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Geréncia de produsio editorial | Marcus Polo Rocha Duarce Equipe Editorial Karon da Silva Santos (Njobs Comunicacio) Daniela Rodrigues (Njobs Comunicasio) Diagramagio ! Rafael Keout (Njobs Comuniessio) Copyright © 2014 by Editors Universidade de Brasilia EDiritos exclusives para esta edigfo: Edicora Univesidade de Brasia SCS, quadea 2, blaco C, n® 78, edificia OK, 2 andar, CEP 70302-907, Brasilia, DE £ Telefone: (61) 3035-4200 Fax (61) 3035-4230 5 Site: wanweditorsunb.br Emil: contttoeditora@unb “Todos os dinitos eservados. Nenhuma parte deser publi cacio podeti ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizagio por esctco da Editors cha catalogesfcaelaboraca pela Biblioreca Ceneal da Universidade de Beasia 5681 Softimenco humano, crise psiquics e cuidado : dimensbes do sofrimenta e do cuidado humano na contemporaneidade /lleno lzidia da Costa, Beaeiia: Editora Universidade de onpanizador Brasilia, 2014. 337 p. ISBN 978-85-230-1147-5 1. Softimento humana, 2, Crise pstquies do softimente. 4, Sade mental T. Costa leno Feldio da (org). 3. Fenomenol DU 17,023.34 Sobre 0s autores se SOFRIMENTO HUMANO, GRISE E CUIDADO Sofrimento Humano ¢ Softimento Psiquico: da condigéo humana is “dores psiquicas” eno Ieidio da Cosea Fundamentos para abordar o sofrimento humanot cuidado, ética, convivéncia .. Tania Inessa Martins de Resende ¢ fleno Tzidio da Cosca Por uma Clinica Fenomenolégica do Softimento: © sofrer é do sofrente e do existente .. Adriano Holanda Loucura, satide mental e clinica .. Enrique Araujo Bessoni e Ileno Tzidio da Costa Invervengio em crise: sofrimento, formagio, politicas piblicas ¢ realidade brasileira 181 Tommy Akira Goro © Paradigma da Intervengio Precoce nas Psicosest ‘uma abordagem possivel 20 sofrimento psiquico grave ws 201 Lilian Cherulli de Carvalho e leno Tzidio da Costa O SOPRERE DO SOFRENTE E DO EXISTENTE ‘Adriano Furtado Holanda sra ‘clinica’, além de polissémica em sua nacureea, se acompanhada de entendimentos ¢ interpretacbes is com os repertdrios ¢ concepgées a priori de sujeitos eolégicos — ou, se preferirem, de ceorias eotalizantes istentes, Evidente que nio estamos ndo uma posicéo ~ iluséria ~ de uma coral abstengio aprioristicos, dado que toda ciéncia se baseia em ces flosdficas (ou concepgdes de mundo ¢ de homem que a5 acompenham e as direcionam); mas apenas acenando para uma de “desconfianca” em selagio a coda perspectiva que se ¢ arvore a condigao de “dar conta” em si, da totalidade tiva de determinado fendmeno. Desconfianga de qualquer posigdo “exclusiva” sobre determinado acontecimento ou ocorréncia A vida fui de modo muito mais dindmico que nossas consciéncias possam capaurar. nica", neste contexto, queremos tio somente designar 0 ‘9 fendmeno do humano que se manifesta no sofrimento. “olhas" Clinica, pois, € 0 cuidar desse sersofiense, sendo esse cuidar uma com” aticude de exczr-com—ou um ser-com (Misein), que é um “ser ou sMit-daSein, como designa a tradicio. fenomenoldgica ~ come um acompanhante, um ajudador, um leitos, um interpret um acolhimento, ou simplesmence um gesto de confirmagio, em relagio a esse sujeico existence. Por um Clini Fenomenalgica do Softimento 18 Uma “clinica” tal como pretendemos sua compreensio— pode secexemplificada pela atieude de Joseph Berke, idealizador da Arbours Association, wm centro de atengio a crises ¢ um lugar alternative & psiquiactia, onde os “pacientes” sio chamados de “héspedes”, ¢ onde foram criados “[..] pequenos locais experimentais onde se possa viver com a ‘doenca mental” (BERKE, 1989, p. 134). Vivera vida-vivida que, em muitos casos, é viver a convivéncia com aquilo ue se costuma designar por “doenca mental” ou, se preferirem, por “sofrimento psiquico”. disranciamento da expesiéncia vivida ~ um aro ¢ uma aticude muitas vezes necessirios a0 pleno desenvolvimento de capacidades ¢ arengées de cunho “curativo” ou “remediativo” -, particularmente associado a0 contexto empiricista e positivista ao qual a medicina se filiou no seu comprometimento enquanto disciplina cientifica, isso passou a ser uma t6nica em diversos contextos de atengfo & sade. No caso especifico ao campo da “satide mental”, ou da psiquiatria como disciplina especifica do fizer médico, essa atinude nfo encontra cco nein respaldo no campo concreto, Faz-se necessério rever as posigées cléssicas de aprendizagem e ago médias, de modo a reconhecet um. novo contexto: niéo mais 0 solo de heranca da res extensa caresiana (que se identifica imediatamente com a corporeidade formal, Fisica, objeciva), mas cventualmente com uma res cagitans, que abre lugar para uma experiéncia dessa corporeidade, enquanto experiéncia da don, do softimento, da angiistia ou da ansiedade; fendmenos iminentemente vividos por um corpo senciente e percipiente, que fala ¢ absorve, a partir de sua identidade ¢ singularidade, toda a multiplicidade do mundo, fem suas miltiplas facetas (culeurais, mundanas, coridianas, familiares, histéricas, entre tantas outras). Para que uma Fenomenologia do Sofrimento? Invariavelmente, quando se pensa em uma “clinica” no é incomumassocid-la—ot mesmoconfundi-la~com uma “terapeutica’, Sofrimento Humano, Crise Prquics © Cuidado stitensbes do sofrimentoe do cuidade humana aa cantemparancidade Iocando-nos (enquante 2:ores) na condi¢éo de “curadores”, 2 de mudancas, de “promotores de satide” e, posicionando fisic: como um fixer. Essa confusio é particularmente comiam ao ambito das préticas psicoterapeuticas e, igualmente, cm indmeras formas de agdes ditas “sociais” e “comunitérias”, actos epistémicos importantes em diferentes profissées de asocial eas: re elas 2 Psicologia, 0 Servico Social, smagem, entre oussss (NEUBERN, 2012; GONZALEZ REY, 2012; NICARETTA, 2012; HOLANDA, 2012). Ao se colocar a clinica nessa posigio, néo se coloca 0 ‘ou 0 proprio fazer. E nessa direcéo que exio profunda — antes de se propor ou terapéuticas antes mesmo de se oF aces concretas de policicas em satide ou em outros contextos de satide'sioonga. Pensat esse fazer & pensar seu -ext0, seu objeto e, consequentemente, suas agbes, Sem divida que essa tazefa ¢ por demais complexa, e talvez 0 1or desafio seja tentar escapar da armadilha dos dogmatismos ¢ mos, Em geral, toda critica 20 positivismo e & positivagio cias e das récnicas, acabam por recair sobre si proprias, nelas mas. Nessa diregdo, uma reflexio de orientacio fenomenolégica passa a ser um caminho mais necessétio do que propriamente <0, simplesmente pelo fato que a questio epistemoligica central nomenologia € pensar as relacées entre ciéncia € humanidade; podendo ser resumida nas palavras de Wilhelm Stilaci! (1973): a En (1859-1966) so patel importante conte igi de Lads Bineengax scindora ‘umn Huse romente diinto do qa: Bnsvansee de Binswanger inagurs aa agund espe no cm iguatiaFeormenlie ak da isent aad por Jer ‘Sper a furdarenta gue sere eps para ane muda as progr ages do enbieno {ues ap eco XX. ene la, 9 dezenolrimenn de movients eons eo a Anipsiguitra,qoedeeboct aoe ae tual com a deni ‘rantamal(CAING ¢ COOPER, 1976 SPIEGELBERG, 157 ER, 2007; SCHNEIDER, 2009; SHOHR e SCHNEIDER, 2008 VAILO, SILVA ¢ HOLANDA, 2013) HOLANDS. 2011; PUCHI Por uma Clinica Fes mmenolégica do Sofimento 19 0 va relagio humana com a ciéncia, se esta di de lado a sustbes humanas? Ou ainda: quais as consequéncias podemos mare: er cientifco? é para o homem (além de producio, produto de sua agio} 2 nao, supostamente, o inverso. Ciéncia € uma “atividade humana’ (menschliche Leisungen), diz Husset! (1935) (O mesmo se api 2 suas derivagées: edcaica, arte, instrumento, féze Pensar esses processes satideldoenga ulsszzessam simples perspectivas te6ricas = interpretarivas (como concepcies dogmaticas, que encerram em = préprias, contextos, formas c explicagées rotalizantes sobre dex ‘9 fenémeno), alcangando um necessirio, © con expresso, conterco multidisciplinar que a despeito do use i cecorrente do termo, prefericemos designar aqui pelo cermo “complexo”, mulviforial. guem pensa que essa reflexio ¢ modema ou A expectativa de compreender 0 fenémeno do ~ 20 caso 0 softimento psiquico ~ é antiga, caminhando us diversas, desde as tradicionais percepeées miticas passando pela construgio do saber médico, naclinicamoderna (emulcfacetada), preliminarmente cla medicina cientifiea ~ cujo nascimento data de fins do século XVI, como destaca Foucau!: (1977) —e arualmente sendo objeto de disciplinas igualmence variadas, tais como a psiquiattia, 4 psicologia, 2 sociologia, a antropologia, a genética, entre outras, iguidade” dessa reflesto — que procura pens "ua polissemia e em seus contextos variados ~ pode ser bem representada por uma citagio de Roger Bastide, ao falar da formagéo desenvolvimento de uma sociologia das doencas mentais, relembrando passagem do idealizador do positivismo: “Comte foi, com cfeivo, tio severo para os médicos quanto para os advogados — porque cles ‘estudam em nds apenas o animal e néo 0 homem’. O ques fazia merecer mais oticulo de veceriniios que o de médicos” (BASTIDE, 1967, p. 19). simplesm Soffimence Hamano, Cee Psiquice © Cuidado dimensses do softimento edo cuidado humane concemporancidade Além de referirse a Comte como 0 precursor da medicina psicossomaitica, aum duplo sentido (tanto na interacéo do fisico com 0 moral, quanto na ligagio da medicina ao sacerdécio), Bastide chama-nosa atengio, nessa referéncia, aquilo que nos inceressa questionar: 0 “lugac” que ocupamos enquanco agentes de um saber no contexto da atide. O “lugar” ocupado por um “fazer” —seja esse médico ou psicolégico, curativo ou remediativo ~ sem estar acompanhado de tum questionamenco (continuo), redunda em dogmatismos, que se cexptessam em armadilhas discursivas ¢ conceituais, todas elas tendo como referentes uma lgica de reconhecimento de uma totalidade e um repertério tedrico que — em tese ~ daria conta do fenémeno todo ‘em qualquer contexto ou circunstincia. Como escapar dessas armadilhas ¢ uma de nossas primeiras questées. Esperamos aqui dar algumas piscas para refletirmos 0 mais claramente possivel, den:ro dos limices de um momento reflexivo, para elucidar essas questdes esbocar uma compreensio do fendmeno do softimento psiquico, Uma possivel resposta a essas demandas talver soja realizar uma fenomenologia do softimento. A eleicéo pela fenomenologia se dé por ela ser uma disciplina que nos revela, ances de mais nada, a fucticidade do mundo e, neste, 2 facticidade do humano, Por fictico queremos compreender a dialética esséncia/existéncia; sendo ficti © sujeito arremessado num mundo de relagdes, Nesse sentido, no que consistiria uma “fenomenologia do softimento”? Esta no seria muito distinta de uma antropologia do soffimento ou mesmo de uma humanologia, pois o softer é do humano, ¢ 0 humano tal se apresenta, se mostra como é, pelo softer, pelo trégico. A tragédia é a ontologia visivel € 0 espetdculo que impresiona, que pressiona para dencro. Essa divisao ontolégica da tragédia — sere devir, endo e zendo uma existéncia ~ como destaca Gadamet (1998), €0 que nos permite uma reconciliacdo, em um deixar-se levar pela celebracio, em um “deixar-se softer” que 0 espectador experiencia, enquanto um fora-de-si Por um Clini Fenomencligica de Sofrimenco O softimento nos caracteriza ¢ nos condur; essa €a.¢i trdgica da existéncia. Mas uma existéncia trigica a: tornar um fim em si mesma, pois se assim o fosse, ree ‘num niilismo, numa atividade sem sentido, numa tortura ¢ a cortucar-se, em um sofrer pelo sofrer, como afirma Karl Tasoers Ao contrério, a tragédia presenta — presentifica, apresenta—0 mesmo do existis, podendo ser vivida como transcendénc que caracteriza o sentido da experiéncia da loucura ~ exemplific pela “situagio-limite” JASPERS, 1987) da cris oportunidade, tal qual o ideograma chinés (COSTA, 2 Acrescentarfamos ainda, ao risco e oportunidade, © condigéo: “experiéncia” por ser vivide, experimentada, =: experigncia (€ niio objetivo como res extensa); e “condi expressio de uma imediatismo, de uma facticidade poss sujeito dessa vivencia. Queremos, com isto, refleir sobre a cradigio da fenomenologia na psiquiatria e na psicoparoiog’a ver a campo sazer, que 0 faco no mundo-vida, na possibilidace de se perceber 0 sujeito da loucura na sua “condigio” de ser louco como ‘mixima possbilidade de ser: ser-aquilo-que-se-é simplest esse ser que é, pela loucura. Tal perspectiva nos obriga a um desalojamento, 2 um deslocamento ~ essa é, a nosso ver, a real tarefa da fenomenologia ~ de um lugar de saber e de conhecer, para um lugar de rede buscar-conhecer: da incompreensio de um discurso para 2 polifon dos dizeres, que podem se expressar para além da § estabelecida, por miisica, por gestos, olhares ou mesmo susincias (HOLANDA, 2014). Mas 0 que seria uma “fenomenologia do softimento”, se 0 ado sa softer € inalienvel a0 ser? O que seria uma fenomenolo seria escapar 4 armadilha? Para centar esta definigSo, de Sexto Empitico, filésofo cético do século II. Ao © sentido do filosofar, Sexto Empirico (1983), em seus Esboros Soffimento Humana, Crise Psigulea ¢ Cuidado slimensies do seftimento do cuidado humano na contemporaneldsd Pirronicos diz. que ha trés modos de pensamento: aquele que acreditamos ter encontrado a verdade, e que nos toma dogmécicos; aquele que acreditamos ser impossivel encontrar a verdade, e que igualmente nos tora dogmécicos, no sentido negativo; ¢ aquele pensamento que continua buscando. A atitude fenomenolégica @ aquela que se caracteriza por esse continuo “buscar”: uma eude que busca pensar ¢ repensar a ptépria condicio do pensar = do sujeito pensante, Em outras palavras, coloca 0 sujeito do pensamento na posicéo ativa — de ator, nfo passiva ~ diante do saber ¢ do fazer’ Pensar 0 sofrimento ¢ — além de pensar 0 sujeito desse imento — pensar um fazer com esse sofrimento e sujeito, pensar uma cerapéutica e uma clinica do softimento, No caso de ema clinica do sofrimento, “saber-fazer” & escurar 0 se para que do se torne apenas uma técnica. E fazer perguntas: O que é saber? (O que é fxzer? E 0 que é saber-fazer? Dai a necessidade de se propor questées sobre satide ¢ doenca, que nos posiciona diante de um conjunto de “modelos”: odelos demundo, desujeito, derealidade, deacéo. Metaforicamente, sevia uma questéo cal como se pergumtar “o que se quer dizer quando se diz algo? Fazer fenomenologia &, pois, pensar esse saber(es), esse fuzer(es) ¢ esse saber-fazer. E pensar o proprio pensar profissional. No caso especifico do campo da Satide Mental ou da Atencio & Satide Mental, 0 implica na necessidade de se pensar o miiliplo, o diverso, o ainda conhecido, o divergente (HOLANDA, 2001); nao esquecendo de se questionar sobre o jé sabido e supostamente dado. Sem isto, a atuagio profissional — a ago — ou fica vazia ou se torna repet rotina, cépia, reprodugio ¢, também, vazia. Nada do que est sendo dito até 0 momento é estranho ou novidade, Hi milriplos exemplos a serem trazidos como apoio, Desde Toes dears ms sea povgi sb Fanomenologis em tho eecenememepubiado {OLANDA, 2044) 13 124 da clissica tradicio da psiquiatria fenomenolégica, como 0 famoso caso Ellen West de Binswanger (1967) ou 0 caso de depressio esquizofiénica analisado por Minkowski (1967): pasando por outros “clissicos” em suas andlises sociais e politicas do lugar da loucura ¢ do papel da medicina e da terapéutica, com rdazes 20 sistema hospitalar, como temos em Erving (4988, 1996), ou em Thomas Szasz (1976, 1978, ainda com as sempre necessétias leicuras de Foucault 0). Embora seja ainda mais necessério recorrer a0 fenomenolégica em psicopatologia, pers (1979): “A pratica da profissio psiquiderica se ocupa 0 individu todo. E um individuo humano todo que 0 fem sob sua assisténcia, seus cuidados e tratamento ou be para consultas” (p. 11} Nosso campo atual ¢0 de uma feromenologia da psicopatologia ~ da psicopatologia fenomenolégica -, 0 de uma fenomenologia dos processos de satide/doenca, ocupando-nos do fenémeno da loucurs néo mais na direcao de uma patologia da normalidade, mas no da normalidade da patologia, buscando os sentidos do sofrimento ¢ da loucura, pois todo softer € existencial. Karl Jaspers (1979) ja nos apontou, ao se refetir a0 esquizofrénico, que ele € ta ele. pessoa. ‘Tentaremos fazer um percurso abrindo questées e discutindo com autores conhecides do grande puiblico, tais como Karl Jaspers, Roger Bastide, G. Canguilhem, H.G, Gadamer, Paul Ricocut, Hubertus Tellenbach e J.H.Van den Berg, tendo como corte transversal e fundamento contextual, as filosofias de Wilhelm Dilthey e Edmund Husserl, para trazer questées acerca do binémio satide/doenga, entendendo que a “saiide” permeia todas as nossas relacées, oficiais ou ndo. esmo que se rorna dificil qualquer toca entre ele ¢ oucra Solrimento Hurmano, Crise Psiquica #Culdado imenstes do soffimencoe do cuidado humano na conremporancidade Uma Primeira Questio Hans-Georg Gadamer (2006), em seu O Carter Oculto da Said, prope esse “pensat” (hermenéutico) frente & diferenga entre a medicina cientifica aqui, como merifora dos “fazeres” profissionais de sade ~ ¢ a verdadeira arve de curar, “O médico no é mais a figura do curandeiro de ourras culturas, revestido pelo segredo de forgas migicas. Ele se cornou um homem da ciéncia [.. seu saber é, fundamentalmence, de outra ordem: ele sabe sobre o geral” (p. 40) Hi, pois, uma diferenca entre o saber das coisas em geral, ¢ a conereta aplicagéo desse saber em um caso especifico. O primeiro pode ser aprendido; mas o segundo “(...) deve ser lentamente amadurecido através da propria experiéncia e da prépria formacio de juizo” (GADAMER, 2006, p. 109); vivido, experienciado, contarado no encontro, num “dislogo”. Mas no mundo teenicista de hoje - num meio “cada vex mais transformado pela ciéncia” {p. 110) - no qual nao mais nos encontramos, onde tudo ¢ virtual, efémero, fugaz, limitado, descartivel, “liquide” (BAUMAN, 2001), © mesmo, onde fica a riqueza da experiéncia? Nesse meio caracterizado pela burocratizacio da vida, com suas normas ¢ regulamentos, o exemplo mais significativo vem a sera expressio “qualidade de vida’: “Parece-me significative 0 faro de que uma expressio como ‘qualidade de vida’ tivesse de ter sido inventada na civilizagéo progeessista ¢ técnica de nossos dias. Ela pretende descrever 0 que sofieu neste meio-tempo. Contudo, na verdade é um tema muito antigo da humanidade o ter de ‘conduzir’ sua vida e ter de se perguntar como se deve conduzi-la” (GADAMER, 2006, p. 110). De fato, € tema antigo, remontando aos ritos ¢ ricuais desde outrora, ou presente em tratados de satide os mais diversos, como observamos no tratado De Vite Contemplativa, de Filon de Alexandria (século 1), no qual o médico da confraria dos “cerapeutas” arua nfo apenas com a funcio de curar, mas igualmente de prevent, cuja fungio € eambém a do educados, do professor que Por uma Clinica Fonomenolgea do Sofeimenco 126 aposss caminhos para uma vida saudivel, enfacizando um “cuidar de si", um “cuidar do ser” que é (jf) um cuidar da alimentacio, do vestuitio, da oragio. Quando se pretende definir a ciéncia médica ~ novamente come metifora, pois somos todos esta mesma “cigncia’, partlhamos do mesmo espirivo desta cientificidade — pode-se defini-la como a ciéncia da doenca. Doenga como perturbagio, incémodo, perigo, m “objeto”, como aquilo que executa uma resisténcia. O fundamental ~ destaca Gadamer ~ que permanece, é a doenga e nio a saiide, ¢ a docnga que ¢ anto-objetivante, doenga é um caso/acaso que cabe a alguém. “A palavra grega = significa, na verdade, acaso/algo que cabe a alguém (Zufal) éempregada em grego para a notabilidade de uma doenca. Ela designa aquilo que, normalmente, se torna notivel numa docnea” (Idem, p. 113). A doenga se apresenta por seu sintoma, e revela o “verdadeiro mistério” que é 0 cardcer oculto da saide. A satide nfo se declara por si mesma, nem é passivel de ser definida por padrées; “[...] mas quando, por exemplo, se quisesse impor esses valores padres a uma pessoa saudével, 0 que conseguiriamos seria, antes, deix-la doente” (Idem, p. 113). Esse € 0 problema das, meras ou dos “perfs” de saide¢, eambém, dos “protocolos” de asio em podemos observar isto perfeitamente nos mais diversos modelos de alimentacio “saudvel” ou até em proposigies de acto clinica ou social (veja-se, por exemplo, as oficinas em CAPS ou em quaisquer contextos comunitétios: 0 que se pretende quando se presende uma oficina, a néo ser se chegar a algum ponto ou lugar previamente definide?), Outro exemplo passivel de representacéo 6 a continua preocupacéo com sinais antecipatérios de determinadas patologias, 0 que criou — na contemporaneidade ~ um largo ¢ amplo leque de testagens e exames, como forma de prevencio (como temos em sicuagées como diabetes, hipertensio etc.) Poderiamos mesmo designar a paradoxal preocupagio com a satide como uma antecipacio mérbida da doenga (ci-la novamente Sofrimeato Hlumano, Crise Priquica e Cuidado slinsensies do softimento edo cuidado humtano na contemporancidade presente), caracterizando determinados quadros assincométicos como similares & doenca instalada. Clara “positivagio” da cigncia médica - que se estende 4 compreensio geral do que € saiide, chegando a confundirem-se (etroneamente) 0s campos: sade ¢ medicina nfo se confundem, mas continuamente se associam como sinonimias. Outros sinais desta associacio, ou dessa “positivagio" do fazer temos na iperespecialtzacio — em deteimento do generalista - ¢ 0 exacerbado consumo de tecnologias. Wolfgang Jacob (1989) jé nos aponta para uma exclusividade da compreensio positivist das coisas na medicina ‘A medicina se apresenta 2 partir de — ¢ como — uma visio cientifica do mundo, refletindo um clissico embare entre o objetivo ¢ 0 subjetivo — oscilacdo histérica, segundo Canguilhem (2000), representada pelos polos ontolégico € mecanicista como enfoques dominantes na medicina, E, mesmo que—come afirma Canguilhem = 0 enfoque mecanicisea nfo tenha suplantado inteiramente o primeiro, este ainda se revela dominance’, Veja-se, para tal, a versio atual do uso das medicag6es ou dos exames: uma posigio claramense realists, objetivisea, fundamentada em principios cientificos*, com a petspectiva de uma dominagio sistemtica de todas as possibilidades formais de compreensio, ou seja, bascando-se em “evidéncias” (aqui sob 0 cariter de sintomas ¢ sinais), herdeira da transigao hipocrética do fazer médico, que represensou o abandono de uma apropriagéo magica ou mitica da medicina, para seu verdadeiro “nascimento” como disciplina objetiva. © discurso apenas muda, quando da inevitabilidade do reconhecimento ~ objetivo ~ de determinado faror ou dado a respeito da experiéncia do sujeito (quando, por exemplo, depara-se coma polifonia sintomarol6gica, que assinala © nao reconhecimento objetivo de uma pacologia, como temos em 5 crn iar como exemple de permpestos que ands se pretend no ecusvs do eons Trcic, ue manda espagos a eampo da mdi (ou da tad om ger 2 seupaner, 2 homenptia, eto {UNie palemor enschede conbecds com "media sels em evi cia ei grande sap Por uma Cliniea enomenoligica do bas formalismos tais como “viroses” ou mesmo quando o saber médico se depara com seus limices. Nesse momento, a medicina deixa de ser uma “ciéncia exata’) “Se nao se pode medi verdadeicamente a satide & por ela ser um estado da adequagio interna e da conformidade com si proprio, que rio pode ser superado por um outta controle, Por isso, faz sentido perguntar 20 paciente se ele se sente doente”, continua Gadamer (p. 113-114). No entanto, néo se pergunta ao paciente se ele se sente saudvel, ¢ mesmo assim, no se considera a multiplicidade de formas de se apresentar como “doente”, dado que essas formas, invariavelmente, se adequam a noves padrées. “Tratar, diz Gadames, ¢ palpare, tocar 0 corpo do doente com a mao, czidadosamente, de modo a perceber contragies, censbes, dor. Esta cem a fancio subjetiva de apontar para “uma perturbacio na estrutura de equilibrio do movimento da vida que constitui a satide” (Idem, p. 114), Assim, “deduzit” 2 dor — dada sua dificuldade de localizagio -, pela mao, quando o médico desenvolve ral capacidade, seria a verdadeira arte, Tratar sempre implica em permiss responsabilidade e assisténcia colerante, 0 que é distinto de tentar dominar o ser, Todavia, esta no 6, necessariamente, a enica do padrio. médico clissico, que se propde ~ mesmo reconhecendo sua impossibilidade — a dominar (ou circunscrever ao maximo) as diversas varidveis (eis aqui a dimensio empiricista c cientificista da medicina, mesmo que. discurso oficial seja de uma ciéncia nfo exata) relacionadas ao paciente:isolamento, regras de alimentagio, contatos, delimitacées rigidas de horirios para medicagées, alheamento do mundo externo (mesmo que se saiba que o ambiente hospialarseja, eventualmente, 0 mais propicio a infeccées). Numa ilustragio 20 contexto da psicopacologia, sio os mesmos elementos designados por Goffman (1996), em Manicémios, Prides e Convento, ao refetit 20s hospitais como instituigées totalitirias, caractetizados por “diferences formas de mortificagao", como alheamento, despojamento material, degradagio da aucoimagem, violagio da intimidade etc. Softimento Humano, CusePsiquen ¢ Cuidado imensdes do softimento edo cuidado humano na contemporancidade 0 da satide que corza necessitio o tratamento, © pare 0 € 0 didlogo. diz Gadamer: fiz sentido perguntar a0 se cle se sence com satide? Satide néo é “um sencir-se, ma star-na-mundo, estar-comas-pessoas, sentit-se ativa € prazerosamente satisfeito com as proprias carefis da vida’ (Idem, p. i183. & ritmo de vida. “ e volta ase es fo, 0 metabolis: processo continuo, no ‘Todos nés conhecemos 2 20 sono, tés fendmenos =, revigoramento e aquisicio qual o equi isso. Af estd a ce: sitmicos como umaagio justificada, 2 20 médico ultrapassaz as tradicionais barreiras sstituindo um campo privilegiado de acéo. se apzesenta desde sempre: prevengao ¢ cura, cuidado + imposigies. Lembremo-nos da mitologia. Apolo, nae Artemis, sua irmi. ensinam Quiton, que por ulépio. Este, tem como filhas e discipulas Higeia (higiene), deusa a2 satide, da limpeza e da sanidade, e com a fungio ‘ada a prevengio dz doenca e 4 manutengio da : (pharmacon), deusa da cura e dos remédios, com “natural”, com sua teoria dos quacro elementos, vinculando-se a0 circum-mundo, a9 seu mundo circundante. Hipécrates busca idos”, objetivos, para a medicina — o que somente se 0 XIX, com a descoberta dos mictébios, células etc, ~ fazendo com que 2 doenga passe a ser considerada excesso ou falta, come desvic em relagio a um indice (norma), impediment, limicacéo. Eis 2 ginese da concepcio “modema” de saiide como auséncia de doe Dianse do fato da arte de curar ~ 0 “fazet” do médico — ser tuma agéo justficada, resta a questo: qual o saber-fazer da medicina? Poderia um bom médico ser aquele que nao atua? Essa pergunta Por uma Clinica Fenomenoigca do Sofrimento 129 130 ndo é meramente retérica, pois fala de um agir constante sobre a experiéncia da doenca, que continuamente aparece de forma irrefletida, inquestionada e, portanto, reproduzida alienadamente, Isso estaria igualmente no cerne de grandes problemas de acio conerera de politicas ou ages no contexto de satide (como atuacéo em equipes, distincdo entre promosao € terapéuticas exc.). Tomemos por exemplo um parto, quando se se pretende 0 mesmo como natural. Qual o fizer do médico, a ndo ser um no faze? Voltemos nosso olhar para a figura do terapeuta: 0 que Faria um “bom” cerapeuta? Filon de Alexandria (1996) define a zhenapeia como 0 “cuidar do ser” — em oposigie ao iatriké, como 0 “cuidar do corpo” ~ ¢ ese cuidar como sendo mediado pela palavra, pelo didlogo, o que implica numa tarefa hermendutica, de traduzir os sentidos. Um companheiro, acompanhante, enfim. O que nos diria Carl Rogers, por exemplo, sendo que a funcio de um rerapeuta seria a mesma de um bom acompanhante, um. “facilicador"? (qual seria “acéo” concreta, objetiva, “curativa” deum Acompanhante ‘Terapéutico?; um terapeura de geupo age direramente sobre 05 participantes ou sujcitos?). Mas resta, ao médico, a funcio de minimizar o sofrimento, «© daqui surge nossa segunda questo. Uma Segunda Questio Paul Ricouer (1992), naexpectativa de compreendero humano, © designa como o ser capaz de sofier e de suportar o softimento, que a clinica e a fenomenolagia se entrecruzam na semiologia, nos signos do softer. Dor e softimento, dois desfgnios da existéncia. Existimos, pois sofremos. A dor ¢ 0 sofrimento nos apontam nosso proprio exists neste sentido, so “sintomas” da prépria vida. Na clinica, diz Ricouer, no tocante aos transtornos mentais, qual o “lugar” ~ qual a “t6pica” ou inseancia ~ desses transtornos? Uma questio que nos € fundamental (para além de conceicual): Softimento Humane, Crise siguica Cuidado dimensbes do softimento edo cuidado hurano oa consemporaneidade £2 2 sujeito da loucuss? De um softimento “psiquico”? exe “psiquico”, dado que seu softimenco se revela — = — em sua vida por inteiro, em familia, comunidade, = se apresenta ~ muito além de soffente que ¢ extensio de sua ce da loucura vive seu sofrer na pele, na carne; esta esendida no mundo’: 0 louco dos, em 6rgios particulares ou 4 © sofrimento refere-se a afetos ‘dade, & linguagem, & relagio a si, a0 outro ¢ 20 fas, diz-nos Ricoeur, exes distingées hesitam diante da tia, quando dizemos da dor pela perda de um i de softer por uma dor de dente, por exemplo. “E, pois, ipo que distingsimos a dor ¢ 0 softimento sobre duas semiologias que acabamos de mencionar” (p.l). dacui, Ricouer propée sua anilise em dois eixos: mesma no corpo por inteiro. A partis © primeiro cixo é aquele da relagio eu-outto; como, nesses is, o softer se dé conjantamente como alteragao da relagao a sie da relagio a oucrer. O segundo eixo € 0 do agirsofter, ‘splico-me: podemos adorar como hipétese de trabalho que 0 softimento consisce na diminuigio do poder de agit. © acento spinonista dessa def Bdalidade Bilossfica exclusiva, Flase centra no fato quesomente io nos compromete com qualquer Jes queagem podem ser também os que sofrem (em muitas cocasibes eu digo: os homens atuantes ¢ sofientes..), donde 0 -sofrer. Vamos buscar sucessivamente os signos desse rendamos exe corpo sa corpo wtiedo (como se penta cetas Meeps que at cme sj da cuu, hia, da sce, do "Yep" cu emo corpo ‘Come as prtos einige taiconay dade» medica organics eadiconal aus mite de pei “comport” ou hota qu prodarem 3m {dos aos que eos). Hssncrponidade nena no mundo érnscendente a ess plates. Por uma Clinica Fenomenoligica do Softies BI 132 0 propriamente dita, da na medida em que possamos ter ia eda imporéncia, Como veremos. v eixo do agir-soffer confirma perpendicularmence 0 cixo eu-ourres (Ricauer, 192, p. No pri © — 0 softer aparece como alteracdo da selacéo com o muzdo subjetivo: relacio a sie 20 outs, Richard Bucher, ao falar sobre os fundamentos antropoligicos dz selacio terapéutica ~ ¢ reiembrando Valabrega — resgata 0 nos falava Gadamer, aponcando para 2 versal, manifesco de modo fact ssa 0 quadro pessoal do doente, pa plicagées exist. A doenga ~ ou as “dificuldades” ox o softimento — irrompe sod a forma de uma crise ‘que ameaca sia continuidade do vi imultaneamente, a doenea s 20 um impedimento existencial e se apresenta como uma situagdo catastroffica (Valabrega) que no deixa de evocar a mortalidade” (BUCHER, 1989, p. 5) A doenga, pe a", entre o sujeito e sua realidade existencial ~ sua vida, sua comunidade, seu mundo, sua histéria 0 also fala de um ev intensiicado na existéncia, de nfo mais o eu penso, mas 0 eu sofo, en existo. , reduzido ao eu que softe, “corna-se” = é = |. Fenomenologicamente, 0 que se destaca, nnalidade que visa algo, outra coisa que si mesmo; dat 0 do mundo (scu despovoamento), no qual 0 ew aparece, rejeitado sobre si mesmo, “Por outto lado, nao seria errado diagnossicar uma intensificagio de um género especial de relagio ao outro; isso se dé de uma mancira negativa, ao modo de uuma crise de alceridade que podemos resumir pelo termo separayio” (RICOEUR, 1992, p. 2). Soffimente Humaso, Crise Psiquiea © Cuidado outrem, ¢ uma demanda por sentido. Estamos ai um pouco além da caracterizagio inicial do softer como engi abso! cagito sem cogieasum, Bu soft, sem. que haja “qualquer coiss que eu softa; se 0 softimento &, de cerca manzira, sem “objeto” cle no € sem “porque?” (RICOEUR, 1992, p. 6) Sofrimento sem porque, é softimento sem sentido e, como sa, passa a ser percebido como uma figura do mal, “O que deman: justificagio é de um lado, o sentimento que o sofrimenso ago se limita ao ser, mas que esti em excesso; softer, & softer muito; € ainda, por outro lado, o sentimento que nem todo mal é um mel de culpa, mal “moral” (Idem, p. 6). Softer é sempre softer mt mesmo que tenhamos formas distintas de viver o sofrimento, com: aponca Scheler (1936), de “variagSes” na recepeéo funcional de ur estado afetivo, no qual podemos nos “abandonar” a um sofrimento ou resistir a eles podermos suporticlo ou coleri-lo, ou até mesmo nos alegrar com ele, como no caso da algofilia. Mas, a0 sof softimento, no vivido singular do scr sofiente, a experiéncia é invariavelmente, a de algo que € mas que nio deveria ser. A dor Sofrimenta Humano, Crise Palquica e Cuidado slimensdes do sofrimento da cuidado bumano na conremporaachlade | | | co sofeizzento tem algo de axioligico (ele é, mas néo merece ser ou néo deveria ser), ¢ moral (0 que nio deveria exist, ainda assim existe, softimento chama, apela 20 outro, mesmo no insubstiuivel espaco do softimento. Eu softo, enquanto 0 outro a0 qual eu apelo, no vive este softimento. Finalmente ~ encerra Ricouer ~ o sentido primeizo do soffer, é perseverar no desejo de ser € no esforgo por exist, “apesar de” (Idem, p. 7). ate softe,¢ vive seu softimento, vivendo apesar deste. Eis que 's encontramos com Karl Jaspers, quando nos lembra que Bi sirwacées simples e siuapses-limite (Grenasituationem); ¢ que sio estas as que realmente constituem 0 homem como existente: como existéncia, estou sempre em situagio. Ea partie desta situacoes-limie sa a ser a possivel existéncia em nds. A situagdo ¢ 0 Da que 0 aponta como um Da-sein, um ser-em-sitnagdo, no mundo; tum mundo no qual se descortina a existéncia que sou, éo como Fe-der-Wele-Sein, como ser-no-mundo. “Situacio” qu “contexto concreo, espacial ¢ histdrico, onde se encontra o sujeito” (HERSCH, 1978, p. 21). Mas nossa existéncia nao éapenas sicuads, mas é igualmente presa a condicées ndo escolhidas, que mesmo assim devem ser assumidas — as siruapées-limite: nascimento, morte, 6 limice que determina e estrutura. sofrimenco etc. Na Busca por uma Fenomenologia do Sofrimento E preciso atualizar esse debate, arualizando-o no conereto de cia. Como 0 debate toca 0 softimento do que sofre © padece na loucura ou na angiisti, naquilo que costumamos designar como send campo da “satide mental”, do “sofrimento psiquico”, ‘yejamos no que a Fenomenologia ai se interpe e pode contribuir, Principiemos pelo inscrumento do DSM, analisando aquilo que Andreasen (2007) associa & “morte” da fenomenologia na psiquiatria contemporines. © objetive do DSM — 0 fumoso ¢ néo menos polémico Diagnostic and Statistical Manual of Mental Dicorders - era nossa et! Par uma Clinica Fenomenol6gica do Sorimento cctiar um sistema compreensivo de diagnéstico e avaliagZo de pacientes psiquidericos; sm insrumento (em primeira instancia, 0 que precisa sempreser lembrado e questionado, para nao se perder em objetividades distintas) que fosse consistente ¢ que permitisse uma comunicacio, @ mesmo uma reHlexio cocrente diante das miltiplas interpretacées fenoménicas derivadas das experiéncias psicopatoldgicas. A construgio como em qualquer caso semelhante, tem seus ganhos e ums séxiz de outras consequéncias. Desde ¢ advento do DSM-III, em 1980, observa-se um continuo deciume no ensino de cuidados clinicos e de avaliacées, privilegiando-se mais memorizagées de “dados” ou “sinais” delimitadores < sindromes e patologias, e menos aprendizado das complexidades. como era comum entre os psicopatologistas do passado. Passou-se a se confundir a clinica, o acompanhamento e 0 cuidado, 0 tracsmento, com o simples reconhecimento de signos ¢ sinais, Teria sido isto, segundo Andreasen (2007), a responsivel pela “morte” da fenomenologia na psiquiatria. Deparamo-nos com um grande paradoxo envolvendo a relagio entre fexomenologia e psicopatologis. Por um lado, foi gracas & perspectiva fenomenolégica que se construiu o “campo” da psicoparologia {como assim jé designara Jaspers, 1987); ademais, foi o estudo ds Znomenologia e da nosologia que formaram a base para a construgio do DSM. Por outro lado, a partir da constituigao do DSM, a fenomenologia nio mais sc mostrou relevante. © paradoxo no esté apenas na alienacéo de suas origens. © delincamento de critérios ~ que preliminarmente deveriam ser acessérios ¢ auxiliares (Fucllicadores) de um processo mais complexo de visada do fendmeno expressivo da realidade psicopacolégi ppassa.a incluir apenas sintomas caracteristicos, que nio do conta de uma descrigio compreensiva. Compreensio é distinto de explicacio, como jé assinalara Wilhelm Dilthey, em seu cléssieo Ideias pa tna Pricologia Descritiva e Analitica (de 1894); e esta distingéo vem a tona na psiquiatria, particularmente com Karl Jaspers, como modo desse instru Sofsimenco Humano, Crise Psiguic © Cuidado Aimensées do sotimento edo cuidado humane na contemporancidade privilegiado de alcancar“[..] as manifestagées totais da vida psiquica anormal” (NOBRE DE MELO, 1979, p. 169). O processo psiquico € uma woxalidade, unienglobante, & vida, entrelagamento entre homem e mundo. Concebide como um minimo conjunto de sintomas para a realizagio de um diagnéstico, a construgio do DSM — e a consequence exacerbagio de sua instrumentalidade — teve um efeito desumanizador na psiquiattia; um novo paradoxo, visto que toda psicopacologiasomente é possivel enquanto uma disciplina rlacional, cujo “objeto” € sujcizo humano JASPERS, 1987). Como descreve Henry Maldiney, jé antecipando essa trigica ¢ paradoxal mudanca de perspecriva no DSM, 0 assunto da psicoparologia ¢ 0 homem doente, seu assunto € 0 bomen, coisa aparentemente compreensivel ce coerente, mas “(...) 0 olhar que colocamos sobre 0 homem doente se acomoda tio facilmente sobre a doenga que cessamos de ver 0 homeme nio compreendemos nada mais entéo do que a stat doenca” (MALDINEY, 2007, p. 23). ‘A historia de vida passou a ser substituida por um checklist, desestimulando o sujeito do psiquiatra em conhecer 0 sujeito de seu pacicnte, Novo paradoxo, visto que, para se conhecer ou apreender a fenomenalidade de uma expressio psicopatoldgica ~ de um sujeito do softimenco ~ bastaria tio somente “voltar 3s coisas-mesmas", 20 proprio contaco com esse sujeito (lembremos ainda que a jé esquecida anamnese, cefere-se a “trazer & memoria” a histéria de vida de um paciente). Liquidam-se as relagées, tornando-as fugazes, limicrofes, alheias, “liquidas’ como assinala Bauman. A “relagdo” psiquiatra (psicopatologista/psicopatologia) com seu paciente (ser sofrente), passa a ser instrumental, des-vinculada, uma rima no papel que prescreve — que préscreve— uma cadeia de atos fuuros, sem sentido, ra expectativa de um retomo a um lugar nfo sabido, denominado uusualmence de “satide”. O que se conclui de tudo is ¢ que cada softer existencial ~ existensivn ~ & um softer vivido € 2 Que todo softer ¢ existencial, Pr ums Clinica Fenomenolégiea do Sotimento 138 contextualizado, O softimento revela o caréter wagico da vida; tragédia escs que também leva 4 transcendéneia (Jaspers). ‘Tomemos a psicose como metéfora. E porque como “metifora’? Por ser, talvez, um dos grandes mistérios da condicio humana — Tarossian (2006) descreve as psicoses como o objeto por exceléncia ‘ogias ¢ Kurt Schneider a descreve como um “ponto <0", como o “material desconhecido” JACOB, 0 fato de nio podermos “falar” dela, naquilo que se lat como “dizer sobre”, enquanto construcéo dada sobre determinado fendmeno, enquanto um “saber” constituido. A psicose — 2, igualmence, a “crise” ~ falam desse softimento que é © indizivel, © indeserieivel, © incomunicivel e, a0 mesmo tempo, © plenamense vivenciével, compartilhivel, “empatizavel”. Por isso a psicose — @ a crise — como metéforas do humano que se revela, mesmo sem o saber, ¢ que revela nio s6 a si, mas o outro que ali se espelha (Caruso Madalena afirma que © normal ¢ 0 leuco sio coparticipes, sto “s6cios”, na existéncia). Ora, 2 experiéncia da loucura ~ da psicose, da esquizoftenia — 6, antes de cudo, ambigua e contraditéria, Do que nos fala a loucura? Da experiéncia de um outro que nos € alheio ~ estranho, diferente, divergente, 1:40 ew = ¢, a0 mesmo tempo, de uma experiéncia facilmence empatizével, reconhecivel, espelhada, naquilo que aponta co desconhecido (ou ndo reconhecido) em mim mesmo. Anguistia, desespero, alienacao, nao sio experiéncias vividas e viviveis por qualquer um de nds? E, mesmo que na diferenga das culturas ¢ na discrepincia dos olhares, nio sio experiéncias reconheciveis em si daquilo que nos surge como distinto ou discante? A historia da segregacio do louco - do diferente, do divergence, no que nao é tomado por semelhanga ~ é a histéria dessa ambigua relacio do siao outro. Do reconhecivel e nao desejével, 20 itreconhecivel ou escamoreado. O patolgico invariavelmente csbarra na questéo da diversidade (e, portanto, na questio do reconhecivel ou nao) (HOLANDA, 2001). Tomem-se, por exemplos, Soffimente Humano, Crise Peiqica © Csidada dimensiee do sftiesento edo cuidade humano na contemporaneiade as sindromes ditas “culturais” ou as patologiasassociadas a contextos especificos, como descrevem Bastide ¢ Devereux. O exético, tal qual descreve Teveran Todorov, é um bom exemplo dessa dialética de aproximacio ¢ afastamento, do estranhamento ¢ do invejével. Veja-se a vida dos selvagens — descritos por Américo Vespticio e Cristévao Colombo, naquilo que pode ser considerado o germe da ideia do “bom selvagem": “A sociedade dos selvagens, a partir de Amético, se caracteriza por cinco tragos: inexisténcia de vestudrios inexisténcia de propriedade privada; inexisténcia de hierarquia ou subordinagio; inexisténcia de interdigdes sexuais; inexisténcia de religido; tudo se resumindo nesta fSrmula: viver segundo a nacureza” (TODOROY, 1989, p. 300). Uma verdadeira expressio da utopia: a vida sem limites, sem regras, em contato ditewo com a nacuseza. Acontemplacio do “bom selvagem” serve de questionamento para a sociedade em que se vive. Nio se erata de simples idealizagio, mas de expectativa de reconhecimento de um ourro “lugar” para se estar. Diderot, jé 0 século XVIII, contrapunha a sociedade civilizada (“corrompida’, “vil” “infeliz") ao selvagem “inocente” e “feliz”. E a historia da loucura éa prépria histéria dessa relacéoambfgua, entre idealizagsoe a polatizacio (HOLANDA, 2001), de romantismos mais exagerados (0 louco como 0 “sébio”, 0 “auséntico” ou o “verdadeiro”, tipico dos romances da loucura, dos loucos célebres ou das abras da loucura, como anuncia Foucauls) até 0 advento do manto da exclusio, e da oficializacéo do estaruto da exclusio e da segregaesio (FOUCAULT. 1984; GOFFMAN, 1996). Voltemos 4 metifora da psicose. Eis 0 momento de se fazer uma “fenomenologia da psicopatologia” (ao invés, simplesmente, de uma psicopatologia fenomenolégica): do que nos fala a loucura, 2 psicose, a esquizofienia? De um mundo de contnadigées, de paradoxos ¢, ao mesmo tempo, da vida vivida que se nos impée na alienagao de nossa liberdade de nao vivé-la (afinal, somes prisionciros da liberdade, como nos lembra Sartre). Por uma Clinica Fenomenolégica do Softens Be M0 J.H.Van den Berg, analisando 0 contexto de um hospital psiquidtrico em Manila, nas Filipinas, em fins da década de 1950, mostra um cenétio muito similar aos jé conhecidos da maioria dos autores que questionam a existéncia de manicbmios: superlocacio, aprisionamento e, obviamente, nenhum “tratamento”. Uma pergunta que imediacamente nos salta é& porque o alheameni (Nao nos perguntamos 0 porqué do isolamenco, visto que este possui uma representacio muito diferente da do alheamento’), Eo que justificaria esta segregacio? De imediato, 0 contexto jé responde: em relagio a sociedade na qual estio inseridos, “eles cram temidos e odiados” (VAN DEN BERG, 1982, p. 155). Tal perspectiva pode ser facilmence condendvel, & primeira vista, ede fato 0 é, enquanto um recurso moral. Mas nossa questo é anterior, e visa compreender seu espaco e contexco de constituicio: © que isso quer dizer, significar? O que seu meio social — constituido. ‘por sujeitos igualmente ~ quer significar, quando “diz” de um outro que é “temido ¢ odiado”? Diz da estranheza, da diferenciacio, da incapacidade de explicar essa diferenga. Como significar tantos comportamentos estranhos? O esquizofiénico apresenca-se perturbado — nas palavras de ‘Vera Strasser — na sua “afetividade de troca” (Austauschaffekrivindt)’. De fato, lembra-nos Jaspers, 0 esquizofrénico & tio “ele-mesmo”, que € dificil qualquer roca entre ele ¢ outra pessoa. Diz-se que 0 {5A legen do Golamento & muito dines dado alheaento. 0 iolrento prep ua ice nhsmsh em ennos ce samen ede arian de uae: ou cones que podem Pe judi a seen. Meio gu ps de dese princplocnt porter a nad causes bres do modeo asa detresento daloacurs fe fortes praca aw pense eta da seul XIX) o olsen preva ua Kgl de cua, 0 paso que lheament ego) Drssiunts ms liga de inciamsnts da ost (jes) caper pr un pointe, Dsolamenes reve nabs cla conmrusie ds primis oni nade, anova Europa uae ‘0 em nosso pun xaada peste na pps legis que itl op culador com on “doen: ‘mentsir (SILVA 20, Eaqiol (1893), por exemple deeve co tates que justia lee rent dosalenads: agar sua span psioale da fami Heels dade eevee: ‘eacer suas estén pena anhmetélors um regime mice nor novo hbo ila ‘morals Econ legen do olan ~quelvs imme} seragio=erspresctada pels ‘ruror do manic, que Busia (2005) lr com un Pugs Derowrtia 7 "Eachangesectvg” (VAN DEN BERG, L982, p. 157). Soffimento Hurano, Crise Poiguics ¢ Cuidado Alimensses do soiimento e do cuidido humane ns contemporancidade = pacience & “pobre” em see afetos,¢ isto pode ser verdadero; mas, hi coutras verdades, den Berg (1982): “O paciente, cuja doenca € definida como uma desezdem afetiva, € eambém o paciente que, quando 0 médico da er fa esta docnec, pergunta ¢ até mesmo ‘pergunta cordialmen: pacientes calam” (p. £5 O esquizoite “O esquizofrénico ¢sexsive! p. 157). Sofre d= experiéncia da esquize! vivido humano. Essas_contradis amplamente desc= pares: (1) A esquizafs & uma sindrome, de contradigés. acessivel” (Idem, contradicées da -enia aqui se encontram, na singularidade do 3s, todos, de contradigdese paradoxos? se refere Van Cex Berg, estio mais ELC. Riimike (1960), num conjunco de dez ums entidade nosolésica / A esquizofienia coco particular de reagéo: :2) A esquizofrenia é caracterizada por sizsomas primévios / Nao ha sintomas primécios genuinos da esquizotrenis; (3) A esquizoftenia é uma doenga orginica 1A esquizofienia ¢ uma condigio determinada psicogenericamente (@) Acesquizofrenia néo 4 curdvel / A esquizofrenia é cursvel (5) Néo hi swansiges Hucntes . No contexto da psiquiatria, no contexto de uma fenomenologia psiquidcrica, o papel do psiquiacra € comar essas fextacies do musdo-vida do paciente. do carpe: sigur fenomenslogo tomar as manifeagbes mo expresso imediara do sensimento de stasfo ‘io apreendé-las aravs de um tora preexenne ‘Mas devernos, aqui, preciar dese o ini: no hi nena ose bascie numa concep Hoss a eiginia fundamentsl bem como o emo fundamental, a ciénia médica modema ¢ aprsencarse como 5 fos desprovid de pretiminaes dessa orem, pois ela se pra asim de qualgucr } revisio critica das pré-decsées que dererminam rncos Bacontece que xa rvs é parte insegrance de ua atined intial (TELLENBACH, 1989, p. 166. O fendémeno vai além do sintoma, mesmo que o sintoma presentifique 0 fendmeno, Nesta diregio, Tellenbach faz um importante cricica 20 uso indiscriminado de drogas, sem funcio serapéutica, O uso de medicagées servicia para “L.. libercar o doente de scus sintomas, a fim de dialogar com ele para poder chegar a0 fendmeno que se manifesta no sintom, mas permanece dissimulado esse nivel. © proprio sintoma sé pode ser apreendido através do espectro de uma precisio de ordem tedrica. O que caracteriza 0 sintoma é seu carter imediato” (TELLENBACH, 1989, p. 167). Pr uma Clinica Fenomenaligis do Softimenso “Ww Ms no 6 0 fe: Smeno, mas apresenta em si, a ade mesma do fendmeno humano a0 qual esti "mente ligado. Sem esquecer, contudo, que os sintomas ificados e sentidos diversos. Afinal, um sintoma de cunho obsessivo, como limpar as mios, pode significarlimpeza por rem; ¢ cada caso demanda uma ica tinica é falaciosa, “A andlise 0 em escolhas terapéuticas que jo twérica” (TELLENBACH, :, Do mesmo modo, ¢desumaimporcinciacompreender crise, por exemp ta importante

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