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Retalhos da Vida de um Médico

Tópicos:

- breve exposição da obra e biografia do autor

- comparação de alguns temas descritos na obra e da atualidade

INTRODUÇÃO

Retalhos da Vida de um Médico constitui um documento social da primeira metade do século


XX, desenvolvendo-se em volta da vida de um médico de aldeia, por pequenas terras
provincianas do Sul de Portugal. Mostra as dificuldades que o clínico (narrador [na] primeira
pessoa) enfrenta para ser aceite pela população local, habituada a charlatães, crendices e
superstições. O médico depara-se com a maneira simples de viver dos aldeões,
subdesenvolvidos e subalimentados e com a sua desconfiança e avareza. A estas realidades,
reage ora com ironia, ora com dúvida, ora com cansaço.

Fernando Namora escreve de modo escorreito, sendo sempre agradável a leitura, e mesmo
quando refere momentos trágicos ou grosseiros, nunca se prende a juízos de valor, sendo as
suas reflexões adequadas e sensíveis às condições das pessoas do campo.
Ao longo do livro, Fernando Namora mostra-nos a miséria, ignorância em que viviam as
pessoas do povo, pobres e dependentes de qualquer autoridade, civil ou religiosa e presos a
misticismos e a práticas antigas, duvidosas e muitas vezes prejudicais de curandeiros, bêbados
e sem o mínimo conhecimento de medicina ou humano.
Fernando Namora conta-nos através de episódios da vida comum como pouco a pouco
consegue ganhar a confiança destas pessoas, como é posto à prova e como vai ganhando o seu
espaço como médico e pessoa.

Ora, é nesta atmosfera de confronto entre propagandistas do Estado Novo, por um lado, e os
que se opõem a Salazar, por outro, que Namora escreve o que sentiu, o que experimentou, o
que observou. Os seus retalhos contam, genuinamente, a realidade do ambiente rural de
então. Tudo bem diferente, em contraste com a Propaganda. O povo sofria. A inexistência de
infraestrutura associava-se a rendimentos muito baixos para a grande maioria das famílias
residentes nos aglomerados da freguesia de Monsanto. A pobreza predomina e condiciona,
naturalmente, a saúde de mães, crianças e de jovens e idosos. Todos conhecem a amargura e a
angústia desses tempos. Esses relatos impressionam não só pelo estilo literário (e estético)
mas, sobretudo, pelos valores que traduzem. Impressionam pelo rigor narrativo, pelos
detalhes descritivos, quer das famílias quer do ambiente social da época. Muitas vezes a prosa
é quase poética, mas descrevem a dureza da realidade, as dificuldades sempre presentes, a
forma triste da vida dos habitantes da freguesia. As doenças frequentes, a ignorância, a
intervenção negativa de curandeiros, a par do analfabetismo crónico prevalente.

TEMA: ACEITAÇÃO DO POVO RELATIVAMENTE AOS MÉDICOS

O autor, médico de profissão, cria um conjunto de relatos, escritos na 1.ª pessoa, nos quais um
jovem clínico vai dando conta da vida que enfrenta na sua atividade numa aldeia do interior do
país. A população rural cuja saúde tem a seu cargo é pobre e ancestralmente agarrada a
tradições e a superstições e, por isso, não raras vezes desconfia do saber do médico e rejeita a
sua ajuda. Ele reage com coragem ou ironia, por vezes com dúvida ou desânimo. Para além da
dimensão literária, o livro é um documento social de meados do século XX, na medida em que
põe a nu a miséria e o estado de subdesenvolvimento do país rural.

Exemplo:

No conto a História de um Parto é visível como os médicos ainda não são reconhecidos pela
população como capazes de desempenhar as suas funções.

"E a família acabou por correr o risco: seria eu o escolhido. Para mim o transporte do burro, o
sobressalto ansiado pelo que poderia acontecer.

O meu nervosismo ainda foi atiçado por uma rude prova de fraqueza dos campónios: sucedeu
que, mal eu chegara junto da esmorecida parturiente, me confessaram, com ressábios de
deferência, as dúvidas que havia na minha escolha. Esperei minutos, horas para me decidir
aquilo que desde logo me pareceu indicado: a intervenção com medonhos ferros que são o
pesadelo das parturientes e das famílias aldeãs.”

Este excerto refere que, entre dois médicos, a família tinha-o escolhido a ele e quando o
médico chegou ao pé da parturiente contaram-lhe as dúvidas que tinham tido na sua escolha.

Esperou durante algum tempo para pensar o que iria fazer e então lembrou-se de interferir
com os ferros para ajudar a senhora a ter o filho.

Atualmente, …

TEMA

A postura do médico passa por tentar usar o seu conhecimento científico e as novas técnicas
da medicina, abalando a “mitologia específica das massas laboriosas do campo”. Ora, é a
ignorância dos aldeãos que os leva a descurar a gravidade das doenças que os afetam. A
questão é aceitar, e só em casos extremos, quando a doença assim o obriga, a presença de um
médico, como podemos verificar em

“– Diga-me a verdade: o garoto está marralheiro há uns dias. Inchou-se-lhe o pescoço, mas
parecia uma mordedura de vespa. Não o quisemos incomodar por tão pouco”;

“os rurais sentem que o médico provém duma sociedade quase diferente. E o médico tem
como primeiro empenho – mesmo antes de prestar assistência ao enfermo – fazer-se admitir
como um dos seus. Há aí um fenómeno de aculturação”

Observamos assim que “a doença não suscita neles qualquer ruptura em relação à sua maneira
de viver ou pensar”.

A ignorância dos aldeãos é, então, um duro entrave ao exercício da medicina, exigindo do


médico uma ilimitada paciência e dedicação. Paralelamente a esse desconhecimento científico,
os camponeses consideram que o dinheiro que despendem com a assistência clínica é um
desperdício injustificado. Em Ciganos e o mais que se lerá, o médico denuncia a intolerância
dos camponeses face ao contrato de avença estabelecido entre ambas as partes. O narrador
apresenta o caso paradigmático de um camponês que, durante um ano, andara a juntar
dinheiro para comprar uma camisa e que, para pagar ao médico, se vira obrigado a prescindir
dessa intenção. O jovem Namora, perfeitamente identificado e solidário com a pobreza dos
aldeãos, acaba por concluir que esse era “dinheiro que [lhe] sabia a sangue”, na medida em
que “era o pão que eles tinham deixado de comer, era a camisa, eram as pequenas esperanças
frustradas”. O confronto entre médico e comunidade rural também assenta, desta forma,
numa perspetiva económica, estando o pagamento ao clínico dependente de ter ocorrido um
bom ou um mau ano agrícola.

Atualmente, …

Na história Um conde na ilha fria o excerto que mais gostei foi:


"Não se lhe conhecia um amigo na vila. Dizia-se que o velho César só tinha olhos para suínos e
para porqueiros do montado: era incapaz de reter a cara de um companheiro de taberna ou de
qualquer ganhão que tivesse passado pela herdade. O seu mundo continuava deliberadamente
estreito."
O velho César não tinha nenhum amigo na vila, pois só gostava de suínos, ou seja, animais. Era
incapaz de ter boa cara para um companheiro de taberna ou de alguma pessoa que tivesse
passado pela herdade. O velho César vivia num mundo muito estreito.

Na história A visita, a parte mais interessante é a seguinte: "A criança chorou para os lados da
cozinha e logo se ouviu o embalo impaciente do berço, os resmungos do homem. Depois, de
novo o silêncio. A menina, atordoada, decerto voltara a adormecer. Eu esperava que o
camponês entrasse no quarto, e enquanto as minhas mãos fingiam rebuscar mais algum
segredo no corpo da doente ia imaginando rodeios, mentiras e palavras. Mas dissesse o que
dissesse rodeios, mentiras, palavras, a verdade seria sempre pressentida e terrível."

Parece-me interessante destacar como a verdade da doença, por mais que o médico tentasse
encobri-la, viria sempre ao de cima.

Na história Um homem do Norte, o excerto que mais gostei é este:

"Passei a visitá-lo diariamente, aliviando-o no que podia, das noites sufocadas pelas garras da
sua asma cardíaca. Ele ia empalidecendo, o vigor dos gestos amolecia, a doença tomava maior
relevo nas suas frases, embora essa contemporização ainda fizesse baixar os olhos de pejo e de
desagrado. A governanta esperava-me à porta, um pouco antes da hora de visita."

O médico passou a visitar o seu utente diariamente, aliviando o seu paciente do que lhe
poderia acontecer de noites devido à sua asma cardíaca, o que, mais uma vez, mostra o
profundo humanismo deste médico.
O excerto que eu mais gostei na história Reputação:
"O pequeno doente estava num dos quartos interiores.
Uma cama de criança, uma cómoda como oratório e manchas esverdeadas nas paredes que
ressumavam humidade.
A mãe tinha o rosto afogado de lágrimas e veio atender-me à entrada do quarto, como se logo
ali esperasse de mim um milagre. O sr. Botinhas sorria, entrelaçando os dedos."
O narrador refere-se a uma pessoa que estava doente e que estava fechado quarto.
Nesse quarto encontrava-se uma cama, uma cómoda e havia manchas na parede de cor
esverdeada. além disso, o doente mandava coisas para a parede o que lhe dava um aspeto
ainda mais nojento.
A mãe do doente, com lágrimas na cara foi atender o médico à porta do quarto, pensando que
o médico fosse capaz de fazer milagres.
É esta crença que o povo tem no médico, quase cega, que o narrador nos transmite neste
excerto.

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