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A pesquisa em psicanálise: o método de construção do caso psicanalítico

A pesquisa em psicanálise:
o método de construção do caso psicanalítico
Research in psychoanalysis:
method of construction psychoanalytic case
Denise Quaresma da Silva

Resumo
A autora aponta subsídios teóricos que possibilitem aos pesquisadores do campo das ciências
humanas e da psicanálise reflexões acerca do método de construção do caso psicanalítico,
como um aporte para as pesquisas qualitativas nesses campos. Discute teoricamente a cons-
trução da Psychoanalytische forschung (pesquisa psicanalítica), que aparece várias vezes ao
longo dos textos freudianos.

Palavras-chave: Pesquisa psicanalítica, Caso psicanalítico, Pesquisa qualitativa, Psicanálise.

Neste texto, aponto alguns subsídios teóri- aprender com todos os fenômenos humanos,
cos que possibilitem aos pesquisadores do tantos quantos nos façam questão.
campo das ciências humanas e da psicaná-
lise reflexões acerca do método da constru- A entrevista e a investigação narrativa:
ção do caso psicanalítico, como um aporte os contadores de histórias
para as pesquisas qualitativas nesses campos. Tomando como referência um caleidoscópio,
Esse aporte teórico foi empregado em tese de podemos pensar o quanto, justamente giran-
doutoramento intitulada Mães-menininhas: do seu prisma, se possibilita que a entrada de
a gravidez na adolescência escutada pela psi- luz incida sobre outros ângulos, dando outra
canálise e educação (QUARESMA DA SIL- visão, outro aspecto de um mesmo raio de
VA, 2007). luz. Na pesquisa psicanalítica, o(a) pesqui-
Conforme explana Nogueira (2004), a sador(a) se utiliza metaforicamente de um
psicanálise aplicada é o tratamento psica- caleidoscópio para pensar na questão que é
nalítico, e aquilo que escapa ao tratamento objeto de investigação, iluminando ângulos
psicanalítico é a teoria psicanalítica. Já a psi- até então pouco percebidos ou ignorados,
canálise em extensão refere-se àquilo que o através de ferramentas múltiplas — nesta
psicanalista pode aprender através da inves- pesquisa, as entrevistas semiabertas.
tigação da cultura humana, das atividades Ao problematizar o papel das entrevistas
humanas. Esse autor refere que Freud, com a nas pesquisas em educação, Silveira (2002,
obra de Sófocles, Édipo Rei, pode aproveitar a p. 120) contribuiu significativamente ao pôr
tragédia grega para formalizar o que chamou em questão a tradicional concepção da en-
de complexo de Édipo, aprendendo com a trevista com uma função “partejadora”. A au-
tragédia para fazer uma teoria psicanalítica. tora ironiza a expectativa de que, através da
A própria expressão Psychoanalytische fors- entrevista, possamos “descobrir” dados fide-
chung (pesquisa psicanalítica) aparece várias dignos e “desnudar a verdade mesma” sobre
vezes ao longo dos textos freudianos. Con- aquilo que pesquisamos. A ironia da auto-
cordo com o autor e postulo que podemos ra se dá em função da problematização que

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realiza em torno das pesquisas e entrevistas Os atos falhos, nessa assertiva, também
que se propõem encontrar e/ou descobrir a são valiosas pistas de como psiquicamente
verdade absoluta sobre algum objeto de es- o sujeito lida com a temática que narra. Há
tudo. Nesse sentido, a pesquisa psicanalítica, um sujeito racional que narra entendimentos
por levar em consideração o inconsciente e compreensões, e há a verdade inconscien-
humano, propõe não a busca de uma verda- te, que por vezes, metaforicamente falando,
de absoluta, mas a investigação de verdades escorrega e sai pela janela, contrariando o
contextuais, relativas e individualizadas. orador que relata uma suposta verdade que
Tomo a entrevista na pesquisa psicana- deveria sair pela porta...
lítica como uma ferramenta também pro- As entrevistas são gravadas e transcritas
dutora de subjetividades, pois aquele que posteriormente, para poderem ser analisa-
ocupa o lugar de entrevistador fala de um das em toda sua extensão. No momento da
lugar de saber e poder, produzindo efeitos transcrição, os nomes verdadeiros dos(as)
sobre o(a) entrevistado(a). No momento entrevistados(as) são preservados garantin-
da entrevista, o(a) participante entrevista- do, assim, o sigilo e o tratamento ético, fun-
do(a) vai escolher as palavras a serem ditas, damentais nas pesquisas psicanalíticas.
levando em consideração o papel que o(a) A partir do que dizem ou fazem, os(as)
pesquisador(a) ocupa e os sentimentos que entrevistados(as) também exercem efeitos
são provocados. Nas entrevistas realizadas, sobre o(a) entrevistador(a), desestabilizando
inicialmente explica-se ao sujeito o traba- suas “convicções” ou propósitos, ao se posi-
lho de pesquisa buscando, desse modo, uma cionarem de maneira diferente da esperada
maior profundidade no diálogo. O engaja- (que falem, que digam muitas coisas, que
mento dos(as) entrevistados(as) à pesquisa colaborem). Às vezes, até mesmo se negam
se dá por livre disponibilidade e, na medida a participar. Tais acontecimentos nos levam
do possível, busca-se um aprofundamento a vislumbrar a impossibilidade de que o an-
das questões. damento da pesquisa tenha o caráter linear
Nessa modalidade de pesquisa, podemos e organizado que desejamos inicialmente,
também utilizar a técnica da observação livre necessitando reavaliações e reconstruções
com registro em diário de campo, no intuito na medida em que nos encontramos com as
de complementar e validar as informações “realidades” do local e dos(as) participantes
construídas. Esse diário constitui ferramen- da pesquisa.
ta importante da pesquisa, pois nele regis- De acordo com Silveira (2002), as orien-
tramos as impressões subjetivas, os aspectos tações tradicionais de entrevista oferecem
informais, os gestos, os comportamentos, uma série de receitas, atitudes e procedi-
enfim, as expressões emocionais que perce- mentos que deveriam ser adotadas pelo en-
bemos no decorrer da pesquisa, e as percep- trevistador na situação de entrevista, “todas
ções que tivemos ao longo das entrevistas e elas sob a égide de uma maior eficiência do
que não couberam nas narrativas, por serem partejar da palavra alheia e do direciona-
importantes expressões não verbais que “fa- mento dessa palavra” para os objetivos de
laram”. Essas percepções, por vezes pouco captação de “dados fidedignos” (SILVEIRA,
consideradas ou não validadas pelas ciências 2002, p. 123). Atenta-nos para o fato de que
exatas, encontram, no campo das pesquisas não podemos ser ingênuos a ponto de achar
em psicologia e psicanálise, sua valia, pois os que, nas entrevistas realizadas durante uma
silêncios, os suspiros, o tom de voz revelam pesquisa acadêmica, as informações venham
a emoção e a afetividade que permeiam o até nós de modo puro e que, por fim, acabem
sujeito na temática que narra, muitas vezes por expressar a verdade mesma das questões
denunciando o sujeito. pesquisadas. Para ela, devemos nos posicio-

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nar de maneira realmente atenta, mostrando não intencionada. É importante então com-
a impossibilidade de darmos conta de ideais preender, durante a entrevista e na análise,
tradicionais, como objetividade, atemporali- que o indivíduo é sujeito de uma série de dis-
dade, fidedignidade, exatidão, imparcialida- cursos (ditos e não ditos) e que o mesmo in-
de e autenticidade. divíduo pode ocupar diferentes posições de
Em relação a essa discussão, as contribui- sujeito: quem fala em mim?
ções de Mannoni (1982) se mostram valiosas Ao narrar uma história escutada ou dita,
para que possamos pensar sobre a questão há toda uma plasticidade de significantes
do saber e da verdade em psicanálise, na me- que a bordejam: uma interpretação da pa-
dida em que se constitui a disciplina que es- lavra dita pela entrevistada está muito mais
tuda o inconsciente. Para a autora, a psicaná- ligada à interpretação significante da pesqui-
lise freudiana apresenta um duplo discurso: sadora do que ao sujeito que fala. Dessa for-
de um lado, busca o reconhecimento como ma, como aponta Folberg (2002), podemos
“científico”; de outro, apresenta uma discur- apenas nos aproximar do significado do que
sividade que se abre aos mitos, nos deixando nos é anunciado.
atentos ao fato de que somos passíveis de nos Nesse sentido, aponto para a cautela ne-
enganar pelo saber. A autora entende que to- cessária na escuta das vozes que falam: é pre-
mar a teoria analítica por um saber sem fa- ciso se perguntar várias vezes para que a ver-
lhas seria danoso à psicanálise, pois estaria dade, ou parte da verdade, ainda que provi-
suplantando a dimensão da verdade. sória e inconstante, venha à luz. Enfatizo que
Além desses elementos presentes na situa- na pesquisa psicanalítica o trabalho com a
ção da entrevista, vejo-a também como mais escuta das múltiplas vozes passa pelo mundo
uma forma de “produzir dados” para análise, interno do(a) pesquisador(a), fazendo, como
na medida em que, como pesquisadora, es- sugere Barbier (1993), uma história que é
colhe as palavras da pessoa e faz uso delas de construção da história do(a) investigador(a).
maneira certamente não desinteressada. Nessa assertiva, as entrevistas são toma-
Sequencialmente, outro aspecto impor- das como narrativas e examinadas a partir
tante em relação às entrevistas se refere à sua dos pressupostos teóricos da teoria psicana-
transcrição e à impossibilidade da transpa- lítica, para discutir e problematizar discursos
rência na reconstrução ou reintegração da e/ou fragmentos de discursos que, de forma
narrativa de modo idêntico como foi enun- articulada, permitam que as jovens (re)signi-
ciada: se veio ou não acompanhada de um fiquem esse momento.
choro, de dúvida, de um sussurro, de um Larrosa (2004) argumenta que o ser hu-
silêncio, de um sorriso. Isso porque, ao ser mano utiliza as narrativas constantemen-
dito e se tornar público, o enunciado se co- te para se autointerpretar. As histórias nos
loca fora daquele que enuncia, fazendo parte constituem e são produzidas no interior de
de outro contexto e de outro tempo, sendo determinadas práticas sociais mais ou me-
reinventado na análise da pesquisadora. nos institucionalizadas: instituições como
No lugar de quem investiga e analisa, é família, escola, igreja, tribunais, relaciona-
importante compreender a entrevista no mentos amorosos, grupos terapêuticos, ou
seu aspecto polifônico, ou seja, trazer para a uma entrevista, um processo investigativo e
análise justamente as “outras vozes”, a plura- programas televisivos se tornam espaços de
lidade discursiva que atravessa a narrativa da produções narrativas e de constituição de
entrevistada; sem deixar de mencionar que a subjetividades.
própria presença de quem investiga é parte De acordo com Connelly e Clandinin
dessa pluralidade discursiva, ou seja, sempre (1995, p. 11), os humanos são “organismos
há uma interferência, mesmo que mínima e contadores de histórias”, seres que, de forma

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individual ou social, vivem vidas relatadas. vezes tomado como específico do trabalho
Para esses autores, estudar as narrativas é clínico terapêutico. Argumento que Freud
olhar para as formas pelas quais os seres hu- desenvolveu a psicanálise para além de uma
manos experimentam o mundo. Portanto, teoria, como um método de pesquisa tantas
se a narrativa é uma maneira de caracterizar vezes empregado por ele fora dos limites do
os fenômenos da experiência humana, então setting terapêutico, analisando produtos da
seu estudo vem a ser adequado em diversos criação humana como obras de arte, textos,
campos das ciências sociais. A investigação instituições, etc.
narrativa dentro desses campos é uma forma Retomamos a ideia de que uma ciência se
de narrativa empírica onde os dados são fun- define pelo seu objeto e pelo modo de inves-
damentais para o trabalho. tigação (método) desse objeto. Silva aponta:
Para a análise dos dados colhidos nessas
múltiplas vozes que constituirão o caso psi- O objeto da psicanálise é o inconsciente, é a
canalítico, conforme relata Iribarry (2003), a gama de significados emocionais possíveis
experiência do(a) pesquisador(a) psicanalí- que se organizam segundo um fio condutor
tico(a) diante das entrevistas e questionários que batizamos de desejo, com tendência a se
respondidos é tomada no sentido de uma manifestar à consciência e daí ao ambiente. O
aprendizagem que se transformou em saber, método da psicanálise apresenta-se com uma
ou seja, uma Erfahrung, uma experiência dupla face: de um lado, a associação livre — a
decorrente do contato do(a) pesquisador(a) oferta de material sem crítica ou intenção de-
com os(as) participantes de sua investigação terminada, e de outro, a atenção flutuante —
e com os dados coletados. O(A) pesquisa- captação de material sem crítica ou intenção
dor(a) psicanalítico(a) faz parte da experiên- predeterminada. Na prática, isso se traduz
cia de aprendizagem extraída da pesquisa e, por uma espécie de jogo em que as fantasias
com base no estudo de caso, constrói o caso de ambos os interlocutores organizam-se em
psicanalítico. busca de um consenso sempre questionado
a respeito do avesso do que foi dito. Ou seja,
A construção do estudo o método da psicanálise caracteriza-se por
de caso psicanalítico abertura, construção e participação (SILVA,
Ao desenvolver seus estudos sobre a pesqui- 1993, p. 20).
sa em psicanálise, em especial sobre o estudo
de caso, Stake (1994) refere que, por abordar Além disso, é um método receptivo em
aspectos privados, um código de ética estri- que se valoriza mais a escuta do que a fala, no
to oferece proteção aos(às) participantes da qual o objeto não é simples de ser apanhado:
pesquisa, já que esta se interessa por pontos mostra-se esquivo, permitindo apenas furti-
de vista e circunstâncias pessoais. Segundo vas observações de sua presença.
o autor, embora os casos lidem com assun- Na transposição da escuta psicanalítica
tos de interesse público, a garantia de priva- clínica — de consultório — para a prática
cidade deve se situar em lugar privilegiado. psicanalítica de pesquisa, alguns ajustes de-
Em um estudo de caso psicanalítico, as ques- vem ser realizados no que tange ao tipo de
tões éticas estão na pauta das preocupações, material a ser analisado. Porém, algumas
as participantes são informadas do termo características essenciais devem ser preser-
de consentimento pós-informado, do sigilo vadas para que se possa ainda considerar o
acerca de seu nome. método como psicanalítico, isto é, possibili-
Quando nos referimos à pesquisa em psi- tador da emergência de sentidos submersos.
canálise, logo entra em discussão a questão A mais fundamental dessas condições, ci-
do domínio desse campo do saber, tantas tada por Silva, é que não se dê início a uma

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investigação trazendo alguma resposta, teo- ca e, em função disso, é necessário entender


ria ou conhecimento anterior; é importante a história do caso como algo dinâmico, uma
que se tenham hipóteses, mas que não limi- construção permanente produzida pela fic-
tem a escuta, “não impeça[m] a aventura da ção das ideias.
busca do desconhecido” (1993, p. 21). Para Conforme Barth (2006), o uso da ficção
a autora, “a demonstração de um saber pré- como ferramenta do psicanalista pode a
vio, ao estilo de um teorema, não pode ser princípio causar certo desconforto:
psicanalítica pela simples razão de que essa
resposta já é consciente” (SILVA, 1993, p. Assim, é o efeito capaz de ser produzido que
21). Os conhecimentos prévios podem ser- dará o caráter de bem fundado a um conceito
vir muitas vezes como formas de resistir ao psicanalítico, uma vez que, antes da formu-
novo, ao não sabido, ao que se desconhece. lação teórica, o psicanalista dá testemunho
À medida que elementos possibilitadores de sua escuta. A ideia de que um caso clínico
de análise e clarificadores em relação ao ob- seja uma ficção nasce do fato de que o relato
jeto e às questões de pesquisa emergem no de um tratamento psicanalítico jamais con-
decorrer da pesquisa, passam a acontecer segue reproduzir o acontecimento concreto,
os movimentos analíticos que buscam com- mas sua história reformulada, a partir de uma
preender as manifestações emergentes. reconstituição fictícia (BARTH, 2006, p. 40).
Segundo Fédida (1991), a construção do
caso se oferece como ferramenta própria ao Desse modo, o caso se configura en-
método psicanalítico de pesquisa, ao permi- quanto uma ficção, resultado da produção/
tir o exame metapsicológico da dimensão in- exposição de uma hipótese teórica ao mes-
consciente posta em jogo em um tratamento mo tempo que tem a capacidade de revelar o
psicanalítico. seu(sua) autor(a). Souza (2000) se remete ao
O caso é construído através da conjunção caso clínico psicanalítico como um novo gê-
das experiências de vida dos(as)entrevista- nero literário, residindo nesse aspecto a ex-
dos(as), num trabalho metodológico que se plicação para o fato de muitos lerem os casos
propõe a contemplar a singularidade dos(as) de Freud como se fossem romances. Postulo
participantes da pesquisa. O caso é com- que a pesquisa psicanalítica proporciona da
posto enquanto uma história que vai sendo mesma forma a criação de um caso: o caso
construída à medida que é escrita pelo(a) do pesquisador.
pesquisador(a). Com base no observado e Santos (2005), ao justificar o uso da meto-
escutado durante a pesquisa, se constrói uma dologia de construção de caso na realização
narrativa pessoal que, por fim, acaba sendo o de seu estudo de mestrado, postula:
“caso”, ou seja, o caso do(a) pesquisador(a).
De acordo com Stake (1994), o modo como Nesse sentido, o relato da experiência também
os fragmentos das entrevistas e das cenas seria uma construção particular do pesquisa-
observadas são apresentados aos leitores é o dor, que envolve o registro de fragmentos que
produto de uma tentativa do(a) autor(a) de não têm sentido aparente, mas que o adqui-
fazer com que o leitor conheça as histórias rem na relação com as construções teóricas
contadas e analisadas, e possa senti-las como subsequentes. Se as construções do analista a
se as tivesse vivenciado. partir de fragmentos do atendimento podem
As narrativas construídas a partir das fa- ajudá-lo a dirigir a cura de um paciente, aqui
las das pessoas entrevistadas são objeto de elas poderão possibilitar a elaboração que
interpretações enquanto caso de análise. Fé- pode viabilizar a comunicação de uma expe-
dida (1991) refere que o caso é uma teoria riência para a comunidade científica (SAN-
com capacidade de transformação psicológi- TOS, 2005, p. 15).

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De acordo com Fédida (1991), a cons- ma forma, as hipóteses são produzidas pela
trução do caso é um método de pesquisa fantasia do(a) pesquisador(a) e, justamente
psicanalítica utilizado pelo psicanalista na por isso, não está autorizado(a) a formular
situação de tratamento, constituído a partir sobre essas hipóteses interpretações que
do registro das lembranças e dos fragmen- possam ser comunicadas aos participantes
tos narrados pelo paciente. À realização dos da pesquisa.
registros se segue/sucede um exercício me- O caso é sempre uma construção reali-
tapsicológico enquanto ficção de conceitos, zada em supervisão baseada no mundo in-
que se inicia no momento da escuta do pa- terno do pesquisador. Constitui-se a partir
ciente e que tem andamento na elaboração, da travessia de observações e escutas reali-
efetivada em momento distinto do processo zadas pelo seu mundo interior, resultando
analítico. Posteriormente, o analista reflete em produção narrativa significada pelas suas
sobre sua prática e produz uma fecunda ela- experiências e vivências subjetivas. Outro as-
boração sobre sua prática clínica. Esse modo pecto importante é o fato de a construção do
de conduzir a técnica psicanalítica foi intro- caso funcionar como um método de escri-
duzido por Freud, que dele fazia uso para, ta no qual o(a) psicanalista/pesquisador(a)
constantemente, reconstruir e reorganizar produz uma transfiguração das narrativas
os conceitos que estava produzindo teorica- do(a) paciente/participante da pesquisa pos-
mente. sibilitando, assim, que os leitores consigam
A ficção de conceitos é discutida por Fé- compreender o caso. A construção realizada
dida (1991), apontando que ela se estrutu- pelo(a) analista/pesquisador(a) proporciona
ra em torno não de um simples relato do a inteligibilidade da trama. Fédida (1991)
caso, mas sim da construção de um enigma argumenta que o caso publicado é sempre
do caso, que vai sendo organizado duran- do(a) analista. Nessa assertiva, postulo que o
te a escuta do analista ao paciente e que se caso na pesquisa psicanalítica é sempre do(a)
dirige posteriormente ao supervisor de sua pesquisador(a).
prática clínica. Algumas hipóteses em torno O modo pelo qual o pesquisador vai apre-
do enigma são os motores que direcionam sentar sua narrativa, sua construção do caso
a pesquisa psicanalítica, embora se procure será, conforme Stake (1994), escolha do(a)
manter o enigma durante a sua prática. próprio(a) pesquisador(a) e oriundo de sua
Barth (2006), ao discutir a construção forma pessoal de escrever e de narrar. Os as-
do caso como ferramenta da pesquisa psi- pectos que considerará importantes em sua
canalítica, cita Fédida (1991) e seu texto A construção também serão escolhas do pes-
construção do caso. Nele o trabalho de su- quisador, que necessitará “recortar” tais ele-
pervisão com uma analista é tomado como mentos, observando o foco de seu estudo e
ponto de partida para o estudo, demons- levando em conta que jamais seria possível
trando como o relato de um caso de análise narrar ‘toda a história’. Outra contribuição
poderá se transformar em uma construção importante desse autor é o alerta para o fato
do caso. É preciso cautela, pois o enigma ci- de que os pesquisadores que optam por tra-
tado por Fédida “só pode ser entendido en- balhar com a metodologia de estudo de caso
quanto enigma da vida psíquica do paciente, acabam transmitindo alguns de seus pró-
estabelecido a partir da escuta oferecida por prios significados aos aspectos estudados em
um analista, ou seja, o caso não está dado, detrimento de outros.
pronto, antes do advento da relação trans- Para Barth (2006), essa questão merece
ferencial” (1991, p. 25-26). Sendo assim, o destaque, já que, frequentemente em torno
analista está implicado no caso levado à su- dela, são construídas fortes críticas. Diz o
pervisão. Na pesquisa psicanalítica, da mes- autor:

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Como garantir a apropriação dos dados co- pensarmos o estudo de caso é Nasio (2001).
letados durante a observação, por exemplo, Discute que o movimento do analista de
para uma forma final de apresentação do construir um estudo de caso em torno de al-
caso? Aqui, destaco que os “próprios signifi- gum paciente revela seu interesse por ques-
cados pessoais”, os quais parecem confirmar tões desse paciente. Refere que
a fragilidade desse método de investigação
psicológica, são a condição sine qua non para [...] definimos o caso como o relato de uma
a efetivação de uma pesquisa psicanalítica experiência singular, escrito por um terapeu-
(BARTH, 2006, p. 19-20). ta para atestar seu encontro com um paciente
e respaldar um avanço teórico. Quer se tra-
Ao discutir as funções de um estudo de te do relato de uma sessão, do desenrolar de
caso quanto à descrição e à transcrição dos uma análise ou da exposição da vida dos sin-
dados, Allonnes (1989) aponta que consis- tomas de um analisando, um caso é sempre
tem em informar e formar; em ilustrar, por um texto escrito para ser lido e discutido. Um
ser esta a mais rigorosa ferramenta de ilus- texto que, através de seu estilo narrativo, põe
tração; em problematizar, estabelecendo uma em cena uma situação clínica que ilustra uma
relação de troca entre a teoria e o material, elaboração teórica. É por essa razão que po-
evitando-se que aquela funcione de forma demos considerar o caso como passagem de
implícita ao fazer referência ao que não está uma demonstração inteligível a uma mostra
dito; em apoiar e convencer, na medida em sensível, a imersão de uma ideia no fluxo mó-
que a questão não é provar, mas convencer vel de um fragmento de vida, e poderemos,
pela persuasão, já que muitas vezes o que se finalmente, concebê-lo como a pintura viva
pretende num estudo de caso é a imposição de de um pensamento abstrato (NASIO, 2001, p.
um sentido ao qual nada no sujeito pode opor 11-12).
resistência. Para tanto, o autor diz que o mais
correto seria denominar “registro” de caso. As palavras de Nasio (2001) me remetem
Barth (2006, p. 17) discutindo Allonnes, a pensar que, enquanto estudo de caso, a pes-
diz que ele parece não acreditar em um tra- quisa psicanalítica não se fecha em si mesma
balho que vá além do estabelecido pela ob- e nas verdades que se propõe construir; ao
servação do material coletado, no qual a ob- contrário, é construída para ser lida e discu-
servação figura como um dispositivo privile- tida, a fim de que sua presença no meio aca-
giado. A psicanálise, para Barth, rompe com dêmico possibilite a abertura de novas jane-
esse modelo. las do saber humano interessado em debater
Outro aspecto que facilmente gera po- os aspectos pesquisados.
lêmica diz respeito aos riscos de o estudo Fédida (1991) postula que a narrativa
de caso produzir generalizações. Allonnes construída pelo(a) analista/pesquisador(a)
(1989) entende que é possível buscar uma está tão submetida às questões inconscientes
forma limitada e controlada da generaliza- quanto o relato da pessoa ouvida no decor-
ção. Isso porque o estudo de caso pretende rer da pesquisa/tratamento. Nessa direção,
conhecer os processos de uma (ou mais de Barth (2006) nos alerta que a pesquisa psi-
uma) história singular a partir dos elementos canalítica constitui um exercício metapsico-
coletados, voltando-se para a singularidade lógico; o(a) pesquisador(a) não está desvin-
do caso, ou para o estudo dos seus procedi- culado do objeto que pretende estudar. É
mentos, ou ainda para os modelos de funcio- possível compreender, a partir desse autor,
namento. que a construção psicanalítica do(a) analis-
Outro pesquisador da psicanálise que ta/pesquisador(a) implica inicialmente a ne-
apresenta importantes contribuições para cessidade de ter seu olhar voltado sobre seu

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próprio inconsciente, num processo analíti- dor(a): a própria análise pessoal, os estudos
co em que ocupa o lugar de paciente. Essa teóricos e as trocas com outros(as) psicana-
vivência criará condições de realização do listas/supervisores(as).
exercício metapsicológico necessário à cons- Os elementos de minha própria formação
trução teórica psicanalítica. como psicanalista e como educadora possi-
A metodologia da construção de caso bilitaram minha entrega ao estudo propos-
possibilita que as produções psicanalíticas to como tese de doutorado e anunciado no
não se restrinjam aos consultórios, contri- início deste texto: um objeto de pesquisa que
buindo com as formações oferecidas nos es- me fazia questão — as significações da gra-
paços acadêmicos. videz para as adolescentes —, além de mi-
Havendo inicialmente um distanciamen- nha formação teórica constante, das trocas
to entre a psicanálise e a formação universi- realizadas em supervisão com a orientadora
tária, a verdade é que, por suas tantas e pos- acadêmica, da condição de escuta do outro a
síveis contribuições, a psicanálise tem sido partir da escuta de mim mesma e da elabo-
demandada pelas mais diversas formações ração de minhas próprias questões, analiti-
acadêmicas. Portanto, se faz necessário que camente.
ela encontre meios de apresentar seus acha- Ou seja, a iluminação, a clareagem, a escu-
dos de modo que possa ser compreensível a ta e a leitura das vozes e dos silêncios foram
sujeitos que não estão inseridos nos espaços propostas por um sujeito ativo, participante,
privados da formação psicanalítica, pois por não neutro: o(a) pesquisador(a) na pesquisa
bastante tempo a psicanálise foi mantida lon- psicanalítica não é alguém distante, “esterili-
ge dos currículos acadêmicos. Porém, isso zado”, à parte da questão. Pelo contrário, sen-
não impediu que se desenvolvesse enquan- te em seu íntimo os ecos da pesquisa e por ela
to campo do conhecimento produtor de um é atravessado(a).
amplo arsenal teórico. As instituições criadas A neutralidade necessária na pesquisa
com a finalidade de formar psicanalistas se psicanalítica se refere ao compromisso de
ocuparam da continuidade dos estudos psi- não interferir com a escolha íntima de cada
canalíticos, e nos últimos anos as universi- sujeito participante, de não demandar assu-
dades têm realizado movimentos de incluir mir escolhas em seu nome, sugerindo-lhe
a psicanálise em seus currículos, bem como possibilidades baseadas nas escolhas pessoais
têm se direcionado às pesquisas nessa área. do(a) pesquisador(a), permitindo assim que
Conforme Mezan (1993), tal movimento surjam aspectos, sentimentos e pensamentos
nos incita a indagar sobre as condições e os que muitas vezes não são percebidos ou não
limites do ensino da psicanálise nas univer- aparecem em modalidades de pesquisa mais
sidades, uma vez que elas se voltam funda- cartesianas e mais diretivas.
mentalmente para o desenvolvimento e o fo-
mento da pesquisa, diferentemente das insti-
tuições psicanalíticas focadas na formação de Abstract
novos psicanalistas. The author points out the theoretical subsi-
De acordo com Silva (1993), a pesquisa dies that enable researchers in the field of hu-
em psicanálise se configura num empreen- manities and psychoanalysis to reflect about
dimento bastante complexo e fecundo. É a the construction method of a psychoanalytic
construção da teoria em psicanálise um tra- case as a contribution to qualitative resear-
balho de pensamento do(a) analista a partir ch in these fields. Theoretically discusses the
de sua prática. Aponta para a fundamental construction of Psychoanalytische forschung
importância de três elementos na pesquisa (psychoanalytic research), which appears se-
e na formação do(a) psicanalista/pesquisa- veral times over the Freudian texts.

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A pesquisa em psicanálise: o método de construção do caso psicanalítico

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