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“Uma voz que não é senão a voz de ninguém!”

Márcia Rosa

Em um contexto no qual tratamos ao mesmo tempo o sonho e as mutações do laço social,


particularmente as mutações no laço transferencial, começo com Lacan em sua leitura do sonho
da injeção feita em Irma: “No ponto em que a hidra perdeu as cabeças, uma voz que não é senão
a voz de ninguém faz surgir a fórmula da trimetilamina, como a derradeira palavra daquilo de
que se trata, a palavra de tudo. E esta palavra não quer dizer nada, senão que é uma palavra”.
(Lacan, 1955/1985, p. 216).

Que a referência às cabeças cortadas da hidra nos remeta às figuras que compõem o eu
do sonhador e à sua travessia, não torna menos enigmático que exatamente neste ponto de real
surja uma voz que não é senão a voz de ninguém e que ela faça surgir a fórmula escrita.

Ao comentar as observações de Lacan sobre o relatório de Daniel Lagache (1958/1998,


pp.673-674), Jacques-Alain Miller (2008/2015, pp. 318-323) nos esclarece que, de início, está
o Isso em sua desorganização; depois, a ausência do sujeito se produz em alguma parte d’Isso.
Algo no Isso se organiza a partir desta ausência do sujeito, o que permite à “pureza do Não-
Ser”1 se localizar, encontrar um lugar. Conclui-se pois que o sujeito não está no Isso, não está
ali em pessoa, ali não há ninguém; no entanto, exatamente por não se encontrar ali, sua ausência
cava este lugar de Ninguém. Lacan inscreve aí uma defesa primordial frente ao gozo, defesa
que se configura como um estar ali apenas sob a forma da ausência. A partir daí, deste lugar de
Ninguém, Lacan designa o binarismo do significante, do significante e de sua ausência. Assim,
“ali aonde no gozo, na moita do gozo, há um lugar esvaziado, ali pode-se inscrever o lugar do
significante” (ibid., p. 322). Enfim, o lugar de Mais-Ninguém é aquele no qual se pratica a
anulação do gozo e no qual pode vir a se inscrever o sujeito com sua pergunta: “Que sou Eu?”.
Este lugar pode, eventualmente, servir também de alojamento ao Sujeito suposto Saber.

1- Herbert Graf: do enfant terrible ao homem invisível

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À pergunta “Que sou Eu?”, sendo este Eu uma referência ao sujeito e ao seu ser, Lacan responde,
“Sou no lugar desde onde se vocifera que ‘o universo é um defeito na pureza do Não-Ser’” (Lacan,
1960/1998, p. 834).
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Se toda coisa pode não existir, Não-Ser, forja-se assim um vazio no lugar da criação e
ele nos evoca Ulisses e sua resposta ao gigante Polifemo: ‘meu nome é Ninguém!’; isso antes
de cega-lo, ato através do qual escapou ao olhar devorador deste Outro, tornando-se invisível
(Lacan, 1958/1998, p. 674).

Essa invisibilidade de Ulisses, nos leva às memórias de um outro homem invisível nas
quais encontramos as mutações que o falasser Herbert Graf (1903-1973) introduziu no
personagem clássico que habita o horizonte da psicanálise através da sua infância eternizada
sob o nome de Pequeno Hans. Quais ressonâncias ou marcas apresentam esse sujeito, em
relação às questões que tratou na sua infância psicanalítica, quando testemunha sobre sua vida
profissional aos 69 anos? Alguma borra ter-se-ia sedimentado aí? Essas questões me foram
suscitadas pelo (re)encontro, ao acaso2, com a entrevista concedida pelo famoso diretor de
teatro e cenógrafo Herbert Graf em 1972 para a revista Opera, sob o título “Memórias de um
homem invisível: um diálogo com Francis Rizzo”.

Em que pese podermos ter acesso a vários dados biográficos de Herbert Graf, não nos
remeteremos a eles, mas apenas a duas lembranças infantis que, três anos antes de sua morte,
ele apresenta como ainda muito vivas e que localizam, de modo pontual, o inesquecível do
Outro paterno e materno, bem como duas nominações que nos colocam na pista do savoir-y-
faire do artista que ele foi.

Se, como nos diz Miller (2004/2013, p. 71 e seg.) , o último ensino de Lacan não se
regula sobre a linguagem, mais sobre a lalangue concebida como uma secreção de um certo
corpo, se ele se ocupa menos dos efeitos de sentido do que desses efeitos que são os afetos, isso
nos coloca diante de um indivíduo afetado, que não é o sujeito do significante. É exatamente
este indivíduo ainda bastante afetado pelo entusiasmo com seu pai que encontramos na fala de
Herbert Graf aos 69 anos:

“Meu pai foi um homem universal, mas ao mesmo tempo um autêntico vienense: sabia como
disfrutar de uma taça de vinho e da companhia de belas mulheres. Uma de minhas memórias
infantis mais vivas é a de vê-lo no estribo do trem abarrotado de gente, indo à partida de futebol
do domingo (...), com uma mão na bandeira e outra segurando seu livro mais apreciado, uma
cópia já muito usada, cheia de anotações, da Crítica da Razão Pura de Kant”. (Graf, H.& Rizzo,
F., 1972/2008, s.p.)
A borra do pai que resta aí, apresenta-o não mais como porta-voz de significações, as
quais tiveram sua importância e, de algum modo, cumpriram sua função no tempo devido, mas
como um homem em suas paixões.

2
Agradeço a Daniela Paula do Couto pela referência recente a esta entrevista.
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À diferença de James Joyce, cuja construção sinthomática supre a carência paterna, no


caso de Graf é ao se apropriar da herança paterna de modo absolutamente singular que ele nos
indica os índices de um savoir-y-faire com os quais ele parece ter feito uma amarração
sinthomática. Nos seus termos:

“Veja, não sou um diretor de cena brilhante ao estilo de Reindhart ou de um Zeffirelli e, embora
possa apreciar esse tipo de virtuosismo, ele não é parte de minha natureza. Sou filho de um
professor, sou um trabalhador dedicado, um homem que sabe o que faz, que crê que certos
aspectos deste saber-fazer da ópera pode ser transmitido a outros”. (Graf, H.& Rizzo, F.,
1972/2008, s.p.)
Se nomear é o ato por excelência no último ensino de Lacan, a nominação ―dizer o que
é, o que há― pode servir à singularidade do sinthoma. Podemos nos servir disso para ler o
modo como o próprio Herbert Graf nomeia o seu savoir-y-faire: “Sempre pensei que o diretor
de cena é um ‘homem invisível’ da ópera, ou deveria sê-lo. A natureza mesma deste trabalho é
permanecer entre bastidores e deixar que a luz se projete sobre a obra em si” (Graf, H.& Rizzo,
F., 1972/2004, s.p.).

Esta auto-nominação “homem invisível”, homem de bastidores ―a ser lida em uma fita
de Moebius na qual poderíamos escrever também o avesso dela, dada a notoriedade que tanto
o Pequeno Hans quanto Hebert Graf tiveram― vem na sua fala em serie com uma outra,
mencionada por ele quando diz ter ficado conhecido, nos ambientes do teatro de ópera, como o
“enfant terrible” (Graf, H.& Rizzo, F., 1972/2004, s.p.), dado o seu gosto pelas invenções (entre
elas aquela do palco giratório) e por tudo aquilo que era vanguarda.

Que “lalangue seja para cada um algo recebido e não aprendido, que ela seja uma
paixão, que seja sofrida” (Miller, 2004/2013, p. 75), nos leva a perceber que “há um encontro
entre lalangue e o corpo e que, deste encontro, nascem as marcas que são marcas sobre o corpo”
(ibid.). Isso nos leva a um último, mas não menos importante, recorte na entrevista deste homem
(in)visível que foi Herbert Graf, neste caso ele nos diz da beleza diáfana da voz. Nos seus
termos:

“Quando escutamos Caruso cantar (...) deveríamos ficar impressionados tanto por sua clara,
significativa forma de dizer as palavras quanto pela opulência do tom. Ou, por exemplo, minha
recordação de infância do [ator e cantor de ópera] Schmedes no segundo ato de Siegfried. Por
que, depois de todos esses anos, seu tratamento de uma única frase ― ‘Ach, mocht ich Shon
meine Mutter sehen!’ cantada com uma voz que há muito tempo tinha se tornado o seu melhor
momento― permanece tão vividamente em minha memória? É porque, como em Caruso,
[temos aí ] “a voz que canta!”, conclui Graf. (1972/2004, s.p.)
Posta essa referência à “voz que canta” e à “opulência do tom”, impossível não evocar
Lacan e as modulações tonais e vocais da escritura chinesa! Essa escritura “inclui uma
modalidade da voz, da vociferação, sob o modo de uma certa salmodia, de um certo canto,
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apoiando-se no jogo entre os acentos tônicos próprios à língua chinesa” (Laurent, 2019, 131)
No entanto, nos surpreendemos um pouco mais ainda ao traduzirmos a frase cantada pelo
personagem Siegfried, na opera de Richard Wagner, O anel do Nibelungo. Ele, Siegfried, um
sujeito órfão de pai e mãe, adotado por um anão, não sem uma certa nostalgia, canta: “Ah,
pudesse eu, o filho, ver minha mãe. Minha mãe” (Wagner, 1876, s.p.) . Essa voz que canta,
bem-diz dela o poema de Paul Valery: “(...) essa Voz/ Que se reconhece ao soar/ Já não ser voz
de ninguém/ Como é de bosques e mar” (Valery citado por Lacan, 1953/1998, p. 287)

Para Bastos (2014, p. 60) a voz aí

“seria encobridora da voz em sua vertente objetal, que se manifesta como ruído, grito, urro e de
modo afonésico, sem som. A voz assombrara o pequeno Hans sob a forma do ruído do escoicear
do cavalo, seu objeto fobígeno que já vestia o objeto pulsional, contendo a angústia através da
ligação a significantes da fobia, como o próprio cavalo e a carruagem. Para a voz, que requer ao
sujeito uma resposta, Herbert Graf teria dado um novo tratamento com a música, o canto e a
arte cênica”.
Enfim, temos o falasser na sua orfandade em relação ao Outro, temos os objetos
pequeno ‘a’ nas suas modalidades do olhar e da voz e o sujeito deslizando em direção aos
bastidores, em direção à invisibilidade! Lugar de Ningúem?!

Para Concluir

Para Miller (2008/2015, p. 332), o ensino de Lacan vocifera deste lugar de Mais-
Ningúem, o que não vai sem o corpo e a voz de Lacan. Vociferar dá à palavra o peso da voz;
não se distancia de quem e de onde se a pronuncia. Em vista disso, há no ensino de Lacan um
estatuto de vociferação, de uma voz que orienta. Assim também a posição do analista se
condensa, e, inclusive, se inaugura, como uma vociferação, como uma voz que aponta, já de
entrada, “que o sujeito está ligado ao gozo, está inscrito no gozo e que fabrica com as diversas
maldições que o afetam os meios para sustentar esse gozo” (ibid., p. 333).

No que tange à produção e às mutações da teoria, observamos, com Laurent, que a tarefa
do analista é a de produzir uma teoria o mais econômica possível, no sentido de usar o menor
número de elementos que nos permitam dirigir-nos ao máximo de fenômenos. Isso faz com que
o fundamental seja a prática e dá passagem para que cada analista possa inventar o modo de
entrar em relação com o analisante. À propósito, ele nos lembra que “isso não se pode fazer se
não há transferência, não se pode fazer se não há algo depositado” (Laurent, 2018, p. 88). Temos
aí um modo bastante interessante e original de conceber o estabelecimento deste laço social que
é dispositivo analítico: ele pressupõe que se deposite algo para que a operação possa se
estabelecer.
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Inicialmente associado ao latim deponere, “pousar no chão”, “desembarcar”, ou, em


sentido figurado, “deixar”, “abandonar”, o termo depósito ganhará um sentido jurídico,
“depositum”, e, finalmente, lhe será dado um sentido concreto de “colocar, armazenar em
alguma parte”. O verbo “depositar” prestar-se-á a diferentes usos: colocar algo valioso em
depósito para proteção, conservação ou acumulo; transmitir ou entregar em confiança; colocar
ou depôr algum objeto em algum lugar. Além do possível depósito da guarda, da confiança, do
segredo, de uma quantia, etc., interessa ainda a referência àquele resíduo material que se
acumula no fundo, àquela borra que, uma vez deposta, depositada, se assenta e se sedimenta.
Entre vários outros, nos interessa o depósito aluvial, constituído de aluviões, ou seja, de
inundações de terras provocadas por grande volume de águas. Lacan se serviu dele em
“Radiofonia” ao se referir ao inconsciente não como ancoradouro, mas como “depósito, aluvião
da linguagem” (Lacan, 1970/2003, p. 415).

Se a transferência pode ser tomada pela via de algo que se deposita, resta indagar como
e desde onde, isso, esse gozo que se deposita, opera no dispositivo analítico? Com essa pergunta
nos aproximamos de Lacan e da sua reformulação da tese inicial segundo a qual “o inconsciente
está estruturado como uma linguagem”. Ao reformulá-la, Lacan assinala que a linguagem é
feita de lalangue e que esta, a alíngua, é a dimensão da linguagem que se relaciona com o gozo,
é o lugar aonde o gozo se deposita. Posto este depósito do gozo, o inconsciente apresenta-se
como um saber, “um saber-fazer com alíngua (Lacan, 1972-1973/1982, p. 190).

Lacan inaugura aí um novo amor, um amor à lalangue!

Referências Bibliográficas

BASTOS, A. “A voz na experiência psicanalítica”. Ágora. Rio de Janeiro, vol. XVIII n.1,
jan/jun 2014 pp. 59-70.
GRAF, H. & RIZZO, F. (1972) “Memorias de un hombre invisible” Herbert Graf recuerda
médio siglo de vida en el teatro. Um diálogo com Francis Rizzo”. In: Fort-Da, Revista de
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Psicoanalisis com Ninos. Numero 10 noviembro 2008. Extraída de https://www.fort-


da.org/fort-da10/herbertgraf.htm. Acesso em 01 novembro de 2020.

LACAN, J. (1953) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: ― Escritos.


Rio de Janeiro: JZE, 1998. pp. 238-324..
―. (1958) “Observações sobre o relatório de Daniel Lagache”. In: ― Escritos. Rio de Janeiro:
JZE, 1998. pp. 653-691.
―. (1960) “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. In: ―
Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 1998. pp. 807-842.

―. (1970) “Radiofonia”. In: ― Outros Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 2003. pp. 400-447
―. (1954-1955) O Seminário, livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio
de Janeiro:JZE, 1985.

―. (1972/1973. O Seminário, livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro:JZE, 1985.


LAURENT, E. “El uno solo”. In: Freudiana, n.83, 2018. pp. 73-88.
―. (2019) “Interpretation: from truth to event”. In: The Lacanian Review, issue 8/Fall.
Paris:Corlet Press, 2019. pp. 115-132.
MILLER, J.-A. (2008) Todo el mundo es loco. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain
Miller. Buenos Aires, Paidós. 2015.

MILLER, J.-A. (2004) Piezas sueltas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller.
Buenos Aires, Paidós. 2013.

WAGNER, R. (1876) “Siegfried”. In: O anel de Nibelungo”. Música e livreto de Richard


Wagnes. Tradução Lusófona do Livreto por Luiz de Lucca. Extraído de https://www.
luciaduraes.com.br/backups/oanel/conteudo/ourodoreno. Acesso em 02 de novembro de 2020.

Bibliografia
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Le Robert. Dictionaire historique de la langue Française. Paris, 1998.


Dictionnaire étymologique de la langue française. Paris:PUF, 2002
Le noveau petite Robert de la langue française. Paris: 2010.

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