíno, da Terra.
— Da Terra... A sério? Oh, obrigada! — Ela tocou na garrafa, tocou na
mão dele. — Vou ter sorte.
Copos curvos encheram-se de vinho; ele colocou um na palma da mãe
dela.
— Ad astra. — Ela ergueu o copo.
— Ad astra, para as estrelas. — Ele ergueu o dele, acrescentando
silenciosamente: — Esta noite...
***
Estavam sozinhos. A respiração dela tornou-se mais ofegante enquanto
subiam as ruas recentemente calcetadas em direção à casa dele, distante da
parte mais baixa da cidade onde as lâmpadas fluorescentes se apagavam uma
a uma.
Ele parou e encostou-se a um muro baixo de pedra.
— Queres descansar? — Atrás dele, no lote deserto, um canteiro cheio
de ervas daninhas vacilava com o ruído do candeeiro da rua.
— Obrigada. — Ela inclinou-se e encostou-se a ele, encostou-se à
parede. — Já não estou habituada a andar. Não há muito que fazer numa
nave: devemos fazer exercício, mas... — O seu ombro contraiu-se sob o
prateado-azulado acolchoado. Ele absorveu o calor dela.
A sua mão apertou-o ligeiramente de encontro à parede:
— Como te chamas? Sabes, não me disseste.
— Todos me chamam Soldier.
— Mas esse não é o teu nome. — Os seus olhos examinaram os dele,
sorrindo.
Ele baixou a cabeça, a mão apanhou e apertou a dela.
— Oh... Não, não é. É Maris. — Ele levantou os olhos. — Também é
um nome antigo. Quer dizer «soldado», consagrado ao deus da guerra. Nunca
gostei muito dele.
— De «Marte»? O quarto planeta do Sol, o deus da guerra. — Ela
inclinou a cabeça para trás e perscrutou as trevas. A névoa ocultava as
estrelas.
— Sim.
— Eras soldado?
— Era. Toda a gente era soldado, todos os homens, no sítio donde vim.
A guerra era um modo de vida.
— Uma tentativa de ajudar o ego masculino?
Ele olhou para ela.
Ele franziu as sobrancelhas enquanto se concentrava.
«Depois de chegarem à conclusão de que os homens não tinham
capacidade física para voos espaciais, e as mulheres adquiriram uma nova
posição de domínio quando eles monopolizaram esta área crítica, a fundação
cultural terrestre passou por uma grave crise. Consequentemente, muitos
sistemas culturais novos e nem sempre satisfatórios estão a estabelecer-se na
galáxia... Um deles é o que se pode designar por uma repercussão de
machismo exagerado...»
«... E o ressurgimento do guerreiro/tradição do bem móvel.»
— Também leste esse livro. — Ela parecia desanimada.
— Li muito. New Ways for Old, de Ebert Ntaka?
— Desculpa... Acho que me entusiasmei. Mas acabei agora de o ler...
— Não. — Ele sorriu ironicamente. — E eu também concordo com o
velho Ntaka. Glatte, que nome horrível, era um planeta doentio. Mas é por
isso que estou aqui e não lá.
— Oh...! — Ela soltou-se da mão dele com um sacão. — Oh!, oh! Meu
deus, como és forte! — Meteu os dedos na boca.
Ele desfez-se em desculpas, mas ela abanou a cabeça, e sacudiu a mão.
— Não, está tudo bem... A sério, só que me surpreendeu. Más
recordações?
Ele acenou com a cabeça, boca fechada.
Ela tocou-lhe no ombro, levou os dedos ao seus lábios.
— Beija-a, e cura-a? — Ele pegou-lhe na mão mansamente, beijou-a;
encostou-se a ele. — E muito tarde. Devíamos chegar ao cimo da colina.
— Não. — Odiando-se, encostou-se ao muro.
— Não? Mas eu pensava...
— Eu sei que pensavas. O teu primeiro intervalo, perguntei-te o nome,
desejaste-me; a tradição é que vocês se impõem ao homem. Mas eu sou um
cyborg, Brandy.... Sabe sempre bem troçar do pobre verdinho, puxaram-no
uma centena de vezes.
— Um cyborg? — Os olhos cinzentos, que pestanejavam,
esquadrinharam o corpo dele.
Não se nota com a roupa.
— Oh... — Pestanas claras batiam com força agora nos olhos. Respirou
e não expirou. — Deixas chegar as coisas sempre até este ponto? Quero
dizer...
— Não. Com os diabos, não sei por que razão eu... Devo-te outra
desculpa. Geralmente nunca pergunto o nome. Se tenho um descuido, digo-
lhes logo. Nunca ninguém se sujeitou a isso. Eu não conto. — Ele fez um
sorriso amarelo.
— Então, porquê? Queres dizer que não podes...
— Não sou todo de plástico. — Ele franziu as sobrancelhas, dedos
dormentes batendo levemente em pedra. — Não sou. Quem me dera ser às
vezes, mas não sou.
— Ninguém? Nunca querem?
— Branduin — ele enfrentou os olhos inquiridores —, será melhor
voltares lá para baixo. Dorme um pouco. Amanhã ri-te disto e escolhe um
cara simpático no bar e diverte-te. Vem ver-me daqui a vinte e cinco anos,
quando regressares do espaço, e diz-me o que viste. — Hesitando, acariciou a
face com a mão verdadeira. Instintivamente, ela inclinou a cabeça à carícia.
— Adeus. — Começou a subir a colina.
— Maris...
Ele parou, a tremer.
— Obrigada pelo brande... — Foi ter com ele e agarrou-lhe no cinto. —
Provavelmente vais ter de me levar a reboque pela encosta acima.
Puxou-a para ele e começou a beijá-la, as mãos tocavam no seu corpo
cepticamente.
— Está a ficar... Muito, muito tarde. Apressemo-nos.
***
Maris acordou, confuso, com o barulho das persianas a bater.
Levantando a cabeça, foi surpreendido pelas cores da aurora e pela sombra de
Brandy junto à janela com uma auréola de luz. Saiu da cama desfeita e
passou por cima de telhas frias para ir ter com ela.
— Que estás a fazer? — Disse ele a bocejar.
— Queria ver o nascer do Sol. Há meses que não vejo nada a não ser
escuridão. Olha, o nevoeiro já está a levantar. O sol, fá-lo desaparecer, está
em chamas, sobre as montanhas...
Ele afagou-lhe o cabelo, ouro pálido sob um halo de luz.
— E cinzas no desfiladeiro.
Ela olhou para baixo, para a imensidão de névoa cinzenta que ficava
vermelha, lentamente, e para trás.
— Bom dia — Ela começou a rir. — Fico contente por não teres
vizinhos lá em baixo! — Estavam os dois nus.
Ele sorriu ironicamente.
— É por isso que gosto deste lugar. — Abraçou-a.
Ela aproximou-se dentro do círculo de frescura e calor.
Viram o nascer do Sol na cama.
A tardinha, ela entrou no bar com a tripulação do Kiss and Tell-736.
Saudaram-no com um aceno de mão, e ela com um aceno de cabeça, e
caminharam para as sombras azuis. Ela debruçou-se no bar à frente dele, a
sorrir. Apercebeu-se de repente que nove horas era muito tempo.
— Aquela é a tripulação da minha nave de instrução. Querem vinho, por
favor, de qualquer tipo, numa garrafa.
Ele procurou debaixo do bar.
— E um brande, por conta da casa? — Ele mandou o tabuleiro.
— Olá, Maris...
— Olá, Brandy.
— Às manhãs enevoadas!
Beberam os dois.
— A propósito — ela olhou-o dissimuladamente —, andei a dizer que as
pessoas têm andado a perder uma coisa. Tu.
— Obrigado — falou a sério. — Mas duvido que isso mude
mentalidades.
— Por que não?
— Leste Ntaka. Xenofobia! Para a maioria das pessoas, na maior parte
das culturas, os cyborgs são anormais, pouco melhores que um cadáver.
Terias de ser necrófila...
Ela franziu as sobrancelhas.
—... Ou extraordinária. És a primeira pessoa extraordinária que conheci
em cem anos.
Ela esboçou um sorriso, desapareceu.
— Maris, não tens vinte e cinco, pois não? Quantos anos tens?
— Uns cento e quinze. — Ele esperou pela reação.
Ela arregalou os olhos.
— Mas pareces ter vinte e cinco? És real, não envelheces?
— Envelheço. Em cada cem cerca de cinco anos. — Ele encolheu os
ombros. — A cirurgia protética retarda o envelhecimento do corpo. Talvez
seja por isso que só metade do meu corpo precise de uma renovação
constante, ou talvez seja uma consequência do tratamento antirejeição.
Realmente ninguém percebe. Só acontece às vezes.
— Oh! — Ela parecia embaraçada. — Era a isso que te referias quando
disseste «volta e vem ver-me»... Viverás de facto mil anos?
— Talvez não. Suponho que daqui a três ou quatro séculos falhará
alguma coisa vital. Nem mesmo o plástico dura sempre.
— Oh...
— Vive mais tempo e goza menos. Exceto hoje. Que fizeste hoje?
Dormiste?
— Não. — Ela sacudiu o desapontamento. — Alguns saíram e comeram
até se fartarem. Ficamos em salas quando estamos acordados, no porto, por
isso não perdemos um minuto. Não há necessidade de dormir. Realmente são
para emergências, mas toda a gente o faz.
Ele chegou quase a soltar uma gargalhada. Esperava que ela não tivesse
notado. Com um ar sério, disse:
Queres ter cuidado com aquelas pessoas. Podem chegar até junto de ti.
— Oh, não há problema com eles. — Ela girou o corpo, aborrecida e
grosseira de repente, confrontada pelo Old Man.
Inferno, não pode ter importância...
Ele olhou de relance para a porta.
— Brandy! Estás aqui! — E a tripulação entrou. — Soldado, mais tarde
tens de vir sentar-te ao pé de nós; mas agora vamos roubar-te a Brandy.
Ele levantou os olhos ao mesmo tempo que Brandy para o rosto moreno,
olhos castanhos e cabelo branco como o sal de Harkané, o Melhor Amigo do
Mactav da nave Who Got Her-709. O tempo tinha tecido redes fundas de
compreensão em volta dos seus olhos. Ela era um dos clientes mais antigos.
Até a forma das suas palavras lhe parecia estranha naquele momento:
— Ah, Soldado, fazes-me sentir jovem, sempre... Irmãzinha, vem juntar-
te à tua família. Reparte-a, Soldado.
Brandy engoliu o brande de um gole; as botas fizeram barulho quando
ela saltou de cima do banco.
— Obrigada pela bebida. — E durante meio segundo o sorriso foi
autêntico. — Espero voltar a vê-lo. Soldado. — E ela partia,
deselegantemente, com gratidão.
Soldado poliu o bar de ágata, ignorando a expressão de desapontamento
que ela lhe mostrava. E depois viu-a sair, com um Cara presunçoso, de olhos
pretos com calças de veludo pelo joelho.
***
Do outro lado da soleira da porta, o crepúsculo verde-amarelado
penetrava na baía. Os primeiros grupos começaram a aparecer com a noite.
— Estás aí, Maris...?
O prateado tomou-se plúmbeo, encontrou-o com um rosto sem
expressão; mãos esguias tremeram, cerraram-se, tremeram no ar.
— Brandy...
— Que é que tens para um estômago desarranjado? -— Ela estava à
espera de riso.
— Tiveste tremuras, hem? — Ele não se riu.
Ela acenou com a cabeça.
— Estavas certo em relação aos comprimidos, Maris. Enjoam-me.
Fartei-me, continuei a tomá-los... — As mãos tamborilavam no balcão.
— E isso foi uma estupidez, não foi? — Ele encheu-lhe um copo com
água, viu-a tentar beber, premiu um botão debaixo do balcão. — Escuta,
mandei vir um carro para te levar. Quando chegar, quero que vás para a
minha casa e te deites.
— Mas...
— Não estarei em casa durante algumas horas. Vê se dormes e depois
sentir-te-ás bem, certo? Este é o fecho da porta. — Escreveu algarismos
enormes num guardanapo. — Não percas isto.
Ela acenou com a cabeça, bebeu, meteu o guardanapo na manga. Bebeu
um pouco mais, entornando a água.
— Tenho a boca dormente. — Escapou uma gargalhada; ela levantou
uma mão trémula. — Eu... Não o perco.
Um dourado escuro saltou para lá da soleira, luz do Sol sobre metal.
— Está aqui o teu carro.
— Obrigada, Maris. — O sorriso era torcido, mas muito temo. Ela virou-
se em direção à porta.
***
Ela ainda lá estava quando ele chegou a casa, a ressonar baixinho no
quarto num nó de cobertores em desalinho. Ele saiu silenciosamente do
quarto, com medo de lhe tocar, e deixou-se cair numa cadeira segura com
cabedal. Cheio de uma paz rara e inquietante, dormitou, enquanto a neblina
iluminada pelas estrelas da nebulosidade do Plêiades passava através do céu
toldado em direção à manhã.
— Maris, por que não me acordaste? Não precisavas de dormir toda a
noite numa cadeira. — Brandy estava à frente dele a lutar com uma toalha, os
olhos inchados com sono e o cabelo caído um puxos ensopados em água do
chuveiro. Os pés faziam pequenas poças no tapete entrançado.
— Não me importei. Não preciso de dormir muito.
— Isso foi o que te disse.
— Mas falei a sério. Nunca durmo mais de três horas. De qualquer
maneira precisavas de descansar.
— Eu sei... Com os diabos! — Ela desistiu e enrolou a toalha à volta da
cabeça. — És um homem bom, Maris.
— Tu também não és má.
Ela corou.
— Fico contente por aprovares. Ah!, o teu tapete... Molhei-o todo.
Esgueirou-se para o quarto.
Maris espreguiçou-se com relutância, olhou para as vigas do teto
bronzeadas com a luz do Sol da alvorada. Soltou um suspiro fraco. — Queres
alguma coisa para o pequeno-almoço?
— Claro, estou a morrer de fome! Oh, espera — Uma cabeça molhada
reapareceu. — Deixas-me fazer-te o pequeno-almoço? Espera por mim.
Ele ficou a ver a aparição com o fato espacial azul-prateado a
esquadrinhar os guarda-louças.
Parece que estás sem matérias-primas.
— Eu sei. — Ele limpou as migalhas de cima da mesa. — Como
pequenos-almoços instantâneos e jantares congelados. Detesto cozinhar.
Ela fez uma careta.
— Sim, fica bastante velho ao fim de meio século... Eles só as tiveram
em Oro durante meio século. Também não as arranjam melhores.
Ela meteu qualquer coisa no forno.
— Desculpa, fui tão estúpida quando me referi àquilo...
— A quê?
— Aos... Cem anos. Acho que me assustou. Comportei-me como uma
cadela.
— Não, não comportaste.
— Comportei sim! Tenho consciência disso. — Franziu as sobrancelhas.
— Está bem, comportaste. Eu perdoo-te. Quando comemos?
Comeram, sentados lado a lado.
— Cozinhar parece um passatempo estranho para um astronauta. —
Maris limpou o prato. — Quando consegues cozinhar numa nave?
— Nunca. Está tudo preparado e tratado. Assim não podemos comer
demasiado. É por isso que gostamos de comer e beber quando estamos no
porto. Mas agora também não podemos cozinhar, não há lugar. Suponho que
deixou de ser realmente um passatempo. Aprendi com o meu pai. Ele adorava
cozinhar. — Inspirou, de olhos fechados.
— A tua mãe morreu?
— Não. — Parecia sobressaltada. — Ela não gosta de cozinhar.
— Também não teria gostado de Glatte. — Ele coçou o nariz curvo.
— Calicho... É a minha terra natal. Fica a sete anos-luz acima do cubo
deste canto do Quadrângulo. É... Um local muito bonito. Suponho que Ntaka
o chamaria «sadio», até... Há muito espaço, como no espaço. Isso ajuda. Frio
e não muito fértil, mas eles lá vão vivendo. A minha mãe e o meu pai
repartiram sempre o trabalho... Têm uma quinta. — Ela partiu mais pão.
— Que é que eles achariam se te tornasses astronauta?
— Nunca procuraram impedir-me, mas acho que não gostariam. Penso
que quando se está tão ligado à terra é difícil imaginar desejar ser tão livre...
Ficaram tristes por me perderem, eu fiquei triste por os deixar...
De repente, a boca dela começou a tremer.
— Sabes, nunca conseguirei vê-los outra vez, nunca terei tempo. As
nossas viagens duram tanto tempo... Eles irão envelhecer e morrer. — As
lágrimas caíram-lhe no prato. — E tenho saudades da minha c-casa. — As
palavras dissolveram-se em soluços, agarrou-se a ele, aterrorizada.
Ele deu-lhe uma massagem nas costas, impotente e silenciosamente,
desacostumado a lidar com solidão devido a cem anos de isolamento.
— M-Maris, posso vir ver-te sempre, estarás, sempre, sempre aqui
quando precisar de ti, e serás sempre meu amigo?
— Sempre. — Ele embalou-a suavemente. — Vem quando quiseres, fica
o tempo que quiseres, faz o jantar se quiseres, estarei sempre aqui...
***
... Até à noite, vinte e cinco anos depois, quando a tripulação do Who
Got Her-709 se juntou de repente à volta dele no bar, abraçando,
importunando, rindo.
— Olá, Soldado!
— Soldado, nós temos...
— Olha para isto, Soldado...
— Que aconteceu a...
— Brandy? — Disse ele estupidamente. — Onde está Brandy?
— Sinceramente, Soldado, realmente nunca esqueces uma cara, pois
não?
— Ah!, ah, aposto que não é da cara dela que ele se lembra!
— Ainda agora estava connosco. — Harkané espreitou facilmente por
cima das cabeças à volta dela. — Talvez tivesse ficado em qualquer parte.
— Talvez já tenha apanhado um cara? — Nilgiri estava impressionada.
— Ela podia, se qualquer pessoa podia, a malandrinha. — Wynmet
revirou os olhos.
— Oh, manda-nos o habitual, Soldado. Ela acabará por vir. Vem sentar-
te connosco quando ela vier. — Harkané acenou com uma mão com as
pontas dos dedos como o arco-íris. — Venham, irmãs, a bisbilhotice não sabe
bem antes de termos bebido um copo.
— Aquela marotinha!
Soldado começou a encher os copos com precisão, até notar que se
enganara na garrafa. Praguejando, bebeu-os, um a um.
— Olá, Maris.
Ele empurrou o tabuleiro.
— Olá, Maris. — Apareceram uns dedos à frente do seu rosto.
Sobressaltou-se. — Olá.
— Brandy!
Os fregueses ao longo do bar viraram-se para olhar, voltaram-se outra
vez.
— Brandy...
— Essa agora! Não estavas à minha espera? Já cá estão todos.
— Eu sei. Pensei... Quero dizer, eles disseram... Que talvez tivesses
saído com alguém — disse, tentando parecer natural — e...
— Então, Maris, por quem me tomas? — Ela ficou ofendida. — Só
queria esperar até que todos se tivessem acomodado, para eu te poder ter só
para mim. Pensavas que eu te ia esquecer? Cruel. — Ela pegou num saco
brilhante e pintalgado e colocou-o sobre o bar. — Olha, trouxe-te um
presente! — Abrindo-o, despejou um monte de coisas em cima do balcão. —
Livros, cassettes, botões, todo o tipo de coisas para se ver. Disseste que leste
os livros todos cinco vezes; por isso recolhi em toda a parte. Alguns devem
ser novos... Não gostas deles?
— Eu... — Ele tossiu. — Gosto imenso deles! Sinto-me... Confundido.
Nunca ninguém me trouxe nada. Obrigado. Muito obrigado. E sê bem-vinda
de novo a New Piraeus!
— Estou contente por estar de volta! — Ela esticou-se por cima do bar,
abraçou-o, beijou-lhe o nariz. Trazia um cinto novo de metal embutido a
pedras preciosas. — Estás tal qual eu me lembrava de ti.
— Tu estás mais bonita.
— Lisonjeador. — Ela irradiava alegria. O cabelo da cor da cinza
chegava-lhe aos seios, os ângulos do rosto estavam mais pronunciados. Os
olhos de mercúrio agora abarcavam tudo sem espanto. — Sabes, hoje faço
vinte e um.
— Estás a brincar comigo? Isso merece uma celebração. Queres beber
um brande?
— Ainda tens algum? — Os olhos dilataram-se um pouco. — Oh, quero!
Devíamos fazer disto uma tradição, enquanto ele durar.
Ele sorriu com satisfação. Beberam aos aniversários e às estrelas.
— Esta noite não está muita gente, pois não? — Brandy relanceou o
olhar pela sala, fazendo pequenos nós no cabelo. — Não está como da última
vez.
— É às revoadas. Tenho sempre alguns pescadores, são muito
tradicionalistas... Desisti de me manter a par dos horários das naves.
— Nem mesmo nós acreditamos nos nossos, nunca são certos. Estamos
aqui com um mês de atraso.
— Eu sei, por acaso reparei... — Ele fechou uma capa dobrada, alisou o
livro. — Então, gostaste do teu primeiro Quadrângulo?
— Uma maravilha! Oh, Maris, se começo nunca mais acabo, a Cidade
das Nuvens em Patris, o Porto Franco em Sanalareta... E o Plêiades... E os
oceanos de trevas, gelo e fogo. — Os olhos dela brilharam, desviaram-se dele
em direção ao infinito. — Não podes imaginar...
— É o que me dizem.
Ela examinou o seu rosto em busca de amargura, não encontrou nada.
Ele abanou a cabeça.
— Sou homem e cyborg. São duas regras da Liga contra mim e eu não
as posso alterar. Então, para quê ofender-me? Gosto das histórias. — A boca
contraiu-se.
— Gostas de poesia?
— Às vezes.
— Então posso mostrar-te a minha? Estou a escrever um ciclo de
poemas sobre o espaço. Talvez um dia venha a ter um livro, não os mostrei a
mais ninguém, mas se tu gostasses...
— Claro que gostava.
— Então vou procurá-los. Acho que devia juntar-me ao grupo. Irão
pensar que sou antissocial. Estremeceu. — Irão falar de mim! E como uma
cidade pequena, somos tão maus como os labregos.
Ele riu-se.
— Não faças isso, vais decepcionar-me. Até logo. Ah!, — escuta, queres
preparativos como da outra vez? Para dormir.
— Servir-me da tua casa? Posso? Não quero desalojar-te.
— Com os diabos, não. És bem-vinda.
— Cozinharei para ti.
— Comprei alguns ovos.
— Estás combinado! Boa leitura.
Ela passou por entre as mesas, acenou a pescadores e astronautas; ele viu
o seu rosto sorridente a diluir, a toldar, com reflexos prateados. Metendo
novamente os livros no saco, encostou-o à canela atrás do bar. E, algum
tempo depois, viu-a sair com um cara.
Na manhã do décimo terceiro dia, ele acordou e deparou com Brandy a
dormir profundamente no monte de almofadas peludas perto da porta.
Curioso, olhou através da janela para um campo de névoa cinzento. Era a
primeira vez que ela chegara a casa antes de o dia raiar. Casa? Levantou-a
com todo o cuidado das almofadas; ela suspirou, os braços encontraram-no e
durante o sono começou a beijar-lhe o pescoço. Levou-a para a cama e
pousou-a suavemente, curvou-se para... Não. Ele afastou-se, saiu do quarto.
Só dormira com ela uma vez. Há vinte e cinco ou vinte e três anos, sem
palavras, ela dissera-lhe que não voltariam a ser amantes. Mantinha os
costumes. Uma astronauta nunca tinha o mesmo homem mais de uma vez.
Na cozinha aqueceu um jantar congelado, e comeu sozinho.
***
— Que é aquilo? — Brandy apareceu ao lado dele, embrulhada num
cobertor. Ela deixou-se cair nas almofadas onde ele estava descalço, a beber e
sem prestar atenção ao TD.
— Propaganda tridimensional: o Oro Morning Mine Report. Levantaste-
te muito cedo, ainda não é meio-dia.
— Não tenho sono. — Bebeu um pequeno gole do vinho dele.
— Regressaste muito cedo, também. Há algum problema?
— Não... É que... Não acontecia nada, sabes. Não há mais grupos,
partiram todos, menos eu. — Ela levantou a cabeça. — Que é isto, afinal...
Uma inquisição? «Regressaste a casa muito cedo, não foi?» — Lançou-lhe
um olhar cheio de indignação e desatou a rir.
— Estás doida. — Ele sorriu ironicamente.
— Que aconteceu ao teu sofá? — Ela deu pancadas nas almofadas.
— Desfez-se. Sabes que passaram vinte e cinco anos.
— Oh! E pena... Maris, posso ler-te os meus poemas? — Séria de um
momento para o outro, tirou uma agenda estragada das pregas do cobertor.
— Claro. — Ela reclinou-se, viu darem-se transformações subtis no
rosto dela, e sentiu começarem nele mesmo um orgulho crescente e uma
possessibilidade tema.
... Até que, perdidos nas trevas, nós
dançamos ao som da suave canção das estrelas.
Era o último poema.
— Intitula-se «Genesis». Fala do começo de um voo... E de uma vida. —
Os seus olhos encontraram de novo o mundo, encontraram uns olhos negros a
fitá-la.
— «Adornados com estrelas ficaremos para sempre, triunfando sobre a
Morte, a Sorte e sobre ti, ó Tempo.» — Ele desviou os olhos, puxando a borla
de uma almofada. — Não... Milton, Maris não... Nunca seria capaz de fazer
aquilo. — Ele olhou para trás, maravilhado. — São belos, tu és bela. Faz um
livro. — Os dons são para ser dados, e tu és dotada.
A alegria cintilou nas suas faces.
— Achas mesmo que alguém gostaria de os ler?
— Acho. — Ele acenou com a cabeça, tentando encontrar as palavras
para lhe dizer. — Nunca ninguém me fez... Ver as coisas dessa maneira...
Como se eu... Fosse contigo. Outros iriam se pudessem. Em direção ao céu.
Ela virou-se com ele para a janela; estavam taciturnos. Passado um
tempo ela aproximou-se, sorrindo.
— Sabes o que gostaria de fazer?
— O quê? — Ele expirou profundamente.
— Ver a tua terra. — Ela pôs a agenda de lado. — Vamos dar um
passeio em New Piraeus. De facto nunca a vi de dia... A parte natural. Quero
ver a sua beleza de perto, antes que desapareça. Podemos ir?
Ele hesitou.
— Tens a certeza de que queres ir?
— Claro. Vá lá, preguiçoso. — Fez-lhe sinal para que se levantasse.
E ele perguntou de novo a si mesmo por que razão ela tinha vindo mais
cedo para casa.
Assim, na última tarde levou-a através das ruas tortuosas, empedradas,
onde pequenas casas caiadas exigiam apoios firmes. Subiram degraus
estreitos, a arfar, apreciaram o vento do mar, compraram fruta a uma mulher
com um cesto, sorridente e rija como o couro.
— Hum... — Brandy lambeu o suco da polpa carmesim. — Quem era a
mulher? Ela chamou-te «Sojer», mas não consegui perceber o resto... Nem te
conseguir perceber! O dialeto é assim tão pouco claro?
Ele limpou o queixo.
— Está a ficar cada vez pior, com todos os que chegam. Mas habituas-te
a tudo na parte mais baixa da cidade... Um conhecimento antigo, conheci-a
durante a epidemia, ela estava doente.
— Epidemia? Que epidemia?
— Oro Mines estava a mandar vir trabalhadores de fora, partiram antes
da tua última visita, por causa do aumento da procura de matérias-primas.
Um dos novos trabalhadores tinha uma doença que nós não tínhamos. Matou
cerca de um terço de New Piraeus.
— Oh, meu Deus!
— Isso foi há cerca de quinze anos... Os laboratórios de Oro sintetizaram
finalmente uma vacina e repovoaram a cidade. Mas continuam sem saber que
doença era.
— É como uma cilada, viver num único planeta.
— A maior parte de nós somos obrigados a isso. Tem as suas
compensações.
Ela acabou de comer o fruto, e mudou de assunto.
— Tu ajudaste a tratar deles, durante a epidemia?
Ele acenou com a cabeça.
— Parecia estar imunizado, por isso.
Ela bateu-lhe ao de leve no braço.
— És muito bom.
Ele riu-se; desviou os olhos.
— Seria mais correto dizer mais plástico.
— Nunca adoeces?
— Quase nunca. Nem sequer consigo, ficar muito embriagado. Um dia
talvez acorde todo de plástico.
— Continuarias a ser muito bom. — Recomeçaram a andar. — Que
disse ela?
— Disse: «Ah, soldado, arranjaste uma namorada.» Parecia satisfeita.
— Que disseste?
— Disse: «É verdade!» — A sorrir, não pôs o braço à volta dela; os seus
dedos bateram no vazio.
— Bem, fico contente por ela gostar... Acho que a maioria das pessoas
não gostaria.
— Não olhes para elas. Olha para além. — Ele mostrou-lhe o mar,
verdes e azuis em surdina por baixo da confusão de marfim da cidade com
telhados planos. Para as montanhas do norte e sul que, como tecido
amarrotado, chegavam à praia.
— Oh, o mar, sempre adorei o mar! Na minha terra estávamos cercados
por ele, numa ilha. O espaço é como o mar, ilimitado, constante, sempre em
mutação...
—... Astronauta! — Duas raparigas aos risinhos passaram por eles na rua
fazendo um círculo enorme, com as saias escuras a roçarem nas barrigas das
pernas.
Brandy corou, franziu as sobrancelhas, procurou de novo o mar.
— Eu acho que estou a ficar cansada. Creio que vi o suficiente.
— Seja como for não viste muito lá em cima, apenas a parte nova. —
Ele pegou-lhe na mão e iniciaram de novo a descida. — É que nós somos
uma raridade aqui em cima. — Um homem forte com um cafetã pesado
passou por eles dando um empurrão. Maris viu nos seus olhos frios uma
mulher desonesta e o seu companheiro demasiado velho.
— Eles ou olham de esguelha em censuram. — Ele sentiu as unhas dela
a marcarem-lhe a carne. — Qual será o problema?
— Ciúme... Mortalidade. Vocês, astronautas, são uma ameaça para eles.
Nunca pensaste nisso? Imortais livres e belos...
— Eles sabem que não somos imortais, apenas temos uma vida um
pouco mais longa que qualquer pessoa.
— Também sabem que chegam aqui de uma viagem de vinte e cinco
anos quase com o mesmo aspecto de quando partiram. Talvez não vos
reconheçam, mas sabem. E eles estão vinte e cinco anos mais velhos... Por
que pensas que andam com casacos soltos?
— Para terem mau aspecto. Devem ser terrivelmente reprimidos.
Ela levantou a cabeça com um movimento súbito.
— E são! Mas não é essa a razão. É porque querem ocultar as mudanças.
E para te ridicularizarem, imitando à sua maneira, tu que tens sempre o
mesmo aspecto. Fazem-no desde que me lembro. Tu és tudo o que têm para
invejar.
Ela suspirou.
— Ouvi dizer em Elder que pintam desenhos na pele para esconderem as
mutações. Ntaka chamou-lhes «fixadores da mocidade», não foi? — A raiva
desvaneceu-se, os olhos ficaram frios como o mar, verde-acinzentados. —
Sim, penso nisso... Principalmente quando estás a escarnecer dos simplórios e
das suas vidas limitadas. E todos os indivíduos, anelantes e aterrados, às
vezes pensam que nos estão a usar, mas nós usamo-los sempre... Às vezes
penso que somos muito cruéis.
— Muito característico de um deus, Senhora Prateada da Lua.
— Não me chamavas isso desde... Aquela noite... Toda a noite. — A
mão dela cerrou-se penosamente. Ele não disse nada. — Penso que invejam
um cyborg pelos mesmos motivos...
— Pelo menos é mais fácil racionalizar... E mais difícil imitar. — Ele
encolheu os ombros. Na maioria dos casos, não nos metemos uns com os
outros.
— E por isso temos de esperar uns pelos outros, nós, os imortais. Mesmo
assim é uma bela cidade. Não quero saber o que pensam.
***
Ele sentou-se, com os dedos presos no metal torcido da pulseira grossa, a
ouvir a voz dela a compor desenhos entre o silvo da água corrente. Lavando
os olhares de desprezo... Distraidamente, releu o terceiro parágrafo da página
pela oitava vez, e a cantoria terminou.
— Maris, tens algum...?
Ele levantou os olhos para o seu corpo nu, esguio e brilhante, na soleira
da porta.
— Brandy, com os diabos! Não estás entre planetas! Queres que a rua
inteira veja?
— Mas eu sempre... — Embaraçada, ao tomar consciência da situação,
fugiu.
— Ele ficou a olhar fixamente para as janelas toldadas pelo sol,
perfeitamente-consciente de que não havia ninguém que pudesse espreitar. O
fogo extinguiu-se lentamente, a sua respiração tomou-se menos ofegante.
Ela voltou timidamente, escondendo-se num acolchoado azul-prateado e
deixando-se cair na beira de uma cadeira.
— É que nunca pensei nisso. — A voz foi muito fraca.
— Está bem. — Envergonhado, desviou os olhos dela. — Desculpa por
ter gritado contigo. Que me querias perguntar?
— Não importa. — Ela puxou com força o cabelo emaranhado. — Oh,
com os diabos! — Sentiu-o a olhar para ela, tentou sorrir. — Ah, sabes, estou
contente por termos encontrado Mima em Treone. Já não sou a irmãzinha.
Estava farta de ser a novata há tanto tempo. Ela é...
— Brandy...
— Hum?
— Por que razão não admitem cyborgs nas tripulações?
A surpresa apanhou-a.
— É uma norma.
Ele abanou a cabeça.
— Não me digas «É uma norma», diz-me porquê.
— Bem... — Ela alisou as madeixas de cabelo molhado com os dedos.
— Tentaram, e não deu resultado. Tal como acontece com os homens, não
suportavam o espaço, sucumbiam, o equilíbrio hormonal não estava bem.
Com os cyborgs, as tensões entre o real e o artificial no corpo eram
demasiado fortes, sucumbiram também... Ao princípio tentaram a
cyborgânica, como uma forma de permitir que os homens continuassem no
espaço, como tentaram alterar o equilíbrio hormonal. Nenhum resultou.
Física e psicologicamente, havia uma tensão demasiado forte. Assim
acabaram por fazer um regulamento, nenhum homem nas tripulações
espaciais.
— Mas isso foi há mais de mil anos, a cyborgânica evoluiu. Sou mais
saudável e tenho uma vida mais longa que qualquer pessoa normal. E mais
forte. — Ele inclinou-se para a frente, tenso da discussão.
— E mais lento. Não precisamos de força, temos meios artificiais. E,
seja como for, um homem teria ainda de enfrentar uma tensão maior, isso
seria perigoso.
— Há cyborgs fêmeas nas tripulações?
— Não.
— Já fizeram outra tentativa?
— Não!
— Estás a ver? A Liga tem um fecho no espaço, mantêm-no com leis
arcaicas. Não querem la mais ninguém! — Uma súbita irritação fez tremer a
voz.
— Talvez... Nós não. — Os dedos fecharam-se, abriram-se, fecharam-se
sobre os braços macios e fortes da cadeira; os olhos estavam da cor do fumo
serpeante. — Atribui-nos a culpa? Viajar no espaço é a nossa vida, é a nossa
força. Temos de manter os outros afastados, tudo muda à nossa volta, não há
continuidade. Só nos temos uns aos outros. E por isso que temos as nossas
normas, é por isso que nos vestimos da mesma maneira, somos parecidos,
temos o mesmo comportamento, não podemos fazer mais nada e
continuarmos sãos de espírito. Temos de viver separadamente, sempre. —
Ela puxou o cabelo para a frente, fazendo nós com nervosismo. — E... É por
isso que nunca temos o mesmo amante duas vezes, também. Temos
necessidades que precisamos de satisfazer, mas não nos podemos dar ao luxo
de... Fazer amizades, de nos deixarmos envolver, prender. É um perigo, é
uma instabilidade... Percebes, não percebes, Maris? É por isso que eu não...
— Ela calou-se com os olhos a queimarem-no com mágoa e, por baixo dela,
medo.
Ele conseguiu sorrir.
— Ouviste-me queixar?
— Tu não estavas a...? — Ela levantou a cabeça.
Ele acenou lentamente com a cabeça, começou a sentir dor.
— Creio que estava.
Mas eu não mudo. Ele fechou repentinamente os olhos, antes que ela os
lesse. Mas não é esse o problema, pois não?
— Maris, queres que eu não fique mais aqui?
— Não, não... Eu compreendo, não há problema. Eu gosto da
companhia. — Ele espreguiçou-se, abanou a cabeça. — Usa só uma toalha,
está bem? Sou apenas humano.
— Prometo... Que manterei os olhos abertos, no futuro.
Ele pensou no futuro que começaria com a aurora quando a nave subisse,
e não disse nada.
***
Ele foi do quarto à porta a praguejar e a tropeçar, para a encontrar ali à
espera, radiante e completamente inesperada.
— Surpresa! — Ela riu-se e estreitou-o nos braços, deslocando o roupão
meio apertado.
— Meu Deus! Olá! — Ele puxou-a para dentro e bateu com a porta.
— Queres que seja preso por atentado à moral pública? — Ele virou-se
de costas, arranjando-se, enquanto ela dava risadinhas atrás dele.
Virou-se de novo para ela, ensonado, tentando acreditar.
— Vieste mais cedo... Quase duas semanas?
— Eu sei. Não podia esperar até à noite para te apanhar de supresa. E
apanhei-te, não apanhei? Ela revirou os olhos. — Ouvi-te vir à porta!
Ela sentou-se, enroscando-se no sofá listrado, que estava a ficar velho, a
olhar de esguelha através da janela enquanto ele apertava as sandálias.
— Costumavas ter tanto espaço. As casas não encheram por completo o
teu desfiladeiro, pois não? — O tom da sua voz tomou-se melancólico.
— Ainda não. Se isso alguma vez acontecer, não ficarei aqui para o
presenciar... Como foi a viagem desta vez?
— Maravilhosa, outra vez... Não posso imaginar que não seja assim.
Podias vê-lo uma centena de vezes, e nunca o verias todo...
Através do teu olho de cristal.
Mactav, vejo a estrela da meia-noite
a virar-se de dentro para fora...
— Oh, adivinha o que é! Os meus poemas! Terminei o ciclo durante a
viagem... E vai ser publicado, em Treone. Elogiaram-no muito.
Ele acenou presunçosamente com a cabeça.
— Têm bom gosto. Também devem ter mudado.
— «Um renascimento em curso», quer dizer que assumiram uns ares
muito pretensiosos, na última década. Os indivíduos são de facto outra
coisa... — Lembrando-se, ela abanou a cabeça. — Foi um deles que me falou
do editor.
— Mostraste-lhe os teus poemas?
— Infelizmente, não. Ele estava-me a falar dos dele. Por isso pensei:
«Que tenho a perder?»
— Quando é que tens uma cópia?
— Não sei. — O desapontamento deu-lhe um puxão aos lábios. —
Talvez nunca tenha uma. Ao fim de vinte e cinco anos estarão esgotados. «A
Arte é longa e a Vida é breve». Longfellow teve-a fora do tempo. Mas eu
copiei alguns dos poemas para ti. E também te trouxe mais alguns livros. Há
um que devias ler. Suplantou Ntaka há anos no Inside. Pensava que era
inferior, mas quem somos nós... De que te estás a rir?
— Que aconteceu àquela garota sardenta de rabicho de cavalo?
— Quê? — O nariz contraiu-se.
— Que idade tens agora?
— Vinte e quatro. Oh...! — Ela parecia contente.
— A Senhora Poeta quer ir jantar comigo?
— Oh, comida, oh, se quero! — Deu um salto, apanhou-o a sorrir
ironicamente, ficou imóvel. Adorava. Podemos ir ao Good Eats?
— Fechou logo depois de partires.
— Oh... A música era frenética. Então, que tal aquele restaurante onde se
come peixe e marisco, com o nome de um peixe...?
Ele abanou a cabeça.
— O dono morreu. Há vinte e cinco anos.
— Com os diabos, nunca podemos ficar com nada. — Ela suspirou. —
Por que é que não fazemos o nosso jantar? Eu ainda estou aqui. E iria adorar.
Naquela noite, e todas as outras noites, ele ficava junto ao bar e via-a
sair com um homem ou com um grupo alegre de amigos. Uma vez acenou-
lhe com a mão; o pé de um copo inquebrável estalou-lhe na mão; ele deu-lhe
um pontapé e atirou-o para debaixo do balcão, confuso e irritado.
— Mas três noites nas duas semanas ela chegou cedo a casa. Desta vez,
intencionalmente, não lhe fez perguntas. Em sinal de reconhecimento, ela não
lhe mentiu. Dormia no sofá e passava a tarde com ele.
***
Eles voltaram à nave, caminhando a passo ao longo da areia fina e
coberta de jade da praia. Maris olhou para a orla do mar, onde dedos
espumosos se estendiam, encolhiam, e se voltavam a estender.
— Partes amanhã, hem?
Brandy acenou com a cabeça.
— Hum... Hum!
Ele suspirou.
— Maris, se...
— Quê?
— Oh... Nada. — Ela sacudiu a areia da bota.
Ele viu o mar a estender-se, a recuar, a estender-se...
— Já alguma vez desejaste ver uma nave? Quero dizer, por dentro.
Ela abriu a porta da nave, com o corpo estranhamento ansioso.
Ele seguiu-a.
— Sim.
— Gostarias de ver a minha, a Who Got Her?
— Pensava que era ilegal.
— «Nenhum homem vivo porá os pés numa nave espacial.» É uma
norma da Liga, mas baseia-se numa superstição que tem pelo menos mil anos
«Homens em naves dão azar.» O que é um disparate aqui. A tua presença a
bordo em porto não nos vai dar azar.
Ele parecia incrédulo.
— Gostarias que visses a nossa vida, Maris, como eu vejo a vossas. Isso
não tem nada de mal. E, além do mais — ela encolheu os ombros —,
ninguém saberá, porque agora não está lá ninguém.
Ele viu um sorriso malévolo, e fez os possíveis por corresponder.
— Vou se tu fores.
Entraram. A nave deslocou-se silenciosamente da abra. New Piraeus
elevou-se para ir ao seu encontro do outro lado da cumeada. O sol da tarde
fazia saltar faíscas douradas de janelas escondidas.
— Gostava que não mudasse! Oh, lá está outro. É um arranha-céus!
Ele relanceou o olhar pela baía.
— Acabado há pouco. Talvez New Piraeus esteja a crescer, graças a Oro
Mines. Quase não mudou durante mais de um século. Passados todos estes
anos, é um pouco assustadora.
— Mesmo passados três... Ou vinte e cinco? — Ela apontou. — Mesmo
lá em baixo, Maris, fica a saída de ar.
A nave estava na água por baixo do casco semitransparente do WGH —
709.
Maris olhou para cima e para trás.
— É muito maior do que eu imaginava.
— Ao todo pesa vinte mil toneladas, vazia. — Brandy deitou a mão à
escada suspensa. — Parece que vamos ter de subir assim... Está bem?
Olhou para ele por cima do ombro.
— Certamente. Moroso, talvez, mas seguro.
Eles entraram através da saída de ar, desceram corredores sem fazerem
barulho, passaram por compartimentos de armazenamento, cavernosos e
sombrios.
— A nave é toda transparente? — Ela tocou numa parede, plástico
encontrou plástico. — Como consegues ter privacidade?
— Por que estás a falar tão baixo?
— Não estou, não estou. — E tu?
— Chiu! Por que está tudo tão silencioso? — Ela parou, o orgulho
começava a surgir no seu rosto. — A nave pode estar quase transparente,
como agora; mas geralmente não está. Todas as paredes e o casco estão
polarizados, podemos torná-los opacos. De qualquer maneira, são só apoios,
constituem quase toda a nave. Os cubículos dos passageiros com estase são lá
em cima. Aqui fica o elevador. Vamos subir à sala de controlo.
— Brandy! — Uma rapariga vestida de vermelho com um crachá virou-
se a eles enraivecida quando saíram do elevador. — Brandy, que diabo
pretendes? Oh! És tu, Soldado? Meu Deus, pensei que ela tinha trazido um
homem para bordo.
Maris titubeou.
— Olá, Nilgiri.
Brandy estava muito pálida ao lado dele.
— Viemos só para.... Hum, fazer uma breve visita a Mactav.
Ultimamente tem andado um pouco taciturna, sabes. Pensei que lhe podíamos
ler... Que fazes tu aqui? — E uma palavra sussurrada: — Cadela.
— Só isto: examinar Mactav. Harkané mandou-me sair. — Nilgiri deu
uma vista de olhos aos painéis atrás dela, olhou de novo para Maris,
repentinamente embaraçada. — Hum, olhem, uma vez que já estou aqui não
se preocupem, está bem? Vou lá para baixo e toco um pouco e música para
ela. Por que não... Hum, não mostrar a nave ao Soldado? — O rosto redondo
estava a ficar vermelho como uma maçã. — Adeus! — Ela passou por eles,
entrou no elevador e desapareceu.
— Diabo, às vezes é tão estúpida.
— Não foi por querer.
— Oh, eu devia ter...
—... Feito simplesmente o que fizeste. Ela estava desolada. E pelo
menos não estamos a cometer nenhuma transgressão.
— Meu Deus, Maris, como aguentas isto? Devem fazer-te isto a toda a
hora. Não te ofendes?
— Claro que ofendo. Quem não se ofenderia? É que me fartei de me
enfurecer. E, além do mais — ele olhou de relance para as portas fechadas
—, além do mais, ninguém precisa de um empregado de bar mesquinho.
Anda daí, mostra-me a nave.
Os dedos entrelaçados desprenderam-se, pegaram na mão dele.
— Por aqui, por favor! Mesmo à tua frente fica a nossa sala de controlo.
— Puxou-o para a frente debaixo da cúpula brilhante como o dia. Ele viu
uma tabuleta escrita à mão por cima do painel central: TERRA DE
NINGUÉM. — Daqui programamos o nosso computador. Esta área é para
pilotagem AAFAL, concebida pela primeira vez por Ursula, uma das
primeiras astronautas que...
— Que é que isso tem de horrível?
— O quê?
— Todos os astronautas que conheço dizem que a pilotagem da nave é
«horrível».
— Oh!, «horrível» não, QTRCL: Quase tão rápida como a Luz. O que é
verdade. É assim que a chamamos. Também há um nome técnico.
— Um. — Ele parecia um pouco desapontado. — Acho que estou
habituado a... — Transformou-o de novo em curiosidade, enquanto a via
sorrir de satisfação. — Eu creio que é diferente da antigravidade! — Setenta
anos antes de ela nascer, ele aprendera os princípios da tecnologia espacial.
— Muito. — Ela deu uma risadinha de repente. — As coisas
«horríveis», humm... Nós utilizamos uma unidade AG para sair e entrar nos
sistemas solares. Funciona como as que existem nas naves, atira-nos para fora
do planeta, e por fim para fora de todo o sistema, até atingirmos a velocidade
de ignição QTRCL. Com o AG alcançamos apenas frações da velocidade da
luz, mas é o suficiente para concentrar gases e poeira interestelar. As nossas
redes de força alimentam-nos a partir da unidade de pilotagem, onde são
convertidos em energia, que aumenta a nossa velocidade e torna a unidade
mais eficiente... Até nos deslocarmos quase à velocidade da luz.
— Utilizamos o AG para nos protegermos das forças de aceleração e
para nos ajudar a chegar a bom porto depois do abrandamento da velocidade.
A partida e a chegada podem ocupar-nos durante quase toda a viagem.
Quanto mais nos afastamos no espaço menos energia AG recebemos da
massa do sistema, e menos muda a velocidade. Todavia, é um momento
agradável. Podem ver-se as forças AG através do casco polarizado, a
envolver-nos num arco-íris em movimento...
— E fica-se isolado. — Ela encostou-se a um painel silencioso e bateu
em botões com os punhos. A sala começou a ficar escura — Só com trevas...
E estrelas. — E apareceram estrelas, na escuridão da exibição de um
planetário, mosquitos de fogo iluminando o seu rosto e ombros e os dele. —
Gostas das nossas estrelas?
— Estamos aqui dentro?
Quatro faixas azuis juntaram luzes no ar.
— Aqui... No espaço perto deste canto do Quadrângulo. Este é o nosso
roteiro para a viagem do Quadrângulo; vê o lado arqueado e o brilho, é o
Plêiades. Patris... Sanalareta... Treone... De novo a Oro. As outras linhas
dispõem-se também em ziguezague, mas não se vê. Agora vem comigo...
Com um foguete de energia, abrimos as nossas redes AAFAL no espaço...
Ele seguiu a sua voz nas trevas, onde arabescos tremulantes apanhavam
partículas de gás interestelares, e o nada impossível ardia com energia
infinita, potencial transformado e transformador. Com a sabedoria de um
milhar de anos uma nave da Liga atravessava oceanos, sem limites,
percorrendo as correntes incertas do vácuo, penetrando nos ventos estéreis do
espaço. As estrelas cintilavam como neve no casco curvo, lançando punhais
gelados de luz que se transformavam imperceptivelmente em azuis espectrais
à frente dele, ficavam vermelhos quando olhava para trás:
imperceptivelmente, o tempo expandia-se, a velocidade aumentava e com ela
a energia. Viu uma bruma prateada à direita a aparecer no seu caminho, uma
parede de sombra líquida... O Plêiades, um banco infinito de névoa ígnea,
incendiada de dentro por ilhas de fogo ocultas. Gavinhas de brumas
tremeluzentes viradas para fora através de centenas de biliões de quilómetros,
as redes encontraram uma colheita abundante, aproximaram-se, atiraram
violentamente a nave para o gume de nuvem.
A nebulosidade envolveu-o em círculos unidos de luz colorida, cercou-o
de brilho, quando as redes desabaram na direção da nave, rebentando de
energia, protegendo o núcleo frágil da fúria muda da sua passagem. A
aceleração centuplicou. À volta dele, as rotações Doppler tomaram-se
cerúleas e vermelho-escuras. Lentamente, o brilho fixo urdiu parábolas de
fumo cintilante, passando velozmente até parecer que a massa chamejante de
nuvens e estrelas lavava tudo à sua frente, ficando com uma brancura
azulada, arrastando cinzas.
E, subitamente, a nave saltou uma vez mais para dentro de um vácuo,
um universo transformado numa taça de borracha brilhante, distendendo
perto dele, afastando-se cada vez mais dele em direção a um ponto cintilante
na escuridão. As redes encolhidas apanhavam o vácuo próximo e ficavam
cheias. A velocidade chegou aos 99,9% da velocidade da luz... Manteve-se
constante, quando a conversão da matéria em energia cessou dentro da nave
e, na devida altura, com um movimento vacilante de força prateada, começou
uma vez mais a dissipar-se. O tempo cedeu lentamente, o universo pôs de
parte a sua indiferença. Uma estrela aumentou à frente deles: o Sol de Patris.
Surgiu um sol rosado e esplendoroso por cima da Cidade das Nuvens em
Patris, a nove meses e sete anos-luz de Oro... E, de novo, Patris desapareceu;
e o cintilante e impudente Porto Franco de Sanalareta; moveram-se vagarosa
e silenciosamente para Treone através da imensidão sem gás, procurando
corrente e argueiro nos sulcos estéreis de naves com quinhentos anos... E
outra vez...
Maris viu-se no meio de estrelas brilhantes e pequenas como mosquitos,
numa nave na baía de New Piraeus. E apercebeu-se de que ela se calara. A
mão esfregou o caracol de cobre do seu cabelo, com os olhos brilhantes como
os de uma criança.
— Não me disseste que era feiticeira no teu tempo livre.
Ele ouviu-a sorrir.
— Obrigada. Todavia, Mactav faz a verdadeira magia. Os efeitos
especiais são fantásticos. Ela pode mostrar-te toda a região habitada da
galáxia, com todos os poliedros de tráfego, como uma teia de aranha
salpicada de orvalho suspensa no ar. — A luz do dia voltou ao painel. —
Mactav... Aquele é o banco dela, além. Comanda a maior parte da navegação,
a manutenção, todas essas coisas, também. Às vezes parece que estamos
quase prontos para a viagem! Mas evidentemente que estamos prontos para
Mactav.
— Quem é ou o que é Mactav? — Maris espreitou para dentro de um
écran obscurecido, viu uma coisa de âmbar a tremeluzir no fundo, recuou.
Nunca a viste, nem nós, mas estiveste a olhar para ela agora mesmo. —
Brandy estava ao lado dele. — Deve estar a escutar Giri lá em baixo... Está
bem, está bem! Uma unidade Mactavia é o cérebro, o sistema nervoso de uma
nave, ela verifica cuidadosamente os sinais vitais, calcula, ajusta. Nós só
temos de perguntar. As vezes nem mesmo isso temos de fazer. A memória é
de uma astronauta real, introduzida nos circuitos... De alguém que morreu
irrevogavelmente ou atingiu a idade da aposentação, mas que quis continuar a
bordo. Um sistema humano é mais seguro, mais versátil... E muito mais
barato que qualquer máquina que tenha sido fabricada.
— Então a tua Mactav é uma espécie de cyborg.
Ela sorriu.
— Bem, acho que sim. De certo modo...
— Mas os regulamentos da Liga Espacial continuarão a impedir cyborgs
nas tripulações.
Ela parecia aborrecida.
Ele encolheu os ombros.
— Desculpa. Foi um disparate... Que é aquilo vermelho lá em baixo?
— Oh, é o nosso «estômago»: a unidade AAFAL, onde — ela sorriu
ironicamente — absorvemos pó das estrelas e o transformamos em energia. E
a única coisa que nunca fica transparente. O vermelho é a placa de defesa.
— Como funciona?
— Realmente não sei. Posso pô-lo a trabalhar, mas não sei porquê...
Agora sou apenas uma técnica de categoria cinco e meio. Se fosse da
categoria seis poderia dizer-te. — Ela olhou de esguelha para ele. — Ah! Até
que enfim que te impressionei!
Ele riu-se.
— Não és tão estúpida como pareces. Ele qualificara-se como seis e
meio há um século, sem se maçar.
— É bom que estejas a brincar.
— Estou. — Ele segui-a através do soalho que ficava opalescente,
olhando sempre para baixo. — É como caminhar sobre água.... Porquê
transparente?
Ela sorriu-lhe a olhar para o céu.
— Porque é tudo tão belo lá fora.
Foram descendo, atravessando pavimentos, para entrarem num salão. Ele
ouviu música ao longe.
— E aqui que a minha cabina...
De repente, a música transformou-se numa agonia impossível de som,
misturada com gritos agudos.
— Meu Deus! — E Brandy desapareceu do lado dele, pelo corredor
abaixo e através de uma parede tremente.
Ele encontrou-a no lado de dentro da porta, rígida do medo. No outro
lado do compartimento a parede vomitava ondas ofuscantes de cor, com o
barulho ensurdecedor de tubos de órgão de cristal. Nilgiri estava acocorada
no chão, com as mãos a comprimirem o estômago, a guinchar histericamente.
— Para, Mactav! Para! Para!
Ele tocou no ombro de Brandy. Ela levantou os olhos e agarrou-lhe o
braço. Juntos arrastaram Nilgiri, que chorava, para a porta, longe da
confusão.
— Nilgiri! Nilgiri, que aconteceu? — Brandy gritou-lhe ao ouvido.
— Mactav, Mactav!
— Porquê?
— Ela fez uma... Descarga através dele, ela é doida varrida... E ela
pensa... Oh, para, Mactav! — Nilgiri segurou-se, a soluçar.
Maris entrou no compartimento, com as mãos nos ouvidos.
— Como é que se desliga?
— Maris, espera!
— Como, Brandy?
— Está eletrificado, não lhe toques!
— Como?
— A esquerda, à esquerda, três interruptores. Maris, não faças isso!
Para, Mactav, para...
Ele ouviu-a gritar quando baixou a mão esquerda, hesitou, massacrado
com um barulho ensurdecedor. Saltaram faíscas quando carregou nos
interruptores no painel do órgão, uma, duas vezes, novamente.
— Isso-isso-isso-isso! — A voz dela ecoou ao longo de corredores
silenciosos. Nilgiri deslizou pela ombreira da porta abaixo e sentou-se no
chão a soluçar.
— Maris, estás bem?
Ele ouviu-a indistintamente através do algodão. Aturdido de alívio,
afastou-se da consola reluzente, recuando, acenando com a cabeça, e
atravessou o compartimento.
— Homem — a voz suave e cavernosa ecoou, ecoou, ecoou. — Que
fazes aqui?
— Mactav? — Brandy, preocupada, olhava fixamente para a esquerda
do Soldado.
Ele voltou-se. No outro lado da sala estava outro olho artificial, âmbar,
ígneo.
— Branduin, trouxeste-o para a nave! Como foste capaz de fazer uma
coisa destas? É proibido!
— Oh, meu Deus. — Nilgiri, aterrorizada, recomeçou a chorar. Brandy
ajoelhou-se e pegou nas mãos empoladas de Nilgiri. Ele viu raiva no seu
rosto. — Mactav, como foste capaz de uma coisa destas?
— Brandy! — Ele abanou a cabeça. Assustado, respirou fundo. —
Mactav... Eu não sou um homem. Estás enganada.
— Maris, não...
Ele franziu as sobrancelhas.
— Tenho cento e quarenta e um anos... Metade do meu corpo é sintético.
Sou tão humano como tu. Vê bem. — Ele mostrou as mãos.
— A parte do teu corpo que tem importância ainda é um homem.
Um sorriso agarrou-se-lhe aos lábios.
— Obrigado.
— Os homens são perversos, os homens destruíram...
— Maris. — Sussurrou Brandy. — Eles destruíram-na.
O sorriso vacilou.
— Mais alguma coisa que temos em comum. — O braço artificial fez
pressão na ilharga.
O olho dourado fitava-o.
— Cyborg.
Ele suspirou, dirigiu-se à porta. Brandy foi ao seu encontro, Nilgiri
encolheu-se aos seus pés, em silêncio, a olhar para cima.
— Nilgiri. — A voz estava cheia de pesar. Estes olharam para trás. —
Como posso perdoar-me a mim mesma por aquilo que fiz? Nunca, nunca
voltarei a fazer tal coisa.... Nunca. Por favor, vai para a enfermaria. Deixa-me
ajudar-te.
Lentamente, com a ajuda de Brandy, Nilgiri pôs-se de pé.
— Está bem. Está bem, Mactav. Agora vou para baixo.
— Giri, queres que nós...?
Nilgiri abanou a cabeça, com os dedos entrelaçados à frente dela.
— Não, Brandy, está tudo bem. Ela já está bem. Eu também, suponho.
— O sorriso vacilou. — Oh!... Ela começou a descer o corredor em direção
ao elevador.
— Branduin, Maris, peço-vos também desculpa. Eu... geralmente não
sou assim, tu sabes... — O âmbar desapareceu no olho.
— Foi-se embora?
Brandy acenou com a cabeça.
— Este é o primeiro computador fanático que vi.
E ela lembrou-se.
— A tua mão?
A sorrir, ele estendeu-lha.
— Intacta, vês? É um isolador.
— Ela tremeu. Mãos seguraram com ternura a mão que custava tocar.
— Sabes, Mactav na verdade não é assim. Mas, ultimamente, algo de
errado se tem passado, fica mal-humorada. Temos de a mandar examinar
quando chegarmos a Sanalareta.
— Não é perigoso?
— Acho que não... Deveras. É que ela tem problemas especiais. Ela está
ali dentro porque não teve outra alternativa, uma cultura com base em
conflitos destruiu a sua nave. Era muito nova, mas aquilo é tudo o que resta
dela.
— Uma tecnologia avançada. — Um trejeito. A memória moveu-se nos
seus olhos.
— Pediram imensa desculpa, fizeram tudo quanto puderam.
— Que lhes aconteceu?
— Cortámos contacto! E a norma número um. Temos de nos proteger.
Ela acenou com a cabeça, desviando o olhar.
— Voltarão alguma vez?
— Não sei. Talvez, um dia. — Ela encostou-se à soleira da porta. —
Mas é por isso que Mactav odeia homens; Homens e guerra... E juntamente
com o velho tabu... Acho que os supressores de memória não eram em
número suficiente.
Nilgiri reapareceu ao lado deles.
— Tudo melhor. — As mãos estavam cor-de-rosa e brilhantes. — Pronta
para qualquer coisa!
— Como é que Mactav se está a comportar?
— Supersolicita. Acho que ainda está muito aborrecida com o que se
passou.
Tremeluziu luz nas junções curvas das paredes, teto e soalho. Maris
olhou para cima.
— Que diabo, está a escurecer lá fora. Suponho que é melhor ir-me
embora. Está quase na hora de abrir. Uma derradeira noite na cidade?
Nilgiri sorriu e acenou com a cabeça. Ele viu Brandy hesitar.
— Talvez seja melhor ficar esta noite com Mactav, se ela ainda está
perturbada. Ela tem de estar preparada para subir amanhã. Um sentimento
quase de culpa firmou a resolução no seu rosto.
— Bem... Eu podia ficar, se achas que... — Nilgiri parecia triste.
— Não. Se ela está assim a culpa é minha. Eu faço isso. Além do mais
tive um dia fantástico, estaria demasiado cansada para o fazer esta noite. Vai
indo. Obrigada, Maris! Gostava que não tivesse terminado tão cedo. — Ela
voltou-se pare ele, começando a entrançar o cabelo. O mercúrio refulgiu.
— O prazer foi todo meu. — A sensação opressora de perda dissolveu-se
em calor. — Também não me lembro de um melhor... Nem mais excitante...
— Ele fez caretas.
— Ela sorriu e pegou-lhe nas mãos. Nilgiri, no meio deles, olhou para
trás e para a frente.
— Levo-te à saída de ar.
Nilgiri desceu para a nave que estava à espera por entre o brilho. Maris
virou-se, segurando-se no último degrau para ver o rosto de Brandy, que
ostentava uma expressão estranha. Olhou para baixo, para as madeixas lisas
de cabelo solto.
— Adeus, Maris.
— Adeus, Brandy.
— Sabes, foram duas semanas muito curtas.
— Sei.
— Gosto mais de New Piraeus que de qualquer outro lugar. Não sei
porquê.
— Espero que não esteja muito diferente quando regressares.
— Eu também... Até daqui a três anos?
— Vinte e cinco.
— Oh, sim. O tempo passa tão depressa quando nos estamos a divertir.
— Quase verdade, quase mentira. Desabrochou um sorriso.
— Escreve enquanto andares em viagem. Isto é, poemas. — Ela
começou a descer, lentamente.
— Assim farei... Olha, as minhas coisas estão...
— Mando-tas por Nilgiri.
Instalou-se atrás dos órgãos de comando. A nave ficou brilhante e
começou a subir. Ele acenou. Nilgiri fez o mesmo. Viu-a acenar, viu-a no seu
espelho até se transformar na pérola enorme e cintilante que era a Who Got
Her — 709. E sentiu o abismo que se abria entre as suas vidas, mais que
distância, mais que tempo.
***
— Então, agora que a viste, qual é a tua opinião?
Ao fim da tarde, primeiro dia, quarta visita, septuagésimo quinto ano...
Calculou ele mentalmente. Brandy estava parada a olhar para a cozinha.
— Está... Diferente.
— Eu sei. Ainda é demasiado nova. Esqueci-me das velhas traves de
madeira. Estavam a apodrecer, mas esqueci-me delas. Às vezes acordo de
manhã e não sei onde estou. Mas estava a perder o meu desfiladeiro.
Ela virou-se e olhou para ele, surpreendendo-o com a sua angústia.
— Oh... Pelo menos aqui em cima não te incomodaram durante muito
tempo.
— Todavia já não podemos vir a pé para casa.
— Não. — Eia virou-se outra vez. — Toda... Toda a tua mobília é
embutida?
— Hum. É para durar tanto como a casa.
— E se te fartares dela?
Ele riu-se.
— Desde que aguente comigo, não me preocupo com o aspecto. Porém,
há uma coisa de que gosto. — Ele carregou numa chapa na parede, olhando
para cima. — O telhado é polarizado. — Como a tua nave. A noite podem
ver-se as estrelas.
— Oh! — Ela olhou para cima e para trás, ele viu o seu espírito a
trespassar o nevoeiro cerrado, trespassar o dia em busca de estrelas. — Que
maravilha! Nunca vi isto em parte nenhuma.
Ele tivera essa ideia a pensar nela. Sorriu.
— Devem estar de facto a progredir lá fora para fazerem coisas como
esta. — Ela experimentou as almofadas de uma cadeira moldada. Humm...
— Já vão em dois e meio, efetivamente, agora fazem algumas coisas
para além da exploração mineira. O Inside está a entusiasmar-se, se nos
conseguem trazer isto sem nenhum dano. Até talvez viva para ver o dia em
que importarão matérias-primas, em vez de encherem as entranhas vazias de
toda a gente. Se nessa altura ainda restar alguma coisa de Oro...
— Ficarias para ver isso?
— Não sei. -— Ele olhou para ela. — Depende. Em todo o caso, fala-me
desta viagem. — Deitou-se num banco suspenso por correias na parede. — Já
sabes todas as novidades que se relacionam comigo: uma casa. — E esperou
que surgisse mais satisfação nos olhos dela.
Eles pestanejaram, ficaram da cor da névoa.
— Bem... Algumas notícias boas e algumas más, suponho.
— Tais como? — Sentindo frio de repente.
— Boas notícias: — o seu sorriso aqueceu-o — desta vez vou ficar
quase um mês. Teremos mais tempo para... Fazer coisas, se quiseres.
— Como conseguiste isso? — Ele sentou-se.
— Há mais notícias boas. Tenho oportunidade de fazer parte da
tripulação de uma nave diferente, de sair do Quadrângulo e ver coisas com
que apenas sonhei, novos mundos...
— E a má notícia é o tempo que vais estar fora.
— É.
— Quantos anos?
— E uma viagem alargada, procurar obter contactos comerciais; se
tivermos sorte, talvez estejamos de volta ao espaço interestelar daqui a trinta
e cinco anos... Trinta e cinco anos-tau, mais que duzentos, aqui. Se não
tivermos essa sorte, talvez não estejamos de volta nestas condições.
— Compreendo. — Ele olhou para o soalho sem pestanejar, com as
mãos entrelaçadas no meio dos joelhos. — É uma oportunidade incrível, na
verdade... Sobretudo para a tua poesia. Invejo-te. Mas vou sentir muito a tua
falta.
— Eu sei. — Ele viu-a mordiscar o lábio. — Mas podemos passar horas
juntos. Teremos muito tempo antes de eu partir. E, bem, trouxe-te uma coisa
para te lembrares de mim. — Ela atravessou a sala para ficar perto dele.
Era uma estrela, suspensa, a brilhar friamente em prata, ornamentada
com arabescos feita por um artista que conhecia o fogo. Ela mostrou-lhe o
seu rosto no interior, sorridente, transbordante de alegria.
— Encontrei-o em Treone... Realmente estão em renovação. E gostei
daquele holo, pensei que gostasses...
Debruçando-se sobre prata, ele encontrou a prata do seu cabelo, beijou-a
na boca uma vez, sentiu-a estremecer quando se afastou. Levantou a corrente
entrançada, fixou-a no pescoço. — Eu também tenho uma coisa para ti.
Levantou-se, voltou com um livro fino, vermelho como o vinho,
colocou-o nas suas mãos.
— Os meus poemas!
Ele acenou com a cabeça, os seus dedos apalparam a estrela no pescoço.
— Consegui arranjar dois exemplares. Não foi fácil. Porque já são
demasiado conhecidos. Os astronautas trazem-nos, mostram-nos mas não os
entregam. Deves ser conhecida em mais planetas que os que jamais
conseguirás ver.
— Oh, nem sequer soube... — De repente, soltou uma gargalhada. — A
fama precede-me. Mas na próxima viagem... — Ela desviou o olhar. — Não.
Não voltarei a fazer esse trajeto.
— Mas verás coisas novas para introduzires nos teus poemas. —
Levantou-se, tentando fazer desaparecer a tensão na sua voz.
— Sim... Oh, sim, eu sei...
— Um mês é muito tempo.
De repente, uma série de estalidos fê-los olhar para cima. Manchas
largas de chuva começavam a deslizar, cobrindo o telhado plano de pó.
— Chuva! Não é nevoeiro. A estação começou.
Ficaram a ver o céu a mudar de cor por cima deles, a escurecer, a estalar
e a tremer com luz elétrica. A chuva caía com mais intensidade, o teto
ondulou e embaciou; ele levou-a para a janela. Lá fora, de um lado ao outro
da terra macia e irregular, erguia-se em vagas uma cortina líquida, mitigando
a sede das gargantas secas dos desfiladeiros, revivificando a terra e a
vegetação enfezada, coberta de espinhos e folhas estreitas.
— Pergunto sempre a mim mesmo se isto vai acontecer um dia.
Acontece sempre.
Ele olhou-a à espera de mercúrio, e encontrou lágrimas vagarosas. Ela
chorava em silêncio a olhar para a chuva.
Nas duas semanas imediatas partilharam a chuva e o ar frio e brilhante
que se seguiu. Ela saía à tardinha, enquanto ele ficava atrás do balcão, porque
era a última vez que ela partiria com a tripulação da Who Got Her. Mas
encontrava-a a dormir todas as manhãs, e ela passava as tardes com ele.
Juntos percorreram as áleas serpentiformes da parte baixa e velha da cidade,
que se metamorfoseava, ou deambulavam pelas docas com os pescadores
tostados pelo vento. Levou-a a conhecer Makerrah, que ele vira como rapaz a
consertar redes à mão, como um conquistador vestido com redes atrás das
astronautas no Soldado de Lata, como marinheiro e pescador, durante quase
quarenta anos. Makerrah, que agora estava a ficar pesado e lento como o seu
barco com casco de madeira, mostrou-o com orgulho ao marinheiro do céu;
falaram de redes, ao mesmo tempo que comiam peixe.
— Este planeta está a ficar velho...
Brandy viera com ele para o bar quando começou a escurecer.
Maris sorriu.
— A noite é ainda uma criança. — E sentiu o prazer a despertar com a
inveja.
— E verdade, é verdade... — O cabelo pálido caía em cascata quando a
cabeça oscilava. — Mas, tu sabes, quando... Se partir por mais vinte e cinco
anos, talvez não reconheça esta rua. O Soldado de Lata é realmente a única
coisa que não muda. — Ela sentou-se perto do balcão de ágata, com o rosto
apoiado nas mãos, a meditar.
Ele agitou líquidos.
— É bom ter alguma coisa que não muda na nossa vida.
— Eu sei. Nós também apreciamos isso, mais que ninguém. — Ela
desviou o olhar, olhou para a sala com traves negras. — Realmente são os
primeiros a voltar aqui, e passam mais tempo aqui... A saber que podem é tão
importante: que tu estarás aqui, jovem e real, a recordá-los. — Um desejo
ardente, repentino, toldou-lhe os olhos.
— Isso acontece tanto com uns como com outros. — Ele levantou os
olhos.
— Eu sei disso, também. Sabes, sempre desejei perguntar por que é que
lhe chamaste o «Soldado de Lata»? Creio que compreendo... Mas porquê de
«lata»?
— Creio que é uma espécie de piada. Estava num livro de contos
populares que li, Contos de Fadas, de Andersen. — Ele parecia embaraçado.
— Seria qualquer coisa. Era a história de uma loja de brinquedos, de um
soldado de lata com uma perna, que ficou anos numa prateleira. Apaixonou-
se por uma bailarina, uma boneca, que só gostava de dançar, que nunca o
amou. No fim, ela caiu na fogueira, e ele foi atrás dela. Ela ficou reduzida ao
pó, sem coração. Ele desfez-se num monte com o feitio de um coração... —
Riu-se com cuidado, vendo o rosto dela. — Uma nota ao fundo da página
dizia que às vezes a história tem um final feliz. Gosto de acreditar nisso.
Ela acenou com a cabeça, esperançada.
— Eu também! Donde veio a pedra do teu balcão? É bela, como a orla
do Plêiades, abismos de bruma.
— Porquê todas essas perguntas?
— Estou a apreciar. Há anos que adoro tudo isto, e nunca disse nada. As
vezes gostamos de coisas sem o sabermos, aceitamo-las como verdadeiras
mesmo sem razões objetivas par tal. É errado deixar que isso aconteça... Por
isso quis que soubesses. — Ela passou os dedos na pedra polida.
Ele passou também os dedos nas opalescências.
— É madeira petrificada: uma espécie de planta viva que foi preservada
em pedra. Os minerais substituíram a sua estrutura. Encontrei-a no deserto.
— Deserto?
— A leste das montanhas. Descobri um desfiladeiro inteiro repleto. É
um lugar incrível, o deserto.
— Nunca vi nenhum. Só tenho ouvido falar deles, áridos e terríveis;
assusta-me.
— Enquanto tu atravessas o deserto mais terrível de todos, entre as
estrelas?
— Mas não é árido.
— Este também não é. Aqui agora é Inverno, posso levar-te a ver as
árvores, se quiseres. — Ele sorriu ironicamente. — Se tiveres coragem.
As sobrancelhas ergueram-se.
— Não tenho medo! Podíamos ir amanhã, preparo um almoço para nós.
— Porém, teríamos de partir muito cedo. Se queres ver outra vez a
cidade esta noite.
— Está bem! Tomo um comprimido.
— O quê?
Ela estremeceu.
— Oh, bem... Descobri um que podia tomar. Usei-os sempre nos outros
portos, como toda a gente.
— Então por que é que...
— Porque gostava de ficar contigo. Enganei-te, já sabes, confesso. Estás
zangado?
O seu rosto encheu-se de satisfação e admiração.
— Pouco... Tenho de admitir. Costumava perguntar a mim mesmo o
que...
— Sol-dado! — Ele desviou o olhar, alguém lhe fez um sinal do outro
lado da sala. — Mais vinho, por favor! — Ele levantou uma mão.
— Brandy, vá lá, está ali um grupo...
Ela acenou com a mão.
— Amanhã de manhã, cedo? — Os olhos não se desviaram do rosto
dele.
— Hum, hum! Até...
—... Logo. — Ela desceu do banco e foi-se embora.
A nave subiu silenciosamente, dirigindo-se em direção ao sol da manhã.
Brandy ia sentada ao lado dele, olhando para baixo e para trás com os olhos
semicerrados através da claridade, enquanto New Piraeus ficava mais estreita
junto à baía verde, transparente como o vidro.
— Olha como desce por detrás das colinas, até que tudo o que se
consegue ver é apenas terra e o mar, e nenhum vestígio de mudança. E assim
quando a nave sobe, mas é tudo tão rápido que não se tem tempo para a
desfrutar. — Ela virou-se para ele com os olhos a brilhar. — Vamos de
planeta em planeta, mas nunca os vemos. Estamos sempre a, olhar para cima.
Como é bom olhar para baixo, hoje.
Flutuaram mais alto, subindo com as colinas, até a camurça vermelha
como a azeitona e enrugada do litoral se tomar denteada, manchada, preta-
esverdeada, cinzenta e de um branco ofuscante.
— Aquilo é mesmo neve? — Ela puxou-lhe o casaco, apontando.
Ele acenou com a cabeça.
— Conseguimos ter alguma.
— Só vi neve uma vez desde que saí de Calicho, visto que era Inverno
em Treone. Agasalhávamo-nos com peles e capas, embora não fosse
necessário, e atirávamos bolas de neve com os rapazes... Mas fazia frio quase
todo o ano na nossa ilha, em Calicho. Estávamos muito ao norte,
desenvolvemos culturas especiais... E nós, os miúdos, tínhamos animais
peludos com chifres para nos deslocarmos de um lado para o outro. —
Absorta a recordar, encostou-se ao ombro dele. Enquanto ele tentava
recordar-se de uma propriedade em Glatte, muros brancos de neve
transformaram-se numa massa branca que subia uma colina junto ao mar.
Tinham atravessado a linha divisória; o batholith saliente dos picos
degenerou em encostas ressequidas de cascalho gigantesco que se esboroava
em pó. À sua frente, o deserto, cheio de marcas amarelas, espraiava-se como
uma lona infinita, envolta em névoa cor de malva.
— É muito extenso?
— Não tem fim... Este deserto talvez não, mas este funde-se noutros, que
se fundem noutros... Todo o planeta é um deserto, quente ou frio. Há séculos
que tem vindo a secar. O Sol nasce fora da sequência principal. O mar
próximo de New Piraeus é a única extensão de água corrente que resta, e
baixou meia polegada desde que estou aqui. A costa é a única zona habitável,
e mesmo lá já não há muitas cidades.
— Então Oro nunca poderá mudar muito.
— Só o bastante para fazer sofrer. Vês a poeira? Uma mina a descoberto,
em setenta quilómetros em direção ao norte. E aquela é pequena.
Conduziu a nave para sul, deslizando sobre a superfície escavada da
terra para serpear por entre desfiladeiros de pedra ondulada, sedimentos
contorcidos pelas mãos paralisadas da força tectónica; ou precipitando-se
através de planícies esburacadas que tocavam ao de leve em mares pequenos
de areia coberta de sulcos e sombras, arrastada pelo vento.
Pousaram finalmente sob uma amurada alcantilada e curva de rocha em
camadas vermelhas e verdes. O leito largo e irregular do riacho arenoso
estava pálido à luz fria do meio-dia, rangendo sob os pés quando começaram
a caminhar. Vestindo o casaco de cabedal, Maris mostrou-lhe o caleidoscópio
de séculos gravados em pedras sobre as colinas que subiram, gritando para se
fazer ouvir no vento forte das cumeadas. Ela guardou-as nas mãos em
concha, maravilhada, com o cabelo a flutuar como bandeiras de seda junto ao
rosto. Amavelmente, ele meteu nos bolsos as poucas que ela escolhera.
— Não estás com frio? — Pegou-lhe na mão.
— Não, o meu fato cuida de mim. Como conseguiste aprender a
conhecer tudo isto, Maris?
Abanando a cabeça, começou a conduzi-la de novo pela encosta abaixo.
— Há mais coisas aqui que as que alguma vez conhecerei. Limitei-me a
arranjar uma fita magnética sobre Geologia na biblioteca. Mas fez que se
tomasse mais importante vir até aqui... Onde se podem ver evos do planeta
desventrado, um ciclo a depositar-se sobre outro. Para saber o tempo que
levou, a história de um planeta inteiro auxilia a minha perspectiva, faz-me
sentir... Jovem.
— Pensamos que conhecemos planetas, mas não conhecemos. Vemos
apenas pessoas, mudança e mesquinhice. Esquecemo-nos da maior
constância, ligada ao universo. Também rebaixaria a tua perspectiva... —
Seixos saltaram e fizeram barulho. A mão segurou a dele com força quando o
pé escorregou. Olhou para trás, mortificado, e ela riu-se. — Realmente não
precisavas de me guiar até aqui, Maris. Era uma cabra-montês em Calicho e
não me esqueci de tudo.
Indignado, soltou-lhe a mão.
— Vais tu à frente.
Ainda a rir, levou-o ao sopé da colina.
E ele levou-a a ver as árvores. Caminhando cuidadosamente por cima
das pedras, subindo a ramificação do riacho sem vento, deram uma volta e
encontraram-nas, derrubadas em glória estática. Ele ouviu-a inspirar.
— Oh, Maris!
Radiante de cor a luz, caminhou no meio delas, enquanto ele se
extasiava uma vez mais com a capacidade artística e desapaixonada da terra.
Ametista e ágata, cristal e partículas de madeira artificiais, troncos
hexagonais, abriram-se para mostrarem subtilezas de fusão e nebulosidades
secretas. Ela ajoelhou-se entre os pedaços de pernadas, escolhendo cores para
expor ao sol.
Ele sentou-se num tronco, apanhando seixos de ágata.
— Elas são uma espécie de amigos especiais. Declinamos ao mesmo
tempo, na devida altura, com corpos estranhamente familiares... —
Examinou-as com muito orgulho. — Mas elas morrem com mais graça.
Ela pousou os cepos coloridos no chão.
— Não... Eu acho que não. Não têm outra alternativa.
Ele baixou os olhos, atirando seixos ao ar.
— Vamos fazer aqui o nosso piquenique.
Limparam uma zona e estenderam um cobertor e fizeram o piquenique
com as árvores. O sol aquecia-os na cavidade sem vento, e ele fez uma
almofada com o casaco. Saciados, deitaram-se com as cabeças perto uma da
outra, a olharem para o céu azul-esverdeado e sem nuvens.
— Trouxeste um excelente almoço.
— Obrigada. Era o mínimo que podia fazer... — A mão passou ao de
leve no braço dele: os dedos cerraram-se lentamente — ... Para partilhar os
teus segredos, para ficar a saber que o deserto não é árido, que é imenso,
eterno, cheio de... Mistérios. Mas não há vida?
— Não, já não há. Não há água, nada pode viver. As únicas coisas que
sobreviveram estão no mar ou perto dele, ou são coisas que nós trouxemos.
Através do nosso mar deserto, sem vida.
«Porém, por mais afastados que estejamos, as nossas almas divisam o
mar imortal que nos trouxe para aqui.» — A mão estendeu-se por cima dele
para agarrar o céu.
— Wordsworth. Esse é o único poema dele de que nunca gostei muito.
Ficaram deitados no silêncio quente. Um fragmento de ágata soltou-se,
caiu no chão com um tinido. Eles sobressaltaram-se.
— Maris...
— Humm'!
— Já deste conta de que nos conhecemos há três quartos de século?
— Já...
— Quase que te apanhei, suponho. Estou com vinte e sete anos. Em
breve vou começar a ultrapassar-te. Mas pelo menos agora nunca terás de
ver. — Os seus dedos tocaram nos caracóis da cor da ferrugem.
— Isso nunca acontecerá. Nunca deixarás de ser bonita.
— Maris... Querido Maris.
Ele sentiu a sua mão a fechar-se na prega suave da sua camisa, a
acariciar-lhe o corpo. Iradamente, ele afastou-se, sentou-se, metade do rosto
enrubesceu.
— Diabo!
Chocada, agarrou-se à manga.
— Não, não — Os seus olhos encontraram o seu rosto, cinzento, cheio
de pesar. — Não... Maris... Eu... Desejo-te. — Ela abriu o fato, afastou o
azul-prateado dos ombros, ajoelhou-se à sua frente. — Desejo-te.
O cabelo caiu-lhe na cintura, a cor do mel quente. Esticou-se e levantou-
lhe a mão com ternura. Ele curvou-se lentamente para desnudar os seios e o
coração palpitante, sentiu a macieza a incendiar-lhe os nervos. Puxando-a
para ele, encontrou os seus lábios, beijou-os longa e ardentemente; segurou-a
de encontro ao seu próprio coração que palpitava, perdido no seu cabelo de
seda.
— Oh, meu Deus, Brandy...
— Amo-te, Maris... Creio que sempre te amei. — Ela agarrou-se a ele,
fria e a tremer ao ar iluminado pelo sol. — E não está certo abandonar-te sem
nunca to dizer.
E ele compreendeu que era o medo que a fazia tremer, medo ligado ao
amor de uma maneira que ele não percebia inteiramente. Indiferente ao
futuro, deitou-a ao seu lado e pôs fim às tremuras com a sua alegria.
À tardinha, ela sentou-se no bar em frente a ele, aureolado de azul com
luz, bebendo brande aos golinhos. Os seus rostos resplandeciam com vinho e
felicidade melancólica.
— Consegui arranjar mais algum brande, Brandy... Há alguns anos. Por
isso não teríamos falta dele. Se não nos servirmos dele, podes levá-lo contigo.
— Ele colocou cuidadosamente a garrafa cheia de pó e com lascas vermelhas
sobre o balcão.
— Podias guardá-lo, para o caso de eu voltar, velha como a tua avó, e
necessitada de um pouco de calor... — Ela rodou lentamente o copo, vendo o
líquido vermelho a transbordar. — Achas que nessa altura os meus poemas
terão chegado ao nosso planeta? E talvez algures em Inside Ntaka estará a
ler-me.
— Nessa altura o Outside será Inside... Além disso, Ntaka talvez já tenha
morrido há anos.
— Oh! Suponho que sim. — Ela fez beicinho, os seus olhos começaram
a ficar toldados e turvos de lágrimas. — Diabos, eu quero... Quero.
— Branduin, esta noite ainda não nos vieste fazer companhia. É a última
que passamos juntos. — Harkané apareceu ao lado dela, com o rosto magro e
moreno a sorrir emoldurado por uma massa de cabelo branco-azulado.
Sentou-se com a sua bebida.
— Virei em breve. — Olhos turvados levantaram-se. Desviaram-se.
— Ah, a tristeza da partida faz-te procurar o isolamento? Eu sei. —
Harkané acenou com a cabeça. — Andámos juntas tanto tempo... Custa
perder outra família. Ela fitou Maris. — E um bom empregado de bar deve
partilhar as tristezas de todos, não é, Soldado...? Mas tem de enterrar as suas.
Oh! Eles querem beber um pouco mais...
Percebendo que o estavam a mandar embora, ele afastou-se. Com
destreza, fruto de longa experiência, tomou-se cego e surdo, deitando vinho
nos copos.
— Brandy, estás tão infeliz! Não queres fazer esta viagem?
— Sim, quero...! Mas...
— Mas não queres. É sempre assim quando se pode optar. As vezes
fazemos a escolha certa e, no entanto, temos medo de a levar até ao fim. E
outras vezes fazemos a escolha errada, e levamo-la até ao fim, porque temos
medo de não o fazer. Mudaste de ideias?
— Mas eu não posso...
— Por que não? Deixamos-lhes uma mensagem. Eles prosseguirão a
viagem e apanham o segundo compatível.
— É assim tão fácil?
— Não... Não é tanto assim. Mas podemos fazer isso, se quiseres ficar.
O silêncio tomou-se mais longo. Maris mandou um tabuleiro, começou a
limpar copos, atrapalhou-se.
— Mas devia.
— Brandy. Se vais só por obrigação, deixa que te diga uma coisa. Quero
aposentar-me. Ia desistir desta viagem em Sanalareta, mas, se eu fizer isso,
Mactav precisará de outra amiga íntima. Está a ficar velha e rabugenta, tal
como eu. Nestes últimos anos o seu comportamento tem começado a mostrar
a tensão em que ela anda. Precisa de ter alguém que tenha consciência das
suas necessidades. Ia pedir-te, creio que tu a compreendes, mas pensava que
preferias esta outra coisa. Se assim não for, peço-te agora que seja a amiga
íntima da Who Got Her.
— Mas Harkané, tu não és velha...
— Tenho oitenta e seis anos. Sou velha de mais para a vida arriscada.
Tornar-me-ei uma Mactav. Tenho tido sorte, tenho uma oportunidade.
— Então... Está bem, quero ficar! Aceito o cargo.
Não resistindo, Maris levantou os olhos, viu o seu rosto a irradiar alegria
e alívio.
— Brandy...?
— Maris, eu não vou!
— Eu sei!
Ele riu-se, foi ter com elas.
— Soldado. — Ele levantou os olhos, negro encontrou negro, os olhos e
Harkané que não viam apenas superfícies. — Esta será a última vez que te
vejo. Sabes, vou aposentar-me. Tens sido muito bom para mim em todos
estes anos, ajudando-me a ser jovem. És muito gentil com todos nós. Agora,
para me despedir, faço uma coisa em troca. — Ela pegou-lhe não mão,
colocou-a com firmeza sobre a de Brandy, a cintilar com anéis em cima do
balcão. — Eu restituo-ta. Brandy... Daqui a pouco vem ter connosco, iremos
celebrar. — Ela levantou-se calmamente e afastou-se para a sala apinhada de
gente.
As mãos entrelaçaram-se, apertaram-se sobre o balcão.
Brandy fechou os olhos.
— Meu Deus, estou tão contente!
— Eu também.
— Só que os poemas...
— Lembra-te do que me disseste uma vez: «Podes ver cem vezes uma
coisa, e nunca se vê toda!»
Um sorriso de mercúrio.
— E é verdade... Oh, Maris, agora esta é a minha última noite! E tenho
de a passar com eles, para celebrar.
— Eu sei. Não há... Nenhum processo de te poder ter sempre, creio. Mas
está bem. — Ele sorriu mostrando os dentes. — Está tudo bem. O que são
vinte e cinco anos comparados com duzentos?
— Vão parecer três.
— Vão parecer vinte e cinco. Mas eu aguento...
***
Aguentou mais vinte e quatro, levantando os olhos do balcão com uma
ansiedade inesperada sempre que vozes diferentes e o som de gargalhadas
enchiam a sala azul e sombria.
— Soldado! Soldado, ainda estás...
— Sentimos a tua falta como...
—... Duas semanas inteiras de...
—... Quero comprar uma garrafa de vinho branco seco só para mim...
A tripulação da DOM-428 comprimia-se à volta dele, os dedos tocavam-
lhe para verem se era autêntico; os lábios roçavam uma face que não tinha
sensibilidade e outra que tinha, um cabelo comprido e solto que se agitava
sobre o balcão de ágata. Abraçou quatro de uma vez.
— Aralea! Vlasa! Elsah, que diabo fizeste agora ao teu cabelo?... E
Ling-shan! Meu Deus, estás bonita, como sempre. Cathe! O banco da
memória nunca esquecia um rosto brilhante e lavado, mesmo passado trinta e
sete anos. Os seus olhos ficaram muito brilhantes quando ele lhes deu as
boas-vindas, e as suas mãos deixaram impressões amorosas ao longo do
balcão de ágata.
— Ainda tens o teu balcão de pedra! Fico tão contente! Nunca o vendas.
— E que há de novo contigo? — Disse Elsah, ofegando, e uma
gargalhada extática desabou sobre ele.
Ele abanou a cabeça, com as mãos no ar, também a rir.
— Ficaste surdo antes do tempo? A primeira rodada por conta da casa.
Só uma de cada vez, hum?
— Elsah afastou dos olhos muito verdes madeixas de cabelo pintado de
verde, que lhe chegava à cintura.
— Desculpa, Soldado, já dissemos tudo uns aos outros vezes sem conta.
E Jesus, há quatro anos que não te víamos! — O seu cinto lançou faíscas
verde-azuladas contra o fato de voo verde, acolchoado.
— Quatro anos? Parece que foram trinta e sete. — E eles riram outra
vez, calculando, porque era verdade. — Bem-vindos de novo ao Soldado de
Lata. Que desejas?
— Tu, claro, meu querido — disse a Brigit de cabelo preto, e piscou os
olhos.
O seu sorriso mal se prendeu numa aresta afiada; pestanejou também.
— Só as bebidas é que são por conta da casa, querida. — A boca abriu-
se-lhe num sorriso largo, mas foi mal sucedido.
Mais risinhos abafados.
— Ah, que pena! — Brigit fez beicinho. Trazia um colar de filigrana,
como a galáxia, pendurado sobre o peito do casaco escuro. — Bem, então,
talvez uma cervejinha preta pelos velhos tempos.
— Duas.
— Alguém quer um jarro?
— Claro, por que não?
— Soldado, daqui a pouco vem sentar-te ao pé de nós. Temos umas
coisas para te contar!
Fixou o jarro tosco debaixo do batoque e baixou-o enquanto eles se
afastavam, ficando a ver o âmbar a esparrinhar os bordos gelados.
— Alta, olá! Bom tempo! Como estão a coisas a bordo da Extra Sexy
Old-115?
— Oh, bastante bem. Como está Chrysalis, mudou muito?
A espuma transbordou, caindo-lhe na mão. Deixou subir a alavanca,
lambeu os dedos e limpou-os ao avental.
— Desta vez esteve um tempo desgraçado. Haviam de ver as roupas que
usámos. Meu Deus, não fazem ideia...
Ele pegou no jarro pegajoso, pousou-o no balcão e colocou canecas
octogonais num tabuleiro.
— Aralea, ouviste falar no que aconteceu à...
Ele pegou de novo no jarro, pousou-o na beira do tabuleiro.
—... Who Got Her-709?
O jarro baloiçou.
— A Mactav teve um esgotamento nervoso ao aterrar em Sanalareta.
Branduin morreu, a poeta, aquela que escreve...
Esquírolas e espuma saltaram no balcão de ágata e espalharam-se no
rebordo, tinkle, crash.
Rostos espantados viraram-se para verem o Soldado, as mãos moviam-se
ineficazmente numa poça de espuma manchada de vermelho. Ele começou a
deitá-la para o chão, com o aspecto de um adolescente aflito.
— Desculpem... Desculpem.
— Ah, Soldado, deste cabo dele!
— Arranjaste um esfregão! Nos ajudamos-te a limpá-lo! Hei, estás a
sangrar.
Brigit e Ling-shan estavam a empilhar pedaços de jarro em cima do
balcão.
O Soldado abanou a cabeça, tentando enrolar uma toalha no pulso que
sangrava.
— Não... Não, obrigado, deixem ficar isso, hem? Vou buscar-lhes outro
jarro! Isso não tem importância. Vá lá! — Eles olhavam para ele. — Eu
mando-vos um jarro. Obrigado. — Sorriu.
Eles afastaram-se, o sorriso desapareceu. Enche o jarro. Ele encheu um
jarro com a mão a tremer. Com os diabos, apanha aquilo que sujaste. Ele
limpou, fazendo desaparecer o acidente enquanto o soalho absorvia e os
dentes de vidro desapareciam por baixo do balcão. Quando o tampo de ágata
secou viu a flor esmigalhada com arestas brancas, gavinhas de rachas finas
estenderem-se em todas as direções. Começou a segui-las com um dedo
rígido, contando suavemente... Ela, ela não me amava, ela amava-me...
— Dois cepheids e um copo de vinho. Soldado!
— Soldado, vem ouvir o que nós vimos em Chrysalis, se já estás
despachado.
Ele acenou com a cabeça e encheu os copos, sempre a pestanejar. Com
os diabos, que fumo doce aqui dentro... Diabos levem tudo isto! Elsah ia a
transpor a porta com um rapaz de calças verdes, justas, e uma tatuagem do
mapa celeste no corpo. Ele fitou-os até se transformarem numa mancha
fluorescente. E lembrou-se de Brandy a transpor a porta demasiadas vezes...
— Hei, Sol-dado, que estás a fazer?
Ele pestanejou para voltar à realidade.
— Vens sentar-te ao pé de nós?
Ele atravessou a sala até à mesa grossa mais próxima e ao que restava da
tripulação da Dirty Old Man-428.
— Como está a tua mão? — Vlasa acariciou-a com um dedo bronzeado,
e com um anel.
— Só me dói quando me rio.
— Tu estás mesmo embriagado! — O sorriso de Ling-shan contraiu-se.
— Oh, Soldado, porquê esse ar macambúzio?
— Rachei o meu bar.
— Ohhh... Só notícias más esta noite. Alguém que o faça rir, não
podemos continuar assim!
— Conta-lhe a anedota que ouviste em Chrysalis...
—... A do rapaz com olho de gato no umbigo? Oh, bem, parece que
havia...
Os seus dedos moveram-se relutantemente pelas fitas acima da camisa
de retalhos e começaram a desenredar a estrela do tamanho do dedo polegar
presa perto da garganta. Soltou-a. A mão fechou-se sobre os espinhos
hirsutos, sentindo apenas uma pressão fraca. A dor tinha outra origem.
— «Oh, também dispararam o cortador de pickles!»
Ele levantou os olhos e viu todos a rir.
— É uma piada técnica. Soldado — disse Ling-shan solicitamente.
— Oh... Compreendo. — Ele riu-se, inconscientemente.
— Soldado, tirámos fotografias do nosso buraco! — Vlasa puxou-lhe o
braço. — A uma distância considerável, mas foi bizarro...
— Heliografias — interrompeu alguém.
— E havias de ver os efeitos! — Disse Brigit. — Quando as
examinamos, dá a impressão de que os nossos olhos estão a ser...
— Soldado, outra rodada, por favor!
— Desculpem. — Ele puxou a cadeira para trás. — Mais tarde?
Pensando. Meu Deus, será que esta noite nunca mais acaba?
***
A sua mão fechou finalmente a porta carcomida da taberna com o
ferrolho; a sandália entrançada escorregou quando pôs os pés na rua.
Duas figuras esguias, uma toda vestida de azul-marinho, passou por ele e
o cabelo ruivo cintilou; reconheceu Marena, concentrada e satisfeita de braço
dado com um homem extravagante e alegre. As mãos de um estavam dentro
dos bolsos traseiros do outro. Eles iam subir a colina; ele virou para baixo,
caminhando com cuidado nos godos gastos pelo tempo e pela humidade.
Coxeava um pouco. Espectros viscosos de cacimba enlaçavam as ruas
sinuosas, transformando os candeeiros em anjos negros debaixo de auréolas
que entravam em fluorescência. Formavam-se gotas minúsculas e brilhantes
no seu cabelo enquanto caminhava. O ruído áspero dos seus passos reduzia-
se a ecos fracos; o riso deixou de se ouvir, deixando-o só com a recordação.
***
. A presença da aurora apanhou-o de surpresa, quando uma mão roçou
no seu ombro.
— Sojer, és tu?
Soldado levantou os olhos para um rosto com pelos cinzentos, com um
ar furioso.
— És mesmo tu? Que está a fazer aqui ao amanhecer, garoto?
Ele reconheceu o velho Makerrah, o pescador, finalmente. Ultimamente
o velho divertia-se a chamá-lo «garoto».
— Nada... Nada. — Ele afastou-se da balaustrada coberta de salitre. O
sol nascia para lá das montanhas, a cristã de nevoeiro apanhou as cores de
fogo e foi destruída. Ia ser um dia quente. — Adeus, velho.
Começou a caminhar.
— Estás mesmo bem?
— Só de novo, sentou-se com um pé suspenso, sentindo o vaivém da
água por baixo do quebra-mar. Bem...? Alguma vez estivera bem? E tentou
lembrar-se do tempo em que ainda a não conhecia, e não conseguiu encontrar
uma resposta.
Nunca houvera uma resposta para ele no seu próprio planeta, em Glatte;
nem mesmo um lugar para ele. Glatte, com uma tecnologia 4.5 e uma
sociedade neofeudal, onde a concorrência por causa dessa tecnologia era uma
justificação cultural para a guerra. Toda a sua vida vira pessoas chacinadas e
que matavam com crueldade, cegamente, presas a uma superstição estúpida.
E odiava-o, mas não podia fugir às amarras frias que o conduziam à sua
destruição. Fragmentos dessa vida passada era tudo o restava agora, ao fim de
dois séculos, ainda continuavam ligados à realidade da sua natureza diferente.
Recordou o sabor da nave acabada de cair... Recordou o sabor do sangue. E a
recordação fê-lo sentir o que era ter 19 anos, e odiar a guerra, e ser feito em
bocados... E ver-se de repente com metade do corpo protético, com os
pedaços que desapareceram ainda a doerem na mente; e a voz do padrasto,
com algo que não era orgulho, a dizer que finalmente ele era um homem
real... Soldado susteve a respiração inconscientemente.
O seu nome era Maris, consagrado à guerra e, quando compreendeu
finalmente, deixou Glatte para sempre.
Pagou tudo o que devia às astronautas conhecidas; foi transportado com
estase por entre as estrelas, como qualquer bagagem. Viu-se em Oro, com
uma tecnologia 1.5, sem guerras e quase sem população. E descobriu que
agora para o resto da humanidade deixara de ser totalmente humano. Mas
ficara em Oro durante noventa e seis anos, envelhecendo apenas, cinco,
sozinho. Noventa e seis anos! Uma mancha branca a subir uma colina, a
constante New Piraeus; uma mancha de rostos à luz azul e pálida das
lanternas, dando forma a uma nova vida. Um modelo continuamente repetido.
O seu sorriso, dando as boas-vindas, dando as boas-vindas com a paciência
dos condenados a todos os rostos velhos/novos que precisavam dele, mas que
nunca o desejavam, enquanto ele desejava e precisava de todos eles. E então,
ela chegara a Oro, e ao fim de noventa e seis anos o modelo fora
despedaçado. O condenado, o Soldado de Lata apaixonou-se, após tantos
anos de experiência, por uma bailarina que dançava entre as estrelas.
Comprimiu abruptamente o rosto contra a balaustrada, a dor tremulou.
Meu Deus, ainda real; porém, todo de plástico. Maldição, maldição! E
tentou esquecer por três vezes mais vinte e cinco anos de modelo, as noites e
as manhãs frias e solitárias dos outros, procurando encontrar o rosto dela.
Nove mil e cem dias com a dor da vida restituída, até ela regressar, e...
— Vês? É a nossa nave. A terceira em linha.
Soldado escutou, com relutância. Uma das astronautas com o fato cor da
alfazema estava parada com o companheiro onde a doca fazia um ângulo para
a direita, a apontar para o outro lado da baía,
— Podemos ir vê-la?
Vidro azul cintilou engatado nas costas do rapaz quando este se
debruçou na balaustrada.
— Claro que não. Não é permitida a entrada a homens nas naves. E
contra os regulamentos. E, seja como for, eu prefiro ficar aqui. — Ela puxou-
o para o canto. Ametista e opala envolvia-lhe o pescoço em luz. Começaram
a beijar-se, as mãos vagueavam.
Soldado levantou-se devagar e deixou-os sós, ainda entrelaçados. O sol
estava quase a atingir o zénite. Por cima dele, enquanto caminhava, o
contorno de New Piraeus vacilou no ar nublado e quente. Os seus olhos
moveram-se para cima e para trás na direção do esqueleto com quarenta
andares do Universal Bank em fase de construção, desceram até aos
armazéns, às docas da parte baixa da cidade antiga, que se atrofiava.
Insistente, no meio dos gritos das aves marinhas, conseguiu ouvir o queixume
estéril da maquinaria pesada, as entranhas de um mundo em mutação. E
todavia triunfo sobre a Morte, e a Sorte, e sobre ti, o Tempo...
— Mas não suporto isto. — As suas mãos cerraram-se sobre madeira. —
Suportei isto durante noventa e seis anos, posto de parte.
As aves marinhas zombaram dele lugubremente, chiando ao crepúsculo
verde-acinzentado, agora, agora. O vento penetrava nas aberturas da camisa
como os dedos frios da mágoa. Estive morto noventa e seis anos antes dela
chegar.
Caminhando ao longo da balaustrada durante quatro horas, observara as
naves na baía. Enquanto olhava, descera outra nave suavemente, como a
lágrima do sol. Agora que o dia chegava ao fim, tomavam-se mais brilhantes,
dispondo uma bracelette na água preta. A ancilose fê-lo desequilibrar-se
quando se afastou em direção às estrelas artificiais agrupadas na muralha da
noite.
Continuando a abafar o passado, percorreu as ruas íngremes e gastas,
onde os desenhos antigos de uma nova noite chegavam até ele apenas
vagamente, e os seus olhos não descobriram nada de que ele se recordasse.
Até chegar à porta devorada pelo tempo, a parede grossa de tijolo que se
descascava por baixo do letreiro de néon. A mão acariciou o fecho
escorregadio, como tinha há duzentos anos, SOLDADO DE LATA... Amava
uma bailarina. A mão bateu no fecho.
Não, esta noite o bar está fechado.
***
Ao tocar-lhe a porta abriu-se lentamente; Soldado entrou na casa
silenciosa. E parou, escutando o murmúrio cavernoso da noite vazia, e viu-se
sozinho para o resto da vida.
Percorreu os compartimentos à luz das estrelas, sem tocar em nada, até
chegar à porta do quarto. Abriu-a. O trinco frio queimou-lhe a mão. E viu-a
lá, a dormir sob o manto prateado do Plêiades. Fechou a porta lentamente,
esperou, abriu-a uma vez mais e encheu o quarto de luz.
Ela sentou-se, a pestanejar, com um punho a tapar os olhos e o cabelo
cinzento-dourado pela cintura. Envergava um vestido comprido, simples, de
flores mudas, em tons de azul, verde e terra.
— Maris? Não te ouvi. Acho que adormeci.
Ele atravessou o quarto, caiu na cama perto dela, acariciando-a,
cobrindo-lhe o rosto de beijos.
— Disseram que tinhas morrido... Pensei todo o dia...
— E morri. — A voz era apagada, os olhos com círculos negros da
fadiga.
— Não.
— Morri. Para eles estou morta. Já não sou astronauta. O espaço está-me
vedado para sempre. Isso é o que significa estar «morto». Para perder a tua
vida... Mactav... Enlouqueceu. Nunca pensei que chegaríamos a porto. Fiquei
gravemente ferida, no acidente. — Os dedos fizeram laços no cabelo,
puxaram...
— Mas tu estás bem.
Ela abanou a cabeça.
— Não. — Ela estendeu a mão, virada para cima. Ele pegou nela,
prendeu os dedos nos seus, carne sobre carne, quente e flexível. — É plástica,
Maris.
Ele virou a mão, acariciou-a, dobrou os dedos compridos e flexíveis.
— Não pode ser...
— Está dormente. Quase não te sinto. Dizem-me que posso viver
centenas de anos. — A mão fechou-se. — E sou uma mulher da cabeça aos
pés, mas proíbem-me de voltar ao espaço! Não posso fazer parte de nenhuma
tripulação, não posso ser uma Mactav, só posso ser bagagem. E nem sequer
posso dizer que é injusto... — Lágrimas quentes queimaram-lhe o rosto. —
Não sabia o que fazer, não sabia... Se devia vir. Se irias querer uma...
Bailarina que esteve ao fogo.
— Ainda duvidavas? — Ele abraçou-a de novo, encostou a cabeça ao
seu ombro, para esconder o rosto que ficava cheio de lágrimas.
Um ruído de dor prendeu-se à volta da garganta, os braços cingiram-no
com mais força.
— Oh. Maris. Ajuda-me... Por favor, ajuda-me, ajuda-me...
Ele embalou-a silenciosa e suavemente, até os soluços abrandarem,
como embalara uma adolescente com saudades de casa há cem anos atrás.
— Como irei viver... Durante séculos, num único planeta, sempre a
recordar-me? Como suportas isto?
— Aprendendo o que é realmente importante... Os planetas não são
assim tão pequenos. Iremos a outros planetas se quiseres. Podíamos ver o
nosso planeta. Ficarias surpreendida com a reputação que alcançaste em mais
de duzentos anos. — Ele beijou-lhe Os olhos inchados, as faces coradas, os
lábios. — E, na devida altura, talvez mudem as normas.
Ela abanou a cabeça, ferida pela perda.
— Oh. Maris, meu amor sensato, ama-me, prende-me à terra.
Ele pegou-lhe na mão protética, beijou a palma e os dedos macios. E
cura-a... E. sabendo que nunca seria fácil, esticou-se para diminuir a
intensidade das luzes.
POSFÁC1O
Soldado de Lata foi a primeira história que nunca pensara seriamente
em escrever. Até ao começo do ano de 1973 escrevera apenas coisas
dispersas, principiando histórias e pondo-as de parte, sem nenhuma ideia do
rumo que tomariam nem nenhuma intenção de tentar publicá-las. Mas o meu
marido, Vernor (que também é escritor de ficção científica), encorajou-me a
tomar a sério os meus trabalhos, e este foi o resultado.
Embora fosse a minha primeira história, parece ser aquela que muitos
leitores mais apreciam, (um dia talvez acabe por me sentir como Isaac
Asimov, que se queixa que após todos estes anos, as pessoas continuam a
gostar mais da sua primeira história — desde então tudo tem vindo a entrar
em declínio.) Mas, efetivamente, esta história também é uma das minhas
favoritas. Um escritor tem a possibilidade de fazer de Deus quando trabalha
numa história, para dominar completamente o mundo que está a ser criado e
as vidas dos habitantes aconteça o que acontecer. Existe uma espécie de
distanciamento omnisciente daquilo que está a ser escrito, porque o que quer
que seja que aconteça, controlamos completamente o nosso universo
(imaginário). Todavia, assim que a história está concluída e publicada,
constato que esta se assemelha muito mais a uma história escrita por outra
pessoa; abandono este distanciamento e sinto uma resposta emocional
diferente, como se nunca a tivesse visto. Como resultado disto, algumas das
histórias que escrevi acabaram por ser mais deprimentes que aquelas que
geralmente prefiro ler e verifico que não sinto muita vontade de as reler.
Com esta não sinto nenhum desapontamento quando a vejo com os olhos de
um estranho. Se nunca escrever uma história de que as pessoas gostem tanto,
não ficarei muito desapontada.
E esta é mais uma das história que teve as suas raízes numa canção —
neste caso uma canção intitulada «Brandy», que falava de uma mulher que
esperava que o marido regressasse do mar, sabendo sempre, e aceitando,
que o mar para ele estaria sempre em primeiro lugar. Comentara com
Vernor que uma história como esta, que se desenrolasse no espaço, teria um
potencial enorme para descrições de beleza do espaço. Ele sugeriu que devia
ser a mulher a ir para o espaço, o homem ficava pacientemente à espera... A
história desenvolveu-se a partir daqui e durante as fases de planeamento
apercebi-me do paralelo entre a minha história e a sua evolução e o conto de
6
fadas de Andersen «The Steadfast Tin Soldier» . Tendo conhecimentos de
Antropologia, sempre me senti fascinada pela mitologia (e os contos de fadas
ou contos populares, são frequentemente uma forma degenerada de
mitologia). Por isso decidi empregar os aspectos simbólicos da história de
Andersen na estrutura da minha.
Recentemente, apercebi-me de outro paralelo estranho com esta
história. George R. R. Martin escreveu uma história que também foi
inspirada pela canção «Brandy», e envolve também uma mulher que vai para
o espaço e um homem que fica à espera. Para nosso alívio, as semelhanças
terminam aí, e as histórias básicas são muito diferentes. O que talvez sirva
para provar a autenticidade do provérbio com três mil anos de que não
existe nada novo debaixo do Sol. Mas há sempre novas formas de olhar para
ele, e outros planetas... E isso, creio, é aquilo que a ficção científica é na
verdade.
FIM
Notas

[←1]
Um momento.
[←2]
Physical Doctor — Doutora em Física.
[←3]
Unidades Astronómicas. Uma unidade astronómica corresponde à
distância média que vai da Terra ao Sol.
[←4]
Estrela Fixa.
[←5]
Em inglês brandy.
[←6]
«O Soldadinho de Chumbo»

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