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Vera Maria Ribeiro Nogueira

Vini Rabassa da Silva (Orgs.)


Maria Lúcia Teixeira Garcia
Regina Celia Tamaso Mioto
Zelimar Soares Bidarra

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A
Estado, políticas públicas e a
ação profissional de assistentes

/C
sociais é uma coletânea que,
como afirma Yazbek em seu

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E A AÇÃO PROFISSIONAL DE ASSISTENTES SOCIAIS


A ideia inicial de fomentar a

A
construção do livro surgiu na A questão central desta publicação é de pertinência histórica prefácio, “vem suprir uma lacuna
visita da Coordenação de Área da inconteste. Trata-se da relação orgânica entre Estado capitalista, na análise dessa relação”, tanto

T
Capes ao Programa de Pós- políticas públicas e ação profissional do Serviço Social em um na formação quanto no trabalho

LE
Graduação em Serviço Social da momento no qual a ordem do capital, em sua fase neoliberal- no âmbito do Serviço Social
Unioeste em 2017, quando foi brasileiro. Fruto do trabalho
aventada a possibilidade de sua conservadora, já deu o que tinha que dar de proteção social. Para intelectual de experientes
tematizá-la, seus/suas autores/as efetuam não apenas um exercício

CO
publicação pela Edunioeste. Da pesquisadoras(es), juntamente
ideia à finalização, houve muita analítico, mas, sobretudo, esforço renovado de depuração epistêmica, com a produção de recém-
articulação entre pesquisadoras e teórica e política ancorados/as na lógica dialética materialista doutoras na área de Serviço
pesquisadores do sul, sudeste e Social, em sua totalidade, a obra
histórica e na economia política marxiana. Nessa tarefa, o Estado,

O
nordeste do país (UCPel, UFSC,
Unioeste, UFES, Faculdade do antes minimizado, deixa de ser um epifenômeno ou ente estritamente contribui na apreensão crítica
das mediações entre a análise

D
Sul da Bahia, UFRG, UFPB, determinado pela economia; esta, por sua vez, perde seu caráter
UFPR, UFAL) e uma colega do macroscópica e a construção de
exclusivamente mercantil; e a política pública recusa-se a ser mero ato respostas profissionais a partir do
Uruguai (UDELAR). Podemos

O
dizer que esta obra é a expressão gerencial do Estado sempre a serviço das classes dominantes. Nesta trabalho nas organizações e
de uma construção coletiva. relação complexa, dialeticamente contraditória, abre-se um cenário estruturas institucionais no

V
Estes autores vinham discutindo adverso para a prática do Serviço Social crítico, mas ao mesmo tempo âmbito das políticas sociais,

SI
o tema do livro em diversos pedagógico e portador de evidências factuais de que, em meio à enfrentando a burocracia,
eventos e interessados em gerencialismo e tecnocracia
alimentar o debate com os barbárie social, o projeto ético-político desta profissão é válido

U
crescentes no Estado brasileiro
assistentes sociais. O conteúdo, e necessário. em tempos ultraneoliberais.
portanto, sintetiza um processo

CL
Reafirmando o compromisso
de intercâmbio nacional e
Profa. Dra. Potyara Amazoneida Pereira Pereira com o legado histórico da
internacional, ofertando um
aporte de temas centrais à área de (Curso de Serviço Social – UnB) categoria e com a qualificação

EX
Serviço Social, em um processo das competências teórico-
de luta e consolidação dos metodológica, técnico-operativa
Programas de Pós-Graduação e ético-política, a obra é um
aqui representados. convite à praxis profissional.

As Organizadoras
SO Profa. Dra. Esther Luíza
de Souza Lemos
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(Curso de Serviço Social –
Unioeste)
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9 786587 438085
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Estado, Políticas Públicas e a


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Ação Profissional de Assistentes Sociais


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Reitor Alexandre Almeida Webber

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Vice-Reitor Gilmar Ribeiro de Mello

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Editora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná

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Conselho Editorial CO
O
Aparecida Feola Sella Flávio Pereira
D
Valdeci Batista de Melo Oliveira Susimeire Vivien Rosotti de Andrade
O

Sanimar Busse Eduardo Nunes Jacondino


Eurides Kuster Macedo Júnior Marta Botti Capellari
V

Fabiana Regina Veloso Geraldo Emílio Vicentini


SI

Rose Meire Costa Carla Lilliane Waldow Esquivel


Jair Antonio Cruz Siqueira Luís Daniel Giusti Bruno
U

Rafael Andrade Menolli Dartel Ferrari de Lima


CL

Kátia Fabiane Rodrigues Valderi Pacheco dos Santos


José Carlos da Costa Marli Renate Von Borstel Roesler
EX

Cláudia Barbosa Roberto Saraiva Kahlmeyer Mertens

Equipe
SO

Aparecida Feola Sella Valdeci Batista de Melo Oliveira


Diretora Editora-Chefe
U

Lohana Larissa Mariano Civiero Vanessa Raini de Santana


RA

Diagramadora Revisora
PA

Renan Fabrício Lorenzatto da Silva


Estagiário
3

Vera Maria Ribeiro Nogueira


Regina Celia Tamaso Mioto
Zelimar Soares Bidarra

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Maria Lúcia Teixeira Garcia

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Vini Rabassa da Silva
(Organizadoras)

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Estado, Políticas Públicas e a


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Ação Profissional de Assistentes Sociais


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Cascavel
2020
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© 2020, EDUNIOESTE

Capa
Giani Goulart

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Revisão
Vanessa Raini de Santana

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Diagramação e Finalização
Lohana Larissa Mariano Civiero

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Ficha Catalográfica
Helena Soterio Bejio

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
E79
D
Estado, políticas públicas e a ação profissional de Assistentes Sociais. /
organizado por Vera Maria Ribeiro Nogueira ... [et al.]. Cascavel , PR:
O

Edunioeste, 2020.
V

274 p.
ISBN: 978-65-87438-08-5
SI

1.Política social. 2. Assistência social. I. Nogueira, Vera Maria Ribeiro, Org.


U

II. Mioto, Regina Celia Tamaso, Org. III. Bidarra, Zelimar Soares, Org. IV. Título.
CL

CDD 20.ed. 361.61


361.615
EX

CIP-NBR 12899
Ficha catalográfica elaborada por Helena Soterio Bejio – CRB 9ª/965
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Edunioeste - Editora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná


Rua Universitária, 1619 - Jardim Universitário - CEP 85819-110 - Cascavel-PR
Telefone: (45) 3220-3026
PA

Home Page: www.unioeste.br/editora


E-mail: reitoria.edunioeste@unioeste.br

Impressão e Acabamento
Gráfica da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Rua Universitária, 1619 - Jardim Universitário - CEP 85819-110 - Cascavel-PR
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E-mail: unioeste@hotmail.com
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Vera Maria Ribeiro Nogueira


Regina Celia Tamaso Mioto
Zelimar Soares Bidarra

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Maria Lúcia Teixeira Garcia

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Vini Rabassa da Silva
(Organizadoras)

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Estado, Políticas Públicas e a


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Ação Profissional de Assistentes Sociais


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Cascavel
2020
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Sumário
09 Prefácio

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Maria Carmelita Yazbek

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13 Apresentação

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Organizadoras

/C
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15 Parte I – Estado capitalista, Políticas Públicas e autonomia
profissional

LE
17 1. Estado capitalista e Políticas Públicas: o Estado em ação

CO
Paulo Nakatani;
Ademar Bogo
39
O
2. Estado Instituição: contribuições da tradição marxista ao debate
D
Silvana Marta Tumelero
65 3. Reflexões sobre a ação política dos agentes implementadores de
O

políticas públicas: “o pessoal do Estado”


V

Silvana Marta Tumelero


SI

Vera Maria Ribeiro Nogueira


U

89 4. Burocracia e tecnocracia: impactos sobre as ações profissionais


CL

Maria Luiza Amaral Rizzotti


EX

115 Parte II – Ação profissional no campo das Políticas Públicas


SO

117 5. Políticas Públicas e ação profissional: sinergias necessárias


Vera Maria Ribeiro Nogueira
U

137 6. Ação Profissional: processos e características técnico-operativas


RA

Regina Celia Tamaso Mioto


Telma Cristiane Sasso de Lima
PA

157 7. Demandas profissionais para o Serviço Social: conceitos e pro-


cessualidade
Francielle Lopes Alves
179 8. Intersetorialidade como estratégia para a proteção social integral:
congruências e paradoxos ao trabalho profissional do assistente social
Mônica de Castro Maia Senna
8

199 Parte III – Ação profissional nas Políticas Públicas: desafios


e respostas
201 9. Intersetorialidade e a formação de redes como caminho para a

S
garantia de direitos de crianças e adolescentes

PE
Zelimar Soares Bidarra
Eugênia Aparecida Cesconeto

A
225 10. A reincidência da violência contra mulheres e meninas: elementos

/C
estruturantes e exigências para uma intervenção emancipatória

TA
Fernanda da Fonseca Pereira
Vini Rabassa da Silva

LE
249 11. Una mirada desde Trabajo Social acerca de las nuevas corrientes
migratorias en Uruguay

CO
Silvia Rivero O
271 Sobre os autores
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9

Prefácio
Este livro, que aborda as Políticas Públicas e o Serviço Social,

S
foi organizado por cinco experientes e respeitáveis pesquisadoras: Vera

PE
Maria Ribeiro Nogueira (UCPEL/UFSC), Regina Mioto (UFSC), Zelimar

A
Bidarra (UNIOESTE), Maria Lúcia Garcia (UFES) e Vini Rabassa da Silva

/C
(UCPEL). Está voltado para o desvendamento do Estado capitalista em
suas configurações teórico-práticas, na medida em que enfrenta o desafio de

TA
decifrar o campo relacional entre Serviço Social e Estado, particularmente
em termos de projetos que se confrontam no desenvolvimento capitalista

LE
e se expressam nas Políticas Sociais. Desafio enorme, se considerarmos a
atual conjuntura de crise do capital e as transformações que hoje caracte-

CO
rizam a esfera da acumulação capitalista, com seus impactos no mundo do
trabalho, na “questão social” e nas Políticas Sociais.
O
Tempos difíceis nos quais a centralidade do capital financeiro e
D
seu domínio sobre o capital produtivo traz consequências graves para a
população com a qual os assistentes sociais trabalham. Quadro que vem
O

implicando numa ruptura do histórico pacto entre capital e trabalho que


V

configurou, no mundo desenvolvido, o denominado Estado de Bem-Estar


SI

Social e na periferia do capitalismo algumas melhorias nas políticas sociais.


U

No caso brasileiro, agrava-se a situação se levarmos em consideração as


CL

particulares condições do desenvolvimento desigual, combinado com o


capitalismo no país.
EX

Traço da formação social brasileira, a conjugação do “avanço” com


o “atraso” assegurou o sucesso da dominação burguesa, apesar do período
de busca de conciliação de classes e de enfrentamento à pobreza, repre-
SO

sentado pelos governos de Lula e Dilma, com sua forma de investimento


U

social, denominada por alguns autores de neodesenvolvimentismo, expressa


especialmente nos Programas de Transferência de Renda Condicionada
RA

(PTRC), no aumento do salário mínimo e nas políticas sociais com destaque


para a Assistência Social. Contexto que se caracterizou pela combinação de
PA

“medidas de natureza oposta” e a articulação de dubiedades que permea-


ram a política social brasileira. De um lado, observaram-se as tendências
a focalizar e privatizar e, de outro, a perspectiva de construção de direitos
garantidos constitucionalmente.
Alguns resultados dessas transformações societárias são visíveis
no cotidiano do exercício da profissão: como a imensa concentração de
10

riqueza e poder ao lado da tragédia da pobreza, da fome, da exclusão (não


apenas de bens materiais), expressa no crescimento das massas descartá-
veis sobrantes e sem proteção num mundo desumanizado e marcado pelo

S
individualismo e pela competição. Processos que interferem nas múltiplas

PE
dimensões da vida, que interferem na esfera da cultura, da sociabilidade e
da comunicação. Contexto em que é essencial a elucidação da natureza e do

A
papel do Estado, tomado como instância em que se projeta a complexidade

/C
de interesses societários em disputa. Desse modo, Estado e Política Social

TA
devem ser tomados como âmbitos de uma totalidade que compõe o pilar
analítico de referência, para pensar o Serviço Social profissional.

LE
Analisar a profissão nesse cenário exige, portanto, desvendar o
pressuposto de que há uma profunda relação entre as transformações, em

CO
andamento, no regime de acumulação na ordem capitalista, especialmente
as mudanças que caracterizam a esfera da produção e o mundo do traba-
lho, associadas à nova hegemonia liberal-financeira e as transformações
O
que ocorrem nas políticas sociais com o advento, por um lado, da ruptura
D

trabalho/proteção social e, por outro, com a recomposição das políticas


O

sociais que se tornam cada vez mais focalizadas e condicionadas. Ou seja,


V

trazem a lógica do workfare ou da contrapartida por parte dos que recebem


algum benefício.
SI

Sabemos que as propostas neoliberais em relação ao papel do


U

Estado, no âmbito das Políticas Sociais, são reducionistas, com alto grau de
CL

seletividade e voltadas apenas para situações extremas. Nessa perspectiva, o


Estado apela às parcerias com o setor privado (entidades sociais, organiza-
EX

ções não governamentais, associações voluntárias e fundações empresariais,


entre outras), num processo de construção de um sistema de Proteção Social
SO

que se caracteriza pela intersecção do público com o privado.


Não podemos esquecer que as Políticas Sociais só podem ser pen-
U

sadas politicamente, sempre referidas a relações sociais concretas e como


parte das respostas que o Estado oferece às expressões da “questão social”,
RA

situando-se no confronto de interesses de grupos e classes sociais.


Os textos que compõem este livro problematizam questões centrais
PA

da relação entre Estado/Políticas Públicas e Serviço Social, e, nesse sentido,


buscam suprir uma lacuna na análise dessa relação, que, conforme as auto-
ras, “parte do pressuposto de que as relações estabelecidas entre o Estado
e as classes sociais são o núcleo duro por onde circulam a legitimidade e
a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão
social e técnica do trabalho no capitalismo de tipo monopolista”. Analisar o
11

Serviço Social brasileiro no atual contexto societário à luz do projeto ético


político profissional não é certamente uma tarefa fácil, é enfrentar uma te-
mática bastante ampla e complexa, que nos coloca, especialmente, frente a

S
“uma nova era de devastação, uma espécie de fase ainda mais destrutiva da

PE
barbárie neoliberal e financista que almeja a completa corrosão dos direitos
do trabalho em escala global” (ANTUNES, 2018, p. 10).

A
Efetivamente, o Serviço Social é parte integrante dessas relações e

/C
das características que assumem na sociedade burguesa em seus processos

TA
de mudanças, inserindo-se no conjunto da classe trabalhadora, de suas lu-
tas e apontando para a necessidade de um trabalho social orientado para a

LE
emancipação humana. Como profissionais, fazem parte da mudança, como
gestores e operadores de políticas sociais, que se tem constituído histori-

CO
camente numa das mediações fundamentais para o exercício profissional.
Assim, a profissão está envolvida diretamente com a construção cotidiana
da sociabilidade capitalista pela mediação dessas políticas, operando dentro
O
de seus limites e de suas possibilidades.
D

Entendo que esse contexto constitui um enorme desafio aos assis-


O

tentes sociais, que operam as políticas públicas, as quais poderiam melhorar


V

um pouco a vida das classes subalternas, nessa era de devastação que esta-
mos enfrentando... Nessa direção, o livro Estado, Políticas Públicas e a Ação
SI

Profissional de Assistentes Sociais vem preencher importante lacuna e permitir


U

ao leitor ampliar a problematização sobre a intervenção profissional na


CL

contemporaneidade, especialmente no âmbito das Políticas Públicas. É ne-


cessário o aprofundamento do debate e da problematização dos significados
EX

assumidos pela profissão na contemporaneidade, frente à crise estrutural


do capital com suas graves consequências em todos os domínios da nossa
SO

vida social, econômica, política e cultural, processo no qual se engendram


outras crises, uma nova política e uma sociabilidade conservadora. É nesse
U

contexto que se situa o Serviço Social brasileiro e seu processo de legiti-


mação, especialmente no âmbito das políticas sociais, desenvolvendo sua
RA

intervenção e cumprindo objetivos que lhe são atribuídos socialmente e


que, como sabemos, ultrapassam sua vontade e intencionalidade.
PA

Além de oportuna e necessária, a publicação deste livro se constitui


num material que viabiliza várias leituras: desde aquela que permite com-
preender o Estado capitalista e a profissão com seus vínculos com proje-
tos societários, até a possibilidade de acompanhar experiências e projetos
profissionais do Serviço Social.
12

Em síntese, estamos diante de uma publicação de um grupo de in-


telectuais que vem, desde muito tempo, contribuindo para o Serviço Social
brasileiro, que nos apresenta um conjunto de textos densos, instigantes, um

S
livro que enfrenta desafios, polêmicas, e nos instiga a levantar novas ques-

PE
tões, que, ao mesmo tempo, coloca-nos diante de desafios contemporâneos
e marcas históricas persistentes na profissão.

A
Considero a leitura imprescindível para todos os que buscam superar

/C
as perplexidades do presente.

TA
São Paulo, 27 de julho de 2019

LE
Maria Carmelita Yazbek
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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Apresentação
A intervenção profissional do assistente social no campo das políticas

S
públicas

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Este livro busca atender a uma demanda de profissionais e pesqui-

/C
sadores da área do Serviço Social sobre questões emergentes e desafiadoras

TA
ao debate contemporâneo. Uma delas é a reduzida aproximação entre os
profissionais e as referências teóricas que sustentam a intervenção profis-

LE
sional no campo das políticas públicas, particularmente, no movimento do
Estado no modo de produção capitalista. Outra questão parece residir na

CO
insuficiência da produção teórica em torno das mediações entre as análises
macroscópicas do contexto da profissão e a ação profissional no contexto
da burocracia, do gerencialismo e da tecnocracia contemporâneos. Ob-
O
serva-se, ainda, a dificuldade dos profissionais em analisarem, de forma
D

integrada às policies, os elementos presentes no cotidiano profissional, tais


O

como intersetorialidade, integralidade, multidisciplinaridade e outros. Além


V

dessas questões, não podem ser minimizados os impasses que o profissional


encontra, por diversas razões, nas análises sobre as complexas demandas
SI

do cotidiano, no plano institucional e dos usuários dos serviços sociais.


U

Assim, este livro tem como propósito aprofundar questões centrais


CL

da relação entre políticas públicas e ação dos assistentes sociais, entenden-


do-as como uma das dimensões do exercício profissional.
EX

O objetivo deste livro é demarcar o espaço profissional no ciclo


das políticas públicas em sua dinâmica de concretização, materializada em
SO

serviços, ações e programas. Para tanto, considera-se que a atuação estatal


em um mundo capitalista privilegia os interesses do capital e as modificações
U

operam tanto na construção de suas agendas como na implementação das


políticas. O processo de construção das agendas nos planos federal, esta-
RA

dual e municipal não “[...] deve ser entendido como estritamente técnico:
a identificação do problema e a construção da agenda envolvem valores e
PA

interesses, estão condicionadas a elementos ideológicos e a projetos po-


líticos e refletem as relações de poder entre os atores sociais envolvidos”
(SERAFIM, 2012, p. 123). Igualmente, a implementação das políticas não
pode ser entendida como um resultado linear das grandes decisões políti-
cas e do desenho adotado. Ela tem se revelado como uma etapa altamente
complexa, sendo considerada, atualmente, como o nó das políticas públicas.
14

Nessa direção, este livro se organiza em três eixos que se articulam


no debate sobre as ações profissionais. A contribuição de vários autores
permitiu o aprofundamento do debate em vários planos, sem perder de

S
vista o eixo condutor – políticas públicas e ação profissional.

PE
O primeiro eixo1 aborda as políticas públicas na perspectiva do
Estado em ação, seja por meio de suas intervenções ou omissões. Entende-se

A
como as articulações entre Estado e Sociedade são complexas e dinâmicas e

/C
dependem do momento histórico. São determinadas pelas particularidades
de cada país, região ou espaço local (SERAFIM, 2012). De acordo com

TA
Oszlak (1997), essas relações são transversais às esferas federativas (federal,
estadual e municipal) e entre os diferentes planos da relação Estado-Socie-

LE
dade: funcional, material e político.
O segundo eixo trata da integração de assistentes sociais na im-

CO
plementação das políticas públicas por meio de suas ações profissionais
favorecendo a apreensão do ciclo processual das policies. Busca-se superar o
O
mimetismo observado entre ação profissional e políticas públicas. Por meio
D
dessa abordagem, resgatam-se as competências da profissão, demarcando
sua especificidade no campo interventivo e se apreendem as possibilidades
O

da ação do assistente social em todas as etapas do ciclo das políticas públi-


V

cas, superando seu aspecto unicamente executor terminal. Para viabilizar


SI

essa abordagem, é necessária uma análise aprofundada sobre as distintas


U

demandas para a profissão e, a partir delas, identificar as possibilidades de


CL

ação. Desde a leitura do real visando subsidiar os atores políticos para a par-
ticipação social até o controle efetivo da implementação dos serviços sociais.
EX

No último eixo, apresentam-se textos de profissionais que demons-


tram a apropriação da lógica proposta em diversos setores programáticos e
diferentes planos operacionais. Esses capítulos tratam de questões extrema-
SO

mente relevantes no mundo contemporâneo, como a migração, violência


contra a mulher e proteção a crianças e adolescentes.
U

Enfim, este livro pretende fortalecer as competências profissionais


RA

no campo da análise e implementação das políticas, competências cruciais


na atual conjuntura brasileira com o rompimento do círculo virtuoso posto
PA

pela Constituição Federal pautado na cidadania e garantia de direitos.

Florianópolis, setembro de 2019


As organizadoras
1
Neste eixo, os capítulos 2 e 3 foram construídos com base em teses de doutorado das
autoras Silvana Marta Tumelero e Francielle Alves Lopes, devidamente referenciadas nos
capítulos de autoria.
15

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/C
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Parte I CO
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Estado capitalista, Políticas Públicas e


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autonomia profissional
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17

1.
Estado capitalista e Políticas Públicas: o Estado em ação

S
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Paulo Nakatani

A
Ademar Bogo

/C
TA
O Estado capitalista não é uma instituição separada da sociedade,
mas sim a forma social por meio da qual se expressam politicamente os in-

LE
teresses gerais das classes sociais. Os interesses particulares da luta entre
as diversas classes e frações sociais se manifestam no regime político, que é

CO
uma forma concreta, histórica e institucional de organização do Estado. Ao
mesmo tempo, esse regime reestrutura continuamente as relações sociais,
O
intervindo nas esferas econômicas, jurídicas, políticas e ideológicas que
D
direcionam ao processo histórico de desenvolvimento social.
O

Neste capítulo, trataremos primeiramente do Estado como forma


V

social abstrata e suas relações orgânicas na reprodução do capital em geral e


SI

da própria sociedade. Em segundo lugar, procuraremos mostrar como essas


relações se apresentam em suas formas de existência concretas e históricas.
U

A dinâmica da reprodução cotidiana dos diversos capitais particulares, como


CL

formas de existência do capital em geral, exige um sistema de crédito que


crie de modo contínuo uma massa monetária necessária para o movimento
EX

do capital. Exige, igualmente, um conjunto de regras que são expressas por


meio de todo o conjunto de leis que regem as relações econômicas, jurídicas,
SO

políticas, ideológicas e morais da sociedade.


Para tanto, a sociedade cria e reestrutura um aparato institucional
U

construído historicamente durante a longa transição do feudalismo para o


RA

capitalismo, e dividido tradicionalmente nos poderes executivo, legislativo


e judiciário. As sociedades também criam um sistema tributário e de gastos
PA

estatais que regulamenta qual será a parcela do valor e da mais-valia que


circula o sistema estatal.
Do ponto de vista da tributação, distribui a carga contributiva para
as diversas classes sociais e frações segundo critérios que são fixados na
esfera política. Esses critérios são resultados das disputas e relações de força
no interior dos poderes legislativo e executivo.
18

Quanto aos gastos, constituem decisões que partem do poder exe-


cutivo e são realizados segundo as necessidades de reprodução dos diversos
capitais particulares e da gestão da força de trabalho. Como os governos

S
são a expressão das manifestações concretas das lutas e disputas entre as diver-

PE
sas classes e suas frações, as decisões sobre o direcionamento dos gastos
governamentais são os resultados dessa disputa.

A
Os representantes políticos dos diversos capitalistas (capitais par-

/C
ticulares) atuam no âmbito dos mesmos poderes – executivo e legislativo

TA
– de maneira a atender aos interesses dessa ou daquela fração do capital e
do capital em geral.

LE
O Estado como forma social

CO
O Estado capitalista surgiu como uma necessidade política e jurídica
O
do capitalismo. Ele é o resultado de uma longa e renhida disputa entre as
D
classes dos comerciantes e dos industriais capitalistas modernos, contra os
senhores feudais decadentes, desde o final da Idade Média e, principalmen-
O

te, na Idade Moderna. O surgimento do Estado capitalista, portanto, não


V

se deu de forma estanque, nem tampouco as suas instituições e poderes


SI

foram estruturados de uma só vez. Ele foi constituído por meio das formas
U

e instituições de poder existentes que formaram novas determinações do


CL

modo de produção capitalista. Assim, a formação do Estado capitalista é


histórica e social. Engels (2000), ao estudar sobre o assunto, demonstrou
EX

que a formação do Estado remonta os primórdios da formação da própria


sociedade humana. Em seu entendimento, o Estado não é um poder que
se impôs à sociedade de fora para dentro, tampouco é a “realidade da ideia
SO

moral” e “a imagem e a realidade da razão”.


U

Antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau


RA

de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa


irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos
irreconciliáveis que não consegue conjurar (ENGELS, 2000, p. 191).
PA

Sendo um produto não acabado da história, o Estado acompanha a


evolução da própria sociedade e nasceu do antagonismo das classes que se
enreda em cada época, em contínuas e antagônicas contradições produzidas
pelos interesses e pelas ações das classes sociais desde a sociedade gentílica.
O fato de essas ações existirem é a confirmação da necessidade insubstituível
19

da presença do Estado em qualquer época, que revela que a sociedade,


sendo constituída pelas classes sociais, está permeada por conflitos que
necessitam de uma estrutura que possa fazer uso da coerção como forma

S
de convencimento e, se preciso, usar legalmente a força.

PE
A partir desse ponto de vista, compreendemos que o poder político
e jurídico no capitalismo não se situa separadamente das questões produ-

A
tivas, pelo contrário, esse mesmo sistema que produz a mais-valia também

/C
estende e abarca a esfera das decisões e do controle do poder político que,

TA
pela unidade das formas de reprodução da riqueza, mercadoria, dinheiro
e capital produtivo, articulam as forças motrizes das principais relações

LE
capitalistas.
Essa concepção que entrelaça os diferentes elementos estruturantes

CO
do modo de produção capitalista encontramos em Karl Marx, na Introdução
à crítica da economia política de 1959, que destaca:
O
Minha investigação desembocou no seguinte resultado: Relações jurídicas,
D
tais como forma de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir
de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do
O

espírito humano, mas pelo contrário, se enraízam nas relações materiais


V

de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de “sociedade
SI

civil” (MARX, 1982, p. 25).


U

Para Marx, o modo de produção capitalista é um todo constituído,


CL

no entanto, para compreendê-lo, é necessário que se investiguem as relações


materiais e daí se tirem as explicações para o funcionamento das relações
EX

jurídicas manifestadas na forma de Estado constituída.


Por outro lado, se as relações jurídicas e a forma de Estado se
SO

enraízam nas relações materiais que evoluem e, portanto, fazem evoluir as


demais relações, aparentemente causam a impressão de sobreviverem por
U

conta própria, alimentando-se do próprio movimento interno do poder,


contradiz a conclusão de Engels, quando afirma: “Este poder, nascido da
RA

sociedade, mas posto por cima dela, distanciando-se cada vez mais, é o
Estado” (ENGELS, 2000, p. 191).
PA

O distanciamento do Estado da sociedade civil poderia ser compreen-


dido como separação de uma estrutura da outra, mas não é esse o sentido
histórico dado a algo que é “nascido da sociedade”. A forma de Estado
enraizada nas relações materiais cresce e se coloca “acima” da sociedade,
em autoridade e não como estrutura. Isso se dá pela necessidade que essa
mesma sociedade cria, ao se cindir em duas grandes classes fundamentais:
20

a burguesia e o proletariado. A criação dessa forma de poder estatal “é a


confissão de que a sociedade se esbarrou em uma insolúvel contradição
interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis que já não pode des-

S
vencilhar-se” (ENGELS, 2000, p. 191). Para que os interesses colidentes

PE
não destruam, por meio dos choques, a sociedade, segundo Engels (2000),
é necessário um poder que, aparentemente, coloque-se acima dela para

A
amortecer o choque e mantê-la dentro do limite da ordem. Distancia-se,

/C
também, pela autonomia e pelo impedimento do acesso espontâneo da
classe às suas repartições, mas a sua estrutura permanece enraizada, em

TA
qualquer época, na base econômica, alimentando-se do funcionamento da
própria sociedade civil.

LE
Podemos encontrar no Manifesto do Partido Comunista, de 1848, o
sentido histórico da criação da forma Estado, especificamente quando

CO
Marx e Engels consideram que a formação da própria classe é também
histórica e, com isso, por meio do processo político, adquire o aprendizado
O
de como proceder:
D

Cada etapa na formação histórica da burguesia vinha acompanhada de


O

um processo político correspondente: a classe oprimida pelo feudalismo


V

despótico se organiza em associação armada e autônoma na Comuna;


aqui, república urbana independente (como na Itália e na Alemanha), ali,
SI

terceiro estado, tributário da monarquia (como na França). Mais tarde,


U

já no período manufatureiro, como contrapeso à nobreza, sustentando


CL

a monarquia semi-feudal ou absoluta, pedra angular das grandes mo-


narquias, a burguesia, como estabelecimento da indústria moderna e do
mercado mundial, conquistou finalmente a soberania política no Estado
EX

representativo moderno (MARX; ENGELS, 1986, p. 21).


SO

Portanto, não há dois tempos históricos: um para a formação da


classe e o outro para a formação do Estado, ou um tempo para a formação
U

das formas de produção e o outro para forma de Estado. O processo é di-


nâmico e composto por diversas relações que conduzem à soberania política
RA

simbolizada na forma de Estado. O que reflete a forma da superestrutura


de cada época é, por um lado, a base produtiva em que se enraízam as re-
PA

lações jurídicas, políticas e a complexidade das relações sociais que, devido


ao antagonismo das classes, armam-se tensões e desencadeiam-se conflitos
que põem em risco a ordem vigente. É nesse sentido que a burguesia não
poderia preservar a forma de Estado feudal, pois ele enraíza-se em uma
base econômica anticapitalista que, para superá-lo, era preciso fazer surgir
uma forma de Estado apropriada para o capitalismo.
21

A afirmação da forma política para o benefício da classe capitalista


se deu por intermédio do fortalecimento da produção industrial e da co-
mercialização das mercadorias, mas a luta pela extinção da forma estatal

S
feudal, por não se coadunar com o novo modo de produção, não apenas

PE
fez com que as disputas entre as classes estruturassem o processo político
com essa finalidade. A luta contra os senhores feudais que dificultavam os

A
avanços produtivos fortalecia também o objetivo da emancipação política

/C
que buscava estabelecer uma nova ordem e um novo regime político.

TA
Sendo assim, há determinados momentos históricos em que uma
classe, em busca de satisfazer os seus interesses, rompe com a ordem,

LE
colocando-se acima da sociedade, e todo o esforço que o Estado faz para
que as classes não se devorem torna-se em vão. É um momento crucial

CO
quando as classes assumem o propósito de se devorarem verdadeiramente. Elas
buscam inverter os papéis no comando do poder. A ascensão da burguesia
não apenas devorou a classe dos senhores feudais, como também destruiu
O
o instrumento imprestável da forma de poder político e jurídico feudal,
D

substituindo-a por uma forma condizente com o modo de produção capi-


O

talista, num longo processo histórico. Daí em diante, a conjugação da forma


V

econômica com a forma política passou a vigorar com interdependência,


garantindo que, por um tempo, as novas classes, embora em constante
SI

conflito, não se devorariam.


U

Com o capitalismo, surgiu um novo dinamismo das forças produti-


CL

vas que inovam permanentemente o processo produtivo pela introdução de


novas tecnologias. O mesmo não se deu em relação ao Estado que se baseou
EX

em ser uma estrutura apropriada ao sistema econômico, que o induziu a


fazer escolhas apenas de regimes políticos e de adaptarem as instituições
SO

ao sistema de reprodução do capital.


Assim, o Estado capitalista surge como uma exigência fundamental
U

para assegurar a produtividade do sistema, conforme Mészáros (2002). O


próprio capital, de forma totalitária, controla a produção material e impõe
RA

ao Estado a obrigação de implementar práticas políticas totalizadoras.


Essa visão é compartilhada também por Poulantzas (1980), quando
PA

reflete sobre as raízes do totalitarismo e mostra que o Estado não com-


porta nenhum limite de princípio e de direito à sua usurpação. “Por mais
paradoxal que pareça, é a separação público-privado, por ele instituída, que
lhe abre perspectivas ilimitadas de poder” (POULANTZAS, 1980, p. 81).
Com essa visão, por meio da distinção que o Estado cria entre o
público e o privado, ambos articulados primordialmente por ele, estão as
22

premissas do fenômeno do totalitarismo moderno, isso porque esse separa


os cidadãos comuns da esfera pública e do poder político. Ou seja, não
há um manejo democrático da forma de poder estatal no capitalismo. As

S
demonstrações dos limites do poder estatal ocorrerão pelo enfrentamento

PE
entre as classes que, desrespeitando as imposições públicas, buscam mu-
danças substanciais na esfera privada.

A
A abrangência social do Estado como forma de poder não pode

/C
ser vista desvinculada do funcionamento da economia, da coerção jurídica

TA
e da dominação política que envolve a preservação dos interesses da classe
burguesa no capitalismo. Para Sweezy (1985), a não inclusão do Estado como

LE
tema da economia é uma omissão arbitrária e injustificável. A prerrogativa
fundamental da presença do Estado nas relações de produção não é a con-

CO
ciliação entre as classes, mas a imposição do poder de uma sobre a outra,
isso porque a economia, as classes, o Estado etc. são produtos do mesmo
O
desenvolvimento histórico que não se deu sem a disputa de interesses e,
D
para assegurá-los, a classe historicamente dominante lança mão, a todo
O

momento, dos instrumentos políticos, jurídicos e ideológicos.


V

Não há, portanto, impedimento de que o Estado assuma qualquer


tipo de função na sociedade capitalista, basta que a classe dominante tenha
SI

necessidade de sua intervenção que ele pode se transformar em um agente


U

de investimentos econômicos, explorador de novos mercados, principal-


CL

mente quando se trata de investimentos de risco ou oferecedor de créditos.


Da mesma forma, o Estado está presente em todas as regulamenta-
EX

ções que favorecem o desenvolvimento econômico interno e, nesse parti-


cular, sob o título de regulamentação das relações entre capital e trabalho, constrói
SO

o arcabouço das determinações da dominação de classe. Isso pode ser con-


ferido pela legislação que estabelece a duração da jornada de trabalho, base
U

fundamental para a extração da mais-valia ou na flexibilização dos direitos


RA

trabalhistas, por meio da terceirização que inviabiliza as decisões coletivas.


Quando observamos atentamente da primeira à sétima parte do livro
PA

I do O capital, de Marx, percebemos que ao tratar do processo de produção


do capital, iniciando pela mercadoria e dinheiro, passando pela transfor-
mação do dinheiro em capital, depois a produção da mais-valia absoluta e
relativa, o salário e a acumulação do capital, nada disso pode ocorrer sem
a garantia do funcionamento da ordem social, vista como respeito às leis
que na linguagem jurídica denomina-se honrar os contratos.
23

Mas de onde vem essa obrigatoriedade que impõe a honradez? Cer-


tamente da autoridade do Estado que exige o cumprimento dos contratos
assinados. Como exemplo, podemos tomar o que diz Marx no capítulo

S
XVII do livro I do O capital, quando descreve que o possuidor de dinheiro

PE
encontra no mercado não o trabalho especificamente, mas o trabalhador
que está disposto a vender a força de trabalho. Por essa razão, ao começar

A
realmente a trabalhar, o seu trabalho deixa de lhe pertencer e por isso não

/C
pode mais vendê-lo (MARX, 2013).

TA
É o olho do Estado que vigia o contrato assinado e impede que o
trabalhador, após ter vendido a sua força de trabalho, tenha poder sobre

LE
ela, assim, mesmo estando socialmente livre, terá de entregá-la dia após dia
conforme combinado. Não é ao proprietário unicamente que o trabalhador

CO
deverá prestar contas da entrega da mercadoria, mas também ao poder
judiciário. Nesse sentido, por estar em todos os lugares e vigiar todas as
relações, compreende-se a caracterização de Hegel, quando denominou o
O
Estado de espírito absoluto: “[...] nele a liberdade obtém o seu valor supre-
D

mo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indiví-
O

duos que, em serem membros do Estado, têm o seu mais elevado dever”
V

(HEGEL, 1997, p. 205).


SI

Capital, Estado e regime político


U
CL

Ao tomarmos como referência o pensamento de Marx (2014),


quando ele trata sobre as formas autonomizadas do capital no livro II do O
EX

capital: capital-monetário (D), capital-mercadoria (M) e capital-produtivo (P),


mostra as implicações complexas existentes no movimento da reprodução
SO

dos capitais. O movimento cíclico e dinâmico do capital só pode ocorrer


do que ele chama de metamorfose do capital, isto é, o movimento do capital
U

como forma social só pode ocorrer mediante a mudança da forma dinheiro


RA

para a forma mercadoria, para a forma produtiva e para uma nova forma
mercadoria, enfim ao retorno à forma dinheiro. É nessa última mudança
PA

de forma que o capital completa a sua valorização, baseada na extração da


mais-valia da força de trabalho. Ao mesmo tempo, uma parte importante do
capital está se articulando e passando pelo interior do Estado2. Além disso,
2
Esse é o ciclo D–M–D’, em que, em sua manifestação concreta no capitalismo con-
temporâneo, a última metamorfose do capital para a forma dinheiro ocorre de maneira
estreitamente vinculada ao sistema bancário, que ajusta a quantidade necessária de di-
nheiro da criação e destruição de moeda e de conversão do dinheiro em outra forma de
24

a totalidade do capital em geral deve se metamorfosear continuamente e


indefinidamente da seguinte forma3:

D–M{Ft
Mp
…P…M’– D’...D – M{DMp
Ft …P…M’– D’... D–M {Ft …P…M’– D’ ...
Mp

S
PE
Em geral, esse movimento global do capital ocorre, como nos refe-

A
rimos anteriormente, por meio da autonomização de suas formas funcionais

/C
em seus respectivos ciclos:

TA
I) Ciclo do capital monetário: D-M...P...M’–D’;
II) Ciclo do capital produtivo: P...M’–D’–M...P;

LE
III) Ciclo do capital mercadoria: M’–D’–M...P...M’.

CO
Para compreendermos a totalidade das relações econômicas e po-
líticas envolvidas no processo de reprodução do capital, a estruturação e o
O
funcionamento do Estado capitalista, devemos evidenciar a dúplice relação
D
intermediada pela presença humana, que acontece entre o capital e o Estado
e, simultaneamente, entre o Estado e o seu respectivo regime político.
O

Podemos identificar a presença humana na reprodução do capital,


V

em diversos lugares na obra de Marx, de modo particular, no livro I do


SI

O capital aparece quando o capitalista personifica o capital: “Apenas como


U

capital personificado o capitalista tem um valor histórico e dispõe daquele


direito histórico à existência [...]” (MARX, 2013, p. 667).
CL

Em primeiro lugar, personificar o capital pode ser entendido como


EX

pessoalizar algo que não tem vida humana. Nesse caso, é o capital que se
transfere para o corpo do capitalista que passa a representá-lo e agir de acor-
do com os seus comandos. Isso ocorre também com a forma mercadoria:
SO

“As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas


pelas outras” (MARX, 2013, p. 159). O capitalista aparece nessas relações
U

como um colaborador para satisfazer as vontades que estão nas próprias


RA

mercadorias.
PA

capital que Marx chama de capital fictício, em operações diárias com o Banco Central. O
movimento cíclico e contínuo do capital ingressa e retorna ao ciclo do capital mediante
tributação e gastos estatais.
3
O detalhamento da circulação global do capital em geral como totalidade e sua ma-
nifestação nos capitais particulares está apresentada nos quatro primeiros capítulos da
seção I, do livro II do O capital: “As metamorfoses do capital e seu ciclo” (MARX, 2014,
p. 107-200).
25

A personificação indica que o capitalista age condicionado pelas


leis tendenciais do próprio capital, mas não unicamente. É nesse sentido
que tanto o capital quanto o capitalista dependem de outras garantias ad-

S
vindas da existência do Estado responsável por elaborar e garantir a ordem

PE
política e jurídica.
Considerando real e necessária essa dúplice relação entre capital

A
e Estado, e entre Estado e regime político, a personificação do capital no

/C
capitalista participa das relações estruturantes do sistema, desfazendo as

TA
ilusões de que é o capital que pertence ao capitalista; isso acontece apenas
na esfera jurídica, quando se quer estabelecer nominalmente a posse privada.

LE
No entanto, no processo natural de reprodução, é o capitalista que pertence
ao capital, pois obrigatoriamente coloca-se a serviço dele, submetendo-se às

CO
leis tendenciais estabelecidas. Por isso, segundo Marx: “Como capitalista ele
é apenas capital personificado. Sua alma é a alma do capital” (2013, p. 307).
O
Dessa mesma forma, podemos considerar que não é o Estado que
D
pertence ao cidadão, mas, ao contrário, é o cidadão que pertence ao Estado.
Podemos encontrar essa indicação tanto nos clássicos quando tratam do
O

contrato social, quanto nos primeiros escritos de Karl Marx que tratam da
V

emancipação dos judeus na Alemanha.


SI

A dupla relação do capitalista com o capital e o Estado, por meio da


U

personificação desses, indica que nem o capital, nem o Estado pertencem


CL

ao capitalista em particular ou à sua classe, considerando que, em certas


circunstâncias, os próprios capitalistas serão penalizados se transgredirem
EX

as leis econômicas e jurídicas.


Em síntese, o mesmo fenômeno da personificação do capital se
reproduz em relação ao Estado por meio dos capitalistas e daqueles que
SO

compõem os governos, pois estão a serviço do capital. Essas relações,


U

aparentemente confusas, encarregam-se de fazer funcionar o sistema e as-


segurar que a personificação não seja desfeita. Sendo assim, Marx e Engels
RA

(2009) revelam:
PA

Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante


fazem valer seus interesses comuns e que sintetiza a sociedade civil inteira
de uma época, segue-se que todas as instituições coletivas são mediadas
pelo Estado, adquirem por meio dele uma forma política. Daí a ilusão
como se a lei se baseasse na vontade e, mais ainda, na vontade separada
de sua base real [realen] na vontade livre. Da mesma forma o direito é
reduzido novamente à lei (MARX; ENGELS, 2009, p. 76).
26

No entendimento dos autores, o direito privado se desenvolve


simultaneamente com a propriedade privada, ou seja, é ela o próprio capi-
tal que determina o conteúdo das leis e não simplesmente a vontade dos

S
proprietários. Mas, o Estado é a forma política da qual advém a segurança

PE
do capitalista para a garantia dos seus interesses.
O Estado, tal qual o capital, é a generalização que comporta dentro

A
de si diferentes formas de relações e de poder político. Conforme Mathias

/C
e Salama (1983), o regime político é distinto do Estado e um é a forma do

TA
outro. No entanto, se por um lado existe uma autonomia relativa do Estado
em relação à classe, o mesmo não se pode dizer do regime político, por isso,

LE
os autores reconhecem que a relação que liga o Estado ao regime político é
complexa. “[...] o Estado é uma abstração. Sua natureza de classe é ‘derivada’

CO
ou do capital, concebido como categoria, nos países capitalistas desenvol-
vidos; ou [...] da ‘economia’ mundial constituída, nos países desenvolvidos”
(MATHIAS; SALAMA, 1983, p. 15).
O
Essa complexidade pode ser simplificada por intermédio da indi-
D

cação expressa por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista de


O

1848, com o seguinte conteúdo: “Neste regime o governo do Estado não


V

é senão um comitê para gerir os interesses comuns de toda a burguesia”


(MARX; ENGELS, 1986, p. 21). Vemos aqui três separações e não duas,
SI

como geralmente é feita: o Estado, o regime e o governo. Este último é visto


U

como um comitê de decisões da burguesia e não propriamente o Estado.


CL

A relação entre a estrutura do Estado, o regime político e a forma


de governo, sedimenta-se por meio da Constituição, ou seja, pelo conjunto
EX

das leis. Com elas, são legitimados os poderes estruturados nas formas de
poder: executivo, legislativo e judiciário4 que, em grande medida, repetem
SO

como no capital as formas de valor (simples, extensiva, geral e dinheiro).


O capitalista personifica o capital pelas formas de valor; os governantes,
U

funcionários, civis e militares que gerem a burocracia estatal personificam as


formas de poder, tendo na forma de governo a expressão visível do regime
RA

político. A demonstração da personificação estatal aparece em Marx, na


Sagrada família de 1844, quando aprofunda que o Estado e a propriedade
PA

privada “[...] metamorfoseiam os homens em abstrações ou são produtos


4
Essa distinção e separação é formal e só existe na aparência, pois o Estado sob a forma
de regime político também é uma totalidade como um organismo que, em última ins-
tância, funciona como o aparelho de dominação política e econômica do proletariado.
Essa aparente divisão de poderes, a partir da qual se estabeleceria uma imparcialidade e
autocontrole, é falsa em sua essência, uma vez que nas condições históricas e concretas,
esses três poderes convertem-se periodicamente em um único: contra os trabalhadores.
27

do homem abstracto, em lugar de serem a realidade de homens individuais


concretos” (MARX; ENGELS, 1974, p. 294).
O Estado configura-se tal qual nas formas de existência e reprodu-

S
ção do capital, e possui uma estrutura estável, diferentemente do regime

PE
político que pode ser alterado segundo os riscos e os interesses da classe ou
alianças de grupos e frações que governa. Por intermédio da Constituição,

A
tem-se a formalização jurídica que define a organização estatal por meio

/C
da separação dos poderes.

TA
É por meio da organização dos poderes que se entrelaçam as insti-
tuições, e que caracterizam os regimes políticos mais estáveis estruturados

LE
por meio das formas de governo. Assim, enquanto o regime político adotado
por um Estado se refere à estrutura da organização política com toda a

CO
complexidade institucional, a forma de governo está mais intrinsecamente
vinculada ao formato adotado por cada governo e, por isso, pode se dis-
O
tinguir de um para outro, devido às determinações históricas e concretas
D
em cada sociedade.
A personificação das formas sociais de poder no capitalismo se dá
O

pela encarnação das próprias formas nos indivíduos, isso porque a mercado-
V

ria, o dinheiro, o capital e a forma política estatal, ao mesmo tempo em que


SI

dinamizam as relações de produção, mistificam as relações sociais e impõem,


U

por meio de suas próprias leis, a maneira de pensar e de ver a realidade social.
CL

Os governos e os capitais particulares


EX

A força misteriosa que move a sociedade capitalista é a reprodução


SO

e a acumulação do capital. Para que isso ocorra, é necessário liberalizar a


divisão social do trabalho e estabelecer a produção pelos capitalistas. Aos
U

trabalhadores proprietários da força de trabalho, cabe aceitar as formas de


RA

controle juridicamente propostas. Por outro lado, a dinâmica econômica


e jurídica é fortalecida por outras formas sociais, políticas, morais e ideo-
PA

lógicas que concorrem e também se ocupam de controlar e determinar as


relações sociais, os comportamentos individuais relacionados com a prá-
tica de valores, a disciplina, as obrigações e os deveres. É por intermédio
dessa interação e combinação de funções que os capitais particulares e os
governos, por intermédio dos poderes legislativos, executivos e judiciários,
interagem para garantir o processo de dominação e exploração capitalista.
28

O capital social total se movimenta historicamente e concretamente


sob a forma de capitais individuais que só podem se reproduzir articulados
uns aos outros. Os múltiplos capitais individuais dependem necessariamente

S
uns dos outros em suas metamorfoses particulares. Cada capital indivi-

PE
dual no primeiro momento do seu ciclo em que deve adiantar o dinheiro
comprando meios de produção, sob a forma de máquinas, equipamentos

A
e insumos, depende de uma multiplicidade de outros capitais. Ele deve

/C
encontrar no mercado de meios de produção todas as matérias-primas e

TA
outros materiais para a passagem ao segundo momento do ciclo. Também
necessita encontrar a força de trabalho adequada à forma concreta que seu

LE
capital deve assumir como capital produtivo. Quanto maior for a magnitude
do capital individual e mais complexa for a mercadoria produzida, maior

CO
será a diversidade e variedade de fornecedores que ele necessita.
Entretanto, o que sustenta de fato o poder dos capitalistas é o poder
econômico que, por força das circunstâncias de cada época, recorrem aos
O
poderes executivo e legislativo para assegurarem o processo de reprodução
D

do capital. Isso não é feito porque os capitalistas cultivam os princípios da


O

unidade e da fraternidade acima de tudo, mas porque, no âmbito da repro-


V

dução do capital, todos concorrem contra todos e, por isso, são obrigados
a se aliarem quando os interesses recíprocos precisam ser alcançados. É o
SI

momento que os capitalistas recorrem ao comitê governamental, aparente-


U

mente separado da classe, mas organizado como um fórum definidor de


CL

questões polêmicas ou de natureza universal. É por meio do poder superior


das instituições governamentais que os capitalistas encaminham, controlam
EX

e executam as medidas políticas que garantem as livres atividades de todos


e defendem seus interesses particulares ou de grupos.
SO

O Estado, por sua vez, também formula políticas voltadas aos


interesses da classe dominante, mesmo que essa classe não seja política e
U

ideologicamente homogênea, “Ela é, ao contrário, constituída de capitais


individuais de desenvolvimento desigual, que concorrem entre si e que estão
RA

submetidos a fracionamentos importantes” (HIRSCH, 1977, p. 94). Mas,


acima de tudo, nem a concorrência e nem o fracionamento, que cotidiana-
PA

mente alimenta os objetivos individuais de cada capitalista, impedem que os


capitalistas se articulem quando há algum interesse comum a ser alcançado.
As relações entre os capitalistas particulares e o governo se afirmam
na medida em que as decisões políticas se estruturam também como orde-
namento jurídico que, aparentemente, subsume os interesses particulares e
estabelece a igualdade em direitos e deveres para todos os cidadãos.
29

O mesmo sistema que regula as atividades dos capitalistas regula


também os deveres e os direitos dos trabalhadores que funcionam sem
muito espaço de desconexão. O trabalhador tem direito ao salário todo

S
mês, mediante os descontos para a previdência social e a retenção da parte

PE
correspondente ao imposto de renda retido, se seus ganhos assim o exigi-
rem. Aos capitalistas, cabe pagar impostos sobre a produção e circulação

A
dos produtos e todas as taxas expedidas pelas autoridades. No entanto,

/C
se para os trabalhadores as leis operam impondo rigidamente as normas,

TA
para os capitalistas há subterfúgios dos incentivos fiscais, taxas acessíveis,
negociação das dívidas particulares e supressão de impostos.

LE
As relações entre os capitais particulares e o governo oscilam se-
gundo os diferentes regimes econômicos adotados e os momentos do ciclo

CO
de expansão, contração do capital, por determinação das crises do próprio
sistema do capital, dos interesses particulares de grupos ou de frações do
capitalista e, até mesmo, do interesse de um capitalista em particular. Assim,
O
em cada formação social, estrutura-se um sistema tributário para o finan-
D

ciamento da intervenção pública mediante os gastos públicos ou estatais.


O

O sistema tributário costuma ser relativamente estável com suas principais


V

determinações estabelecidas ao nível do regime político, e estabelece quais as


operações ao nível dos capitais particulares serão tributadas. Por outro lado,
SI

os gastos públicos recebem determinações mais concretas e refletem o jogo


U

de pressões e interesses de diferentes frações do capital e das classes sociais.


CL

A tributação constitui uma cobrança sobre as atividades produtivas,


as propriedades e as rendas dos capitalistas e trabalhadores. As três primei-
EX

ras podem ser consideradas uma parcela da mais-valia que os capitalistas


devem transferir ao Estado. A última constitui uma parte do próprio salário
SO

que pode ser devolvido sob a forma dos gastos sociais. Assim, uma parcela
importante da massa de valor em circulação ingressa diariamente no aparato
U

do Estado e é recolocado na circulação por meio dos gastos estatais.


Quanto aos gastos, eles podem ser modificados continuamente du-
RA

rante a execução dos orçamentos anuais, segundo os interesses e pressões


das diferentes classes sociais em conflito sobre os governos do momento
PA

e, também, de acordo com os diferentes interesses que esses governos


representem. Esses gastos costumam ser divididos em despesas primárias
e financeiras. Com o avanço da ideologia e das políticas neoliberais, os ca-
pitalistas passaram a defender de modo contínuo uma redução nos gastos
públicos primários, em particular aqueles destinados às políticas sociais, as
chamadas políticas de austeridade.
30

Por outro lado, essas políticas jamais se referem aos gastos finan-
ceiros do Estado. Como em seu movimento cotidiano, o capital na forma
dinheiro é convertido diariamente em capital a juros pelos bancos centrais;

S
essa forma exige o pagamento diário de juros, assim como Marx (2017,

PE
p. 443) escreveu: “Tão logo é emprestado ou investido no processo de
reprodução [...] crescem seus juros, não importando se ele dorme ou está

A
acordado, se está em casa ou viajando, se é dia ou noite”.

/C
Em qualquer variável, com maior ou menor presença do Estado na

TA
economia, por mais concentradoras ou liberais que possam ser as medidas
adotadas, elas não interferem na essência do funcionamento do sistema de

LE
reprodução do capitalismo, que se sustenta sobre as leis tendenciais que
garantem a exploração, a reprodução, a circulação e a expansão do capital,

CO
sempre ancorado na propriedade privada dos meios de produção.
Nenhum grupo ou classe que ascende ao poder governamental no
O
capitalismo tende a destituir os indivíduos do direito de propriedade, tão
pouco superar a essência do sistema que impõem as relações de produção.
D

Isso apenas pode ser feito se houver uma profunda ruptura com a ordem
O

estabelecida em vistas da superação do modo de produção capitalista.


V

O Estado que está “colocado acima” da sociedade, concretamente


SI

está também ao lado da classe dominante para salvaguardar a ordem. Em


U

caso de golpe de Estado, uma parcela da classe dominante apela para as


CL

forças armadas e se levanta sobre os setores da própria classe burguesa


discordante e da sociedade em geral, sem perder a condição de continuar
EX

sendo a classe dominante em um sistema apropriadamente estruturado.


Não há, portanto, Estado sem que haja o sujeito social de sua afirmação,
mas, acima de tudo, ambos representam a infraestrutura afirmada na base
SO

econômica da sociedade de cada época.


A organização do processo de produção capitalista por si mesmo
U

estabelece, em detrimento do Estado, a própria ordem dominante. Assim


RA

destaca Marx (2013):


PA

Para o curso usual das coisas, é possível confiar o trabalhador “‘às leis natu-
rais de produção”, isto é, à dependência em que ele mesmo se encontra em
relação ao capital, dependência que tem origem nas próprias condições de
produção, e que por elas é assegurada e perpetuada (MARX, 2013, p. 809).

Mas, o mesmo processo produtivo, para além das leis naturais de


produção se regulamenta por outras leis que visam prevenir as corriqueiras
31

relações conflituosas entre capital e trabalho, que exigem a presença de um


Estado aparelhado para garantir que as ordens econômica, política e social
sejam preservadas. Para isso, além dos três poderes (executivo, legislativo

S
e judiciário), o Estado ordena que as intervenções sejam feitas seguindo as

PE
diretrizes constitucionais em favor da ordem econômica, quando necessário,
por meio da força policial.

A
Portanto, a forma política estatal de poder centralizado no capita-

/C
lismo serve para salvaguardar a propriedade privada. Sua função é também

TA
garantir o direito à produção da forma mercadoria, tendo o trabalho, a
mais-valia, a troca e os impostos como fatores responsáveis pela produção

LE
e reprodução da valorização do valor. No entanto, as posições políticas dos
indivíduos proprietários nem sempre coadunam em favor do sucesso das

CO
relações entre a forma econômica e a forma política, isso porque devemos
admitir que não são todos os patrões e os trabalhadores que estão unificados
O
em torno de uma mesma posição política. Assim, muitas relações podem
D
ser rompidas na sociedade capitalista, menos a do direito à propriedade
privada dos meios de produção e da propriedade em geral.
O

Compreendemos que no capitalismo todas as classes buscam for-


V

mas apropriadas de organização, compatíveis com os objetivos que querem


SI

alcançar. Os objetivos, por sua vez, são impulsionados pelas necessidades


U

e interesses dos indivíduos que compõem as classes sociais. No entanto,


CL

essa aparente similaridade se desfaz quando tomamos em separado para a


análise cada uma das classes sociais, pois percebemos que as necessidades
EX

e os interesses entre elas são antagônicos e as mediações que utilizam são,


na essência, irreconciliáveis.
Quando comparamos as relações entre capital e trabalho, vemos
SO

que os trabalhadores, após venderem a força de trabalho, devem entregá-la


todos os dias conforme o combinado e, acima de tudo, precisam respeitar
U

as normas estabelecidas pela empresa e pela legislação vigente. É evidente


RA

que os trabalhadores, como autodefesa, valem-se de alguns direitos, mas


esses não vão além daquilo que está estabelecido na legislação. Do mesmo
PA

modo, podemos dizer que os capitalistas também estão sujeitos ao rigor


da lei e ao poder do Estado colocado “acima” deles e dos trabalhadores,
como uma força controladora para evitar que entrem em desentendimento
e se exterminem entre si.
No entanto, mesmo os capitalistas estando submissos às leis eco-
nômicas e à legislação coercitiva do Estado, levam vantagem sobre os tra-
32

balhadores, pois, enquanto esses possuem os direitos trabalhistas, aqueles


possuem a propriedade privada dos meios de produção, assegurada, no capi-
talismo, como instrumento fundamental da composição da base econômica

S
e de sustentação do poder político. Sendo assim, embora os capitalistas, de

PE
acordo com as suas categorias, também tenham as suas organizações de
classe, unificam-se estruturalmente nas instituições do Estado, fazendo-as

A
funcionar em seu favor.

/C
TA
As políticas públicas

LE
O desenvolvimento do modo de produção capitalista, nas distintas
formações sociais historicamente constituídas, desenrola suas contradições,

CO
de modo particular, a que é regulada pela lei geral da acumulação. Assim,
nos diferentes Estados nacionais, ocorrem processos de aguçamento das
O
desigualdades econômicas, políticas e sociais, de aumento da pobreza e da
D
miséria, mesmo com as relativas melhorias conquistadas historicamente. A
existência e expansão do pauperismo exigem dos Estados políticas públicas
O

para amenizá-lo e evitar confrontos violentos entre os diferentes grupos


V

sociais. Em parte, isso foi o que ocorreu historicamente na constituição dos


SI

welfare states, por uma parte e por outra, pela própria pressão social para o
U

avanço dos processos civilizatórios.


CL

De maneira geral, podemos definir como políticas públicas as di-


retrizes voltadas para o cumprimento da legislação que estabelece as obri-
EX

gações do Estado e do governo de implementarem medidas e programas


que resolvam os problemas sociais e atendam às necessidades da população,
além das medidas de gestão da força de trabalho. Para isso, pode haver a
SO

participação direta ou indireta de instituições públicas e entidades priva-


das. As políticas de Estado, sejam elas assumidas pelo poder público ou
U

pela iniciativa privada, gozam de certa regularidade, enquanto as políticas


RA

públicas governamentais podem existir ou não segundo a importância de


cada programa de governo.
PA

As ações direcionadas pelas autoridades governamentais, que se


encarregam também pelo financiamento de cada programa ou ação, favo-
recem de modo significativo a iniciativa privada, isso porque há momentos
no processo de acumulação do capital em que o papel do Estado e das
políticas governamentais se volta para atender aos interesses principal-
mente do mercado. As políticas públicas voltadas à assistência social, aos
33

programas de saúde coletiva, de educação, de transportes públicos etc.,


ao mesmo tempo que beneficiam diretamente os trabalhadores, também
contribuem com os capitais particulares. Assim, quando os governos

S
distribuem medicamentos gratuitamente, eles são adquiridos dos grandes

PE
laboratórios farmacêuticos; quando elaboram e executam programas de
habitação popular, distribuindo residências a baixo custo, todo esse pro-

A
cesso de construção exigiu grandes financiamentos para as obras, aquisição

/C
de terrenos, materiais de construção etc.

TA
É nesse sentido que as políticas públicas, que, em grande medida,
mesmo sendo insuficientes para atenderem às necessidades das populações

LE
carentes, não se separam do processo de acumulação e reprodução do
capital nem tampouco do mercado. Os governos, para além dos objetivos

CO
políticos, também almejam alcançar resultados econômicos que são, acima
de tudo, os interesses da iniciativa privada presentes na elaboração das
O
políticas públicas.
D
Se no passado o mercado por si só era responsabilizado por
O

atender aos requisitos da distribuição da riqueza e da renda, a partir da


V

Segunda Guerra Mundial, a busca do bem-estar social passou a ser uma


responsabilidade pública. Dessa forma, o Estado e o mercado passaram a
SI

estabelecer relações de acumulação e de regulação do capital e do trabalho


U

(AZEVEDO, 2004).
CL

Nessa lógica, a magnitude da presença ou não do Estado na eco-


nomia é apenas um acerto temporário e conscientemente determinado,
EX

quando e como cada uma das partes deve assumir certas responsabilidades.
O que a iniciativa privada frequentemente questiona é o volume de recursos
SO

empregados em políticas públicas, que os capitais particulares não usufruem


diretamente dos resultados de suas distribuições e resistem a elas, por sen-
U

tirem que uma das garantias para a manutenção dessas políticas públicas
RA

poderá ser o aumento dos impostos. Na medida em que as necessidades


do capital são ainda mais importantes do que a própria sobrevivência de
PA

parcelas da população, não tendo mais para onde ir em busca de meios para
a sua reprodução, o capital exige que o atendimento aos direitos sociais, de
responsabilidade do poder público, sejam delegados para a iniciativa privada.
Isso uma vez que “O capital é o impulso infinito e ilimitado de ultrapassar
as barreiras que o limitam” (MÉSZÁROS, 2002, p. 251). Sendo assim, o
capital pode tudo, menos deixar de ser capital.
34

Os processos históricos são portadores de contradições de diversas


ordens. No capitalismo, as crises cíclicas motivam outras crises interligadas
que obrigam o capital a exigir, no âmbito da política, que se façam ou se

S
interrompam reformas, dentre elas a reforma do próprio Estado. Não se

PE
trata de pôr abaixo a superestrutura e delegar todo o poder à base econômica,
mas adaptar o funcionamento das estruturas políticas, jurídicas e ideológicas

A
às necessidades primárias da reprodução do capital. De alguma maneira,

/C
nesse processo, há um retorno ao modelo da acumulação primitiva por meio

TA
dos desvios de recursos que deveriam ser aplicados nas políticas públicas.
Para reformar o Estado e redefinir as suas funções, não são encar-

LE
regados apenas os administradores que atuam no seu interior, mas também
os representantes dos capitais particulares que assumem o comando e ela-

CO
boram as proposições que se encaminham para a direção de “uma forma
de gerencialismo, no qual a população atendida se converte em ‘cliente’ de
O
um serviço e o próprio Estado em nada mais que uma ‘empresa’ que presta
D
o tal serviço [...]” (IASI, 2017, p. 229).
O

Portanto, aquilo que deveria se voltar para aprofundar o grau de cida-


dania pela qual o cidadão se afirmaria como um sujeito social, com funções
V

e obrigações sociais na sociedade capitalista, pelo contrário, converte-se no


SI

rebaixamento do indivíduo para cliente que para ser atendido terá de pagar
U

pelos serviços e pelos direitos que antes eram tidos gratuitamente.


CL

Por essa razão, sintonizados com a teoria da desestatização das po-


líticas públicas, os capitalistas tentam reduzir o peso dos gastos atribuídos
EX

ao Estado, sem, contudo, esquecerem-se de que o Estado tem custos que


precisam ser mantidos para permitir o funcionamento dos serviços vitais.
SO

Hipócrita e falsamente, junto com os executores das políticas econômicas


e da imprensa, negam ou escondem que essa pressão para a redução dos
U

gastos não se refere aos gastos financeiros. Nesse rumo, sem o interesse de
RA

aumentar impostos e taxar as grandes fortunas, a solução é cortar ao máximo


os direitos sociais, contingenciar gastos com serviços essenciais e reduzir o
PA

funcionalismo público. Porém, por mais que o Estado seja restringido ou


enxugado, jamais será subtraído ao ponto de não ter forças para coagir e
manter a ordem por meio do Direito e das forças de repressão. Assim, os
poderes fundamentais são conservados para que o executivo e o legislativo
possam teatralizar diante da sociedade as frequentes disputas pelos cargos
no comando das instituições.
35

Uma síntese: o Estado não é uma estrutura organizada à margem


da sociedade

S
De acordo com os elementos apontados neste estudo, tendo como

PE
entendimento que o modo de produção capitalista é um todo constituído e
funciona não apenas por meio das relações obrigatórias entre as estruturas,

A
mas fundamentalmente pelas necessidades da reprodução do capital com

/C
duas forças cooperadoras fundamentais a seu favor: o mercado e o Estado.

TA
Com o ajuntamento dessas duas mediações, movimentam-se as forças das
políticas públicas com a iniciativa privada, culminando para a satisfação das

LE
expectativas econômicas e políticas.
Por outro lado, se as relações jurídicas e a forma de Estado se en-

CO
raízam nas relações materiais que evoluem e, portanto, fazem progredir as
demais relações, aparentemente, causam a impressão de sobreviverem por
O
conta própria, alimentando-se do próprio movimento interno do poder e
D
confundem-se com a conclusão de Engels (2000), quando discorre: “Este
poder, nascido da sociedade, mas posto por cima dela, distanciando-se cada
O

vez mais, é o Estado” (ENGELS, 2000, p. 191). Assim, não há controle da


V

sociedade civil das manobras e das operações feitas no âmbito dos negócios
SI

públicos/privados.
U

Nesse sentido, diante do que foi exposto, podemos visualizar que


CL

o Estado não é uma estrutura organizada à margem da sociedade, mas


sim parte constitutiva de um todo organizado que possui atribuições per-
EX

manentes para assegurar a ordem vigente e garantir que o capital possa se


reproduzir livremente.
O distanciamento do Estado da sociedade civil poderia ser com-
SO

preendido como separação de estruturas, mas não é. A forma de Estado


enraizada nas relações materiais cresce e se coloca acima da sociedade, em
U

autoridade e não em estrutura. Isso se dá pela necessidade gerencial que a


RA

sociedade cria ao cindir-se em duas grandes classes: burguesia e proletaria-


do. Essas precisam de uma força que as ajude a permanecerem como são.
PA

Desse modo, o banqueiro exige que o Estado funcione para que ele possa
garantir os seus lucros, assim como o funcionário público, o aposentado,
o pensionista, o dono do cartório, o cidadão que quer registrar seu imóvel
etc. possam receber seus salários, proventos e garantir o direito de pro-
priedade. A criação dessa forma de poder estatal “é a confissão de que a
sociedade se esbarrou em uma insolúvel contradição interna, se dividiu em
36

antagonismos inconciliáveis que já não pode desvencilhar-se” (ENGELS,


2000, p. 191). Para que os interesses colidentes não destruam, por meio
dos choques, a sociedade, segundo o próprio Engels, faz-se necessário um

S
poder que, aparentemente, coloque-se acima dela para amortecer o choque

PE
e mantê-la dentro do limite da ordem.
As políticas públicas apresentam-se como a comprovação de que

A
o Estado e os governos são salvaguardos dos interesses sociais no que se

/C
refere aos serviços públicos. No entanto, a sociedade espera que seja respon-

TA
sabilidade do Estado atender ou não às populações carentes com serviços e
medidas que correspondam às contribuições tributárias da população. Isso

LE
foi parcialmente possível durante o período chamado de anos dourados, no
qual o capitalismo passou por um momento de prosperidades sem igual em

CO
sua história. Com o fim da prosperidade, as necessidades de reprodução
do capital foram se sobrepondo cada vez mais aos trabalhadores. Assim,
O
os direitos sociais obtidos pelos trabalhadores foram sendo suprimidos em
D
benefício do capital.
Nas relações públicas e privadas do capital, para implementar as
O

políticas públicas, não há preocupação dos representantes públicos e da


V

iniciativa privada com a origem das desigualdades sociais e nem mesmo


SI

que tais políticas cooperam para as suas superações. É na implicação entre


U

capitalismo e democracia que percebemos os limites da implementação


CL

das políticas públicas. Segundo Faria (2017, p. 57), “O capitalismo é uma


força de acumulação que não suporta limites”, assim, a sua natureza tende
EX

a uma acumulação sem fim. Para isso, necessita de liberdade de ação e,


sempre que possível, exige do Estado intervenções de desimpedimentos
ou restrições que impeçam o seu avanço ou a dominação de sua taxa de
SO

lucros. Por essas razões, concluímos que não há democracia real, mesmo em
regimes democráticos, pois o capital tem tendência de estar sempre atento
U

aos gastos públicos para extrair deles a sua parte e incorporá-la como parte
RA

da própria reprodução.
Ademais, o Estado capitalista atua continuamente procurando aten-
PA

der às necessidades gerais do capital que são continuamente testadas pela


lei da tendência à queda na taxa de lucro. Por um lado, não só atua diretamente
procurando reduzir os custos de produção por meio de incentivos e de-
sonerações fiscais, financiamento subsidiado, por outro, o Estado atua no
sentido de reduzir o valor da força de trabalho, mediante desregulamentações
das relações trabalhistas e da redução dos salários indiretos, fornecidos por
37

meio dos gastos sociais. Enfim, permite, igualmente, a ampliação da super-


-exploração da força por meio da precarização das relações e condições de
trabalho e de remuneração dos trabalhadores.

S
O Estado capitalista em ação constitui-se, então, no principal bas-

PE
tião de defesa do capital, não só em termos econômicos como também
jurídicos, políticos, ideológicos e morais. Em termos de desenvolvimento

A
da luta de classes, formou-se uma pequena burguesia, chamada de classes

/C
médias5 que têm apoiado decisivamente as classes dominantes no desenrolar

TA
da luta de classes.

LE
CO
Referências
AZEVEDO, J. M. L. A educação como política pública: polêmicas de
O
nosso tempo. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2004.
D

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.


O

15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.


V
SI

FARIA, J. E. O Estado e o direito depois da crise. 2. ed. São Paulo:


Saraiva, 2017.
U
CL

HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo:


Ícone, 1997.
EX

HIRSCH, J. Observações teóricas sobre o Estado burguês em crise. In:


POULANTZAS, Nicos (Org.). O Estado em crise. Rio de Janeiro:
SO

Graal, 1977.
U

IASI, M. Política, Estado e ideologia na trama conjuntural. São Paulo:


RA

ICP, 2017.

MARX, K.; ENGELS, F. A sagrada família: ou a crítica da crítica. 2. ed.


PA

Lisboa: Editorial Presença; São Paulo: Martins Fontes, 1974.

MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. São Paulo:


Global, 1986.
5
Neste capítulo, não foi possível desenvolver essa questão das classes médias e o seu papel
no interior da luta de classes, apesar de sua importância.
38

MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro III: o processo


global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017.

MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro II: o processo

S
de circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.

PE
MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro I: O processo

A
de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

/C
MARX, K. Para a crítica da economia política; salário preço e lu-

TA
cro; rendimento e suas fontes: a economia vulgar. São Paulo: Abril
Cultural, 1982.

LE
MATHIAS, G.; SALAMA, P. O Estado superdesenvolvido. São Paulo:

CO
Brasiliense, 1983.

MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.


O
D
POULANTZAS, N. O Estado, o Poder, o socialismo. Rio de Janeiro:
Graal, 1980.
O
V
SI
U
CL
EX
SO
U
RA
PA
39

2.
Estado Instituição: contribuições da tradição

S
PE
marxista ao debate6

A
Silvana Marta Tumelero

/C
TA
Este capítulo objetiva trazer à tona reflexões sobre o caráter relacio-
nal do Estado e sua relativa autonomia no tocante à estrutura econômica,

LE
mantendo a análise sob a lógica dialética e a perspectiva de utilização de
classe do Estado e, para tal intento, retornamos às contribuições da tradição

CO
marxista ao debate de Estado. O necessário retorno a essa tradição teórica
possibilita refletir e problematizar as atuais configurações do Estado, nas
O
quais o traço repressivo, conservador e neoliberal disputa a hegemonia
D
política do momento em diferentes países do mundo. O retorno às teorias
críticas do Estado são centrais para avançarmos na construção de uma
O

cultura política que não se conforme aos limites do capitalismo. Tal como
V

aponta Mascaro (2013), o final do século XX tem marcado o triunfo do


SI

neoliberalismo e da redução de lutas sociais de caráter estrutural e repre-


U

senta “[...] o abandono da vasta gama de teorias políticas mais críticas,


CL

mergulhadas no todo das contradições sociais, em troca de explicações da


política pela própria política” (MASCARO, 2013, p. 14). Como efeito desse
EX

processo, as análises políticas tenderam a descolar o debate de cidadania e


sua relação com a estrutura de exploração capitalista, passando “[...] a louvar
SO

o padrão de garantia absoluta dos capitais somado à democracia eleitoral


como panaceia política salvadora da dignidade humana de nossos tempos”
U

(MASCARO, 2013, p. 14).


Os recentes resultados dos processos eleitorais ocorridos nos Es-
RA

tados Unidos, na França, na Argentina e no Brasil, por exemplo, sinalizam


um avanço do neoliberalismo, da racionalidade gerencial presente nos
PA

discursos das campanhas que se evidenciam pelas propostas de inúmeras


reformas da máquina estatal, sob a lógica da eficácia de gestão na assunção
de princípios mercadológicos para a gestão pública. Entretanto, a direção
6
Capítulo elaborado a partir de texto integrante da Tese de Doutorado da autora, defen-
dida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Ver Tumelero (2015).
40

político-ideológica que possibilitou avançar o neoliberalismo não foi seu


debate e defesa explícita, mas sim a propagação via mídias e redes sociais
de uma mescla de discursos ultraconservadores, moralistas, disciplinadores

S
que representam o Estado como um ente abstrato, desvinculado de qualquer

PE
interesse classista, como um espaço autonomizado e suscetível ao comando
de uma autoridade encarnada na figura de um governante.

A
Essa realidade nos faz refletir sobre como concebemos o Estado

/C
e como, no decorrer da história, as sociedades desenham em seus marcos

TA
constitucionais a representação jurídica e institucional de sua organização
política. Sobre ela, inúmeros estudos são gestados e, contemporaneamente,

LE
sobressaem-se aqueles relativos ao seu funcionamento operacional, muitos
sob a lógica gerencial, do caráter regulador sobre as relações mercantis e

CO
sociais. Essas evidenciam tanto a “necessária” redução da intervenção es-
tatal em processos que possam assegurar a maximização do capital quanto
O
sua intervenção disciplinar e criminalizadora sobre movimentos e relações
sociais consideradas como progressistas, compreendendo tanto o campo
D

das produções da ciência política quanto da sociologia. Apesar de tais pro-


O

duções, as reflexões sobre o Estado na lógica da filosofia política carecem


V

de ser ampliadas, pois, quando acessamos a problematização da ética na


SI

gestão pública, ela ainda permanece pautada na lógica do bem comum, de


U

modo abstrato, ou como decorrente da “vontade ou do caráter individual”


CL

do governante.
Portanto, entendemos como necessária a retomada de um debate
EX

que permaneceu à margem de produções das últimas décadas e que, nos


termos de Harvey (2006, p. 77), “[...] demorou muito para acontecer”, o
qual é problematizar o Estado em sua dimensão institucional sob o refe-
SO

rencial marxista.
U

Debates sobre o Estado na tradição marxista


RA

Inúmeros são os autores que afirmam não existir em Marx uma


PA

teoria do Estado propriamente dita, isso não significa que não é possível
pensá-lo a partir desse clássico. Harvey (2006), Hirsch (2010), Codato e
Perissinotto (2011) e Mascaro (2013) defendem ser provável apreender as
concepções sobre o Estado a partir dos próprios textos de Marx e por meio
de autores inscritos nessa tradição, desde Engels e Lenin (Estado e Revolução,
1949), Gramsci (Cadernos do Cárcere, 2014a, 2014b) e Poulantzas (2000).
41

Não nos ocuparemos aqui de trazer os elementos de toda essa filia-


ção intelectual, mas demarcar que as reflexões que fazemos ao referencial
teórico-conceitual de Estado nesta tradição7 se dá pela lógica de pensar o

S
Estado e a política pela via da filosofia e da economia política, nos termos

PE
do que recomenda Coutinho (2011).

A
O caráter axiológico na análise do Estado

/C
TA
Entendemos que a análise do Estado a partir da filosofia e da eco-
nomia política marxista nos possibilita apreendê-lo na totalidade das estru-

LE
turas capitalistas. Desafiamo-nos, neste texto, a refletir sobre sua dimensão
institucional na implementação das políticas públicas, não somente pela

CO
ótica das conquistas de direitos sociais obtidas nas últimas décadas, e, sem
dúvida, decorrentes das incansáveis lutas de trabalhadores e da sociedade
civil organizada, mas também no quadro mais amplo de problematizações
O
que envolve esse mesmo Estado gestado como forma política da sociedade
D

capitalista.
O

Para o alcance do objetivo ao qual nos propusemos, apresentamos a


V

seguir premissas que consideramos relevantes sobre o referencial de Estado


SI

e, na sequência do texto, destacamos alguns limites e pertinências que se


mantêm, contemporaneamente, nas teses da tradição marxista, identificadas
U

a partir do percurso de estudos realizados. Tal trajetória nos possibilitou


CL

marcar alguns pontos que são consensos na tradição marxista e outros


ainda em discussão.
EX

Quanto às premissas referidas, um primeiro aspecto que entendemos


relevante ao buscarmos refletir sobre o Estado está posto por Coutinho
SO

(2011), referindo-se ao caráter axiológico das análises de quem “pretende


compreender os fenômenos políticos no quadro da totalidade social”
U

(COUTINHO, 2011, p. 9). O autor explicita o ser: os elementos empíricos,


as causalidades, as determinações; e o dever ser: os juízos valorativos, a te-
RA

leologia e a liberdade, evidenciando, assim, “[...] as possibilidades concretas


que estão sempre presentes em qualquer realidade social, por mais aparen-
PA

temente coisificada que ela se apresente à primeira vista” (COUTINHO,


2011, p. 9). Tal posição permite que as análises sobre o Estado superem a
lógica gerencialista e instrumental, que tem pautado o discurso de eficiência
7
Por se tratar de um texto que objetiva um retorno à teoria marxista para o debate do Es-
tado, algumas citações extensas foram mantidas, com o objetivo de sinalizar aos leitores
possibilidades de interpretação para além das demarcadas pela autora.
42

e eficácia sob a racionalidade capitalista, e adentrem a apreensão das relações


de poder e os efeitos sociais que produzem em termos de avanços e/ou
retrocessos no campo dos direitos, da justiça social.

S
Ao buscarmos refletir sobre o Estado, tendo em conta o seu alcance

PE
em termos de “dever ser”, lembramos que em Gramsci (2014b, p. 35) “[...]
o dever ser é algo concreto, ou melhor, somente ele é interpretação realista

A
e historicista da realidade, somente ele é história em ato e filosofia em ato,

/C
somente ele é política”. Sob essa premissa, ressaltamos que a produção mar-

TA
xista sobre a categoria Estado é gestada na estreita relação com a perspectiva
de “transição ao socialismo [...] e implica a construção de um novo tipo de

LE
Estado” (COUTINHO, 1994, p. 13), senão até mesmo sua supressão, no
que toca à atual forma política do sistema capitalista de produção.

CO
Essa é a dimensão teleológica que se coloca na produção das aná-
lises sobre as diferentes conformações do Estado, desde o século XIX
até os dias atuais no quadro da teoria social crítica. Ou seja, o percurso de
O
autores dessa tradição resultou em análises do que é e de como funciona o
D

Estado capitalista em suas diferentes formações histórico-sociais, e também


O

no que se configuraram as experiências dos Estados socialistas, buscando


V

tecer argumentos que evidenciem os equívocos históricos que se deram por


“dentro da organização estatal” nos processos de transição ao socialismo.
SI

No entanto, a maioria dessas análises está centrada na questão do poder


U

de Estado.
CL

O aspecto “ser”, elementos empíricos, as causalidades, as deter-


minações, apontado por Coutinho (2011), na produção teórica marxista
EX

sobre o Estado, corrobora as análises de Codato e Perissinotto (2011),


quando fazem um alerta à lacuna de estudos sobre a forma de organização
SO

do Estado socialista e de suas instituições, resultando em que “uma teoria


‘negativa’ do Estado capitalista justapôs-se à falta completa de uma teoria
U

socialista do Estado socialista” (CODATO; PERISSINOTTO, 2011, p.


40). Ou ainda, ao se ocuparem centralmente da questão do partido e da
RA

conquista do poder, os teóricos do socialismo científico não se debruçaram


sobre o “como” do exercício do poder de Estado nos países socialistas, ou
PA

seja, a dimensão institucional do Estado.


Além desses aspectos, constatamos que as produções teóricas
sobre o Estado na tradição marxista alcançaram seu auge nos anos 1970,
experimentando um declínio a partir dos anos 1980 em decorrência das
crises vivenciadas pelas formações históricas socialistas e pela retomada,
com imensa força, do pensamento político liberal manifesto nas produções
43

sobre o Estado, as quais apresentam respostas à crise cíclica do capital ex-


perimentada no último quarto do século XX por meio da reestruturação
dos Estados capitalistas.

S
Codato e Perissinotto (2011) fazem menção às produções da década

PE
de 1970 que avançaram em análises do Estado considerando a autonomia
desse aparelho, em especial, Poulantzas (2000). Entretanto, não pautam suas

A
análises sobre o Estado instituição exclusivamente nesse autor. Eles próprios

/C
respondem mediante textos de Marx – sobre a revolução de 1848 na França

TA
– às críticas neoinstitucionalistas, que consideram a teoria social marxiana
limitada para análises do Estado como instituição, por entenderem que a

LE
teoria social não avança para além da “constatação da natureza de classe dos
processos de dominação política” (CODATO; PERISSINOTTO, 2011, p.

CO
40). Naqueles textos conjunturais, os autores evidenciam problematizações
que Marx fez sobre a dimensão institucional do Estado, transcritas a seguir:
O
Marx assinala [...] o fenômeno do parasitismo burocrático e do empre-
D
guismo público, ao lado do caráter despótico da organização estatal. [...]
O

A consequência analítica que se deve tirar dessa crítica ao “exército de


funcionários” é dupla: (i) o Estado não aparece sempre como um poder
V

subordinado à sociedade, mas como um aparelho contraposto a ela, cujos


SI

agentes (estatais) defende, através de um mecanismo complexo, seus


“próprios interesses” [...]; (ii) logo, há de fato um poder propriamente
U

estatal que não é simples tradução institucional do poder social. [...] Uma
CL

série de expressões [extraídas dos textos de Marx] designam o aparelho


institucional do Estado: poder executivo, organização burocrática e mi-
EX

litar, máquina do Estado, administração do Estado, estrutura do Estado,


governo (CODATO; PERISSINOTTO, 2011, p. 45-46).
SO

Ainda em termos dos pressupostos iniciais no debate sobre o Estado


e seu dever ser, na tradição marxista, não há a idealização de um Estado, mas
U

há a problematização das condições materiais, objetivas, histórico-sociais


RA

para a formação ou constituição de uma nova sociedade e da qual emerge


uma ou outra forma política que não está configurada a priori. Conforme
PA

esclarece Hirsch (2010),

[...] o desenvolvimento histórico não é determinado por uma dinâmica pró-


pria das estruturas, mas por lutas e confrontações que, entretanto, se encon-
tram sob pressupostos estruturais definidos, e por isso não podem assumir
uma configuração arbitrária. [...] Não apenas o surgimento do capitalismo
e do Estado moderno não é consequência de uma lógica estrutural, como
44

o seu desenvolvimento e o seu futuro ficam condicionados, nesse sentido,


à ação, através de lutas e estratégias políticas, e por isso permanecem, em
princípios, abertos (HIRSCH, 2010, p. 68-69).

S
Por isso, nosso intento de problematizar concretamente o Estado se

PE
coloca não como um aperfeiçoamento dessa forma política neste sistema,

A
mas indaga: em que medida os agentes que colocam no horizonte a perspec-
tiva de uma nova ordem societária, no interior mesmo dessa forma política,

/C
produzem ou não estratégias que corroboram a edificação desse futuro?

TA
Se concordamos que a transição a uma nova possibilidade de orga-
nização societária se dá de modo processual e não explosivo (GRAMSCI,

LE
2014b), esse movimento demanda a consolidação de processos políticos
democráticos, a superação de Estados totalitários, a gestação de uma nova

CO
forma de organização política e social. Para tal, é necessário que coloquemos
em pauta as questões afetas ao Estado como instituição, evidenciando o seu
O
funcionamento e, especialmente, a relação entre seus agentes e pares, e a
sociedade civil, buscando compreender o quanto aqueles estão ensimesma-
D

dos – no que se convencionou chamar de interesse do Estado nele próprio


O

– ou dialogam com a sociedade civil e potencializam as lutas políticas.


V

Diante dessas indagações, corrobora-se a produção de Gramsci


SI

(2014b), mediante as categorias guerra de movimento (guerra manobrada)


e guerra de posição, sendo a primeira a expressão da tomada do poder es-
U

tatal pela força militarizada do proletariado, e a segunda, a representação de


CL

construção da hegemonia política e civil, antes mesmo da ida ao governo.


São processos resultantes da construção de consensos por meio de dispu-
EX

tas políticas constantes para fazer avançar a perspectiva de estruturação


de uma nova ordem societária, e não uma tomada de assalto às estruturas
SO

institucionais que configuram o Estado. Tal mudança de perspectiva se


funda na ampliação do conceito de Estado em Gramsci, o qual passa a ser
U

compreendido como integrado por aparelhos privados de hegemonia, e


não apenas pelos aparelhos coercitivos. De outro lado, contraditoriamente,
RA

a guerra de posição não se dá sem esforços, ela exigirá também “enormes


sacrifícios de massas imensas da população [...] e uma forma de governo
PA

mais intervencionista, [...] controles de todo tipo, políticos, administrativos”


(GRAMSCI, 2014b, p. 259), os quais nem sempre são evidenciados ou
postos em questão pelos atores que defendem a produção de consensos
políticos. Tais medidas podem resultar num excesso de poder de Estado
e violência vista por esse como legítima, ante a busca pela manutenção de
hegemonia interna.
45

A atenção sobre as relações e forças políticas implica olhar para a


sociedade civil e para as relações dessa com instituições executivas do Es-
tado, assim o foco deixa de ser exclusivamente no poder estatal, restrito a

S
sinônimo de governo político. Em Coutinho (2000), há a seguinte referência

PE
a essas duas teses gramscianas:

A
Onde não existe uma sociedade civil pluralista e desenvolvida – a luta

/C
de classes se trava predominantemente em torno da conquista do Es-
tado-coerção, mediante um “assalto revolucionário” [...] o que ocorre

TA
nas sociedades que Gramsci chamou de “orientais”. Já nas sociedades
“ocidentais”, onde o Estado se ampliou, as lutas por transformações

LE
radicais travam-se no âmbito da sociedade civil, visando à conquista do
consenso da maioria da população, mas se orientam, desde o início, no

CO
sentido de influir e de obter espaços no seio dos próprios aparelhos do
Estado, já que esses são agora permeáveis à ação das forças em conflito.
No primeiro caso, a estratégia se orienta para a “guerra de movimento”,
O
para um choque frontal, “explosivo” e concentrado no tempo, tendo como
meta a conquista imediata do Estado; no segundo, o centro da luta está
D

na “guerra de posições”, na conquista paulatina de espaços no interior da


O

“sociedade civil” e, por meio e a partir dela, no próprio seio do Estado


(COUTINHO, 2000, p. 39).
V
SI

A dinâmica da guerra de posição, ainda que pressuponha a maturi-


U

dade política de uma “sociedade civil pluralista e desenvolvida”, nos termos


CL

da citação de Coutinho (2000), não impede a existência do que Gramsci


(2014b, p. 259) denominou “guerra de assédio, tensa e difícil em que se
EX

exigem qualidades excepcionais de paciência e espírito inventivo”.


Nesse sentido, entendemos que são necessárias as análises de como
operam os agentes estatais e em que medida eles colocam a tarefa da crítica
SO

e da constituição de estratégias políticas associadas ao seu cotidiano de


trabalho técnico, para que se possam identificar elementos objetivos que
U

corroborem saltos qualitativos na organização social e na construção da


RA

vontade coletiva. Ou seja, esta entendida como elemento da democracia,


não como ação voluntarista, parte dos processos de direção consciente
PA

de agentes políticos coletivos (como os partidos) e, também, de esforços


individuais concretos, como explicita o próprio Gramsci (2014a):

[...] quando o Estado era concebido como algo abstraído da coletividade


dos cidadãos, como um pai eterno que tinha pensado em tudo, provi-
denciado tudo etc.; daí decorre a ausência de uma democracia real, de
uma real vontade coletiva nacional e, portanto, em face dessa passividade
46

dos indivíduos, a necessidade de um despotismo mais ou menos aberto


da burocracia. A coletividade deve ser entendida como produto de uma
elaboração de vontade e pensamento coletivos, obtidos através do esforço
individual concreto, e não como resultado de um processo fatal estranho

S
aos indivíduos singulares: daí, portanto, a obrigação da disciplina interior,

PE
e não apenas daquela exterior e mecânica (GRAMSCI, 2014a, p. 230).

A
Assim apresentada a questão da vontade coletiva, verificamos que

/C
ela está diretamente relacionada à reforma intelectual e moral proposta por

TA
Gramsci (2014a) e à construção da hegemonia com vistas à formação de
um novo bloco histórico.

LE
Outra categoria que nos parece central para problematizar o caráter
axiológico do Estado, nos termos de Gramsci (2014b), é a revolução passiva

CO
e o fato de que ela não determina apenas as transições pelo alto, ou seja, é
mais do que um programa político: uma referência analítica.
O
As proposições de que a sociedade não se põe problemas para cuja solu-
D

ção ainda não existam as premissas materiais. É o problema da formação


O

de uma vontade coletiva que decorre imediatamente desta proposição, e


analisar criticamente o que significa a proposição implica indagar como
V

se formam as vontades coletivas permanentes e como tais vontades se


SI

propõem objetivos imediatos e mediatos concretos, isto é, uma linha de


U

ação coletiva. Trata-se de processos de desenvolvimento mais ou menos


longos, e raramente de explosões sintéticas inesperadas. Também as
CL

explosões sintéticas se verificam, mas, observando de perto, vê-se que


nestes casos se trata de destruir mais do que reconstruir, de remover obs-
EX

táculos exteriores e mecânicos ao desenvolvimento original e espontâneo


(GRAMSCI, 2014b, p. 291-292).
SO

Os processos de revolução passiva nos colocam, além da perspec-


tiva de organização de vontades coletivas, que impulsionem a produção
U

de uma nova ordem societária, o desafio, sem querer soar reducionista,


RA

de compreender o funcionamento do Estado visando democratizar as


estruturas estatais e, o quanto mais possível, tornar coletivas as decisões
PA

e os processos de implementação das políticas públicas como parte do


processo democrático de transição. Conforme avalia Coutinho (2000), as
experiências de Estados sociais democratas, ainda que tenham contemplado
certa agenda de direitos sociais reivindicados pelos trabalhadores, não fez
avançar a concepção mesma de funcionamento dos aparelhos de Estado,
mantendo-os sob a ilusão de neutralidade frente aos interesses de classes.
47

Além disso, circunscreveu as práticas democráticas ao sufrágio e, no que


concerne às políticas públicas, difundiu e consolidou experiências de re-
presentatividade institucionalizadas e dirigidas à ratificação e legitimação de

S
processos burocráticos e, com menor intensidade, à promoção de debates

PE
políticos que colocassem em causa a justiça social.

A
No plano político, o limite do reformismo social-democrata tem consis-

/C
tido em sua incapacidade de superar uma visão neutra e instrumental da
burocracia estatal. Na medida em que se atribui à burocracia estatal o papel

TA
de agente principal da execução das políticas de reforma, a ampliação dos
direitos sociais no capitalismo tem assumido fortes traços do que Gramsci

LE
chamou de revolução passiva. Portanto, o horizonte de superação do
capitalismo requer não só uma “mudança radical no aparelho de Estado

CO
pelas forças renovadoras [...] mas significa também uma desburocratização
do modo de fazer política, com a consequente transferência da execução
das reformas para os sujeitos coletivos interessados em sua realização”
O
(COUTINHO, 2000, p. 46-47).
D

A possibilidade de implementar políticas sociais públicas por vias


O

que não sejam decorrentes da clássica transição pelo alto, passa pelo movi-
V

mento de autocrítica do pessoal de Estado quanto às práticas formalistas,


SI

burocráticas e pretensamente neutras, para uma postura propositiva e criativa


de processos que levem em conta a participação direta dos sujeitos afetados
U

pela respectiva política pública. Esse é um desafio posto para mais de uma
CL

geração de pensadores de diferentes áreas do conhecimento, sem dúvida.


Neste capítulo, expressá-lo significa colocar o horizonte de “dever ser”, de
EX

teleologia para o qual a nossa análise particularizada do Estado instituição


e da agência possíveis do pessoal de Estado busca contribuir.
SO

Postas as considerações iniciais, apresentaremos a seguir a trajetória


de construção e aprimoramento do conceito de Estado na tradição mar-
U

xista, e o faremos sem uma retomada extensiva do contexto histórico em


que foi produzida, porém situaremos os momentos em que foi gestada.
RA

Também não pretendemos passar pelo universo de autores ou abarcar to-


dos os debates sobre a questão, mas apontar elementos que se apresentam
PA

relevantes para nosso debate.

Estado: forma social, interesse de classes e autonomia relativa


Cabe destacarmos que, em Marx, o tema Estado está vinculado à
noção de que a estrutura social e a consciência humana estão na relação
48

direta das condições materiais de uma sociedade. Dessa maneira, as formas


de Estado emergem das relações de produção, e não do desenvolvimento
geral da mente humana ou do conjunto das vontades humanas (vontade

S
geral), como pretendiam Hegel e Rousseau (COUTINHO, 2000), ainda

PE
que entre esses dois clássicos haja algumas diferenças, conforme aponta
Coutinho (1998), referindo-se a Hegel:

A
/C
[...] a vontade geral tem uma base objetiva, ou seja, sofre um processo de
determinações histórico-genéticas que transcende a ação dos indivíduos

TA
e seus projetos volitivos singulares. Enquanto componente essencial do
mundo ético, a vontade geral não resulta de um postulado moral, não é

LE
mero resultado da ação virtuosa dos indivíduos ouvindo a voz própria
da consciência, como pensava Jean-Jacques [Rosseau] (COUTINHO,
1998, p. 63).

CO
Quando Marx (1844), no Prefácio à Crítica da Economia Política
O
(MARX; ENGELS, s. d.), recupera a trajetória que o aproximou das inves-
D
tigações nesse campo, afirma que foi por meio da revisão crítica da filosofia
hegeliana do direito que resultaram suas conclusões de que
O
V

[...] tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem


SI

ser compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do


espírito humano, mas se baseiam, pelo contrário, nas condições materiais
U

de vida cujo conjunto Hegel resume [...] sob o nome de sociedade civil,
CL

e que a anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia


política (MARX; ENGELS, s. d., p. 301).
EX

Portanto, além do aspecto objetivo, que implica o mundo ético, na


constituição da vontade geral, cabe destacar que Hegel identifica a vida
SO

coletiva como fim do indivíduo, e o Estado como a manifestação objetiva


da vida pública. Entretanto, Marx apresenta argumentos que demonstram
U

que, concretamente, o Estado não opera sob as referências da vida pública,


como almejava Hegel, mas porta distintos interesses de classes.
RA

No Manifesto Comunista, redigido entre novembro de 1847 e feverei-


ro de 1848, há o reconhecimento da organização da sociedade em classes,
PA

antes mesmo do advento da moderna revolução industrial. Naquele texto,


Marx e Engels (2004) destacam que, no desenvolvimento da burguesia,
cada processo foi “acompanhado por um avanço político correspondente”
(MARX; ENGELS, 2004, p. 12), chegando a ser o “Estado representativo
moderno, autoridade política exclusiva” (MARX; ENGELS, 2004, p. 13).
Nessa passagem, já se destacam condicionantes de classe do Estado.
49

Ainda no Manifesto, da análise que Marx e Engels fazem do processo


histórico de organização política, conclui-se que a burguesia foi fundamen-
tal ao rompimento das relações feudais e responsável pela introdução dos

S
novos referenciais de organização social e política, no qual se evidenciam

PE
interesses econômicos privados. A ruptura burguesa com o feudalismo

A
[...] afogou os êxtases mais celestiais do fervor religioso, do entusiasmo

/C
cavalheiresco, do sentimentalismo filisteu, nas águas geladas do calculismo
egoísta. E no lugar das incontáveis liberdades reconhecidas e adquiridas,

TA
implantou a liberdade única e sem caráter do mercado (MARX; ENGELS,
2004, p. 13).

LE
A dinâmica de instituição do mundo burguês criou enormes cidades,

CO
aumentou em escala a população urbana, tornou nações de camponeses
dependentes de nações burguesas. Aglomerou populações, concentrou a
O
propriedade de terras e de meios de produção em poucas mãos. Como
D
consequência, promoveu a centralização política.
O

Províncias independentes, províncias com interesses, leis, governos e sis-


V

temas de impostos separados foram aglomeradas em um bloco, em uma


SI

nação com um governo, um código de leis, um interesse nacional de classe,


uma fronteira e uma tarifa alfandegária (MARX; ENGELS, 2004, p. 17).
U
CL

O destaque para a concepção de Estado apresentada por Marx e


Engels no Manifesto Comunista é seu caráter de classe, em que afirmam que
EX

“o poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para


gerir os negócios comuns de toda a burguesia. [...] O poder político é po-
SO

der organizado de uma classe para opressão de outra” (MARX; ENGELS,


2004, p. 23; 43). Ainda que porte interesses de classes, sob essa perspectiva,
U

retiram-se as contradições presentes nas lutas que se travam no âmbito do


RA

Estado, especialmente nos seus aparelhos legislativos.


Coutinho (1994) faz referência à noção de Estado no Manifesto,
PA

afirmando que Marx e Engels, “[...] ao falarem em poder organizado para a


opressão, indicam que a materialidade institucional do Estado se limita – ou
se expressa preponderantemente – nos aparelhos repressivos e burocrá-
tico-executivos” (COUTINHO, 1994, p. 20). Essa é uma visão restrita de
Estado, segundo Coutinho (1994), se a analisarmos à luz da teoria gramscia-
na, que concebe o Estado em seu caráter ampliado, como veremos adiante.
50

Mantém-se válida a expressão marxiana, no Manifesto, no que se


refere à confrontação direta da tese de que o Estado não representa o
interesse geral. Ao que ele se presta, naquele contexto, é, no limite, ser um

S
mediador entre os interesses das classes fundamentais, ou seja, do capital

PE
e do trabalho, as quais possuem, estruturalmente, interesses antagônicos.
Entretanto, em análises das atuais configurações do Estado, há que se ter

A
presente que em sua estrutura institucional não se manifestam apenas os

/C
interesses das duas classes fundamentais, mas há toda uma série de outros

TA
coletivos organizados da sociedade que disputam espaços no Estado, por
exemplo, distintos setores do capital que apresentam interesses particula-

LE
rizados e por vezes conflitantes no interior de uma mesma classe funda-
mental, coletivos religiosos em que as pautas centrais estão colocadas no

CO
âmbito do conservadorismo moral, interesses corporativos de segmentos
militares, dentre uma série de outros coletivos com interesses particulares
O
que, por vezes, obscurecem os vínculos de classe, inclusive via processos
D
de regulação, conforme afirma Hirsch (2010).
Borón (2002) explicita que, para Marx, o Estado “é a expressão
O

mediatizada da dominação política nas sociedades classistas. [...] e, con-


V

sequentemente, não é neutro diante das lutas e dos antagonismos sociais


SI

produzidos por suas desigualdades e iniquidades” (BORÓN, 2002, p. 249).


U

O autor apresenta críticas ao “vulgar economicismo que veio substituir toda


CL

a riqueza analítica do marxismo” ao transformar o Estado num espelho


“imediato e mecânico do predomínio monolítico da classe dominante”,
EX

deixando de observar e analisar sua “especificidade, sua eficácia prática


e seu grau variável de autonomia – sempre relativa, claro – em relação à
sociedade civil” (BORÓN, 2002, p. 250).
SO

A análise do Estado como representação direta e imediata dos inte-


resses da burguesia gestou, como estratégia da revolução socialista, a tomada
U

do “poder do Estado” pela via militarizada, com revoluções armadas, como


RA

único modo de subverter a dominação de classe. Essa concepção de Estado,


na qual a composição se dá via revolução explosiva e que se materializa
PA

em estruturas militares de caráter coercitivo e repressivo, concebidas em


meados do século XIX por Marx e Engels, continuou a orientar as análises
de Lênin, mesmo após a Revolução Russa de 1917.
Segundo Coutinho (1994), Lênin não contemplou a possibilidade
de acrescentar “novas determinações ao conceito histórico materialista
de Estado” (COUTINHO, 1994, p. 31), ainda que a realidade da Europa
51

ocidental e central já apresentasse um novo tipo de Estado de caracterís-


tica contratual em que “os aparelhos de legitimação e busca do consenso
desempenhavam um papel importante” (COUTINHO, 1994, p. 31).

S
Ainda, para Lênin, “a tomada do poder de Estado pelo proleta-

PE
riado implica a destruição completa da velha máquina estatal”, enquanto,
para Engels, “determinadas formas e instituições do velho aparelho de

A
Estado são respostas transfiguradas na nova configuração estatal” (COU-

/C
TINHO, 1994, p. 33). Para Marx e Engels, o que deve ser “quebrado da

TA
velha máquina estatal” – referindo-se à Comuna de Paris – “restringe-se
aos aparelhos burocráticos e militares do Estado” (COUTINHO, 1994, p.

LE
34) ultracentralizados.
Dessas considerações, é possível depreender a crítica de Borón (2002)

CO
às simplificações das análises do Estado, feitas em nome do marxismo, pois,
conforme também observa Coutinho (1994), a afirmação de Marx e Engels
O
no início do Manifesto Comunista, de que “a época da burguesia simplificou
D
os antagonismos de classe e dividiu a sociedade em dois campos opostos,
burguesia e proletariado” (COUTINHO, 1994, p. 16), é redimensionada em
O

O 18 Brumário de Luís Bonaparte, no qual Marx identifica um “número bem


V

mais amplo de classes e frações de classe” e identifica “conexões recíprocas


SI

entre o econômico e o político”, o que supera a tese da superestrutura como


U

reflexo/espelho da estrutura, feita por críticos do marxismo.


CL

Coutinho (1994) comenta que na obra madura de Marx e Engels,


produzida no final do século XIX, já se depreendem transformações do
EX

Estado inglês e norte-americano no sentido da ampliação dos seus apare-


lhos estatais e, mais do que isso, das modificações em termos estruturais
em relação às classes fundamentais. Também é possível identificar o não
SO

determinismo em termos classistas, quando Marx situa as classes num pro-


cesso de contínua mudança, no próprio O 18 Brumário de Luís Bonaparte, ao
U

comparar a situação de classes da França com os Estados Unidos.


RA

[...] a república significava em geral apenas a forma política da revolução


PA

da sociedade burguesa e não sua forma conservadora de vida, como por


exemplo nos Estados Unidos da América, onde já existem classes, estas
ainda não se fixaram, mudando ou cedendo continuamente os elementos
que as constituem em um fluxo contínuo (MARX, 2003, p. 27).

Na França, em meados do século XIX, o que ainda se verifica não


é a constituição de duas classes fundamentais, pois frações de classe são
52

evidenciadas no âmbito mesmo do capital, determinadas pelas condições


sociais de vida (condições materiais de existência). Não apenas pelas dife-
renças entre o capital e a propriedade fundiária, mas rivalidades estabelecidas

S
por “inimizades pessoais, temores e esperanças, preconceitos e ilusões,

PE
simpatias e antipatias, convicções, questões de fé e de princípio” (MARX,
2003, p. 53) mantinham frações distintas de classes no interior mesmo das

A
classes fundamentais. Isso demonstra que as alianças políticas são sempre

/C
muito mais complexas do que a atribuição determinista do interesse de uma

TA
das classes no aparelho estatal.
Ademais, fez-se presente na cena política francesa do século XIX

LE
a pequena burguesia, representante dos comerciantes (lojistas), na defesa
da constituição de instituições democrático-republicanas que assegurassem

CO
a minimização dos antagonismos capital-trabalho e na defesa dos direitos
dos homens, contribuindo significativamente para a conformação institu-
cional que se convencionou chamar Estado de Direito, como estrutura da
O
democracia burguesa. “A centralização estatal, de que necessita a sociedade
D

moderna, só emerge das ruínas da máquina governamental burocrático-mi-


O

litar forjada em oposição ao feudalismo” (MARX, 2003, p. 144).


V

Ao enfraquecer a máquina burocrático-militar, amplia-se o poder


SI

da burocracia civil no interior do Estado e desse na defesa de seus próprios


interesses. Conforme demarca o próprio Marx (2003, p. 145), “Bonaparte,
U

como autoridade executiva que se tornou um poder independente, considera


CL

sua missão salvaguardar a ‘ordem burguesa’ [e] diante da burguesia [...] se


julga ao mesmo tempo representante dos camponeses e do povo em geral”.
EX

Nesses termos, uma série de contradições são reforçadas a partir do seu


governo, gerando contornos particulares ao Estado emergente, ao ponto
SO

de serem visíveis suas maiores fragilidades, conforme expressa Marx (2003):


U

[...] os negócios da classe média deverão prosperar em estilo de estufa sob


o governo forte. São feitos um sem-número de concessões ferroviárias. [...]
RA

Os antecipadamente iniciados fazem tripotage na Bolsa com as concessões


ferroviárias. Mas não se apresenta nenhum capital para as ferrovias. [...]
PA

Exime-se o Banco da obrigação de publicar os seus relatórios semanais.


Acordo leonino do Banco com o governo. É necessário dar trabalho ao
povo. Obras públicas têm início. Mas as obras públicas aumentam os
encargos fiscais do povo no que diz respeito a impostos. Reduzem-se,
portanto, as taxas mediante um ataque sobre os rentiers [...]. Mas a classe
média tem mais uma vez que receber um douceurs. As associações operá-
rias existentes são dissolvidas [...]. Os camponeses têm que ser ajudados.
53

Bancos hipotecários que aceleram o seu endividamento e a concentração


da propriedade. [...] Nenhum capitalista quer aceitar essa condição. [...]
Bonaparte gostaria de aparecer como o benfeitor patriarcal de todas as
classes. Mas nada pode dar a uma classe sem tirar da outra. [...] E todas

S
as instituições do Estado, o Senado, o Conselho de Estado, o legislativo

PE
[...] os banheiros públicos, os serviços de utilidade pública, as estradas
de ferro, o état major da Guarda Nacional [...] – tudo se torna parte da

A
instituição do suborno. Todo posto do exército ou da máquina do Estado

/C
converte-se em meio de suborno (MARX, 2003, p. 146-147).

TA
Esses breves destaques a partir de O 18 Brumário de Luís Bonaparte,

LE
permitem ver que Marx (2003) explicita seu descrédito, na República que
se instituía na França, da via democrático-burguesa ser o instrumento de

CO
supressão dos antagonismos capital e trabalho assalariado. O que nos per-
mite reforçar, por um lado, sob a tradição marxista, a não autonomia do
Estado em termos de transformação das estruturas sociais, mas, de outro,
O
permite demarcar a existência no interior do Estado de uma multiplicidade
D

de interesses (inclusive na preservação de sua própria estrutura), para além


O

daqueles diretamente associados às classes fundamentais, bem como os


V

interesses privados dos agentes estatais.


SI

Ou seja, já em Marx, é possível perceber a autonomia relativa do


Estado em termos dos interesses das classes fundamentais. A percepção
U

do Estado não é apenas em termos de estrutura de dominação, mas a


CL

agência de pessoal civil, militar e político, a partir dos próprios interesses.


EX

A adjetivação dura, realista, que Marx faz do pessoal integrante do quadro


do Estado, precisa ser situada num período histórico que antecede o de-
bate sobre a necessária organização burocrática do Estado, sob a qual há
SO

a defesa da impessoalidade, da seleção meritocrática, que leva em conta a


autoridade técnica e a perícia, nos termos da teoria weberiana da burocracia.
U

Ainda assim, é uma crítica que nos lembra os correntes discursos antiesta-
RA

do (BORÓN, 2002), os quais, sob generalizações, desqualificam o público


estatal em defesa de serviços privados e reforçam a ilusão de independência
PA

e autonomia dessa forma política em relação à forma social.


De outro lado, a onda de defesa incondicional do Estado, como o
grande provedor, responsável por suprir lacunas e mazelas decorrentes das
desigualdades estruturais, pela via do direito e das políticas públicas, ratifica
e fortalece a concepção idealista de instituição responsável por preservar o
bem comum, ou de se traduzir como representante da vontade geral. Em
54

certa medida, esses elementos mantêm o Estado sendo referido como um


ente abstrato e homogêneo.
Em outra abordagem, no mesmo quadro da tradição marxista, os

S
estudos de Hirsch (2010) e Mascaro (2013) apresentam o Estado moderno

PE
como forma política gestada na forma social capitalista e que, portanto,
reproduz em sua estrutura institucional relações de interesses e valores con-

A
flitivos, tais quais os que se apresentam no âmbito estrutural da sociedade.

/C
No conceito de forma social trabalhado por Hirsch (2010), as cate-

TA
gorias da economia política marxiana estão presentes como a mercadoria,
a força de trabalho, a reprodução da força produtiva, a mais-valia, o lucro

LE
do capital, o dinheiro, os processos de reificação e coisificação. O autor
ainda faz referência à forma política como uma das duas formas sociais

CO
que dão sustentação ao sistema capitalista, conforme destacamos a seguir.

Apenas como economia de mercado, o capitalismo não é capaz de asse-


O
gurar sua existência. [...] política e economia não estabelecem uma relação
D
funcional autorregulada. [...] a separação entre “Estado” e “sociedade”
não pode ser absoluta, mas se apoia em relações recíprocas sob a marca
O

das intervenções estatais e das influências sociais sobre o Estado. [...]


V

As duas formas sociais fundamentais que objetivam a ligação social no


SI

capitalismo são a forma valor, expressa no dinheiro, e a forma política,


manifesta na existência de um Estado separado da sociedade (HIRSCH,
U

2010, p. 30-35).
CL

O Estado não é um centro dirigente representante da classe capi-


EX

talista capaz de controlar o conjunto das relações sociais. Segundo Hirsch


(2010), uma série de organizações, instituições e grupos operam de modo
relativamente independente, estabelecendo disputas entre si, ainda que vin-
SO

culados a “coerções estruturais não estão relacionados a interesses comuns


U

e a estratégias políticas formuláveis diretamente” (HIRSCH, 2010, p. 47).


E é precisamente essa dinâmica que possibilita à sociedade capitalista
RA

apresentar alta capacidade de adaptação e/ou criação de ajustes para sair de


crises, em relação a outras formações históricas precedentes, nas quais as
PA

forças dominantes, econômica e política, fundiam-se e convertiam-se em


forças explícitas e dotadas de poder militar e repressivo. No estado moderno,
as relações de forças são muito menos explícitas; o poder coercitivo-repres-
sivo é atribuído ao Estado, restando veladas as forças coercitivo-repressivas
privadas, as quais por vezes são subsidiárias ou controladoras de grupos no
próprio espaço estatal. Por outro lado, o que se apresenta ideologicamente
55

é um Estado independente, autônomo e responsável pelas instabilidades e


mazelas sociais, minimizando confrontos diretos à forma social capitalista
como a responsável pelas crises.

S
Para Hirsch (2010, p. 49), a forma social é definida como a “relação

PE
de articulação entre estrutura social – o modo de socialização –, instituições
e ações” e não somente pela organização das relações sociais produtivas.

A
Portanto, ainda que consideremos o peso que a estrutura produtiva tem

/C
sobre determinada formação social, há que se considerar, do autor, a afir-

TA
mação a seguir:

A ação que forma e reproduz a instituição (rotinas consolidadas), não

LE
pode nem ser determinada simplesmente pela estrutura, nem está isenta de
conflitos, mas é definida por estratégias de atores em disputa, os processos

CO
existentes de institucionalização e as suas configurações podem entrar
inteiramente em oposição com as formas sociais capitalistas determinadas
(HIRSCH, 2010, p. 49-50).
O
D

No âmbito do debate sobre forma social, Hirsch (2010) a relaciona


O

à questão da instituição e da ação afirmando que a ação do indivíduo é


V

condicionada pela estrutura e pelas instituições sociais, porém a ele se re-


serva sempre um grau de liberdade de ação. Ainda nesse debate, é essencial
SI

que demarquemos a distinção que o autor faz entre instituições e formas


U

sociais, afirmando não serem idênticas. Hirsch (2010) é enfático ao abordar


CL

a relação entre forma social e instituição, ressaltando que não podem ser
tomadas “nem como relação entre ‘essência e aparência’, nem de maneira
EX

funcionalista, em que a forma social necessariamente implicaria processos


institucionais definidos” (HIRSCH, 2010, p. 49).
SO

Ainda segundo o autor, enquanto a instituição é “expressão conden-


sada de rotinas consolidadas”, as formas sociais “enquanto manifestação
U

de contradições sociais fundamentam os processos de institucionalização,


os apoiam e os delimitam, mas não os determinam de forma unívoca”
RA

(HIRSCH, 2010, p. 49). Assim, a forma política representada pelo Estado é a


PA

[...] expressão formal determinada de relações contraditórias de socia-


lização [e] não pode ser explicado apenas por determinadas funções
[tais como] a administração dos bens públicos, [...] a construção de uma
infraestrutura material, pois o processo de valorização e mercantil capi-
talistas necessitam de uma instância que lhe seja exterior, apta a garantir
as condições gerais de produção que o próprio capital não pode criar
(HIRSCH, 2010, p. 53-54).
56

Desse modo, é pertinente às classes economicamente dominantes


que não se apresentem ou confundam com a classe que se encontra no
governo, ou seja, no exercício do poder político. Essa aparente separação

S
entre o Estado e as classes sociais, a relativa autonomia imputada à forma

PE
política, implica, segundo Hirsch (2010, p. 55), “um modo específico de
institucionalização das relações de classe”, ou seja, a conformação de repre-

A
sentação indireta das classes economicamente dominantes. Tal dinâmica,

/C
ao manter difusos ou mesmo obscuros os interesses dominantes, facilita

TA
o processo de formação da política do capital, dificultando a formação de
grupos opositores e fazendo aprovar seus interesses. A política do capital

LE
também é reforçada à medida do interesse do Estado em si mesmo, ou
seja, dos grupos dirigentes na perpetuação de sua estada no poder, faz

CO
com que criem, apoiem, aprovem e/ou ratifiquem políticas que assegurem
a manutenção da produção e reprodução capitalista. Esse processo, porém,
O
também incorre em contradições, pois há que se considerar a presença de
D
correlação de forças estabelecidas pelas lutas e reivindicações da classe
trabalhadora (assalariada) ou de frações de classe com força social, popular.
O

Por essa razão, a aparelhagem estatal não é homogênea.


V

No Estado instituição, estão presentes todas as classes sociais, de


SI

modo distinto e com alianças e relações mais próximas a determinadas


U

estruturas, de acordo com os interesses a serem defendidos, por exemplo:


CL

Ministério da Economia (sistema bancário), Ministério do Trabalho (Federa-


ções de empresas, Sistema “S”, Sindicatos), Ministério do Desenvolvimento
EX

Social (Associações de Bairros, movimentos sociais coletivos de interesses


específicos etc.). Tais correlações de forças podem gerar fraturas na es-
trutura do Estado, as quais devem ser prevenidas ou resolvidas mediante
SO

a constituição de “processo hegemônico de direção política” (HIRSCH,


U

2010, p. 58). Entretanto, mesmo lançando mão de consensos políticos para


a construção de sua hegemonia e respaldá-la na forma jurídica (o que limita
RA

a força coercitiva estatal), o Estado não prescinde da violência.


PA

Os antagonismos sociais e as relações de classe que se expressam na con-


figuração institucional do “sistema político” são marcadas [pelas] determi-
nações formais. Do mesmo modo, a oposição entre as classes manifesta-se
sempre – ainda que de forma modificada, encoberta e “fetichizada” – sob
a forma de conflitos institucionais internos e para-institucionais, bem
como de disputas envolvendo partes isoladas da aparelhagem política
(HIRSCH, 2010, p. 60).
57

Os antagonismos no interior do Estado, expressos nas relações


entre burocracia e clientela, estruturas corporativas, associações de interes-
ses divergentes e partidos, são descaracterizados na sua relação de classe

S
e traduzidos pela forma política em uma oposição entre o “povo” e o

PE
“Estado” (HIRSCH, 2010). Tais antagonismos não resultam somente das
relações econômicas de exploração e de classe, elementos que estão na base

A
da formação dos modernos Estados nacionais, mas também de “dimensões

/C
amplas e profundas do modo de socialização capitalista” (HIRSCH, 2010, p.
79) que se encontram presentes na forma social. São exemplos a presença

TA
de ideologias racistas e de gênero, que, sob uma identidade nacional, insti-
tuem e fortalecem a noção de povo unitário, com traços culturais, étnicos

LE
ou biológicos comuns. A identidade nacional também ofusca e obscurece

CO
relações de classe e neutraliza as lutas políticas. E mais, sob as designações
abstratas de cidadãos (eleitores) e sujeitos de direitos na relação com o Es-
tado, priorizamos direitos civis individuais que se traduzem na configuração
O
jurídico-formal da pessoa física, promovendo, em termos simbólicos, a “dis-
D
solução dos laços de parentesco, vizinhança e locais, destruindo ambientes
sociais e culturais existentes” (HIRSCH, 2010, p. 80), ou seja, alienando-o
O

de seu pertencimento social e cultural e produzindo estranhamento em


V

relação ao vínculo de classe. Essa individualização das pessoas, estimulada


SI

pela forma política capitalista e seus dispositivos jurídicos, representa na


U

relação com o mercado, nos termos de Hirsch (2010, p. 80), “aglomerados


CL

de competitivos proprietários de mercadorias e bens”, o que representa um


processo de subjetivação a partir de elementos fundantes da forma social
EX

capitalista, especialmente a propriedade e a mercadoria.


O caráter ideológico que o próprio Estado reproduz, ao se autode-
finir como garantidor do bem comum e autônomo em relação à economia,
SO

fortalece o senso comum sobre a questão. Como esclarece Harvey (2006),


U

O Estado pode ser representado como idealização abstrata do interesse


RA

comum, o próprio Estado pode se tornar encarnação abstrata do princípio


moral (nacionalismo, patriotismo, fascismo). As conexões entre a forma-
ção da ideologia dominante, a definição do interesse comum ilusório na
PA

forma do Estado, e os interesses específicos reais das classes dirigentes


são tão sutis como complexos. No entanto, até recentemente, e com a
notável exceção dos profundos insights de Gramsci, os relacionamentos
reais permaneceram tão opacos para a análise, como são na vida cotidiana.
Somos capazes de revelar a base desses relacionamentos mais facilmente,
porém, ao analisar o relacionamento entre Estado e o funcionamento do
modo de produção capitalista (HARVEY, 2006, p. 80).
58

Na estreita relação com o modo capitalista de produção e em seu


necessário apoio, o Estado desempenha, conforme salientamos nas teses de
Hirsch (2010) apresentadas anteriormente e segundo Harvey (2006), certas

S
tarefas básicas, tais como a de assegurar a constituição de personalidades

PE
jurídica e física, aparentemente livres e capazes de efetuar entre si relações
de trocas centrais para aquele modo de produção, garantir o direito de

A
propriedade, impor regulações em favor e/ou sobre o interesse privado e

/C
público, bem como reconhecer as regulações processadas fora do âmbito

TA
estatal propriamente dito.
A necessidade de a forma política do capitalismo aparecer como um

LE
modo impessoal de poder público, constituindo-se como uma estrutura par-
ticular, uma instituição que abarca uma série de recursos, “a administração,

CO
o orçamento, o poder executivo” (CODATO; PERISSINOTTO, 2011, p.
50) e que apresenta um interesse em “si mesmo, ou seja, a necessidade de
O
conservação de poder e de reprodução do pessoal dirigente” (HIRSCH,
D
2010, p. 55-56), é a dimensão da análise que se centra no poder governa-
mental, mas não o faz de modo independente das relações de classe, do
O

poder estatal.
V

Mascaro (2013) corrobora a noção de que o primado econômico e


SI

o político compõem uma “totalidade estruturada”, ou seja, “constitui uma


U

unidade na multiplicidade” (MASCARO, 2013, p. 27).


CL

Ainda compartilhando a perspectiva marxista que concebe e pro-


blematiza o Estado “[...] na riqueza e multiplicidade de suas determina-
EX

ções, [e que ] nenhuma das quais pode, por si só dar conta do fenômeno
em sua plenitude” (BORÓN, 2002, p. 255), é possível reconhecermos o
caráter produtor e contraditório desse Estado que, não apenas inserido,
SO

mas coproduzido pela ordem econômica capitalista e materializado como


sua forma política (HIRSCH, 2010), apresenta elementos que tensionam a
U

configuração e o conteúdo das políticas públicas. Essas, determinadas pelas


RA

lutas e disputas de interesses de diversos atores sociais, desde os agentes


corporativos do mercado, os representantes político-partidários, até os
PA

atores da sociedade civil, com suas respectivas agendas de proposição de


políticas aos seus agentes implementadores, bem como os interesses do
próprio pessoal do Estado – burocratas e parlamentares.
Nesse sentido, Hirsch (2010) explicita que, apesar de o Estado mo-
derno se apresentar como uma “organização impessoal de poder público”
desvinculada da classe dominante, há uma vinculação direta da forma política
59

às sociais, ou propriamente a “socialização capitalista” na gênese do Estado.


Ou seja, “A particularidade do modo de socialização capitalista reside na
separação [simbólica] e na simultânea ligação entre ‘Estado’ e ‘sociedade’,

S
‘política’ e ‘economia’” (HIRSCH, 2010, p. 31).

PE
Segundo Poulantzas (2000), o vínculo economia e política aparece
no caráter relacional do Estado, ou, ainda, de modo mais explícito: “as

A
relações de produção e as ligações que as compõem traduzem-se sob a

/C
forma de poderes de classe que são organicamente articulados às relações

TA
políticas e ideológicas que os consagram e legitimam”, e as relações polí-
ticas e ideológicas “estão presentes de maneira específica a cada modo de

LE
produção, na formação das relações de produção” (POULANTZAS, 2000,
p. 25) e reprodução.

CO
Corroboram essa perspectiva Codato e Perissinotto (2011), ao de-
fenderem que “[...] a tese materialista do Estado consiste em afirmar, como
sintetizou Marx no ‘Prefácio’, de 1859, a existência de uma correspondência
O
entre a estrutura jurídico-política e a ‘anatomia da sociedade burguesa’, isto
D

é, as relações de produção capitalistas” (CODATO; PERISSINOTTO,


O

2011, p. 57).
V

Desse modo, a relação da economia com o Estado não pode ser


SI

concebida como espaços ou níveis independentes, autônomos, mas, con-


forme destaca Poulantzas (2000, p. 17), “[...] a consequência disto é o que
U

Marx chama de ‘imbricação’ estreita ou ‘mixagem’ do Estado e da econo-


CL

mia”, ou seja, a estrutura de produção não opera de modo autossuficiente,


circunscrita a leis imutáveis – antes, opera também em nítida relação com
EX

o Estado. Para maior clarividência, segue as palavras do próprio autor:


SO

Vê-se o aparecimento dos ‘trabalhadores livres’, possuindo apenas sua


força de trabalho e não podendo introduzir-se no processo de trabalho
U

sem comprometimentos do proprietário, comprometimento representado


juridicamente pelo contrato de compra e venda da força de trabalho. É
RA

esta estrutura precisa das relações de produção capitalista que transforma


a força de trabalho em mercadoria e o excesso de trabalho em mais-valia
PA

e que dá lugar igualmente nas relações do Estado e da economia a uma


separação relativa, base da ossatura institucional própria ao Estado capi-
talista, pois traça novos espaços e campos relativos respectivamente ao
Estado e à economia (POULANTZAS, 2000, p. 17).

A partir de tal perspectiva, fundamenta-se a tese da autonomia


relativa do Estado em Poulantzas (2000), a qual nos parece ser o elemento
60

que corrobora a produção da teoria materialista do Estado e possibilita


avanços nas leituras mais recentes dessa relação.
Para Hirsch (2010), pautar a análise do Estado a partir da forma de

S
socialização capitalista não é desconsiderar a relação entre trabalho assala-

PE
riado e capital, mas há que se considerar uma

A
inteira série de outros antagonismos sociais, de relações de domínio, de

/C
exploração e de subordinação: sexuais, religiosas, culturais, regionais [...]
que não resultam meramente das relações capitalistas de classe, e não

TA
desapareceriam de modo algum com elas (HIRSCH, 2010, p. 39).

LE
Desse modo, há que se ponderar o Estado na complexidade e
diversidade de seus aparelhos ou estruturas institucionais, as relações de

CO
classes e de grupos que se estabelecem, suas capacidades de “adaptação em
relação às modificações das relações sociais”, as contradições manifestas em
O
disputas e concorrências internas. Com isso, o Estado não é uma unidade
D
organizativa fechada que opera exclusivamente sob o “interesse próprio de
seus funcionários burocráticos e políticos” (HIRSCH, 2010, p. 32), ainda
O

que esses se encontrem presentes nas ações do Estado.


V

Em síntese, na relação entre economia e política, e a partir da


SI

concepção do Estado como um complexo de relações sociais, é adequado


U

falarmos da utilização de classe do Estado e não de uma natureza de classe,


CL

ainda que reconheçamos os condicionantes de classe na formação/gênese


do Estado moderno, por exemplo. Ao considerá-lo como a forma política
EX

da sociedade capitalista, porta as contradições que estruturam esse modo


de organização social, sendo o tempo todo operado na produção de dis-
positivos jurídico-normativos a serviço de uma das classes fundamentais
SO

ou de frações de classe.
U

Não se pode compreender o Estado como um espaço exterior à


economia, porém, para evitar determinismos, não podemos compreendê-
RA

-lo meramente como reflexo das relações de produção. Pensá-lo com uma
natureza de classe, preliminarmente, é retirar o caráter contraditório de suas
PA

agências e da correlação de forças de aparelhos privados de hegemonia,


nem sempre funcionais ao domínio econômico.
Caso o Estado, como objeto de análise, não seja tomado em sua
dinâmica e funcionamento, na confrontação da agência de seu pessoal,
suprimiremos a possibilidade de compreendê-lo na sua dialética, estrutura
e ação. Desse modo, se tornarão opacas as múltiplas relações e alianças de
61

interesses que seus agentes, por meio das instituições e dispositivos de que
dispõem, estabelecem com classes, segmentos de classe e grupos organi-
zados da sociedade civil no cotidiano das políticas públicas.

S
As reflexões teóricas apresentadas neste capítulo reforçam a ne-

PE
gação do Estado como representante do bem comum, põem em questão

A
a tese de que ele represente de modo exclusivo a classe economicamente

/C
dominante, reconhecem sua conformação moderna como a forma política
derivada da forma social capitalista, porém, dialeticamente, concebem-no

TA
como um espaço cuja estrutura institucional porta uma autonomia relativa.
E, assim entendido, o Estado, por ser um campo estratégico, é o lócus de

LE
excelência das lutas políticas.

CO
Segundo Poulantzas (2000), o Estado não se choca com limites
demarcados por um exterior autônomo, portanto, não representa “uma
entidade onipotente, [...] comporta, inscritos desde então em sua materiali-
O
dade, os limites, internos a seu campo, impostos pelas lutas dos dominados”
D

(POULANTZAS, 2000, p. 154). Codato e Perissinotto (2011) contribuem,


O

em sua obra Marxismo como Ciência Social, para aprimorar essa visão, quando,
V

ao construir a análise do Estado a partir de textos de Marx, afirmam ser


SI

possível depreender, deles, elementos para além da compreensão do Estado


U

nas suas funções reprodutivas. E, em análise conjuntural desses estudos,


CL

lendo as “lutas políticas entre indivíduos, grupos, facções e frações de clas-


se, é possível perceber o Estado como uma instituição dotada de recursos
EX

organizacionais próprios, recursos esses que lhe conferem capacidade de


iniciativa e capacidade de decisão” (CODATO; PERISSINOTTO, 2011,
SO

p. 44), ou seja, atribuindo a ele relativa autonomia.


Os autores reconhecem ainda que o “Estado não se esgota no
U

poder de Estado”; possui uma “ossatura material própria que não pode
RA

de maneira alguma ser reduzida simplesmente à dominação política” (CO-


DATO; PERISSINOTTO, 2011, p. 36). Além disso, indicam três noções
PA

complementares, mas distintas:

(i) a ideia de autonomia do político (i. e., do nível jurídico-político) em


relação ao nível econômico; (ii) a ideia de autonomia da política (i. e., da
prática política) em relação à prática econômica; (iii) a ideia de autono-
mia do Estado (i. e., do aparelho do Estado) em relação à sociedade civil
(CODATO; PERISSINOTTO, 2011, p. 12).
62

Isso não significa fazer apologia à plena autonomia do Estado, mas


constatar que é relevante pôr em debate as múltiplas interpretações da au-
tonomia política presente nas obras da tradição teórica marxista.

S
Apresentado o debate que perpassa a autonomia relativa do Estado,

PE
com a explicitação dos interesses de classes nele presente e que o define
como a forma política derivada da forma social capitalista, é relevante con-

A
siderarmos o aspecto relacional do Estado e de seus agentes na produção

/C
de análises de alguns Estados ocidentais contemporâneos, nos quais os

TA
traços do neoliberalismo econômico (sob referenciais da democracia jurí-
dico-política burguesa) não asseguram isoladamente a direção política dos

LE
países, mas se articulam a elementos de conservadorismo moral, disciplina,
repressão social, manipulação midiática e cibernética, para a garantia de

CO
governabilidade. O
D

Referências
O

BORÓN, A. A. Estado, capitalismo e democracia na América Latina.


V

2. ed. Tradução de Emir Sader. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.


SI
U

CODATO, A.; PERISSINOTTO, R. Marxismo como ciência social.


CL

Curitiba: UFPR, 2011.

COUTINHO, C. N. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros


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ensaios. São Paulo: Cortez, 1994.


SO

COUTINHO, C. N. A dimensão objetiva da vontade geral em Hegel. Lua


Nova, São Paulo, n. 3, p. 59-75, 1998.
U

COUTINHO, C. N. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e so-


RA

cialismo. São Paulo: Cortez, 2000.


PA

COUTINHO, C. N. De Rousseau a Gramsci. São Paulo: Boitempo, 2011.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. v. 2. (Os intelectuais. O princípio


Educativo. Jornalismo). Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho;
coedição de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 7. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014a.
63

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. v. 3. (Maquiavel - Notas sobre o


Estado e a política). Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho; coedição
de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 6. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014b.

S
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HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. 2. ed. Tradução de
Carlos Slak. São Paulo: Annablume, 2006.

A
/C
HIRSCH, J. Teoria materialista do Estado: processos de transformação
do sistema capitalista de Estados. Tradução de Luciano Cavini Martorano.

TA
Rio de Janeiro: Revan, 2010.

LE
MARX, K. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. Tradução de Silvio
Donizete Chagas. 3. ed. São Paulo: Centauro, 2003.

CO
MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto comunista. 19. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2004.
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D
MARX, K.; ENGELS, F. Obras escolhidas. v. 1. São Paulo: Alfa Omega, s. d.
O

MASCARO, A. L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.


V

POULANTZAS, N. O Estado, o poder, o socialismo. 4. ed. São Paulo:


SI

Paz e Terra, 2000.


U

TUMELERO, S. M. Estado, produção do espaço e intersetorialidade:


CL

crítica e criação na implementação de políticas públicas. 2015. 395 f. Tese


(Doutorado em Serviço Social) – Universidade Federal de Santa Catarina,
EX

Florianópolis, 2015.
SO
U
RA
PA
PA
64
RA
U
SO
EX
CL
U
SI
V
O
D
O
CO
LE
TA
/C
A
PE
S
65

3.
Reflexões sobre a ação política dos agentes implementadores

S
PE
de políticas públicas: “o pessoal do Estado”8

A
Silvana Marta Tumelero

/C
Vera Maria Ribeiro Nogueira

TA
Na tradição marxista, ao menos no percurso analítico que realiza-

LE
mos para a construção deste capítulo, o trato teórico conceitual aos agentes
estatais é difuso e polissêmico. Essa constatação nos provocou a apresentar

CO
reflexões baseadas em autores da tradição marxista que nos permitem carac-
terizar os agentes implementadores de políticas públicas, situados no quadro
mais amplo do pessoal do Estado. Temos consciência de que a opção por
O
construir um entendimento do que caracteriza esses sujeitos porta dúvidas
D

e incompletudes típicas de um fenômeno em caráter exploratório, porém


O

desafiador no sentido de ir além do que a categoria burocracia weberiana


V

nos possibilita ao analisar tal quadro.


SI

Concordamos que se mantém pertinente o referencial conceitual


da burocracia weberiana na análise de vários aspectos do funcionamento
U

do Estado, porém, a partir dela, enfatizam-se a técnica, a perícia e a im-


CL

pessoalidade como elementos referenciais do pessoal do Estado, os quais,


entendemos, devem ser problematizados sob a matriz marxista que procura
EX

ressaltar os vínculos estruturais, classistas e a dimensão política presentes


na agência desse pessoal, sem desconsiderar a perícia e a técnica como
SO

elementos relevantes que integram o trabalho desses agentes, porém que


não se opõe diametralmente à agência política.
U

Considerando nossa aproximação à teoria materialista do Esta-


RA

do, cabe lembrar que ela nos permite romper com a lógica de ver como
atribuição do Estado o bem comum, o qual se traduziria na forma de
PA

um aparelho impessoal de poder público e explicitaria distintos interes-


ses presentes no espaço estatal. Quando entendido como um aparelho
impessoal, o Estado se descola de sua relação com a forma social, não
8
Capítulo elaborado a partir de texto integrante da Tese de Doutorado de Silvana Marta
Tumelero, sob orientação da profa. Dra. Vera Maria Ribeiro Nogueira, defendida no Pro-
grama de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Ver Tumelero (2015).
66

se deixando ver como forma política diretamente produzida pela forma


social capitalista.
Este capítulo está estruturado em três tópicos: o primeiro aborda

S
as considerações preliminares sobre o pessoal do Estado; o segundo trata

PE
o pessoal do Estado na tradição marxista; e o terceiro, na forma de con-
siderações finais, apresenta indagações e reflexões para uma nova práxis

A
política deste grupo.

/C
TA
Considerações preliminares sobre o Pessoal do Estado

LE
Retomemos Hegel (1997) para relembrar que, em sua obra, o pessoal
do Estado – ou burocracia – aparece como classe universal, que se efetiva

CO
como tal na medida em que representa os interesses gerais da vida social.
Essa, por sua condição, não deveria se ocupar da supressão de suas carências
O
imediatas. Para o autor, a burocracia, como classe, “deverá ser recompensada
D
mediante uma indenização dada pelo Estado que solicita sua atividade, de
modo que, nesse trabalho pelo universal, possa encontrar satisfação o seu
O

interesse privado” (HEGEL, 1997, p. 182). Ou então, mediante requisição


V

do Estado, ser composta dos que já detêm fortuna privada, sendo-lhes


SI

possível o trabalho pelo bem universal.


U

Neste autor também há a proposição de uma estrutura hierárquica


CL

de pessoal – “representantes do poder governamental, por funcionários


executivos e também por autoridades mais elevadas com poder deliberativo
EX

e, portanto, colegiadamente organizada” (HEGEL, 1997, p. 266-267) – que,


por meio de vigilância, exija da classe universal que preserve e cumpra o
interesse geral do Estado e faça com que sejam minimizados os interesses
SO

particulares. Essa é, para Hegel, a função central do pessoal do Estado. Ou,


nos termos da formulação de Souza Filho (2006), para Hegel, “a burocracia
U

[...] é um instrumento do governo com responsabilidade de Estado para


RA

garantir o interesse geral frente aos interesses particulares apresentados


pelas corporações” (SOUZA FILHO, 2006, p. 67). Essa é a concepção
PA

mais frequentemente encontrada no entendimento do próprio pessoal do


Estado quanto à sua atuação.
Entretanto, pelo caráter contraditório do próprio Estado – que, no
capitalismo, é a instituição que historicamente atende também os interesses
de segmentos sociais economicamente não dominantes – a burocracia não
se efetiva como uma classe universal, mas se traduz como agente represen-
67

tante de interesses particulares no interior do próprio Estado.


O estudo realizado por Souza Filho (2006), acerca do Estado, da
burocracia e do patrimonialismo no desenvolvimento da administração pública brasileira,

S
apresenta contribuições importantes quando pensamos o Estado em sua

PE
ossatura material e em seu funcionamento, na tradição marxiana, conforme
o autor explicita no excerto a seguir.

A
/C
O Estado, enquanto estrutura de dominação, extingue-se na medida da
constituição do comunismo. No entanto, existirá uma estrutura orga-

TA
nizativa ou administrativa dessa nova sociedade que não se confundirá
com dominação de classe. A ideia utópica de inexistência de estrutura

LE
de administração e organização da sociedade não se aplica à concepção
marxiana (SOUZA FILHO, 2006, p. 58-59).

CO
Diretamente em Marx e Engels (1989), podemos afirmar a relevância
que Marx dá à questão da dominação exercida pela burocracia na relação
O
mando-obediência, quando se refere à experiência da administração da
D

Comuna de Paris. Para o autor, o fato de se tratar de um governo da classe


O

trabalhadora lhe imputava uma essência de República democrática e que


V

poderia se traduzir como a forma política que contribuiria para a libertação


SI

da economia do trabalho. Nas palavras de Souza Filho (2006),


U

[...] apesar da questão central da dominação estar vinculada à questão da


CL

classe e sua superação depender da “libertação econômica do trabalho”,


Marx analisa positivamente a estrutura de gestão da Comuna, na medi-
EX

da em que ela procura enfrentar a dominação estabelecida na relação


de mando-obediência presente na organização burocrática, a partir da
reestruturação da administração, realizada através da incorporação de
SO

mecanismos democráticos (SOUZA FILHO, 2006, p. 72).


U

Ou seja, nos próprios textos de Marx, há uma consideração do que


pode se configurar como experiências mais ou menos democráticas de or-
RA

ganização da administração pública, mesmo em Estados em condições de


transição a outros regimes políticos e, ainda assim, no contexto do sistema
PA

de produção capitalista. Nesse sentido, concretamente, o Estado “não é


nem a expressão de uma vontade geral nem o mero instrumento de uma
classe, mas a objetivação de uma relação estrutural de classes e exploração”
(HIRSCH, 2010, p. 32).
Nessa dinâmica contraditória sob a qual se organiza o Estado, outro
elemento é evidenciado na literatura abordada, o qual é a configuração de
68

interesses corporativos do pessoal do Estado, ou, ainda, a constituição de


interesses do Estado nele mesmo, em sua permanência e manutenção nos
termos estabelecidos. O interesse do pessoal do Estado nas suas próprias

S
questões, ao mesmo tempo que indica uma relativa autonomia do Estado,

PE
pode também jogar um peso decisivo na manutenção do “[...] processo de
reprodução econômica como processo de valorização do capital” (HIRSCH,

A
2010, p. 32), pois, ainda segundo Hirsch (2010),

/C
[...] ‘o interesse do Estado em si mesmo’ — ou, mais precisamente: o

TA
interesse próprio de seus funcionários burocráticos e políticos — é, que
faz com que ele tenha relativa independência frente a influências diretas,

LE
tornando-se o garantidor das relações de produção capitalista. O pessoal
do Estado se vê então induzido a garantir os pressupostos para o êxito

CO
dos processos de acumulação e de valorização, mesmo quando não haja
qualquer influência ou pressão direta por parte do capital (HIRSCH,
2010, p. 32).
O
D
A tese de Hirsch (2010), apresentada anteriormente, se não desa-
credita, ao menos não explicita possibilidades de tensionamento às práticas
O

de dominação que possam ser provocadas pelo pessoal do Estado, seja via
V

processos de democratização das relações afetas ao desempenho de suas


SI

próprias atribuições ou outras formas. Entretanto, Coutinho (2000) nos


U

lança luzes para relativizá-la, ao indicar que o processo de construção de


CL

um novo bloco histórico, nos termos gramscianos, passa pela produção


da hegemonia dos trabalhadores, a qual resulta da elevação dos interesses
EX

econômico-corporativos aos interesses ético-políticos, ou universais, na


qual participa, como classe trabalhadora, o pessoal do Estado.
Nos estudos da administração pública, raramente os agentes dire-
SO

tamente vinculados ao quadro técnico-especializado são vistos como um


U

coletivo com potenciais à democratização da gestão. Casos de experiências


exitosas de gestão pública democrática enaltecem processos ou iniciativas
RA

de sujeitos individualmente, ou a incidência de práticas democráticas que


se originam da iniciativa de coletivos organizados da sociedade civil, não
PA

mencionando a atuação política de quadros do pessoal do Estado, na con-


dição de sujeito coletivo. A gestão pública democrática é, com frequência,
definida nesses termos pela presença de institucionalidades de decisão
ampliada nas quais participam a sociedade civil organizada, ou mesmo
atribuída como resultado de processos e mecanismos de decisão e controle
social, a exemplo de Conselhos de políticas públicas ou do arcabouço es-
69

tratégico instrumental que, no caso brasileiro, observa-se em experiências


de orçamento participativo.
Por essas razões, é fundamental que tenhamos presente que os

S
agentes estatais podem constituir um processo de construção hegemônica

PE
como coletivo que defende práticas democráticas de gestão na perspectiva
de um processo transitório de sistema econômico e regime político. Ao

A
nos colocarmos tal questão, é possível tomá-la como elemento concreto,

/C
materialização de uma precondição ao tensionamento das formas até hoje

TA
predominantes de funcionamento do pessoal do Estado, isto é, a evidencia-
ção de defesa dos próprios interesses ou a falsa noção de agência passível de

LE
neutralidade, impessoalidade, rigidez normativa, ou ainda, a romântica tese
da ação para o bem comum. Desse modo, o uso da expressão burocracia,

CO
ao se referir ao pessoal do Estado, pode nos dar a noção equivocada de
uma unidade própria desse grupamento, retirando-lhe as contradições e
O
ocultando vínculos orgânicos e interesses distintos.
D
Também não é possível transpor para o interior da estrutura estatal,
O

em termos do pessoal do Estado, a lógica da divisão social e a técnica al-


cançada pela revolução industrial. Ainda que seja possível falarmos de uma
V

especialização do Estado capitalista, se nos fundamentarmos na tradição crí-


SI

tica, o seu funcionamento burocrático não poderá ser explicado pela lógica
U

da autoridade técnica (da perícia), de um corpo funcional que se distancie


CL

das práticas políticas, pois isso obscureceria as contradições sob as quais


operam os intelectuais ou agentes estatais implementadores de políticas.
EX

Em igual medida, a caracterização do pessoal do Estado, pela mes-


ma lógica da divisão social e técnica do sistema produtivo, entre trabalho
SO

intelectual e trabalho manual, é considerada por Hirsch (2010) como uma


racionalidade simplista, pois desconsidera elementos afetos à socialização
U

capitalista, forma social, que implicam ação dos agentes do Estado.


RA

Também Poulantzas (2000) acrescenta a essa análise os elementos


que se referem às distinções que podemos evidenciar no quadro do pessoal
PA

do Estado, constituindo burocracias com identidades singulares, como a


administrativa, a judiciária, a militar etc., demarcando não se tratar de uma
unidade. Acrescenta ainda que o lugar de classe que ocupa seus integrantes
é um componente adicional que não nos permite tratar o pessoal do Es-
tado sem contradições internas. Tampouco, o pessoal do Estado pode ser
identificado por uma relação orgânica imediata de classe.
70

Há que se distinguir, conforme Gramsci (2014a) explicita ao estudar


os intelectuais, os segmentos e as funções que desempenham os dirigentes,
burocratas, técnicos, especialistas etc. Para tal, fazemos uma breve recu-

S
peração da noção pessoal de Estado na tradição marxista, dando ênfase,

PE
ao final deste item, à categorização mais ampliada do que Gramsci trata
como funcionários do Estado. O autor, além de afirmar a necessidade de

A
reconstruir as análises do que toca ao desenvolvimento dessa questão,

/C
afirma que “o problema dos funcionários coincide em parte com o pro-

TA
blema dos intelectuais” (GRAMSCI, 1990, p. 92). São essas duas noções,
que se articulam em torno do que denominamos pessoal do Estado, que

LE
abordaremos adiante.

CO
Sobre o pessoal do Estado na tradição marxista O
Expressas algumas questões preliminares, voltamos à literatura na
D
tradição marxista, apresentando elementos que nos permitem reflexões
O

sobre o pessoal do Estado. Ainda que essa categoria tenha sido gestada por
Poulantzas, somente no último quarto do século XX, outras denominações
V

foram sendo utilizadas para referenciar esse grupo específico.


SI

Em Marx, não há propriamente uma preocupação central com o


U

pessoal do Estado, porque são também dispersas as passagens que, de algum


CL

modo, voltam-se à dimensão institucional do Estado, não chegando a se


traduzir como formulação explícita. Isso é compreensível por ser a teoria,
EX

no quadro do materialismo histórico-dialético, uma possibilidade advinda


da atividade intelectual (reflexão/abstração) sobre os fenômenos sociais
SO

concretos. Não haveria como exigir de Marx análises sobre a dinâmica de


funcionamento de Estados, para além daqueles fenômenos afetos à reali-
U

dade conjuntural de sua existência e de algum insight decorrente de análises


RA

de tendências econômico-sociais e políticas possíveis, desde a concretude


de determinado modo de produção, organização e reprodução social. O
PA

que encontramos são algumas referências pontuais ao pessoal do Estado


em textos de Marx sobre a conjuntura francesa de meados do século XIX,
em O 18 Brumário de Luís Bonaparte e na leitura da produção de Codato e
Perissinotto (2011)9, que apresentamos no decorrer deste item.
9
A partir de análises das obras marxianas: A burguesia e a contrarrevolução (1948), As lutas
de classe na França de 1848 a 1850 (1950) e O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1952).
71

Em passagens de O 18 Brumário de Luís Bonaparte (MARX, 2003), é


possível observar a referência de Marx à existência na França de um poder
executivo que opera sob imensa organização burocrática e militar, que conta

S
com um exército de meio milhão de funcionários, ao lado de mais meio

PE
milhão de tropas que, caracterizados como parasitas nascidos ao tempo da
monarquia absoluta, aprisionam a sociedade francesa. Dessas passagens,

A
Codato e Perissinotto (2011) destacam que Marx, ao se referir a um exército

/C
de funcionários, dá pistas para compreender o Estado como um aparelho

TA
cuja dinâmica de seus agentes tende a evidenciar o interesse nele próprio,
não se traduzindo unicamente como um poder subordinado à sociedade.

LE
Os autores destacam que “o fenômeno do parasitismo burocrático e do
empreguismo público ao lado do caráter despótico da organização estatal”

CO
(CODATO; PERISSINOTTO, 2011, p. 44-45) são passíveis de serem
apreendidos dos textos de Marx.
O
Outro aspecto importante quando se trata de pensar o quadro do
D
pessoal do Estado, é observar, na dimensão institucional do Estado, a dis-
tinção estabelecida por Marx entre aparelho e poder de Estado. Quando
O

trata da questão do aparelho de Estado, ele diferencia “a classe ou fração


V

economicamente dominante e a classe, ou fração, ou grupo politicamente


SI

governante” (CODATO; PERISSINOTTO, 2011, p. 46). A questão apre-


U

sentada deixa explícito o fato de que uma classe ou fração determinada ter o
CL

governo de um Estado, não significa que se traduza como classe dominante


e vice-versa. Essa distinção resultará em Gramsci (2014a) na produção dos
EX

conceitos de direção e domínio (GRAMSCI, 1990), e, nessa mesma direção,


Hirsch (2010) e Mascaro (2013) destacam a constituição do Estado como
forma política do capitalismo. Por outro lado, não se apresenta como tal –
SO

ou seja, a separação entre classes dominantes economicamente e frações ou


grupos que exercem a direção política – mecanismo que reforça, em termos
U

simbólicos e no senso comum, a autonomização da política.


RA

Em Harvey (2006) também encontramos passagens que tratam do


pessoal do Estado quando se refere à dimensão ilusória de que o Estado
PA

representa interesses supraclasses sociais. Essa é uma das estratégias do


Estado capitalista: parecer independente e autônomo no funcionamento
de suas instituições (HARVEY, 2006), em que os funcionários do Estado
precisam, portanto, apresentar-se e legitimar-se como representantes da
sociedade, porém, situados acima dela. Os interesses de classe, ao serem
operados pelo Estado, transformam-se ilusoriamente em interesse geral.
72

Internamente, no aparelho do Estado, nem todos os seus organismos


e, por conseguinte, nem todos os agentes por eles responsáveis detêm poder
efetivo. Codato e Perissinotto (2011) identificam nos estudos que fazem

S
da obra marxiana a afirmação de que a “capacidade de iniciativa governa-

PE
mental [ou] poder político, concentra-se em núcleos específicos do sistema
institucional de aparelhos do Estado” e o poder real que lhes cabe pode ser

A
avaliado pela “proximidade ou distância que mantiver em relação ao centro

/C
decisório” (CODATO; PERISSINOTTO, 2011, p. 49), e aos recursos or-

TA
çamentários e executivos de que dispõem. “Marx também chama de ‘postos
decisórios’, de onde se controlam efetivamente ‘as rédeas da administração’

LE
e níveis subordinados [àqueles] sem qualquer poder executivo” (CODATO;
PERISSINOTTO, 2011, p. 50). Um dos exemplos de organismo de nível

CO
subordinado, citado por Marx em Lutas de classe na França e destacado por
Codato e Perissinotto (2011), é a constituição de uma “comissão especial
permanente encarregada de pesquisar os meios para melhorar [as condições
O
de vida] das classes trabalhadoras” (CODATO; PERISSINOTTO, 2011, p.
D

49), cujo traço principal é a produção de estudos acerca de tema polêmico,


O

e não a participação nos processos decisórios sobre ele.


V

Assim, é possível reconhecer uma realidade institucional do Estado,


SI

sobre a qual persiste uma lógica própria, bem como interesses específicos
dos agentes estatais, sem que isso limite a análise sobre o poder de Estado.
U

Ou seja, quais relações sociais se produzem e reproduzem com as ações


CL

efetivadas pelo Estado em sua dimensão institucional (aparelho de Estado)


e materializadas pelas práticas de seu pessoal. Ou, nos termos de Gramsci
EX

(1990), que, ao tratar da burocracia estatal, afirma ser necessário e


SO

[...] interessante pesquisar e examinar as relações econômicas e políticas


reais que encontram sua forma organizativa, sua articulação e sua funcio-
U

nalidade nas diversas manifestações de centralismo orgânico e democrático


em todos os campos da vida estatal e (unitarismo, federação, união de
RA

Estados confederados, federação de Estados ou Estado Federal, etc.); na


vida interestatal (alianças, formas várias de constelação política interna-
PA

cional); na vida das associações políticas e culturais (maçonaria, Rotary


Club, Igreja Católica); sindicais, econômicas (cartéis, trustes); no mesmo
país, em diversos países (GRAMSCI, 1990, p. 93).

Essa afirmação de Gramsci (1990) indica a necessidade de com-


preensão das relações políticas que o pessoal de Estado estabelece com
uma série de aparelhos privados de hegemonia, sejam eles de natureza
73

político-cultural ou econômico-corporativas e, também, a relação com


agências interestatais de fomento à gestão pública.
Complementarmente à análise gramsciana, destacamos as afirma-

S
tivas de Hirsch (2010) que podem ser aplicadas ao debate sobre o pessoal

PE
do Estado na tradição marxista, quando o autor afirma:

A
A separação entre trabalho manual e intelectual e a progressiva diferencia-

/C
ção dessa divisão de trabalho pertencem à ‘estrutura básica das relações
capitalistas de produção’. A isto está ligada a possibilidade de que surjam

TA
tipos bastante diversos de ‘intérpretes profissionais’ da sociedade e de
‘fabricantes de ideias’, o que representa um fundamento importante para

LE
a regulação. É isso o que permite a formulação de discursos relativamente
independentes das posições de interesses imediatos e das constelações

CO
de forças sociais, que podem ser reformados e combinados, tornando-se
fundamentos de projetos hegemônicos. O espaço para a autonomização
dos discursos ideológicos é, portanto, limitado. Eles sempre permanecem
O
vinculados a posições sociais e materiais, a práticas e experiências. Eles
não podem se desenvolver de maneira independente da estrutura concreta
D

dos modos de acumulação e regulação, e nem da posição ocupada pelos


O

indivíduos neles (HIRSCH, 2010, p. 121).


V

Ou seja, em termos de poder do Estado, identificar como se arti-


SI

culam mediatamente os discursos ideológicos de seus intelectuais com a


U

estrutura e os diversos campos da vida estatal e as organizações vivas da


CL

sociedade, sejam elas de caráter econômico-mercantil, grupamentos da


sociedade civil organizada ou mesmo organizações religiosas. Essas, his-
EX

toricamente desempenharam poder político associado aos Estados. Nas


análises, é possível evidenciar não apenas os vínculos às duas classes fun-
SO

damentais presentes no capitalismo, mas também uma série de outros elos


com organizações e práticas institucionalizadas pela forma social capitalista,
U

ou práticas que portam traços de conservadorismo do antigo sistema e que


permanecem no interior desse.
RA

Por outro ângulo de análise, certo grau de autonomia dos agentes


de Estado é destacado por Perissinotto (2011), ao afirmar que “Marx pa-
PA

rece dar-se conta de que o Estado burguês [...] e a sociedade burguesa [...]
mantêm entre si uma relação que transcende as influências pessoais que a
burguesia e seus membros possam eventualmente exercer sobre os agentes
estatais” (PERISSINOTTO, 2011, p. 73). O autor ainda apresenta uma série
de argumentos construídos a partir de análises de O 18 Brumário de Luís
Bonaparte, em que é possível evidenciar certo grau de autonomia da política
74

e, por conseguinte, a autonomia relativa dos agentes políticos e, também,


dos agentes estatais. Dentre eles, destacamos, a seguir, aquele que enfatiza
que não há um determinismo preexistente na direção política de uma so-

S
ciedade. Tal direção encontra-se em aberto, é possibilidade de devir e está

PE
condicionada diretamente à agência dos sujeitos políticos.

A
[...] nas análises que Marx faz da relação entre ação política e resultado

/C
histórico, isto é, a ideia de que um resultado histórico é, em grande parte,
um artigo não pretendido de antemão, mas sim produzido pela interde-

TA
pendência entre as diversas opções e decisões estratégicas tomadas pelos
agentes políticos no curso da luta política (PERISSINOTTO, 2011, p. 77).

LE
Entretanto, não podemos tomar essa análise para validação de vo-

CO
luntarismos na ação política como potência transformadora, pois uma das
garantias da burguesia de que certa autonomia do Estado não gere a ele riscos
de ruptura com o sistema econômico capitalista é o fato de o “funciona-
O
mento do Estado [estar] intimamente entrelaçado com o bom andamento
D

da economia burguesa, pois a sua enorme burocracia depende dos recursos


O

materiais gerados pela acumulação privada” (PERISSINOTTO, 2011, p. 73).


V

Além das análises apresentadas em que, na teoria marxiana e grams-


SI

ciana, há menções sobre os agentes estatais, encontramos em Poulantzas um


tratamento explícito à questão do pessoal de Estado na obra Poder político
U

e classes sociais10, em que trata do conceito de burocratismo. No entanto, há


CL

a crítica de Codato e Perissinotto (2011, p. 37) de que, nesse caso, o autor


“explorou somente os efeitos ideológicos desse sistema sobre as práticas
EX

dos agentes do Estado (burocracia)”, não se voltando a análises de con-


junturas históricas concretas a partir das quais fosse possível identificar os
SO

efeitos sociais e econômicos gerados por determinadas práticas políticas


desses agentes11.
U

Poulantzas (2000) nos lembra, em O Estado, o poder, o socialismo, de


RA

que a burguesia é a primeira classe da história que tem necessidade, para se


firmar como classe dominante, de um corpo de intelectuais, e que o Esta-
PA

10
Os autores referenciam a obra em sua edição francesa: POULANTZAS, Nicos. Pouvoir
politique et classes sociales. v. II, Paris: Maspero, 1971, p. 153-193.
11
Esse elemento continua em aberto nas produções da tradição marxista e pode se con-
verter em um campo fértil para novas investigações, inclusive no confronto e/ou com-
plementaridade a estudos de Michel Foucault sobre a biopolítica e o neoliberalismo quan-
do ele demarca o caráter produtor e reprodutor do Estado, da forma social capitalista
contemporânea, evidenciando os efeitos sociais de práticas e dispositivos operados por
essa instituição via agentes estatais.
75

do moderno, em sua dimensão organizacional, em sua ossatura material, faz


legitimar um discurso da ação técnica portadora de neutralidade política,
que nada mais é do que a relação poder-saber que objetiva distanciar os

S
segmentos populares da participação política, traduzida “[...] por técnicas

PE
particulares de exercício do poder, por dispositivos precisos, inscritos na
trama do Estado, de distanciamento permanente das massas populares dos

A
centros de decisão [...] de formas de discurso [...] de formulação e tratamento

/C
dos problemas” (POULANTZAS, 2000, p. 59). Neste mesmo autor, há o

TA
reconhecimento de que, na ossatura material do Estado, as contradições
se expressam principalmente por meio das “divisões internas no seio do

LE
pessoal de Estado em amplo sentido” (POULANTZAS, 2000, p. 156-157)
e, mesmo que reconheça o pessoal do Estado ou funcionalismo estatal

CO
como uma categoria social portadora de unidade própria, enfatiza que seu
lugar12 de classe acaba por torná-la um grupo dividido.
O
Poulantzas (2000) identifica na divisão interna do pessoal do Estado
o lugar da classe burguesa com incumbências do alto escalão, enquanto a
D

pequena burguesia se incumbe dos níveis intermediários e subalternos dos


O

aparelhos de Estado. O autor salienta que essas divisões se referem também


V

às “reivindicações específicas desse pessoal na divisão do trabalho no seio


SI

do Estado” (POULANTZAS, 2000, p. 157), o que gera contradições com-


U

plexas, determinadas, segundo ele, por ser “esse pessoal [...] uma categoria
CL

social diferente” (POULANTZAS, 2000, p. 157).


As contradições no interior do Estado não se reproduzem de forma
EX

idêntica àquelas, presentes na luta de classes, pois “tomam frequentemente


a forma de ‘querelas’ entre membros de diversos aparelhos e setores do
Estado” (POULANTZAS, 2000, p. 158). Essa observação de Poulantzas
SO

(2000) em relação a práticas do pessoal de Estado se coloca muito próxima


à definição gramsciana de pequena política, ou seja, a “[...] política do dia
U

a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas [...] a pequena política


RA

compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior


de uma estrutura já estabelecida”, por vezes determinadas pelo desejo de
PA

“predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política”


(GRAMSCI, 2014b, p. 21-22).
12
O próprio autor faz ressalva à diferença de “lugar de classe” e “classe de origem” –
essa, referindo-se ao contexto de origem e vínculo de classe de onde procede o pessoal,
ao passo que o “lugar de classe” é “relacionado à situação desse pessoal na divisão social
do trabalho, tal como ele se caracteriza no arcabouço do Estado” (POULANTZAS,
2000, p. 157).
76

De modo complementar à afirmação anterior, Poulantzas (2000),


com o entendimento de que, mesmo quando se identifica uma politização
direta e mais nítida desse pessoal, isso comumente é resultado de participa-

S
ções e experiências por vias particulares, as quais o autor denomina como

PE
mecanismos ideológicos no seio dos aparelhos e a participação política
em partidos e sindicatos. Poulantzas (2000) explicita a dinâmica pela qual

A
o Estado reproduz e inculca a ideologia dominante em seu pessoal, cuja

/C
função é produzir o cimento interno dos aparelhos de Estado e da unidade

TA
de seu pessoal. Ainda segundo o autor: “Esta ideologia é precisamente a do
Estado neutro [...] a administração ou a justiça acima das classes, o exército,

LE
pilar da nação, a polícia garantia da ordem republicana e das liberdades
dos cidadãos, a administração, motor da eficiência e do bem-estar geral”

CO
(POULANTZAS, 2000, p. 158).
Assim como em um recente período histórico, no campo de pro-
duções sobre a relação entre Estado e sociedade civil13, teve-se a ilusão de
O
que essa responderia, no quadro das lutas políticas contemporâneas, como
D

uma instância de defesa do interesse público (destituindo-a de contradições


O

internas). Também não é possível caracterizar o pessoal do Estado como


V

um grupo homogêneo que dará conta de defender o interesse público – 


SI

no sentido da afirmação do momento ético-político indicado por Gramsci


(2014b) –, mas que precisamos confrontá-lo em suas práticas concretas.
U

Para além do discurso ideológico pautado nas máximas do bem


CL

comum, do interesse geral e da constituição no Estado moderno de uma


autoridade burocrática de caráter técnico que predomine em seu arcabou-
EX

ço institucional e, portanto, materializado na neutralidade do pessoal do


Estado, há evidência das contradições dessa instituição e de sua relação
SO

com a ordem social capitalista, ao menos “aos olhos de agentes predis-


postos, por sua origem, ou lugar de classe, a enxergar mais claramente”
U

(POULANTZAS, 2000, p. 159). O autor complementa, ainda, apontando


algumas características do pessoal do Estado e particularidades que se
RA

apresentam em suas práticas na relação com essa instituição.


PA

Esses temas da ideologia dominante são entendidos por amplas camadas


do pessoal de Estado como o que lhes compete no estabelecimento da
13
Produções que no Brasil, na década de 1990, generalizam e superestimam a atuação da
sociedade civil na direção da emancipação política (retirando-lhe o caráter contraditório)
e que recebem a crítica, por exemplo, de Vera Telles e Evelina Dagnino. Essa perspectiva
também pode ser identificada em Hirsch (2010), no posfácio à edição brasileira da obra
Teoria materialista do Estado.
77

justiça social e da igualdade de chances entre os cidadãos, no restabele-


cimento de um ‘equilíbrio em favor dos fracos’, etc. (POULANTZAS,
2000, p. 159).

S
O autor também identifica certa ingenuidade nesses agentes do pes-

PE
soal de Estado que “reivindicam uma descolonização do Estado em relação

A
aos grandes interesses econômicos, o que [para eles] significa um retorno

/C
a uma virgindade, supostamente possível, do Estado” (POULANTZAS,
2000, p. 159), que permitiria aos agentes restabelecer a autoridade estatal

TA
e retomar seu papel de direção política. Esses mesmos grupos do pessoal
de Estado que tendem a alianças com as massas populares, raramente

LE
põem em questão a burocratização hierárquica enraizada no Estado, sua
dinâmica interna e a própria lógica institucional sob a qual assentam suas

CO
práticas. Essas características são identificadas por Poulantzas (2000) como
limites de politização do pessoal do Estado, os quais só poderão ser ultra-
O
passados sob “uma transformação radical deste arcabouço institucional”
D
(POULANTZAS, 2000, p. 160).
As saídas para esses dilemas do pessoal do Estado, propostas pelo
O

autor, não se localizam em medidas como a da simples substituição desse


V

pessoal, é uma questão de transformação radical do Estado na relação com


SI

as massas populares. Verifica-se no interior do Estado a defesa de interesses


U

próprios de determinadas áreas desse pessoal, “defesa de privilégios cor-


CL

porativistas, [...] de estabilidade” (POULANTZAS, 2000, p. 161) da função


pública, o que leva a inconteste politização para a esquerda de segmentos
EX

desse pessoal. O que se coloca como desafio nos processos de transição


democrática desse Estado e superação da afirmação de que todo Estado
SO

capitalista é um Estado da burguesia, é identificá-lo como condensação de


uma relação de forças e “compreender o complexo papel da luta política
U

na reprodução histórica desse Estado” (POULANTZAS, 2000, p. 161).


Perissinotto (2011) destaca que tanto Poulantzas quanto os demais
RA

neomarxistas “não centraram sua atenção nos efeitos causados pelas inte-
rações estratégicas dos agentes políticos e nos impactos que suas opções
PA

concretas poderiam causar (e efetivamente causam) sobre o Estado”


(PERISSINOTTO, 2011, p. 85) e desse a grande massa da população.
Essa é uma lacuna ainda presente no contexto contemporâneo e demanda
a produção de estudos contextualizados que deem conta de identificar e
dimensionar os contornos e direção que determinadas políticas públicas
podem ter tido, decorrentes de práticas políticas e alianças de segmentos
78

do pessoal do Estado com sujeitos coletivos organizados integrantes da


sociedade civil ou da sociedade política. Sob a denominação burocracia,
pouco se explora ou evidencia a agência política do pessoal do Estado.

S
Outro elemento que impacta diretamente na agência do pessoal do

PE
Estado tem a ver com o que é apontado por Hirsch (2010) em relação ao
modo como o mercado aborda os indivíduos, ou seja, como “aglomerados

A
de competitivos proprietários de mercadorias e bens” (HIRSCH, 2010 p.

/C
80) e o Estado adota essa individualização das pessoas para estruturar sua

TA
relação com elas. Desse modo, tornam-se objetos da intervenção do Estado,
apresentando-se como sujeitos de direitos ou eleitores (cidadãos isolados),

LE
independentemente de suas ligações econômicas, sociais e culturais. Ao
incorporar no cotidiano de seu trabalho essa lógica, os agentes implemen-

CO
tadores de políticas públicas reduzem sua percepção quanto à presença de
coletivos organizados ou diminuem a capacidade de identificação de sujeitos
coletivos. Como resultado, dão ênfase à produção de políticas públicas que
O
têm no sujeito de direito (cidadão), em sua individualidade, a finalidade de
D

alcance das ações do Estado.


O

Anteriormente a Poulantzas, Gramsci também havia se ocupado em


V

compreender traços da atuação política do pessoal de Estado, porém, nesse


SI

autor, o caminho analítico se dá a partir da noção de intelectual, o que nos


leva a crer que prepondera a busca por compreender os nexos causais, as
U

determinações da forma social sobre a forma política ou, em outras pala-


CL

vras, os vínculos orgânicos de classe, sob o qual age o pessoal de Estado.


Para Gramsci (2014a), os intelectuais são “prepostos do grupo do-
EX

minante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do


governo político” (GRAMSCI, 2014a, p. 21), atuando em nível da superes-
SO

trutura na sociedade civil e nos aparelhos de Estado. Desse entendimento,


deriva a noção de que todos somos, em alguma medida, funcionários.
U

[...] Todo indivíduo é funcionário, não na medida em que é empregado


RA

pago pelo Estado e submetido ao controle hierárquico da burocracia


estatal, mas na medida em que, agindo espontaneamente, sua ação se
PA

identifica com os fins do Estado (ou seja, do grupo social determinado


ou sociedade civil), por isto, a iniciativa individual não é uma hipótese de
boa vontade, mas um pressuposto necessário. [...] iniciativa individual no
campo econômico [...] no sentido preciso de iniciativa de caráter utilitário
imediato e estritamente pessoal, com a apropriação do lucro que a pró-
pria iniciativa determina num determinado sistema de relações jurídicas.
[Mas também há] iniciativas não imediatamente interessadas, ou seja,
79

interessadas no sentido mais elevado, do interesse estatal ou do grupo


que constitui a sociedade civil (GRAMSCI, 2014b, p. 286).

Nessa passagem, o autor destaca a relevância do caráter não utilitário,

S
PE
das iniciativas interessadas na constituição do espírito estatal e da busca de
afirmação do momento ético-político de superação da sociedade capitalista,

A
elemento central da função dos intelectuais atuantes na sociedade civil, na

/C
dimensão da superestrutura.
Gramsci (2014a) admite que a função do intelectual na direção

TA
política de uma sociedade é demandada com maior intensidade quando
não é possível a hegemonia por consenso espontâneo, em que as massas

LE
seguem o grupo fundamental dominante na vida social pela confiança nele
depositada, ou seja, quando crises no comando e na direção política exigem

CO
do Estado formas de intervenção legal no âmbito do disciplinamento de
grupos que não consentem nem ativa nem passivamente o consenso. Nessa
O
circunstância, jogam peso decisivo na formação do consenso os aparelhos
D
privados de hegemonia, integrantes da sociedade civil, os quais contemplam,
inclusive, as associações profissionais integrantes podem ser consideradas
O

intelectuais e, em alguma medida, nos termos gramscianos, funcionários


V

(COUTINHO, 2000).
SI

Também se refere a realidades de processos eleitorais, especialmente,


U

aquelas em que o voto não é obrigatório, afirmando que somente a eleição


CL

não assegura o consenso, e, esse, para ser permanentemente ativo, demanda


hegemonia política no âmbito da sociedade civil. É nos seguintes termos
EX

que afirma essa questão:


[...] aqueles que consentem poderiam ser considerados como funcioná-
SO

rios do Estado e as eleições como um modo de recrutamento voluntário


de funcionários estatais, de um certo tipo, que em certo sentido poderia
U

vincular-se ao self-government [autogoverno] (GRAMSCI, 2014b, p. 84).


RA

Ou seja, no Estado ampliado gramsciano, a sociedade civil de-


sempenha a função de funcionários do Estado e/ou de intelectuais que
PA

participam ativamente, em maior ou menor grau na formação da direção


política. Já no âmbito da sociedade política e, mais precisamente, no âmbito
da Burocracia, há também em Gramsci (2014a) uma aproximação com a
compreensão de certa divisão do trabalho no interior do próprio Estado.
Essa tese foi posteriormente defendida por Poulantzas (2000), a partir do
que atribui a essa estrutura política uma dimensão organizacional própria.
80

Em Poulantzas (2000), também evidenciamos o trato ao pessoal do Estado


como corporação profissional, como pessoal técnico especializado, porém,
cuja dimensão relacional com a forma social lhe atribui agência política.

S
Em Gramsci, a divisão do trabalho no âmbito da sociedade políti-

PE
ca, mais precisamente, no aparelho de direção política e estatal, explicita,
por um lado, uma série de funções e atribuições das quais se retira não só

A
o caráter político da ação quanto à dimensão volitiva desses agentes, e,

/C
por outro, demonstra que a adoção do conceito de intelectual fica restrita

TA
àqueles que desempenham atividades criativas. Isso a partir de análises dos
fenômenos do Estado, na realidade do sistema social democrático-buro-

LE
crático contemporâneo.
Há, desse modo, uma divisão no âmbito da burocracia civil que

CO
atribui a tarefa de administração e controle a determinado grupo técnico,
e, em alguma medida contemporaneamente, essa tarefa é direcionada tam-
O
bém aos quadros de especialistas, enquanto as ações de direção política
D
são atribuídas a um grupo de intelectuais que desempenham funções de
mais alto grau hierárquico no âmbito do Estado, seja por funcionários de
O

carreira ou nomeados.
V

Ainda refletindo sobre a concepção gramsciana de Estado ampliado,


SI

em termos de pessoal do Estado, encontram-se no âmbito da sociedade


U

política os quadros integrantes da burocracia militar, qual seja, “pessoal


CL

dirigente que exerce poder coercitivo” (GRAMSCI, 2014b, p. 239), a di-


plomacia e os quadros integrantes do parlamento.
EX

Complementarmente a essa relação, os funcionários de carreira


se veem distintamente dos legisladores ou gestores eleitos e/ou indicados
para cargos executivos. Dessas diversas percepções sobre as carreiras do
SO

pessoal de Estado, pode resultar a ampliação de tensões, acirramentos nas


disputas de interesses de cada uma delas.
U

Em algumas situações, conforme demarca o autor, “[...] o poder


RA

legislativo máximo [pode chegar a residir] no pessoal estatal (funcionários


eleitos e de carreira), que têm à disposição as forças coercitivas legais do
PA

Estado” (GRAMSCI, 2014b, p. 306). Desse modo, na relação do parlamento


com a burocracia de carreira e a burocracia nomeada, uma complexa rela-
ção se institui gerando uma série de transtornos em termos das finalidades
práticas do Estado.
Em parte, é nessa direção que se colocam nossas interrogações
quanto à necessidade de pôr em questão o pessoal do Estado, em especial,
81

os agentes estatais implementadores de políticas públicas, num indicativo


do necessário avanço para que seja evidenciada a dimensão política de suas
práticas, e essas sejam confrontadas e/ou identificadas, se situadas em prá-

S
ticas da pequena ou da grande política. Em nosso entendimento, é quando

PE
as ações se fundam no campo da grande política que evidenciamos alguma
possibilidade de retomada da relação dos agentes estatais implementadores

A
de políticas públicas, com o parlamento e com os sujeitos coletivos inte-

/C
grantes da sociedade civil, no âmbito do Estado ampliado. É uma pequena

TA
parcela de contribuição a colocar em questão os próprios regimes repre-
sentativos até hoje experimentados e vislumbrar num horizonte de longo

LE
prazo novas estruturas políticas possíveis numa sociedade cujas bases de
produção venham a superar o sistema capitalista.

CO
É tensionando processos macrossocietários com as contribuições do
pessoal do Estado na construção de práticas, que se assentem sob vínculos
O
orgânicos com as massas populares na direção de transformações sociais
profundas, que podemos chegar à produção do que Gramsci denomina
D

espírito estatal e superar a estatolatria.


O
V

[...] Desde logo, o espírito estatal pressupõe a continuidade, tanto em


SI

relação ao passado, ou seja, à tradição, quanto ao futuro, isto é, pressupõe


que cada ato é o momento de um processo complexo, que já se iniciou e
U

que continuará. A responsabilidade por este processo, de ser ator deste


CL

processo, de ser solidário com forças materialmente desconhecidas, mas


que, apesar disso, são percebidas como operantes e ativas e consideradas
EX

como se fossem materiais e presentes corporalmente, é o que em certos


casos se denomina precisamente espírito estatal. [...] Se se pode afirmar
que um espírito estatal assim compreendido está em todos, é necessário
SO

lutar permanentemente contra suas deformações e desvios (GRAMSCI,


2014b, p. 331-332).
U

É precisamente o caminho inverso ao que o autor denomina por


RA

estatolatria, ou seja, “[...] uma determinada atitude em relação ao governo


dos funcionários ou sociedade política, que, na linguagem comum, é a forma
PA

de vida estatal a que se dá o nome de Estado e que vulgarmente é entendida


como todo o Estado” (GRAMSCI, 2014b, p. 283). Por fim, quando Gramsci
(2014b) tece críticas à estatolatria ou estadolatria, o faz às concepções que se
guiam pela noção do Estado, restrita ao seu corpo burocrático e militar, ou
à exaltação do regime burocrático, o qual o fim está nele mesmo, em seus
próprios interesses e na sua permanência e manutenção, desconsiderando os
82

demais sujeitos integrantes da sociedade civil no momento superestrutural,


em que os fins e interesses se vinculam a elementos estatais.

S
As possibilidades do pessoal do Estado na construção de uma gestão

PE
democrática

A
/C
Ao tratarmos do pessoal do Estado, nossa intenção foi explicitar
tanto o que ele é, no que se constitui, suas contradições e interesses distin-

TA
tos, quanto no que poderá vir a ser, ou seja, evidenciar a possibilidade de
reinvenção do aparato institucional no que toca ao seu pessoal, abordando-o

LE
no dever ser, num processo de transição a uma nova ordem social, isto
é, que elementos são passíveis de questionamentos em termos de práxis

CO
política desses agentes?
Sob a lógica da hegemonia construída no pluralismo, o pessoal do
O
Estado pode, sim, ser considerado como sujeito coletivo, sempre tendo
D
presente que em seu quadro mantêm-se interesses contraditórios e não
homogêneos, a contribuir com o processo de uma nova sociabilidade e, por
O

conseguinte, de nova forma de organização política. Assim constata Couti-


V

nho (2000, p. 32) que “[...] não há, na obra de Gramsci um desenho ‘a priori’
SI

de ‘nova forma de governo’, capaz de articular hegemonia e pluralismo”,


U

ou seja, temos de criá-la. Mas há, sim, na obra gramsciana indicativos do


CL

quão urgente se coloca a necessidade de alterar a configuração do pessoal


do Estado e, em especial, suas práticas políticas, propondo o exercício
EX

colegiado para os processos deliberativos.

Põe-se a questão de modificar a preparação do pessoal técnico político,


SO

complementando sua cultura de acordo com as novas necessidades, e de


elaborar novos tipos de funcionários especializados que integrem de forma
U

colegiada a atividade deliberativa. O tipo tradicional do “dirigente” político,


preparado apenas para as atividades jurídico-formais, torna-se anacrônico
RA

e representa um perigo para a vida estatal: o dirigente deve ter aquele


mínimo de cultura geral que lhe permita, se não “criar” autonomamente
PA

a solução justa, pelo menos saber julgar entre as soluções projetadas pelos
especialistas e, consequentemente, escolher a que seja justa do ponto de
vista “sintético” da técnica política (GRAMSCI, 2014a, p. 35).

Acreditamos que intensificar práticas democráticas na implemen-


tação de políticas públicas é alargar possibilidades de novos referenciais de
sociabilidade para além dos padrões burgueses, induzindo sua incorporação
83

a experiências sociais da vida cotidiana, sem, contudo, perder de vista que


a efetivação da democracia está condicionada à redistribuição de rendas,
riquezas e novos parâmetros de produção e reprodução social. Nessa di-

S
reção é que não podemos desconsiderar a potencialidade das práticas dos

PE
agentes implementadores de políticas públicas, valorizando a dimensão
criativa e inovadora sob bases distintas daquelas historicamente instituídas

A
e, particularmente, a potencialização do trabalho colegiado e de iniciativas

/C
coletivas. Consideramos também que muitos elementos objetivos já se

TA
colocam como condição para que problematizemos a agência do pessoal
do Estado para além da constatação de que sua ação se centra na defesa de

LE
seus próprios interesses ou de interesses meramente corporativistas, pois,
onde o Estado se ampliou,

CO
[...] as lutas por transformações radicais travam-se no âmbito da “sociedade
civil” [...] mas se orientam, desde o início, no sentido de influir e de obter
O
espaços no seio dos próprios aparelhos do Estado, já que esses são agora
D
permeáveis à ação das forças em conflito (COUTINHO, 2000, p. 39).
O

Estudar as práticas desses “agentes implementadores de políticas”


V

nos Estados contemporâneos, em sua dimensão institucional – porém


SI

também compreendida como forma política da sociedade capitalista,


U

numa análise que implica a percepção da totalidade social e sob as refle-


CL

xões apresentadas anteriormente –, poderia contribuir enormemente para


que superemos as reiteradas práticas organizativas do Estado com base na
EX

burocracia weberiana.
Atualmente, de modo lamentável, constatamos que é a partir dessa
mesma racionalidade que a instituição Estado e seus aparelhos são estru-
SO

turados pelos grupos que chegam ao governo, mesmo aqueles que apre-
sentam vínculos orgânicos com a classe trabalhadora e são gestados numa
U

formação política de esquerda. Temos dificuldade de localizar inovações


RA

na forma burocrática de administração do Estado ou mesmo de evidenciar


contradições geradas por posturas que defendem mudanças ante as posi-
PA

ções de manutenção das estruturas institucionais, tais como se encontram.


A permanência tem sido regra ou, quando muito, as mudanças propostas
se assentam ainda mais na lógica burocrático-gerencial, meritocrática, que
acentua a divisão social interna do pessoal do Estado e a propagação do
seu caráter técnico. Assim, ao retirar desse quadro a dimensão política de
sua ação, atribuímos a eles a função de administradores e propagadores de
84

riqueza intelectual e dos padrões de sociabilidade já instituídos, reafirmando


a forma social e econômica capitalista.
É preciso que encontremos formas de romper com a hegemonia

S
que predomina nas práticas do pessoal de Estado que, caracterizado como

PE
intelectual orgânico ou tradicional, tem operado não apenas sob um discurso

A
ideológico, mas também no domínio e uso de uma série de mecanismos

/C
e dispositivos próprios do Estado, sejam jurídicos, administrativos ou mi-
litares/policiais de controle, que fortalecem posições políticas, por vezes

TA
transfiguradas de decisões técnicas. Gramsci (2014a) alerta para as mudanças

LE
necessárias a conformar um novo tipo de intelectual, em que se sobressaia
o caráter de construtor, persuasor permanente e dirigente, pautado numa

CO
concepção humanista histórica.
A relevância de repensar o modo de ser e as práticas políticas do
O
pessoal do Estado se fortalece sob a afirmação de Mascaro (2013, p. 116)
D
de que “a reprodução social capitalista se estabelece de modo atomizado,
com múltiplos agentes em concorrência [mas] tal estabelecimento é também
O

político e jurídico”. Os agentes estatais compõem esse quadro, não de forma


V

homogênea, mas por vínculos orgânicos com as classes fundamentais. É a


SI

intensificação das contradições desses vínculos, da luta de classes, grupos


U

e indivíduos que precisamos radicalizar, no interior da estrutura estatal, por


CL

seus agentes, objetivando a constituição de projetos societários alternativos.


EX

No conjunto das relações sociais capitalistas, a compreensão desse


quadro complexo e de suas agências pelos agentes estatais pode favorecer
a produção de práticas políticas que afrontem o mero reprodutivismo de
SO

práticas tradicionais, conservadoras, fossilizadas e ainda presentes na ins-


U

tituição estatal – como o autoritarismo, o centralismo, o patrimonialismo,


o fisiologismo partidário ou corporativo-profissional –, estimulando a ins-
RA

titucionalização de práticas democráticas. Não temos a ilusão de que esses


processos serão responsáveis por rupturas estruturais, mas potencializam
PA

o confronto com o ethos institucional fundado na dinâmica própria da


socialização capitalista e podem criar fissuras nas práticas predominantes
no aparato estatal. É pôr em questão os agentes estatais implementadores
de políticas públicas, a instrumentalidade de seu fazer cotidiano, não o limi-
tando à racionalidade técnica, mas tendo no horizonte sua potência política.
85

Os profissionais agentes implementadores de políticas públicas


precisam ter ciência de que não cabe a eles a conversão de grandes massas,
pois seu trabalho é molecular, porém, por outro lado, há elementos de

S
contribuição com esse processo, ao menos na relação interprofissional.

PE
É necessário colocar em questão as finalidades do trabalho desenvolvido
e sua apropriação e execução da forma mais crítica possível, pois essas

A
referências permitem relativizar interesses imediatos, pessoais, em razão

/C
da função social desempenhada. Essa reflexão corrobora a afirmação de

TA
Gramsci (2014a, p. 20) de que “a relação entre os intelectuais e o mundo
da produção não é imediata [...], mas é mediatizada, em diversos graus, por

LE
todo tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais
são precisamente os funcionários”.

CO
Com isso, reiteramos a defesa de que é fundamental passarmos a
analisar as práticas do pessoal do Estado sob referenciais da teoria social
O
crítica. Ou seja, na perspectiva de sujeito político que vivencia a contradição
D
da ação fetichizada, porém não naturalizada, mas como possibilidade, como
devir de sujeito histórico-social.
O

Além das reflexões e discussões apresentadas, há um necessário de-


V

bate sobre pessoal de Estado que precisamos fazer no campo das políticas
SI

públicas, não apenas visando lançar mão de metodologias ou estratégias


U

de trabalho interventivo, no âmbito do Estado via políticas públicas, mas


CL

compreender quem são esses sujeitos, em que determinações estão imbri-


cados e qual horizonte de dever ser estabelecem.
EX

Ainda, no âmbito da agência do pessoal do Estado, uma série de


questões podem ser pertinentes a problematizações, tais como a disciplina,
a autodisciplina, a obediência, o mando, o autoritarismo, os privilégios e as
SO

prerrogativas que, a nosso ver, devem compor estudos que tenham como
objeto a particularidade do pessoal do Estado. Desse modo, apesar de certa
U

lacuna em termos de teorias, que nos permitam reconhecer a função que


RA

desempenha o pessoal do Estado num horizonte para além da afirmativa


simplificada de funcionalidade do capital, evidencia-se o quão complexo é
PA

se referir a pessoal do Estado.


O percurso que fizemos teve o sentido de indicar o quanto a busca
pela consolidação de um espírito estatal pode contribuir com práticas ino-
vadoras nos processos de implementação de políticas públicas, buscando
ultrapassar o momento burocrático-corporativo-profissional ou, como
Gramsci (2014b, p. 286) o define, “espírito de corpo/igrejinha”.
86

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(Doutorado em Serviço Social) – Universidade Federal de Santa Catarina,
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LE
CO
O
D
O
V
SI
U
CL
EX
SO
U
RA
PA
PA
88
RA
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U
SI
V
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CO
LE
TA
/C
A
PE
S
89

4.
Burocracia e tecnocracia: impactos sobre as

S
ações profissionais

PE
A
Maria Luiza Amaral Rizzotti

/C
TA
O que nos inspira, ao escrever sobre esse tema, é o compromisso
com a qualidade, o aprimoramento da atuação do assistente social e a certeza

LE
de que a análise sobre o lócus do desenvolvimento da sua ação profissional
tem importante influência no desempenho e nos resultados do trabalho

CO
cotidiano. Organizar este pequeno capítulo e escolher o conjunto de argu-
mentos que pudesse despertar nos profissionais a necessidade de voltar o
O
olhar para as estruturas institucionais, como um dos elementos importantes
D
na análise do desempenho de sua ação, constitui-se num desafio, desde a
escolha dos elementos norteadores desta reflexão até a construção da nossa
O

tese central, que se alicerça na premente necessidade de rever e aprofundar


V

a compreensão sobre a dimensão política das relações institucionais, des-


SI

montando a lógica da neutralidade e imparcialidade nesse campo, ou mesmo


U

a de que a técnica é o antídoto da política. No entanto, no que concerne à


CL

atuação do assistente social, vale destacar que, mesmo havendo na trajetó-


ria do Serviço Social um posicionamento político com diferentes matizes,
EX

nos dias atuais, explicita-se, nas orientações normativas, uma identidade


e compromissos de classe, o que, não necessariamente, é suficiente para
que os profissionais reconheçam a dimensão política presente nas relações
SO

institucionais e utilizem a camuflagem expressa na neutralidade técnica.


Identifica-se um pêndulo entre o potencial dos assistentes sociais ao
U

atuarem na direção ou execução do trabalho no interior das organizações


RA

e das estruturas institucionais, considerando seu arcabouço teórico meto-


dológico, associado aos compromissos éticos e políticos, e as dificuldades
PA

ancoradas nos embaraços dessas estruturas, demarcadas por sua dimensão


burocrática e tecnocrática. Desse modo, nosso foco é tratar exatamente
sobre a atuação profissional no contexto das organizações14 e, por conse-
guinte, os componentes centrais da burocracia e da tecnocracia.
14
Para efeitos deste capítulo, tratamos aqui como organizações e estruturas institucionais
as unidades prestadoras de serviços governamentais e não governamentais de todas as
áreas de atuação.
90

O estudo da burocracia certamente compõe a grade curricular da


graduação em Serviço Social, mas nosso desafio é construir uma interpre-
tação permeada e refletida no dia a dia do fazer profissional e, com isso,

S
apontar caminhos que podem se configurar como estratégias de construção

PE
da autonomia profissional em sua perspectiva intelectual e ética, assim como
reconstruir espaços institucionais em meio às estruturas burocráticas, de

A
modo a reconhecer que esses espaços são resultantes da práxis concreta

/C
dos seus sujeitos.

TA
O encadeamento argumentativo que trilhamos reconhece a essencia-
lidade e as consequências da burocracia e da tecnocracia, tanto na execução

LE
das políticas sociais quanto nos entraves para a ação específica do assistente
social em qualquer local de trabalho. Vale destacar que, em especial, no

CO
Brasil, há pouco mais de um quartil de século, tem ocorrido um processo
mais acelerado de profissionalismo na gestão de políticas sociais15. Esse fato
traz como consequência favorável a adoção de regramentos e da tecno-
O
cracia, desenhando um perfil institucional, que pode demarcar o caminho
D

da regulação, da ordenação, da impessoalidade, como resposta aos antigos


O

moldes voluntarista e patrimonialista na administração das políticas sociais16.


V

Ao mesmo tempo em que o modelo pautado em regras impessoais


SI

na gestão responde a um processo de aperfeiçoamento, também traz consigo


sua marca nefasta expressa pela burocracia como dominação, alienação e
U

poder (MOTTA, 1984). O dilema entre a necessidade de aprimoramento da


CL

estrutura e de gestão institucional e as amarras que sucumbem a capacidade


criadora e intelectual do profissional nos desafiam a trazer conteúdos que
EX

permitem decifrá-los para não sermos devorados17.


Toda a linha argumentativa deste estudo reconhece a categoria “tra-
SO

balho” na sua essência criadora, mas, sobretudo, na captura exploradora do


modelo capitalista de produção, além de todos os elementos que envolvem
U

a relação do trabalhador com seu objeto de produção, mesmo estando ele


RA

15
Destaca-se que, a partir da Constituição de 1988 e do início dos anos 2000, quando as
políticas sociais se adensaram no interior do Estado Brasileiro e desenharam modelos de
gestão com base em sistemas únicos e pactos federativos reguladores, fez-se necessário
PA

um conjunto de normas e exigências de tecnificação e de profissionalização.


16
Vale destacar que, na história da administração pública brasileira, em diferentes pe-
ríodos, houve a predominância de modelos com base, inicialmente no patrimonialismo,
transitando para o modelo burocrático ao final da década de 1930 e, posteriormente,
com a reforma do Estado, instala-se um modelo de gestão pautado no gerencialismo
(NOGUEIRA,1988) (BENTO, 2003). Destaca-se, no entanto, que nenhuma dessas fases
podem se considerar totalmente superadas.
17
A Esfinge de Tebas colocava esse desafio.
91

no setor de serviço – lócus das ofertas das políticas sociais. Portanto, há


uma tensão entre um amálgama que envolve o profissional, o produto do
seu trabalho, as condições institucionais e organizativas, e, a tendência de

S
fragmentar e separar o processo de trabalho do seu produto. Como afirma

PE
Lukács (1998):

A
A fragmentação do objeto da produção é também necessariamente a frag-

/C
mentação do sujeito. Em consequência da racionalização do processo de
trabalho, as propriedades particulares humanas do trabalhador aparecem

TA
cada vez mais como simples fontes de erro, racionalmente calculado de
antemão, desde as leis parciais e abstratas. O homem não aparece, nem

LE
objetivamente nem no seu comportamento em relação ao processo de
trabalho como verdadeiro portador do processo (LUKÁCS, 1989, p. 103).

CO
Não é o centro do nosso debate retomar a categoria trabalho concei-
tualmente, mas mostrar um caminho reflexivo que tem impacto no cotidiano
O
sobre a necessidade de dialogar entre a capacidade formada intelectual e
D
tecnicamente, e as categorias estruturantes do mundo do trabalho. Trata-se
de identificar a separação da ação intelectual e transformadora, assim como
O

a separação entre o processo de trabalho e seu produto (LUKÁCS, 1989).


V

Naturalmente, esse caminho também pode ser lido a partir da realidade do


SI

trabalho dos assistentes sociais no interior das instituições executoras dos


U

direitos sociais, na medida em que temos, no arcabouço legal dessa profis-


CL

são, uma direção ético-política que define nossa relação com a ampliação
dos direitos, da cidadania sob os marcos da democracia.
EX

Entre as posições éticas dos assistentes sociais e os princípios e


diretrizes das políticas sociais desse período pós Constituição Federal de
SO

1988 há convergências, pois elas também reconhecem valores como uni-


versalização de acesso, participação social, democratização da gestão, o
U

que seria, a princípio um elemento facilitador para o exercício profissional.


No entanto, esse encontro de convergências axiológicas se consubstancia
RA

no interior de organizações, nas quais a dinâmica está definida pela égide


da burocracia e da tecnocracia que pode representar, ao mesmo tempo, o
PA

reforço do poder, da alienação e do controle, como também um processo


de organização de gestão capaz de se fazer democrática e universal. É essa
tensão e essa possibilidade que nos conduz nesta reflexão.
A complexidade do tema (burocracia/tecnocracia e o trabalho
profissional) desenha-se com a introdução de diferentes elementos sin-
tetizados no interior dos espaços institucionais: (i) a presença de sujeitos
92

(profissionais/trabalhadores, usuários e gestores) possuidores de saberes e


práticas diferenciadas; (ii) a estrutura de regramento e, portanto, organizativa
da instituição; (iii) as definições de demandas e entregas de determinada

S
política social; e (iv) a regulamentação e saber intelectual que moldam os

PE
profissionais e disputam seu lugar e saberes.
Este estudo se dedica às estruturas organizativas das unidades pres-

A
tadoras de serviços governamentais e não governamentais, mas com o olhar

/C
voltado ao diálogo entre as tradições, os procedimentos e as dificuldades

TA
dos agentes operadores das políticas sociais, tanto no que concerne as suas
explicações quanto à necessidade da busca dos caminhos de mudanças

LE
operadas por profissionais, situados ou não no escopo intermediário das
organizações públicas. Desse modo, o fio condutor também se deita sobre a

CO
ideia de que nas entranhas administrativas se tomam decisões e se expressam
os conflitos e contradições, retirando dos procedimentos mais corriqueiros
O
a ideia de neutralidade e lhes conferindo status de lócus político.
D
A organização dos conteúdos entrelaça diferentes focos, ao mesmo
tempo em que puxa diferentes fios que tecem o tema, sobretudo nas suas
O

faces entre os limites burocráticos/tecnocráticos nas organizações e o tra-


V

balho intelectual e autônomo. Desse modo, iniciaremos com a apresentação


SI

dos pontos fundamentais que demarcam a burocracia e a tecnocracia com


U

os nuances de que aprofundam a divisão do trabalho e a dimensão política.


CL

A influência dos modelos de gestão patrimonialista, burocrata e gerencial


como mais um delineador das entranhas das relações no interior das or-
EX

ganizações para, ao final, buscarmos caminhos de enfrentamento, tanto


pela via da recuperação qualitativa do trabalho profissional, quanto pela
SO

capacidade de aprimorar formas de gestão nas organizações. Caminhemos


timidamente como quem puxa as tramas.
U
RA

Burocracia e as relações institucionais


PA

A burocracia foi adotada no senso comum como uma série de


procedimentos, via de regra, utilizados no setor público para dificultar e/ou
atrapalhar processos que seriam muito simples, mas que acabam se com-
plicando. Também é compreendida como forma de organizar, padronizar
e regulamentar, dando institucionalidade e impessoalidade às organizações.
No entanto, a burocracia é muito mais do que isso, uma vez que autores
93

como Max Weber, Mauricio de Tragtenberg e Fernando Prestes Motta18


trataram o tema com a profundidade que ele merece, estabelecendo as
devidas interlocuções com as determinações advindas das estruturas de

S
poder econômico, social e político, alocado em todo o tipo de organização

PE
formal. Para Motta (1984a, p. 32): “as virtudes da burocracia são as mesmas
do capitalismo: um mundo de dominação e da falta de sentido. Assim, a

A
burocracia, que é a forma de organização mais racional, acaba sendo rigo-

/C
rosamente a mais irracional”.

TA
Assim como numa trama, um tema puxa o outro. Entender os
fundamentos da burocracia requer o acoplamento da rígida divisão do

LE
trabalho e seu rebatimento, tanto na necessária vinculação ao produto final
como na cooperação do trabalho. A leitura das relações institucionais com

CO
uma lente crítica constrói binômios como: cooperação/divisão, autonomia
intelectual/alienação e práxis/rigidez de regramento.
Ao transitar do senso comum para a formulação científica sobre
O
o tema da burocracia, todos os seus mais influentes autores a apresentam
D

como produto histórico associado à dominação e intrínseca às mais diferen-


O

tes estruturas administrativas, por exemplo, o Estado, a fábrica. Inclusive,


V

é intrínseca nas organizações de adesão ideológica, como os partidos e


SI

sindicatos, ao mesmo tempo em que reconhecem o Estado e as empresas


capitalistas impulsionadores da burocracia. Essas estruturas têm a expertise na
U

execução dos três sustentáculos da burocracia: dominação, alienação e poder.


CL

Em um texto publicado em 2001, Fernando Prestes Motta se dedica


a apontar posições de Maurício de Tragtenberg como quem homenageia um
EX

grande pensador e trata de dois pontos essenciais: a dominação burocrática


travestida na necessidade de regramento como o melhor caminho para o
SO

trato igualitário, e do seu avesso definido pela emancipação19. Em Motta


(1984b, p. 69), lê-se: “A opressão no mundo moderno tomou novas formas
U

e generalizou-se. Da mesma maneira, a luta contra a opressão precisa ser


RA

multiforme, descobrindo modelos de organização diversos e mais eficazes


que os da opressão”.
PA

Pode-se apreender dessa compreensão que, nas organizações, o uso


da tecnologia e da tecnocracia não é neutro, ao contrário, tem como um
18
A escolha desses autores é recorrente da importante contribuição no estudo da buro-
cracia e das relações institucionais. Maurício de Tragtenberg e Prestes Motta escreveram
sobre esse tema à luz das obras de Max Weber. Ao longo deste capítulo, dialogaremos
com os ensinamentos desses autores.
19
O tema emancipação será tratado no último item deste capítulo.
94

de seus fundamentos a necessidade de disciplinar, não apenas o processo


de trabalho, mas o modo de viver e de pensar. Não se trata de abandonar
ou negar a necessidade de organização, do aprimoramento e destreza no

S
uso das técnicas e da tecnologia, mas de abordar e reconhecer que sempre

PE
estará eivado de formulação teórica e ideológica. Esse reconhecimento
pode vir a oferecer ao profissional a capacidade de resistir e reconhecer

A
a práxis como uma possibilidade. No entanto, só se alcança esse patamar

/C
de formulação se envergarmos nossa leitura para o outro lado (dos efeitos

TA
disciplinadores), pois somente assim poderemos saber qual a medida do
enfrentamento necessário. Essa lógica pauta-se em Saviani (1983) ao tratar

LE
dos caminhos metodológicos diante dos embates ideológicos:

CO
[...] não basta anunciar a concepção correta para que os desvios sejam
corrigidos; é necessário abalar as certezas, desautorizar o senso comum. E,
para isso, nada melhor do que demonstrar a falsidade daquilo que é tido
O
como obviamente verdadeiro demonstrando ao mesmo tempo a verdade
D
daquilo que é tido como obviamente falso (SAVIANI, 1983, p. 63).
O

No cerne do estudo da burocracia e da não neutralidade tecnológica,


V

está a divisão de trabalho, a disciplina/obediência, e o segredo de elementos


SI

necessários para o exercício da dominação e da alienação. Para Tragtenberg


U

(1980, p. 188), “a burocracia constitui um sistema de condutas significativas


CL

e não só sistema de organização formal”. O mesmo autor, ao tratar da posi-


ção weberiana, sobre a especialização e a dominação, afirma: “A burocracia
EX

implica no predomínio do formalismo, da existência de normas escritas,


estrutura hierárquica, divisão horizontal e vertical de trabalho e impessoa-
lidade no recrutamento dos quadros” (TRAGTENBERG, 1980, p. 139).
SO

Sob essa lógica, a função de administrar adquire conotações de


uma nova especialização no trabalho, portanto, a escolha de um dirigente
U

no interior das organizações não se faz por mérito ou honraria, mas pela
RA

capacidade técnica. No entanto, apesar da suposta impessoalidade nas


funções de supervisão e de mando, reconhece-se uma linha tênue entre
PA

a oficialidade e o encurvamento aos desejos pessoais dos mandantes em


qualquer nível.
A divisão do trabalho também adentra os espaços da prestação de
serviços. Mesmo que se organize pela especialização dos saberes, não pode
prescindir de um debate sobre as diferenças ideológicas e de concepção so-
bre temas comuns que permeiam as políticas sociais, como direito, proteção,
95

cidadania, responsabilidades estatais etc., o que resulta na cooperação/divisão


no interior das estruturas organizativas.
O tema da divisão do trabalho nos remete, automaticamente, à

S
dominação e à alienação como pontos fulcrais em qualquer processo de

PE
trabalho, pois exerce diferentes separações: o estranhamento do trabalhador
com o processo total de produção, a apartação entre os que planejam e

A
os que executam – do trabalho manual e intelectual, e a separação entre o

/C
processo e o produto final. Ao tratar dos efeitos da alienação na burocra-

TA
tização das organizações modernas, incluindo o setor público e inspirado
na principal obra sobre a burocracia de Marx Weber intitulada Economia e

LE
Sociedade, Motta (1984a) afirma:

CO
A alienação diz respeito a uma situação em que as pessoas não falam em
seu nome, não têm o domínio do seu próprio destino, não são incluídas
nos processos de decisão, mas são faladas pelos seus dirigentes (MOTTA,
O
1984a, p. 73).
D

O lócus da execução do trabalho profissional do assistente social


O

está eivado de relações de poder, de disciplinamento, de controle, alienação,


V

mas também composto por espaços de cooperação efetiva, de construção


SI

de espaços democráticos, de alternância de nichos de saber/poder. No


U

entanto, há que se ajustar as lentes da leitura institucional para reconhecer


CL

a realidade de suas relações.


EX

Relações institucionais: dominação e superação


SO

As relações institucionais se expressam em diferentes dimensões:


entre os trabalhadores e usuários, trabalhadores e chefias, e entre trabalha-
U

dores e trabalhadores. Essas relações estão quase sempre envoltas e repro-


RA

duzindo os fundamentos da burocracia. Isso tudo em nome da necessária


racionalidade, da disciplina nas ações e da neutralidade técnica.
PA

Esse é mais um fio da nossa trama, pois são inúmeros os estudos


sociológicos, administrativos, psicológicos que tratam das organizações
e, em sua maioria, tentam desvendar a ambiguidade entre a correlação de
força do ajustamento e da emancipação no processo de prestação de servi-
ços. As diferentes linhas interpretativas ampliam o leque sobre o papel das
organizações na regulação da sociedade. Esse tema não pode ser tratado
96

com fluidez, dada a sua complexidade e sustentação para os muitos debates


que influenciaram a formação dos assistentes sociais, sobretudo a partir da
década de 1980.

S
Madel Luz (1981), ao fazer uma análise política das instituições,

PE
retoma o tema da disputa por hegemonia dos saberes e poderes, e destaca
a perversidade das amarras invisíveis. Assim, ao tratar da transversalidade

A
própria das instituições por onde perpassam instâncias econômicas, polí-

/C
ticas, ideológicas, e ao reconhecer a dimensão dialética dessas das relações

TA
institucionais, a autora destaca seus efeitos não ditos oficialmente:

Este sistema ideológico enquadra o cidadão de todos os lados, integra-o

LE
desde a infância no universo escolar e mais tarde no da Igreja, do Exér-
cito, da Justiça, de Cultura, dos lazeres e mesmo do sindicato e, assim

CO
até a morte, sem lhe deixar o menor repouso. Essa prisão de mil janelas
simboliza o reino de uma hegemonia cuja força reside menos na coerção
que no fato de que as barras são tanto mais eficazes porquanto menos
O
visíveis (LUZ, 1981, p. 31).
D

Vale absorvermos uma preocupação dos pesquisadores e dos assis-


O

tentes sociais quanto à influência das dinâmicas das instituições no cotidiano


V

profissional que, sem a devida suspensão crítica, acabam por tornar os


SI

profissionais/trabalhadores dessas estruturas como amantes de suas regras,


U

ofuscando ainda mais sua capacidade de buscar caminhos de superação.


CL

Atualmente, trava-se um importante debate sobre a relação dos


serviços com os territórios como caminho para a adequação das ofertas e
EX

provisões às realidades locais, mas, mais do que isso, focaliza o território


como forma de ampliar a lógica coletiva e politizada na prestação de ser-
SO

viços. O fato é que a leitura de territórios também se faz por demarcações


e por muros na maioria das vezes invisíveis, o que exige dos profissionais
U

o reconhecimento da presença desses muros (ou barras, como os chamou


Madel Luz) para que possam ser transpostos. Elencamos aqui alguns deles
RA

que: (i) separam o direito do acesso aos bens e serviços; (ii) dificultam a
passagem da abordagem individual para o coletivo; (iii) impossibilitam a
PA

leitura da realidade de vulnerabilidade e as especificidades daquele terri-


tório; (iv) apartam as políticas setoriais, impedindo uma ação articulada;
(v) segregam; (vi) obscurecem as potencialidades e a força políticas dos
cidadãos que buscam os serviços.
O reconhecimento das barras e muros é o primeiro passo para a
construção de caminhos para derrubá-los, e é necessário também reconhecer
97

que, numa perspectiva dialética, a configuração da hegemonia é mutável. Ao


materializar os saberes, técnicas e os componentes valorativos em práticas, os
profissionais podem e devem definir estratégias contra a subalternização20,

S
fruto de uma relação de disciplina e poder.

PE
Prática profissional e a tecnocracia

A
/C
Ao iniciarmos esse debate, destacamos que há uma diferença entre

TA
o aprimoramento tecnológico na execução e gestão dos serviços, que é con-
siderado algo essencial, e a tecnocracia como um conceito formatado, tanto

LE
pelo uso da tecnologia quanto pela apropriação política. Assim, podemos
afirmar que a técnica e a tecnificação do trabalho e da gestão nas políticas

CO
sociais e serviços não são neutras e qualquer instrumental sempre tem seu
domínio configurado por ditames ideopolíticos
Antes de adentrarmos, especialmente, no tema da tecnocracia,
O
registramos que a ampliação de procedimentos técnicos e instrumentais,
D

sobretudo os de informação informatizados, podem e devem ser conside-


O

rados avanços no interior das organizações. Desse modo, a interlocução


V

entre o trabalho profissional, a organização e os avanços tecnológicos não


SI

podem ser tratados apenas com uma visão maniqueísta e inculcadora de


que as mazelas burocráticas no cotidiano do trabalho sempre serão fruto da
U

organização da máquina e que os trabalhadores/profissionais são sempre


CL

suas vítimas.
Nogueira (1997), quando escreveu sobre o dilema da descentra-
EX

lização participativa, preocupado, também, com o aprimoramento dos


profissionais que exercem função de gestão21, resgatou, ao abordar o tema
SO

do gerenciamento, a dimensão política e a capacidade de domínio da tec-


nologia, ao afirmar:
U

Porém se nas diversas instâncias de governo, o gestor de políticas sociais


RA

não inova sua tecnologia e sua linguagem não amplia sua cultura e seus
20
O uso do termo subalternização tem ancoragem tanto na leitura de classe adotada por
PA

Gramsci (2007), que trata do poder político sob a égide da práxis das classes subalter-
nas, como no termo cunhado por Yazbek (1993), ao tratar da relação dos sujeitos como
usuários dos serviços.
21
Os assistentes sociais têm, como uma de suas atribuições na lei que regulamenta a pro-
fissão, a função de gestores de políticas sociais, conforme expresso na Lei 8.662/93, em
seu Art. 4°, que trata das competências do assistente social: “I - elaborar, implementar,
executar e avaliar políticas sociais junto a órgãos da administração pública, direta ou indi-
reta, empresas, entidades e organizações populares” (BRASIL, 2012, s.p).
98

conhecimentos, provável que esse processo fique mais travado e defor-


mado. Hoje é vital, para qualquer um, encarar seriamente o desafio da
qualificação, aprimorar a capacidade técnico-política de conhecer critica-
mente o mundo, governá-lo e transformá-lo (NOGUEIRA, 1997, p. 19).

S
PE
Naturalmente, o tema da política tem diferentes dimensões inter-

A
pretativas e, neste caso, o tratamos como o resultante do lugar do diálogo

/C
e da disputa de projetos societários, do reconhecimento da existência do
contraditório, o respeito às lutas por emancipação e da leitura dos anta-

TA
gonismos de classe. Nesse lugar da política, suplanta-se o clientelismo, no
qual vigora e se impõe a subordinação dos favores.

LE
O debate da tecnocracia por sua dimensão política foi abordado
por Raymundo Faoro (1973), em um consistente texto sobre tecnocracia e

CO
política. Nele, o autor faz o resgate dos precursores do tema em diferentes
cenários e contextos políticos e econômicos. Vale destacar o apontamento
O
de Faoro (1973) para a interlocução entre a “classe de tecnocratas”. Ao
D
tratar os tecnocratas sob essa perspectiva, o autor reconhece a sua influên-
cia induzida pelo planejamento e por se conceberem como dirigentes ao
O

serviço dos detentores dos meios de produção.


V

O cerne do debate está posto exatamente na relação, às vezes


SI

conflituosa, mas que também pode ser pacífica, entre a técnica e a política,
U

tanto nas estruturas privadas de grandes organizações do mundo produtivo.


CL

quanto na estrutura de gestão estatal. Faoro (1973) dialoga com conceitos


caros para os operadores das políticas sociais, como é o caso da relação
EX

com a democracia na participação popular. Afirma o autor:

O Estado técnico, alheio ao combate à democracia, sem que seja antidemo-


SO

crático retira da democracia sua substância. As decisões tecno-científicas


não se coadunam com as manifestações da vontade popular, sujeitas a
U

juízos que as tornam irracionais, a caprichos extraviados, ao arbítrio ina-


ceitável num mundo pré-ordenado (FAORO, 1973, p. 159).
RA

Estamos diante de um pêndulo entre o político/ideológico e a su-


PA

posta neutralidade racional. O uso de argumentos de que a técnica, calcada


na cientificidade e/ou o uso da tecnologia, é atributo do bem que suplanta
a influência axiológica de dirigentes e de profissionais, não tem nenhuma
sustentação conceitual, ao contrário, firma-se numa lógica maniqueísta e, ao
mesmo tempo, alimenta-se de ingenuidade. Assim, em qualquer dimensão
que se aborde o tema “tecnocracia” e “tecnocratas” não necessariamente
99

se está falando da suplantação da política pela técnica, mas, ao contrário,


está se evocando o desafio de aprimoramento da técnica como forma de
alcançar objetivos que têm sua ancoragem no campo ideológico e político,

S
sobretudo para profissionais que atuam em políticas públicas, como é caso

PE
dos assistentes sociais.
Bobbio, Matteucii e Pasquino (2009), ao tratarem do tema da tecno-

A
cracia no dicionário de política, concedem a dimensão da influência e poder

/C
das categorias profissionais no interior das organizações. O texto considera

TA
que a tecnocracia é um dos conceitos mais ambíguos das ciências sociais,
e passa a delineá-lo a partir da amplitude histórica do conceito. Dentre as

LE
ambiguidades, interessa-nos a que se relaciona com as competências e o
poder dos detentores dos atributos tecnocratas, assim posto:

CO
Na verdade, ela (ambiguidade) vai desde a tese que configura tal poder
como mera capacidade de influenciar, mediante um papel de consultoria
O
técnica, e desde as decisões dos órgãos públicos, até a tese que individua-
D
liza na Tecnocracia um regime social caracterizado pela emancipação do
poder das suas tradicionais conotações políticas e pela tomada de uma
O

configuração diferente, despolitizada e de “competência” (BOBBIO;


V

MATTEUCII; PASQUINO, 2009, p. 1233).


SI

Naturalmente, o autor evoca a ideia força da tecnocracia, retomando


U

o fragmento de Kratos (força), e que se embute em outros conceitos como


CL

a democracia, aristocracia, dentre outros. Ainda, em relação às ambiguidades,


pode-se ler nesse verbete um último aspecto que se refere à tecnocracia
EX

como enquadramento social dos tecnocratas e daí uma derivação grupo


profissional (os tecnocratas) com identidades contrastantes e direção política
SO

(BOBBIO; MATTEUCII; PASQUINO, 2009).


Retornando ao texto de Faoro (1973), o autor reporta-se a James
U

Burnham22 e aprofunda a relação entre a tecnocracia e a necessidade de


RA

planejamento. Faoro (1973) o faz sem, novamente, desvencilhar-se do


contexto social e histórico, além de mesclar os temas da racionalidade
PA

técnica (com âncora em Weber), da relação entre técnico e político, e da


importante associação com a indução de mudanças a partir do planejamen-
to. Isso nos remete ao cotidiano do trabalho dos profissionais no interior
das organizações operadoras das políticas sociais, que está envolto tanto
na necessidade de aprimoramento tecnológico, sobretudo, no campo da
22
Obra escrita em 1941 sob o título The Managerial Revolution.
100

informação, da produção, da sistematização e do uso de dados, quanto na


capacidade prospectiva de planejamento.
Há aproximadamente 15 anos, verifica-se uma busca por aprimo-

S
ramento no âmbito das estruturas administrativas, incorporando, de forma

PE
decisiva, o uso da tecnologia, em especial, a da informação, por meio de
sistemas cibernéticos que conversam entre si e coadunam informações

A
que constroem importantes bases de dados para serem utilizadas, tanto no

/C
planejamento quanto no monitoramento e avaliação.

TA
Ao mesmo tempo, no entanto, é comum ouvirmos os profissionais
se queixarem do acúmulo de tempo e ações que se dedicam apenas à orga-

LE
nização de procedimentos voltados ao registro de informações e, ainda, a
não utilização desses dados para a organização dos serviços, planejamento

CO
e procedimentos no cotidiano do trabalho. É necessário ter cuidado ao
endossar esse tipo de argumento, pois o aprimoramento tecnológico da
gestão de políticas sociais tem contribuído fortemente para demarcar sua
O
passagem dos modos voluntaristas e clientelistas para uma gestão impulsio-
D

nada por informações da realidade e a necessária organização, articulação e


O

relativa uniformização de procedimentos e protocolos. Além disso, ampliar


V

a transparência, quando os dados são postos para a consulta, contribui para


a democratização das gestões.
SI

O aprimoramento profissional também se dá na medida em que


U

aprofunda o domínio da técnica e da tecnologia sem perder a capacidade


CL

de construir prospectivamente, o que significa ter os pés na realidade e a


cabeça no futuro; não perder ou se perder por um processo tecnificado e
EX

alienante quanto aos fins últimos das ações. E, claro, não perder de vista
o adensamento do modelo democrático e a capacidade de dar robustez à
SO

garantia de direitos sociais; catalisar diferentes posições e habilidades de


forma a integrar convergentemente trabalhadores e usuários, para promoção
U

de mudanças necessárias e qualificadoras em seus resultados; e ter compe-


tência para driblar a rigidez das regras institucionais se e quando necessário.
RA

Em que pese esse ordenamento semelhante a um pequeno recei-


tuário (não era essa nossa intenção), alguns desses pontos merecem apro-
PA

fundamento. São eles:


(i) Capacidade de aprimorar a leitura da realidade – José de Souza
Martins, sociólogo que se ocupou do estudo crítico dos maiores dramas
relacionados à miséria, fome, pobreza, afirmou: “Os problemas sociais não
poderão ser resolvidos se não forem desvendados inteiramente por quem se
inquieta com sua ocorrência e atua no sentido de superá-los” (MARTINS,
101

2002, p. 23). Nessa linha, a leitura aprimorada da realidade, a compreensão


das diferentes desigualdades e as especificidades, acoplam à interpretação de
aspectos históricos, estruturais e conjunturais, adotando categorias analíticas

S
que permitem transitar sistematicamente do senso comum à consciência

PE
filosófica e intelectual. Esses são fatores que sustentam diagnósticos e, por
conseguinte, planejamentos e práticas.

A
(ii) Planejamento e visão prospectiva – As diferentes abordagens

/C
sobre planejamento são comuns ao reconhecer a sua lógica racional, cien-

TA
tífica e técnica do que demandam, além de um diagnóstico aprimorado, a
construção de caminhos sistemáticos de otimizações, análise de condições

LE
objetivas e, também, um importante espaço de decisões. Miriam Veras
Baptista (2000), uma das autoras mais lidas na formação do Serviço So-

CO
cial, quando fala de planejamento, reconhece um processo dialético entre
os movimentos de reflexão, ação, retomada da reflexão. Por outro lado,
O
traz um aspecto fundamental que coaduna com a linha argumentativa
D
deste estudo, quando trata da indissociabilidade das dimensões técnicas e
políticas do planejamento: a dimensão política “decorre do fato de que ele
O

(planejamento) é um processo contínuo de tomadas de decisões, inscritas


V

nas relações de poder” (BAPTISTA, 2000, p. 17).


SI

(iii) Aprimoramento pela capacidade de flexibilizar as regras e a


U

rigidez burocrática – Após essa caminhada reflexiva, há uma convicção


CL

quanto à presença inexorável da burocracia em todos os tipos de organi-


zações e, ao mesmo tempo, o necessário e contínuo esforço para driblar
EX

os seus efeitos nefastos. Esse tópico também embute a dinâmica do setor


de serviços e as diferentes análises sobre como aperfeiçoá-lo. Claus Offe
(1989), ao tratar o tema, traz algo pouco discutido em processos avaliativos
SO

e de monitoramento – a capacidade de flexibilizar as regras:


U

Consequentemente, um critério de qualidade do trabalho em serviços é


RA

que ele não suprima a individualidade e a especificidade da situação de um


“caso” em favor de uma norma de referência rígida nem inversamente,
atribua uma tal às particularidades que as condições normais previstas
PA

por terceiros não sejam realizadas (OFFE, 1989, p. 136).

Essa capacidade de transitar entre a “regra” e o “caso” ou, por


assim dizer, entre o ordenamento e orientações gerais numa organização,
muitas vezes sob a égide da igualdade e da especificidade de cada sujeito
e do território, demanda uma conduta firmada na equidade e, por con-
102

seguinte, um modo de aprimoramento técnico e organizativo. Esse tema


também foi tratado por Nogueira (1990), ao abordar a atuação profissional
do assistente social, a partir de uma leitura sobre as especificidades do Setor

S
Serviços. Nesse consistente texto, a autora localiza o tema a partir do debate

PE
sobre o ordenamento social e o reconhecimento de que as demandas para
os serviços se alocam em grandes determinações, e também representam

A
especificidades, além do reconhecimento do lugar das organizações como

/C
“habituação e regulação” e suas especificidades no capitalismo monopólico

TA
(NOGUEIRA, 1990, p. 151).
Podemos depreender que a organização dos serviços se molda por

LE
diferentes determinantes, como dissemos anteriormente, como fios que se
trançam e se tramam. Desse modo, resta-nos ainda o trato de mais um deles:

CO
a influência do modelo de gestão, em especial, a estruturação administrativa
do Estado brasileiro, tema com o qual caminharemos nessa trama.
O
Dimensão política nos modelos de gestão e sua influência na organização
D

do trabalho
O
V

Analisar o trabalho profissional no interior das organizações exige


SI

chamar ao debate a estrutura de gestão estatal, na medida em que boa parte


U

das políticas sociais são oferecidas em unidades públicas que, além de serem
CL

influenciadas pelas relações burocráticas, refletem os diferentes modelos


de gestão administrativa.
EX

A gestão estatal teve uma trajetória de modificações impulsionadas


pelo contexto econômico, político e social, transitando por diferentes mo-
delos desde o tempo da velha república. Autores como Nogueira (1998),
SO

Bento (2003) e Souza Filho (2011)23 estão entre os que trataram o tema da
U

gestão pública a partir de uma lente sociológica, capaz de imprimir uma


leitura histórica e articulada com o contexto social de cada época. Desse
RA

modo, é possível conhecer a passagem dos modelos de gestão que marca-


ram o Estado brasileiro do patrimonialista para o burocrata, desse para o
PA

gerencial e o social24.
23
Esses autores publicam sobre o tema da gestão do Estado a partir do contexto históri-
co, econômico e político, além de tratarem das possibilidades de mudanças para modelos
que atendam mais ao Estado Social enunciado na Constituição Federal de 1988.
24
Reconhece-se que o modelo de gestão social pouco se concretizou como resposta aos
demais modelos em que pese sua aproximação com os ditames e diretrizes da Constitui-
ção Federal de 1988.
103

As políticas sociais operadas nas estruturas estatais, nas unidades


públicas de qualquer política setorial (saúde, educação, assistência social,
habitação etc.) estão envoltas pela estrutura da gestão que refletem um mo-

S
delo ou um misto deles, como é o caso da estrutura pública no Brasil. Cada

PE
tentativa de superação de determinado modelo (patrimonialista, burocrático,
gerencial) representou a necessidade de aprimoramento do modelo ante-

A
rior; dentre esses, interessa-nos, neste estudo, apontar a adoção do estado

/C
burocrático, pois ele se perpetua, mesmo com a tentativa de transição para

TA
o gerencial e, posteriormente, para o social.
Nos anos 1930, o Brasil institui o Departamento do Serviço Público

LE
(DASP)25, criado em 1937, que passou a organizar, formar e desenhar a
estrutura administrativa. Não só definiu as regras de contratação de pessoal,

CO
de serviços, de comunicação com os cidadãos, mas também estabelecer
muitas outras rotinas administrativas. Em que pese estar dentro da lógica
O
burocrática de regramento e controle26, naquele momento, estruturar a
D
gestão brasileira tinha todo o sentido, pois impunha-se ao modelo patrimo-
nialista em vigor até então, o qual a regra geral é a pura e simples vontade do
O

governante, em que vigora o clientelismo, marcado pelo trato dos favores.


V
SI

A dimensão patrimonialista da administração pública brasileira será


constituída a partir de dois vetores: o da própria estrutura de dominação
U

da coroa, que se expressa através da organização centralizada do poder


CL

central, efetivada pela transmutação da ordem administrativa portuguesa


para o Brasil, e aquele que será forjado pelo próprio desenvolvimento
EX

da estrutura econômica, social e política da ordem colonial brasileira, na


qual o poder dos proprietários rurais será fundamental para a garantia da
ordem legal e administrativa ditada pela coroa. Portanto, desenvolve-se
SO

no Brasil uma estrutura patrimonialista que parte do poder central e se


irradia como referência administrativa adequada para a formalização do
U

exercício do poder patriarcal dos proprietários rurais (SOUZA FILHO,


2011, p. 83).
RA

Ainda, em relação à influência dos ideários políticos nas estruturas


PA

da gestão pública brasileira, é importante destacar a necessidade de subor-


25
O DASP esteve em vigência até 1945, correspondendo ao primeiro período do go-
verno de Getúlio Vargas. Esse departamento tinha como principal objetivo impulsionar
reformas e modernizar a estrutura administrativa do Estado. Pode ser lido mais sobre
ele no livro As possibilidades da Política: ideias para a reforma democrática do Estado, de Marco
Aurélio Nogueira (1998).
26
Burocracia – cuja exacerbação passa a servir mais à alienação e à dominação.
104

dinação própria da burguesia brasileira com o enraizamento do escravismo


com traços de crueldade, de trato vexatório e de violência que serviram
para demarcar a relação autoritária e de subjugação, além do regramento

S
necessário para a organização das relações de trabalho. Retoma-se que esse

PE
mesmo patronato assume a produção urbana e toma o estado de assalto du-
rante séculos (FERNANDES, 1975). Além disso, as iniciativas de reformas

A
na administração pública sempre tiveram relação direta com regimes mais

/C
autoritários ou associados à redução das atribuições estatais. Prevalece o

TA
ritmo lento e resultados pífios que as reformas apresentaram a seu tempo.
Conforme se posiciona Nogueira (1998):

LE
Os principais avanços rumo à absorção, pela máquina administrativa, de
padrões organizacionais e gerenciais modernos, racionais-legais, burocráti-

CO
cos, ocorreram sempre como parte integrante do projeto de regimes fortes,
hostis à democracia, embora nem sempre hostis ao desenvolvimento
econômico ou estabelecimento de vínculos orgânicos com a sociedade
O
(NOGUEIRA, 1998, p. 92).
D
O

Assim, durante as décadas que perpassaram a era republicana do


Brasil desde o Estado Novo até os dias atuais, toda a organização e a oferta
V

de serviços na estrutura pública governamental teve seu modelo marcado e


SI

ampliado pelo burocratismo. No entanto, nunca se desvencilhou das relações


U

pela via informal, fora das regras instituídas e com traços de autoritarismo
CL

(paradoxalmente, o patrimonialismo mescla-se ao burocratismo). Uma


nova investida sobre a reorganização da estrutura administrativa se deu na
EX

década de 1980, com a instalação do Ministério da Reforma Administrativa


(Mare), cuja proposta se delineou sob a égide do modelo gerencial. Seu
SO

grande mentor intelectual foi também o ministro que conduziu essa nova
orientação – Bresser Pereira27.
U

Dentre as diretrizes desse modelo está a orientação de que todos


os processos de execução e gestão devem se voltar para a “satisfação do
RA

cliente”, isso porque o propósito seria se contrapor aos efeitos do modelo


burocrático que privilegiava os processos em detrimento dos resultados.
PA

Assim, o giro para as entregas finais aos cidadãos ou o produto das or-
ganizações seria um caminho a seguir. No entanto, o modelo gerencial
também oferece limitações, sobretudo, na busca por espelhamento com
a administração privada, a exemplo, o uso do termo cliente – um estado
27
Bresser Pereira é autor de inúmeros artigos e livros que tratam do desenho do modelo
gerencial e da condução da reforma do Estado no Brasil.
105

para pagantes/contribuintes –, desconsiderando uma série de elementos,


inclusive os modos de financiamento dos serviços públicos totalmente
diferentes do mundo privado.

S
Devidamente alinhada com o modelo liberal, a gestão gerencial pro-

PE
punha restrições nas atribuições do Estado, o que permitiria que a maioria
das políticas sociais estaria na organização privada com simplificações que,

A
supostamente, superaria a complexidade dos processos burocráticos que

/C
reinavam na estrutura administrativa. Ao que toca mais proximamente ao

TA
nosso estudo, adverte-se quanto ao impacto na relação das organizações
com os cidadãos usuários dos serviços, porque os transforma em simples

LE
consumidores (clientes), subtraindo-lhes o status de sujeitos políticos
e coletivos.

CO
Outro ponto importante a ser destacado quando se volta o olhar
para os modelos de gestão é a possibilidade de instalação da gestão social28.
Definida por diferentes linhas interpretativas, resgatamos aqui apenas a in-
O
terlocução com um modelo de administrar que esteja em consonância com
D

a democratização da gestão e o alargamento do escopo dos direitos sociais


O

e da proteção social. Desse modo, a gestão social seria mais compatível


V

com as diretrizes das políticas sociais enunciadas na Constituição Federal


SI

de 1988, que preconizou a universalização de acesso, a descentralização e


a participação social. Todavia, foi exatamente na década posterior à pro-
U

mulgação da Carta Magna que o modelo adotado foi o gerencial que não
CL

corresponde à lógica do estado social.


Os poucos destaques sobre os modelos de gestão trazidos aqui
EX

tiveram o objetivo de subsidiar uma incursão nos processos organizativos


e gerenciais que, muitas vezes, mesclam-se no interior das organizações
SO

governamentais ou privadas. Cabe destacar que, mesmo com as possibili-


dades de avanços nos modelos de gestão, é perceptível que a presença do
U

burocratismo e do patrimonialismo não deram conta de superar de vez o


RA

legado clientelista que ainda disputa espaço com a perspectiva transparente,


republicana e democrática.
PA

Em que pese a discussão do nosso tema estar concentrado no modo


como a burocracia se localiza nas entranhas das instituições e, portanto,
influencia as relações e o cotidiano do trabalho, temos que reconhecer que
28
Esse tema tem inúmeros estudos, cujos fundamentos vão desde a associação com
as transformações do modelo produtivo até o aprofundamento de modelos de gestão
participativa e a ampliação das políticas sociais. Alguns autores podem ser lidos sobre os
temas, como: Bernardo Kliksberg, Ladislau Dowbor, Mariângela Belfiori, dentre outros.
106

essa leitura tem referência intrínseca com os antagonismos que se alocam


na sociedade de classes e, por conseguinte, no Estado e de sua ordem
administrativa. Assim, as ações e orientações na operação de dada política

S
pública serão sempre influenciadas pelo modelo de gestão adotado.

PE
Souza Filho (2011), ao tratar da burocracia nas estruturas estatais,
recupera Weber e afirma:

A
/C
A mecanização rigorosa do aparato burocrático, estabelecida através de
salário, carreira que não depende da arbitrariedade, sentimento de honra

TA
estamental e possibilidade de crítica pública, além de ser combatível com
a “subordinação incondicional aos superiores” estrutura o caráter profis-

LE
sional “objetivo” do cargo, facilitando a adaptação às condições objetivas
dadas (SOUZA FILHO, 2011, p. 66).

CO
Essa afirmação também encontra ancoragem em outros autores
que tratam dos efeitos da burocracia nos trabalhadores, ou mesmo das
O
especificidades das estruturas burocráticas estatais. Além disso, nos remete
D
ao seu reverso, ou seja, caminhos para o enfretamento dos mecanismos de
O

subordinação e de dominação e, do ponto de vista específico do trabalho


dos profissionais intelectuais (como é o caso do assistente social), reconhece
V

a capacidade de resistir ao nivelamento por sua autonomia crítica, teórica


SI

e ética.
U
CL

Caminhos de enfrentamento
EX

Até aqui, estabelecemos uma linha argumentativa que induzia à


leitura crítica da estrutura das organizações, adentrando em seus meandros
SO

mais nefastos sobre a capacidade silenciosa e dissimulada de, em nome da


ordem e impessoalidade, imprimir poder e dominação. Em função disso,
U

agora é tempo de pensarmos sobre a possibilidade de enfretamento desses


efeitos. Alguns caminhos podem ser traçados e dentre eles se destacam: a
RA

emancipação como contraponto à dominação, a autonomia intelectual em


contraposição ao adestramento do regramento, e a democratização das ges-
PA

tões como resposta ao modelo patrimonialista e burocrático. Como trata-se


de temas muito densos e resultantes de diferentes estudos, apontaremos
neste tópico poucas indicações postas pelos mesmos autores que tratam do
tema da burocracia e tecnocracia. Desse modo, escolhemos os argumentos
que guardam estrita correspondência à suscitação de respostas à dinâmica
institucional até aqui posta.
107

Iniciamos pelo conceito de emancipação, com base no debate rea-


lizado por Tragtenberg29, que dialoga com um amplo espectro do conceito,
que vai desde a “emancipação humana” até a capacidade do aprimoramento

S
do uso da tecnologia para possibilitar a emancipação no mundo do trabalho.

PE
Além disso, também trata com restrições da saída pelo modelo de cogestão,
pois afirmava que a cessão de poder aos trabalhadores deveria ser radical

A
(partilha do poder), caso contrário poderia se tornar mais uma forma de

/C
dominação (TRAGTENBERG, 1980). Sob uma lente crítica, entendia que a

TA
emancipação tem relação direta com a configuração das forças sociais, com
o avanço emancipatório no interior das instituições que não pode e não

LE
deve estar desconectada dos avanços democráticos no âmbito da sociedade.
As possibilidades de enfrentamento dos efeitos perversos da bu-

CO
rocracia pela via da democratização também foram tratadas por diferentes
autores, sobretudo, os que discutem os modelos de gestão. Bento (2003)
se dedica a esse debate, construindo uma possibilidade de gestão que de-
O
nominou “pós burocrática” e conclui: “A potencialidade para repolitizar
D

a esfera pública sobre bases democráticas depende da preservação de sua


O

autonomia contra a colonização pelas lógicas do lucro e da eficiência”


V

(BENTO, 2003, p. 242). Desse modo, o autor estabelece um vínculo com


SI

processos sociais mais amplos e estruturantes que superam a circunscri-


ção do espaço institucional. No entanto, ao mesmo tempo, reconhece a
U

necessidade de apostar em processos democratizantes, como os conse-


CL

lhos gestores, apesar dos percalços nas instâncias decisórias e na divisão


de poder entre sociedade civil e estado, e na fragilidade técnica e política
EX

dessas instâncias de controle.


Duas outras considerações ainda são fundamentais ao tratarmos o
SO

caminho da democratização como uma forma de insulamento da burocra-


tização. O primeiro deles é reconhecer que as políticas sociais são sempre
U

espaços politizados, resultantes de lutas e de disputas por poder, portanto,


a destreza e a eficiência da técnica é também um instrumento de disputa
RA

de poder. O segundo ponto diz respeito ao fato de que a democracia não


é, necessariamente, o espaço do consenso, e, sim, da disputa de ideias e
PA

aspirações com diferenças saudáveis iluminadas pela construção de espaço


democrático que extrapola os muros institucionais e alcança as lutas sociais
mais amplas.
29
Destaca-se que Maurício de Tragtenberg era um intelectual totalmente preocupado
com a construção de respostas para problemas do seu tempo, além de ser um anarquista
que traduziu Weber e foi um dos maiores intelectuais que escreveu sobre a burocracia.
108

Por fim, ainda nos resta apontar o caminho da autonomia intelectual


como possibilidade de enfrentamento dos efeitos perversos da burocracia,
autonomia essa também expressa pela recuperação da capacidade intelectual

S
e do reconhecimento do “saber” e das “verdades” trazidas por seus usuá-

PE
rios (população a quem se destinam os serviços), a partir de um desmonte
da hierarquização de saberes. Esse caminho pode contribuir tanto para a

A
construção de saberes transdisciplinares como para a compreensão das

/C
reais necessidades dos que buscam os serviços, levando às novas regras e

TA
práticas. Apostamos na possibilidade de construção de que outro produto,
além dos serviços e benefícios que buscam, pode ser adquirido por todos

LE
os sujeitos das organizações – o exercício da democratização – favorecida
pela instituição de espaços de participação. Trata-se, portanto, da forma

CO
como se estabelece a relação entre a organização e a sociedade civil. Segun-
do Gramsci (2000 apud SOUZA FILHO, 2011, p. 75), há a necessidade de
O
uma contínua adequação da organização ao movimento real, um modo
D
de equilibrar os impulsos a partir de baixo com o comando pelo alto, uma
contínua inserção dos elementos que brotam do mais fundo da massa
O

na sólida moldura do aparelho de direção, que assegura a continuidade


V

e a acumulação regular das experiências: ele é ‘orgânico’ porque leva em


SI

conta o movimento, que é o modo orgânico de revelação da realidade


histórica, e não se enrijece mecanicamente na burocracia; e ao mesmo
U

tempo, leva em conta o que é relativamente estável e permanente ou que,


CL

pelo menos, move-se numa direção fácil de prever, etc. (GRAMSCI, 2000
apud SOUZA FILHO, 2011, p. 75).
EX

Não se trata somente de aplicar mudanças de rotinas com base


em conceitos de eficácia e eficiência, mas, especialmente, adicionar uma
SO

leitura política ao trato das relações institucionais que expressam os traços


mais marcantes da administração pública brasileira e admitem o convívio
U

pacífico e contínuo do burocratismo com o patrimonialismo. Além disso,


RA

faz-se mister decifrar e buscar formas de enfrentamento da influência da


lógica burguesa e de sua orientação ideológica e política, na maioria das
vezes hegemônica no Estado e na sociedade.
PA

Vasquez (1977), ao tratar da relação teoria/prática, delineia com


aprofundamento o conceito de práxis e, em determinado momento, fala
sobre a essencialidade de manter a consciência ativa:
Se a consciência se mostrar ativa ao longo de todo processo prático.
Resulta daí que é certo que a atividade prática, sobretudo como práxis
109

individual, é inseparável dos fins que a consciência traça, estes fins não
se apresentam como produtos acabados, mas sim num processo que só
termina quando a finalidade ou resultado ideal, depois de sofrer as mu-
danças impostas pelo processo prático, já é um produto real (VASQUEZ,

S
1977, p. 243).

PE
A
Se por um lado estamos afirmando o cruel caminho da dominação/

/C
subordinação nas relações institucionais, por outro, e, ao mesmo tempo,
buscamos elementos capazes de indicar formas de resistência ao proces-

TA
so. Esse tema é importante nesse momento de mediação do desenho das
organizações burocráticas capazes de moldar o corpo e o intelecto. Desse

LE
modo, o resultado da práxis concreta dos sujeitos que convivem no espa-
ço institucional, o que Vasquez (1977) chama de “produto real” pode ter

CO
mais do que transformações, pode chegar à distorção, tanto da capacidade
intelectual do trabalho como do produto final das políticas sociais, que é
O
garantir direitos e ampliar o patamar civilizatório.
D

A complexa trama da gestão de políticas públicas


O
V

Nosso objetivo foi identificar diferentes fios, fundamentos que, se


SI

trançados, tecem o pano de fundo do lócus em que se concretiza o saber


U

profissional e, ao mesmo tempo, opera e recupera o sentido das políticas


CL

sociais, tanto em organizações governamentais como nas não governamen-


tais. Foi assim que elegemos alguns temas centrais, como: a burocracia, o
EX

institucionalismo no âmbito do setor de serviços, a tecnocracia e os mo-


delos de gestão. Todos esses temas foram abordados sob a perspectiva das
SO

relações de poder, que têm diferentes determinações de caráter histórico,


estrutural e das especificidades das relações institucionais internas, como
U

as disputas por saberes e mandos.


A leitura também buscou demonstrar que a dimensão tecnológica
RA

e organizativa tem um papel fundamental no aprimoramento da gestão das


políticas sociais e de sua rede de serviços. Todavia, a destreza do profissional
PA

no manuseio da técnica (considera-se aqui tanto aquelas próprias do fazer


profissional como o aprimoramento tecnológico e informacional) é funda-
mental para a qualificação do trabalho e da oferta de provisões da rede de
serviços onde se atua. Desse modo, uma maior lição se ancora na leitura
crítica das relações burocráticas, tecnocráticas e a capacidade intelectual de
propor caminhos de superação.
110

Também foi nosso fio condutor a relação entre os avanços de


processos organizacionais modernos pautados na construção e no trânsito
límpido de informações, na democratização das relações e o que se pode

S
ter de mais nefasto na burocracia como facilitadora do exercício do poder,

PE
a divisão do trabalho que parcela também os homens, a separação entre o
trabalhador e o seu produto – a alienação.

A
Cabe uma retomada do tema sobre a articulação da teoria/capa-

/C
cidade intelectual adquirida e da prática, com um movimento dialético e

TA
contínuo com vistas à transformação da realidade. A capacidade intelectual
dos trabalhadores/profissionais pode e deve ampliar horizontes e rever-

LE
ter o institucionalismo. Não se trata de uma visão idílica da capacidade
profissional sobre a possibilidade de fazer a revolução a partir desse lugar

CO
(fazer profissional no interior das organizações), mas sim de reconhecer a
possibilidade de resistir ao curso natural da burocracia que divorcia o fazer
O
do seu resultado, que, em última instância, deve atender às necessidades
D
da população e garantir proteção, a mesma burocracia que restringe a ca-
pacidade criativa e intelectual dos trabalhadores, adestrando-os para que se
O

tornem meros operadores de regras.


V

Desse modo, recuperar aqui a capacidade criadora e o compromisso


SI

ético dos profissionais significa chamar à baila o espessamento da leitura


U

histórica, estrutural e crítica da realidade social e institucional; a capacidade


CL

de estabelecer estratégias de luta e de resistência a toda forma de domina-


ção; de adquirir destreza no uso do instrumental técnico e informacional
EX

a serviço da democratização das relações institucionais; e, por fim, de se


posicionar a favor dos direitos sociais de forma intransigente.
A cultura cooperativa, pautada em relações institucionais horizontais
SO

e adensadas pela revolução tecnológica, permite processar informações com


mais precisão e rapidez. Esses quesitos são fundamentais para a construção
U

de caminhos de enfrentamento da rigidez do regramento e, mais do que isso,


RA

enfrentamento da dominação como um dos mais perversos produtos da


burocracia. Destaca-se que a proposição de cooperação está pautada numa
PA

perspectiva de relações construídas pela sintonia e convergência ideológica,


política e conceitual, capaz de reconhecer diferentes responsabilidades e es-
tabelecer conquistas coletivas com todos os sujeitos envolvidos nas relações
institucionais, incluindo, sobretudo, a população destinatária dos serviços.
Há que se localizar os propósitos de construção coletiva no contexto
histórico das políticas sociais e no chão das instituições. A leitura conjuntural
111

também é um importante elemento de análise e, nesse sentido, reportar-


mo-nos ao retrocesso no sistema protetivo brasileiro (iniciado em meados
de 2016 a partir do golpe à frágil democracia recente com apenas 30 anos

S
e em processo de consolidação), pois o impacto tem recaído não apenas

PE
na diminuição significativa dos investimentos nas políticas sociais, mas no
modo autoritário e conservador que penetra as orientações, permeando o

A
desenho das estruturas organizacionais. Esse cenário requer urgência na

/C
retomada da capacidade de resistência pelo ideário democrático dentro e

TA
fora das estruturas organizacionais.
Assim, os fundamentos da participação e da democratização preci-

LE
sam ser reforçados e, por conseguinte, uma resistência às amarras da buro-
cracia e da tecnocracia a serviço da dominação, uma busca incessante contra

CO
a subalternidade dos sujeitos que procuram as instituições e um olhar para
o potencial político que se faz a partir do foco no coletivo e na capacidade
de organização política. Trata-se, portanto, do investimento no trabalho
O
profissional competente, com destreza da técnica, intelectualmente denso
D

e, ao mesmo tempo, ter seu horizonte nas possíveis conquistas societárias.


O
V

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Parte II CO
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Ação profissional no campo das Políticas Públicas


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A
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S
117

5.
Políticas Públicas e ação profissional: sinergias necessárias

S
PE
Vera Maria Ribeiro Nogueira

A
/C
Compartilhando as concepções teóricas adotadas pelos autores nos

TA
capítulos anteriores, este capítulo resgata, no âmbito das políticas públicas,
possíveis contribuições para pensar a relativa autonomia dos profissionais no

LE
momento da ação e as possibilidades de construção de pautas interventivas
democraticamente e relacionadas com as demandas dos usuários.

CO
Essas contribuições somente podem ser entendidas a partir da
apreensão do significado das relações intrínsecas entre as políticas públicas
O
(sociais e econômicas), como a intervenção do Estado em sua função estra-
tégica de garantir e manter a coesão societária em torno da lógica do capital.
D

Essa intervenção, balizada pelos processos de lutas sociais, define, em cada


O

contexto histórico, as formas e os conteúdos das políticas sociais (SOUZA


V

FILHO, 2013). Para além das suas formas e de seus conteúdos, aspectos que
SI

vêm sendo exaustivamente estudados, há um ponto a se aprofundar e que


apresenta interesse especial para o objetivo deste texto – o da operacionali-
U

zação das políticas públicas, ou seja, a materialização da intervenção estatal.


CL

Inicialmente, convém marcar as duas concepções que balizaram a


reflexão: as políticas públicas e a ação profissional30, as quais serão consi-
EX

deradas os dois eixos articuladores deste artigo.


Em relação à concepção de política pública, salienta-se a diversidade
SO

conceitual própria de uma área em construção ou, conforme assinala Deleon


(1994), os estudos de política têm uma história longa e um passado curto.
U

Embora as ações governamentais tenham sido o foco de muitas críticas ao


RA

longo dos séculos, a sua análise sistemática, com base na ciência política
(policy31 science), remonta há poucas décadas. No entanto, na sua quase tota-
PA

30
O debate sobre as ações profissionais acentuou-se nas últimas décadas, o que pode ser
verificado nas publicações de autores que vêm oferecendo uma grande contribuição para
o tema. Pode-se citar, entre outros, Marilda Iamamoto, Maria Carmelita Yazbek, Yolanda
Guerra, Regina Celia Mioto, Mabel Torres e Ana Maria Vasconcelos.
31
A distinção entre politics, polity e policy vem sendo tratada em diversos textos, sendo Frey
(2000) um dos primeiros autores brasileiros a apresentar a questão semântica. Polity re-
mete às formas de organização política das sociedades, incluindo as grandes instituições
responsáveis pela manutenção da ordem (poder judiciário, parlamento, poder executivo);
118

lidade, esses estudos apresentam uma abordagem distante de perspectivas


analíticas que levem em conta as contradições dos Estados capitalistas.
Uma das definições mais conhecidas, embora polêmica, é a de

S
Thomas Dye, que conceitua política pública como o que um governo decide

PE
fazer ou não fazer (HOWLETT; RAMESH; PERL, 2013). Seria, em outros
termos, uma escolha feita no sentido de orientar determinado curso de ação

A
ou manter a situação, assim como uma decisão, inalteradas. Atualmente,

/C
as políticas públicas, sociais ou econômicas são os instrumentos privile-

TA
giados do Estado na condução da ordem societária pretendida pelas elites
hegemônicas. Segundo Di Giovanni e Nogueira (2015), a política pública

LE
[...] converteu-se em importante indicador das profundas transformações

CO
ocorridas no relacionamento entre Estado e sociedade, nas instituições
e na política. Com maior ou menor intensidade, o mesmo ocorreu em
outros países do mundo ocidental, com variações que derivaram, em
O
parte, das diferentes histórias e culturas políticas nacionais, mas que, sem
D
dúvida, testemunham a generalização e a intensificação dessa modalidade
contemporânea de intervenção governamental (DI GIOVANNI; NO-
O

GUEIRA, 2015, p. 15).


V
SI

Importa relembrar que as políticas públicas, quando políticas sociais,


respondem pela provisão social de determinados segmentos populacio-
U

nais das sociedades, seja por meio de bens materiais, de oferta de serviços
CL

sociais, de transferências monetárias ou de subsídios. O alcance e o foco


dessa provisão decorrem de fatores econômicos, sociais e históricos, e vêm
EX

sendo objeto de estudos das mais diversas áreas de conhecimento e pers-


pectivas analíticas distintas. Entretanto, interessa a este texto um aspecto
SO

pouco abordado nos estudos de política pública, que são os processos de


sua implementação via serviços, visto que oferecem possibilidades de maior
U

autonomia para os agentes implementadores e, portanto, para a intervenção


RA

profissional, conforme será explicitado no próximo item.


A ação profissional refere-se aos procedimentos e atividades ineren-
PA

tes a uma profissão e é realizada de forma consciente pelos profissionais.


Enquanto ação, contém uma potência intencional derivada da apropriação
pelos profissionais dos fundamentos teórico-metodológicos e ético-polí-
politics descreve a teoria e a prática nas disputas de poder entre os distintos interesses
dentro da política, constituindo o núcleo do sistema político por excelência. O estudo das
relações de governo/governar, policy, designa a análise das ações realizadas ou não pelo
governo (HOWLETT; RAMESH; PERL, 2013).
119

ticos da profissão em determinado momento histórico (MIOTO; LIMA,


2009). Essa apropriação não é homogênea, mas condicionada pela visão
de homem e de sociedade do profissional, em que pesem os esforços das

S
unidades formadoras na busca do perfil desejado para os egressos em cada

PE
tempo histórico.
As ações profissionais contêm em si uma dimensão socioeducati-

A
va e, para além dos processos decisórios sobre gestão de bens e serviços,

/C
concretizam, via serviços (sejam ligados à prestação de bens materiais ou à

TA
linha de assessoria e consultorias), as políticas públicas. Essa competência
das ações, relacionadas aos serviços, coloca essa questão como o segundo

LE
eixo32 do capítulo a ser pensado pela sua influência na ação profissional. Os
serviços, no mundo moderno, organizam-se em uma ordem institucional

CO
historicamente conformada para manter a estabilidade societária e garantir
a expansão do modo de produção dominante. Contudo, pela sua natureza,
contêm peculiaridades que os tornam refratários a controles externos, não
O
sendo possível sua consideração como mercadoria, e assim condensam
D

um espaço de ação direcionado para democratização ou autoritarismo das


O

relações estabelecidas com os usuários pelo profissional.


V

A partir da argumentação apresentada, o objetivo deste capítulo é


SI

refletir sobre os dois aspectos já indicados – a questão da ação profissional


como trabalho em serviço e a implementação das políticas públicas – tendo
U

em vista sua repercussão na dimensão interventiva dos assistentes sociais


CL

ao operacionalizar as políticas públicas. Ou seja, pretende-se colaborar


para o reconhecimento das viabilidades da ação profissional, estabelecendo
EX

alguns nexos de sua sustentação teórica para além da empiria, superando


uma prática reiterativa e fundada no senso comum ou em ações profissio-
SO

nais unicamente coladas aos planos, programas e projetos governamentais,


anulando, assim, a identidade e a autonomia profissional.
U

A intenção não é reativar um papel privilegiado para a intervenção


RA

profissional em detrimento da produção de conhecimento, como em épocas


passadas, mas defender, como assinala Mota (2013, p. 19), “a existência de
PA

uma unidade entre essas dimensões, o que não significa uma identidade,
visto que há uma distinção entre o âmbito da produção intelectual e o da
ação prático-operativa”.
32
Os dois eixos – ação profissional e as políticas públicas – não são os únicos com re-
batimentos sobre a ação profissional, mas a opção por esses dois eixos, no atual cenário
brasileiro, decorre da importância de evidenciar as possibilidades da ação profissional
junto às políticas públicas em tempos de redução de direitos sociais e econômicos.
120

A relação entre o serviço social e a política social foi e vem sendo


analisada com maior ênfase após a redemocratização do país, em 1985. O
retorno ao Estado de direito trouxe à tona as condições precárias da proteção

S
social no tempo da ditadura militar, demandando um empenho teórico em

PE
estudos e pesquisas para realizar um diagnóstico da situação e um empenho
político dos atores envolvidos com a ampliação da proteção estatal e da

A
garantia do direito social nas mais distintas áreas de intervenção. O serviço

/C
social integra esse movimento, destacando-se, inicialmente, sua produção

TA
sobre a assistência social, com estudos que remontam à década de 1970.

Estabelece-se um amplo processo de produção de conhecimento em

LE
torno da política social, que tem se constituído em um pilar central na
consolidação do serviço social como área de conhecimento no campo

CO
das ciências sociais. Este fato favoreceu tanto a inserção da profissão e
de seus profissionais no embate político da sociedade brasileira como,
também, a discussão sobre a intervenção profissional dos assistentes
O
sociais no terreno da política social (MIOTO; NOGUEIRA, 2013, p. 62).
D

Nas duas últimas décadas, houve uma ampliação produtiva e


O

fecunda na produção intelectual do serviço social no Brasil, necessária


V

para superar um passado conservador, dominante na área profissional, e


SI

sedimentar a perspectiva crítico-dialética sobre os macroprocessos sociais,


U

imprescindíveis para apreender os porquês das ações profissionais. Somen-


CL

te em decorrência dessa perspectiva tornou-se factível compreender as


contradições do real no cotidiano dos espaços ocupacionais, dos usuários
EX

dos serviços, as relações de poder institucional, e especialmente o papel


do Estado no mundo capitalista. A partir desse ponto de vista, também
SO

foi possível reconhecer as mediações entre a politics e a policy, no sentido


de estabelecer pautas de intervenção compatíveis com as demandas da
U

profissão no campo das políticas públicas.


A acentuada reversão dos valores e princípios constitucionais que
RA

nortearam a proteção social no Brasil, a partir do golpe de 2016, em um


giro intenso e explícito em direção a um modelo claramente excludente,
PA

com ações restritivas de direito e limites à participação democrática em


todos os setores sociais, aponta para um cenário altamente desafiante para
a profissão. A investida do governo Temer, com a Emenda Constitucional
n. 95/2016, que congelou o gasto público por 20 anos, e as ações preda-
tórias do atual governo em todos os setores sociais exigem ainda maior
conhecimento sobre o fazer profissional, identificando possibilidades de
121

resistência, respaldadas por estudos e análises sobre as consequências das


atuais políticas.
Ampliar a produção de conhecimento sobre o Estado, a sociedade

S
civil e as contradições nacionais, utilizando teorias explicativas pautadas

PE
no materialismo dialético, sobre os ciclos da política em uma perspectiva
processual e as derivações decorrentes da sua existência, como o tecnicismo,

A
as modalidades gerenciais, o autoritarismo e as dinâmicas de articulação

/C
entre o local e o global, torna-se um imperativo inadiável. E, especial-

TA
mente, é imprescindível uma reflexão sobre o impacto dessas questões na
ação profissional.

LE
Implementação de políticas públicas

CO
A concepção atual do ciclo das políticas como um processo e a
O
inter-relação não estanque entre as etapas, mas sua interpenetração, em face
D
da exigência constante de decisões em todos os seus momentos, oferece
possibilidades de ajustes e redimensionamentos de planos e programas para
O

a concretização das decisões políticas. A implementação, portanto, não é


V

mais considerada como isolada e subsequente aos processos decisórios,


SI

mas contém, em si, inúmeras decisões. Por essa razão, um dos eixos deste
U

texto será o debate sobre a implementação das políticas públicas, por se


CL

considerar que essa é a etapa na qual o assistente social mais pode interferir
em sua ação cotidiana, tanto em espaços sócio-ocupacionais voltados à
EX

gestão das políticas públicas como na prestação direta de serviços sociais.


Por sua vez, o aprofundamento dos estudos sobre avaliação das
políticas mostrou que, contrariamente ao que vinha sendo veiculado até
SO

então, a implementação, entendida como a efetiva concretização dos ideais,


objetivos e princípios de determinada política pública, “é enganadoramen-
U

te simples” (FARIA, 2012, p. 8). Com base nessa constatação, reforçada


RA

por estudiosos das políticas públicas (FREY, 2000; CAVALCANTI, 2007;


LOTTA, 2012; HOWLLET; RAMESH; PERL, 2013), a preocupação com
PA

a implementação tornou-se um tema de estudos de diversas áreas a partir de


duas evidências. A primeira delas foi a percepção dos interesses diversos que
permeiam a atuação das burocracias públicas vis-à-vis os processos decisórios
exigidos pela implementação, o que pode alterar radicalmente os resultados
originais definidos para a ação estatal. A segunda foi o equívoco de tratar
como distintas a etapa decisória – ou a formalização de planos, programas
122

e projetos – e a etapa da implementação, entendida como isenta de escolhas


e de novas modelagens em relação ao que se deveria executar. De certa
maneira, entendia-se a burocracia estatal como integrada por atores não

S
políticos, não eleitos, mas profissionais ocupando uma carreira funcional

PE
competente para executar as políticas públicas decididas nas instâncias da
“grande política”.

A
Há certa concordância entre autores quando afirmam que a imple-

/C
mentação corresponde à execução de atividades que permitem a realização

TA
de ações com vistas à obtenção de metas definidas no processo de for-
mulação das políticas. Contrapondo-se a uma visão etapista do policy cicle,

LE
incorporam a ele uma perspectiva processual. A execução das atividades é
também reconhecida como um momento de novas decisões e negociações,

CO
ou seja, institui políticas, recriando ou ajustando as definições programáticas
regionais ou centrais. Nessa ótica explicativa, as vicissitudes, os obstáculos e
O
os problemas da implementação associam-se a questões de natureza variada,
D
como a capacidade institucional e técnica dos agentes implementadores;
problemas de natureza política na implementação dos programas ou ques-
O

tões políticas que “derivam da resistência e boicotes realizados por grupos


V

ou setores negativamente afetados pela política – em muitos casos setores


SI

da própria máquina administrativa estatal” (SILVA; MELO, 1994, p. 10).


U

Na tentativa de explicar os impasses da implementação, duas ten-


CL

dências teóricas foram se construindo na área das políticas públicas: a que


entendia os processos de implementação a partir de uma visão descendente
EX

– ou top-down – e a que indicava que os problemas se localizam em uma visão


ascendente – conhecida como bottom-up. No modelo top-down, os pesquisa-
dores “[...] ignoraram ou minimizaram a importância das armadilhas que
SO

cercavam esse estágio do ciclo político, pressupondo que, tão logo alguma
decisão fosse tomada, o braço administrativo do governo simplesmente a
U

levaria a cabo” (HOWLLET; RAMESH; PERL, 2013, p. 182). Enfatizava-se


RA

a relevância da burocracia de alto nível hierárquico, supondo uma linha de


comando sem questionamento por parte dos níveis burocráticos situados
PA

nos níveis inferiores da administração e atribuindo-lhes um reduzido grau


de discricionariedade.
Presente nessa formulação, identificava-se a lógica da racionalidade
administrativa submetida a uma ordem burocrática hierarquizada e rígida.
Dessa forma, havia o controle total do processo de implementação das
políticas públicas. Os objetivos e as ações encetadas para sua concretização
123

teriam garantida uma articulação linear, inexistindo qualquer espaço para


alterações locais (NOGUEIRA; FAGUNDES, 2015).
Subjacente a essa formulação, repousava a ideia de racionalidade

S
administrativa e uma ordem burocrática hierárquica bastante rígida, com

PE
possibilidades de controle do início ao fim do processo de implementação
das políticas públicas. Supunha-se, ainda, uma articulação interna linear

A
entre objetivos e ações a serem executados, com escassa liberdade para

/C
modificações e novos aportes ao longo da trajetória das políticas. A imple-

TA
mentação seria a sequência lógica dos objetivos estabelecidos, tendo como
premissa “[...] a hierarquia da autoridade, a racionalização dos recursos,

LE
a otimização dos resultados e a separação entre o mundo político e o
mundo administrativo” (CAVALCANTI, 2007, p. 237). Essa perspectiva

CO
aproxima-se do modelo gerencial de gestão e afasta-se de procedimentos
democráticos, considerando-os adequados unicamente aos processos de-
cisórios da cúpula estatal.
O
Já no modelo bottom-up, a ideia-força é a impossibilidade de um
D

controle perfeito no processo de formulação da política até o momento


O

da implementação. Esta é percebida como resultante da interação entre


V

diferentes níveis dos sistemas governamentais e não governamentais, di-


SI

namizada por atores políticos com interesses e expectativas distintas, além


de arenas discursivas e formas de lutas políticas também diversas (FREY,
U

2000; HOWLLET; RAMESH; PERL, 2013).


CL

A formulação da política e a sua implementação não deteriam uma racio-


EX

nalidade inerente e articulada entre níveis hierárquicos, mas sim o ponto


de convergência entre as propostas e os interesses imediatos dos cidadãos
no momento de sua concretização. Estes, por sua vez, utilizam estraté-
SO

gias para garantir seu espaço na obtenção de bens e serviços públicos, as


quais podem provocar mudanças radicais na ordem dos objetivos e metas
U

decididas em níveis superiores (NOGUEIRA; FAGUNDES, 2015, p. 4).


RA

Estudos posteriores, empreendidos a partir da década de 1980,


buscaram unir as duas tendências e geraram modelos híbridos de análise
PA

na tentativa de articular as relações entre diferentes níveis de governo,


além de interditar a restrição de explicações lineares sobre o processo de
implementação.
O aprofundamento da compreensão sobre a operacionalização das
políticas via programas e projetos trouxe outras nuances a serem apreen-
didas, como a indicada por Megie (2010) quanto à impossibilidade de uma
124

abordagem exclusivamente top-down ou bottom-up, devendo-se considerar


o conjunto de atores da ação pública e suas diferentes interdependências
(verticais e horizontais). Conforme o autor, essa perspectiva favorece a

S
dimensão entre os distintos níveis e recupera a transversalidade da ação

PE
pública. Ressalta ainda a relevância de um mapeamento preciso dos níveis
de ação e do papel e interesses dos atores em presença para compreender

A
as interações sociais que estruturam o espaço público (MEGIE, 2010).

/C
Nessa estruturação, devem ser considerados os níveis distintos de

TA
ação pública, conforme indicam Borraz e Guiraudon (2008), ao abordarem
a ação pública e sua metamorfose. Os autores alertam sobre os níveis de

LE
competência hierárquica e que todos têm impacto na formulação da ação
governamental e consequentemente no patamar de cidadania e direito ga-

CO
rantido. O caráter ambíguo da descentralização se faz presente, pois tanto
fragmenta a ação pública como igualmente implica em novas decisões no
O
momento da implementação, o que pode reverter ou mesmo comprometer
D
o estatuto de cidadania diante da discricionariedade dos sujeitos políticos
locais (NOGUEIRA; FAGUNDES, 2015). Ou seja, ao mesmo tempo em
O

que a descentralização leva a uma fragmentação da ação pública, pois novas


V

decisões são tomadas no plano da implementação, ela pode alterar o estatuto


SI

de cidadania em relação à garantia ou não de direitos face à discricionarieda-


U

de dos agentes locais. Nesse sentido, Souza Filho (2013, p. 231) lembra que
CL

a “descentralização não é um valor em si; ela somente se traduz de forma


democrática de expressar um processo de participação e viabilização do
EX

controle das ações públicas”. Assim, torna-se fundamental avaliar como as


decisões nacionais são reconfiguradas no plano local, tornando-o também
um espaço de construção da ação pública (ZITTOUN, 2013).
SO

Esse enfoque sinaliza para a relevância dos agentes estatais imple-


mentadores das políticas públicas. Após a primeira onda de estudos sobre
U

a implementação, levando em conta uma série de sucessos ou fracassos,


RA

tendo como referência os processos decisórios, as análises atualmente são


concentradas em um caminho inverso, ou seja, os atores do nível local
PA

(BOUSSAGUET; JACQUOT; RAVINET, 2010; MEGIE, 2010). Alguns


trabalhos também têm sublinhado a importância de compreender como
as decisões e diretivas do poder central são adaptadas, reformuladas e/ou
bloqueadas pelos serviços locais, notadamente seguindo a lógica de legi-
timar a administração (LASCOUMES; LE GALÈS, 2004; OLIVEIRA;
ABRUCIO, 2011; PIRES, 2012; ZITTOUN, 2013).
125

Autores preocupados com o tema ressaltam ser a produção teórica


sobre a burocracia pública concentrada nos agentes estatais de alto escalão
mais relacionada aos processos decisionais (MEGIE, 2010; OLIVEIRA;

S
ABRUCIO, 2011; LOTTA; PIRES; OLIVEIRA, 2015). Poucos estudos

PE
têm se dedicado a apreender o papel e as funções de um conjunto central
de profissionais, que não apenas supervisiona os agentes implementadores

A
de ponta do sistema, mas especialmente traduz as diretivas nacionais para

/C
o plano local.

TA
No Brasil, as dúvidas e construções teóricas sobre esse grupo de
profissionais têm se destacado devido à expansão desses cargos em passa-

LE
do recente, decorrente dos processos de descentralização, das inovações
no campo da gestão das políticas públicas e do reconhecimento do papel

CO
desempenhado na implementação, sendo o responsável pelas negociações,
formação de redes de atendimento e reorganização da ação pública no
nível local33. Quando se aborda a relevância dos agentes implementadores,
O
conforme indicado anteriormente, é necessário compreendê-los como
D

detentores de uma relativa autonomia, sendo o seu limite informado pela


O

capacidade de legitimar processos de governabilidade local, condicionando


V

seus papéis e funções. Essa afirmação não significa desconhecer os limites


SI

das políticas públicas e da atuação dos agentes implementadores no senti-


do da emancipação humana, mas reconhecer a possibilidade “[...] de uma
U

gestão pública democrática, ou seja, uma administração cuja finalidade


CL

está voltada para a equidade, justiça social, accontability e democracia, numa


orientação de universalização e aprofundamento dos direitos” (SOUZA
EX

FILHO, 2013, p. 220).


Uma recente revisão da literatura sobre o tema é apresentada por
SO

Lotta, Pires e Oliveira (2015), que abordam as competências dos agentes


implementadores e as suas particularidades na administração pública. Os
U

autores discorrem sobre o papel técnico-gerencial e técnico-político. O pri-


RA

meiro se situa mais no interior das agências estatais e o segundo se vincula


ao objetivo de construir negociações e acordos com grupos de interesses
PA

que favorecem a materialização das diretivas superiores ou as ajustam às


demandas locais. Os autores ressaltam que “[...] o papel técnico-político
e sua relevância dependem diretamente da posição desses burocratas no
33
O reconhecimento da relevância desse profissional foi a criação de um cargo na estru-
tura funcional do Estado com a função de implementar as políticas públicas, denominado
de Analista de Políticas Públicas. A legislação não especifica a área profissional desse tipo
de analista, podendo ser o cargo ocupado por profissionais de nível superior.
126

desenho institucional das políticas e, portanto, na cadeia de atores entre a


formulação e a implementação” (LOTTA; PIRES; OLIVEIRA, 2015, p. 33).
Tanto os processos de reforma do Estado, induzidos pelas agências

S
multilaterais com a tônica da governança e governabilidade, como a expan-

PE
são da participação da sociedade civil por meio dos conselhos de gestão e
controle social exigiram compreender as novas competências relacionadas

A
às ações dos assistentes sociais. Essas competências têm uma via de mão

/C
dupla, ou seja, a capacidade de interação com os agentes decisionais e com

TA
os operadores de ponta do sistema; da administração pública com os atores
políticos e grupos populares. Tanto em um caso como no outro a afinida-

LE
de do profissional pauta-se em valorações éticas e políticas profissionais
e pessoais.

CO
Importa observar que o processo de implementação não se reduz
a atividades administrativas e seus dispositivos técnicos, mas possui um
O
caráter social e, enquanto tal, envolve articulações entre o setor público e
D
os destinatários das ações (LASCOUMES; LE GALÈS, 2004).
A sistematização da revisão de literatura sobre a implementação
O

identificou alguns pontos que interessam especialmente para a reflexão


V

apresentada neste livro: a) a relevância dos valores e motivações dos agentes


SI

implementadores para compreender sua atuação e, consequentemente, o


U

resultado das políticas no plano local; b) a grande e importante autonomia


CL

relativa do profissional, decorrente da ação direta em serviços, e a inevitável


influência no resultado das diretrizes políticas e programáticas; c) os valores e
EX

as motivações dos profissionais podem ser influenciados tanto por questões


institucionais e organizacionais como por uma apreensão mais acurada da
realidade institucional e da população usuária dos serviços.
SO
U

A ação profissional do assistente social enquanto trabalho em serviço34


RA

Ao pensar a ação profissional como um serviço, há que se retomar


o papel das políticas sociais em sua origem, ou seja, o direito a condições
PA

básicas de vida. A consideração sobre o nível de proteção e sobre quais


segmentos populacionais serão protegidos é uma decorrência dos tipos
de relações construídas entre o Estado e a sociedade civil e concernente
34
Uma versão inicial do conteúdo deste item está contida no artigo “Serviço Social e os
Serviços - implicações explicações”, publicado na Revista Semina, em 1990, e na Revista
Kera Yvoty, em 2016.
127

ao grau civilizatório de direitos de cada formação societária. Nos países


capitalistas ocidentais, essa proteção foi sendo institucionalizada ao longo
do tempo, influenciada pelo desenvolvimento das forças produtivas e pela

S
ampliação da participação política da classe trabalhadora, além de repre-

PE
sentantes de outros segmentos populacionais anteriormente excluídos de
processos decisórios.

A
Os impactos complexos da construção da proteção social não se res-

/C
tringem unicamente à qualidade de vida das pessoas, mas atingem também

TA
as instituições responsáveis pela proteção e pelas relações socioeconômicas
(ADELANTADO; NOGUERA; RAMBLA, 2000).

LE
As políticas sociais, garantindo condições básicas de vida, são con-
cretizadas, na relação direta com a população, por meio da oferta de bens

CO
e serviços35. O nível de proteção dos países, enquanto construção social,
apresenta uma imensa variedade, desde estado de bem-estar altamente in-
clusivo ou com patamares mínimos de proteção, ao nível de sobrevivência.
O
Há um consenso de que as
D
O

[...] transformações ocorridas no desenvolvimento do sistema capitalista,


a partir das últimas décadas do século XIX, são geralmente apontadas
V

pela literatura como chaves para pensar historicamente a construção da


SI

intervenção estatal, através de políticas sociais e, nesse bojo, a prestação


de serviços sociais (SCHÜTZ, 2009, p. 61).
U
CL

Entretanto, em todo e qualquer nível de proteção, desde os mais


simples aos mais complexos, seja referido à sua funcionalidade, ao grau de
EX

cobertura, ou quanto à extensão dos bens e serviços oferecidos, é exigida


a construção de um aparato legal (legislação, normativas, portarias etc.);
SO

organizativo (instalações físicas, regulamentos, equipamentos, material de


consumo); técnico-operativo (quadro técnico-operativo e administrativo,
U

especialistas, assessores etc.); e fiscal (recursos financeiros), que ofereça as


respostas à proteção social escolhida pelas forças hegemônicas em cada
RA

espaço, seja ele federal, estadual ou municipal.


Fica assim marcado o enquadramento da prestação de bens e
PA

serviços sociais na área das políticas públicas, neste caso, a política social,
cuja prestação é realizada por profissionais de diversas áreas, entre os quais
situam-se os assistentes sociais. Constata-se, no Brasil, a forte presença dos
35
Os subsídios são transferências monetárias realizadas pelo Estado às organizações de
beneficência ou de interesse público que representem papel importante para a economia
do país.
128

profissionais da área do serviço social nos quadros funcionais do setor


público, embora não se constitua um domínio exclusivo. Observa-se que
a realização de serviços e fornecimento de bens, concretizando decisões

S
de políticas sociais, assume uma peculiaridade que os distingue de outros

PE
serviços quanto ao seu público-alvo e tipologia na esfera da oferta e deman-
da. A atuação profissional geralmente é orientada pela oferta dos serviços,

A
acrescida da dimensão socioeducativa presente na ação profissional, o que

/C
conduz a uma ampliação do debate sobre os serviços.

TA
Para a profissão, portanto, na medida em que desenvolve sua ação
no âmbito da gestão ou da prestação de serviços diretos, a apreensão do

LE
seu significado e de sua natureza é fundamental.

CO
O trabalho em serviço e ação profissional O
É pensando na funcionalidade que os agentes implementadores das
políticas estatais têm, na institucionalização das políticas que este texto traz
D

como um de seus eixos interpretativos, as peculiaridades do trabalho em


O

serviços, o que possibilitaria ampliar os espaços democráticos e a fruição


V

dos direitos sociais que ultrapassem o plano formal.


SI

A conceituação sobre serviços e as distinções entre bens e serviços,


apesar de um esforço de analistas e estudiosos de diversas áreas, permanece
U

incerta, continuando no debate atual. Uma das explicações para essa inde-
CL

finição conceitual se liga à diversidade de atividades do setor de serviços,


além das particularidades de produtos e de processo, conforme acentua
EX

Meirelles (2006). Instaurou-se um amplo e longo debate desde os anos de


1939 e 1940, com interrogações sobre as particularidades e especificidades
SO

dos serviços, embora ainda permaneçam atuais as mesmas interrogações


sobre a concepção e a natureza dos serviços (KON, 2007).
U

Como, para os fins propostos, interessa resgatar como a peculiari-


RA

dade dos serviços impactam as ações profissionais dos assistentes sociais


na institucionalização das políticas sociais prestando serviços sociais, não se
PA

pretende retomar o debate sobre o tema, seja no interior da teoria marxista


ou da sociologia do trabalho. Por essa razão, o foco da abordagem centra-se
nas características e propriedades dos serviços,

[...] para sustentar a argumentação quanto à dificuldade de tratar as ações


profissionais em uma perspectiva unicamente gerencial burocrática,
despida de conteúdos políticos e de valores subjetivos. Indica, ainda, a
129

dificuldade dos serviços, pela sua própria natureza, de serem controlados


por agências centralizadas, o que confere um grau acentuado de liberdade
de ação aos agentes implementadores de políticas públicas (NOGUEIRA;
TUMELEIRO, 2015, p. 67).

S
PE
Um serviço existe para atender a uma necessidade humana, que

A
posteriormente torna-se social. Um serviço é, portanto, a transformação

/C
de uma resposta a uma necessidade que, organizada de forma sempre igual
e repetidas vezes, é padronizada e torna-se uma institucionalidade.

TA
O atendimento das necessidades vitais foi, durante um longo período da

LE
história da humanidade, restrito à esfera privada – o comer, o reproduzir
e o morrer eram manifestações pertencentes à vida familiar, ao âmbito

CO
doméstico. Com o desenvolvimento do capitalismo e a imposição de novos
signos reguladores do sistema social, estas necessidades vitais adquirem
uma sobre função e a reprodução vai se expandindo para a esfera pública,
O
ampliando os serviços para seu atendimento (NOGUEIRA, 1990, p. 161).
D

A perspectiva funcional entende os serviços como instâncias


O

construídas para garantir a coesão social e o equilíbrio do sistema. A fun-


V

cionalidade dos serviços seria para garantir a coesão e as formas de socia-


SI

bilidade, anteriormente centradas na família ou na Igreja e posteriormente


U

transferidas para o Estado.


CL

Entretanto, ao mesmo tempo que essa nova organização atende


às demandas emergentes de outra forma societária, passa igualmente a se
EX

constituir em um dos meios de controle e coerção às contradições emer-


gentes da forma de produção capitalista. Conforme Braverman (1981), há
um paradoxo em relação aos serviços sociais: estes deveriam facilitar a vida
SO

e a coesão social, mas têm um efeito contrário. Essa observação de Bra-


verman (1981) refere-se ao processo paulatino de incorporação da atenção
U

às necessidades via serviços às organizações estatais ou privadas. O autor


RA

sinaliza ainda um aspecto essencial: essas organizações têm “seu aparecer


como públicas” (BRAVERMAN, 1981, p. 48), garantindo assim o suposto
PA

padrão de neutralidade do Estado.


Em uma abordagem crítica, Offe (1989) contradiz a matriz funcional
ao assinalar como os serviços, enquanto políticas sociais, tiveram uma função
adicional e fundamental para a evolução do modo de produção capitalista,
ou seja, a de transformar a mão de obra livre em mão de obra assalariada.
Seria a troca da liberdade existente pela segurança de um emprego que
130

garantiria um mínimo de atendimento às necessidades da vida em casos


de enfermidade ou velhice.
A expansão dos serviços ocorreu pari passu à expansão e complexi-

S
dade do capitalismo, tanto em decorrência do modo de produção como de

PE
reprodução. No campo da reprodução, os serviços garantem dois aspectos
significativos para a expansão do capital: a subsistência da mão de obra

A
ociosa e o controle da força de trabalho ocupada, ampliando ou reduzindo

/C
benefícios socioassistenciais de acordo com a demanda do mercado. No

TA
campo da produção,

LE
A sociedade de classe no capitalismo cria uma civilização de serviços.
As necessidades exacerbadas pela publicidade justificam novos serviços

CO
para novas necessidades que, no mundo moderno desenvolvem uma
proliferação de formas de atendimento administradas por profissionais
(KARSCH, 1987, p. 33).
O
D
A expansão e as análises sobre o setor de serviços permitiram am-
pliar o conhecimento sobre essa modalidade de atividade e construir uma
O

série de explicações sobre as suas características, nem sempre consensuais.


V

Entretanto, malgrado a diversidade explicativa, algumas particularidades


SI

dos serviços podem ser apontadas para estabelecer a relação com a ação
U

profissional.
CL

Uma primeira peculiaridade é seu desenvolvimento como um fluxo


de trabalho que ocorre de forma contínua no tempo e no espaço (MEI-
EX

RELLES, 2006). A autora assinala que, dessa forma de ação, derivam duas
propriedades dos serviços: a inestocabilidade e a incomensurabilidade. Um
serviço não pode ser estocado, pois seu produto ou resultado é imediato.
SO

Trazendo para a ação profissional, uma orientação ou uma assessoria é


realizada aqui e agora. Não pode ser guardada para outra ocasião, pois a
U

demanda e o consumo são imediatos, e as condições de temporalidade são


RA

dadas naquele momento e naquele lugar. Ocorrendo em outra ocasião,


terá outras determinações devido à dinâmica pessoal (tanto do agente
PA

quanto do demandante do serviço) e institucional. Outra propriedade é a


incomensurabilidade, a qual rebate fortemente na ação profissional. Por
ter um componente relacional, a avaliação do serviço prestado não é e
nem poderia ser similar à fabricação de um produto industrial. A obtenção
do resultado de um serviço é variável e depende de uma série de fatores,
desde a capacidade e disponibilidade do agente (capacidade para atender à
131

solicitação, motivação pessoal, aspecto atitudinal face à solicitação etc.) em


entender a demanda do solicitante até as condições pessoais deste último
(capacidade de apreensão e de processamento das informações, estados

S
mentais instáveis, preocupações de ordem material etc.).

PE
A ação profissional enquanto trabalho em serviço somente apre-
senta condições de avaliação quando combinado a outras funções, ou com

A
o resultado da ação. Esse condicionante impacta a construção de sistemas

/C
de avaliação tanto de desempenho e competências profissionais como o

TA
alcance de objetivos previstos.
Outra peculiaridade relacionada à ação profissional de profissões

LE
interventivas é o uso intensivo do trabalho humano. Esses usos intensi-
vos, por sua vez, referem-se ao aspecto produtivo essencial no processo

CO
de prestação de serviços, uma atividade interativa e dependente da atitude
relacional. Assim, exige recursos humanos para ações face a face, sendo,
O
portanto, definido como intensivo em informação (MEIRELLES, 2006).
D
Reconhecidamente, uma das principais ações realizadas pelos
profissionais consiste na transmissão de informações. São informações
O

colhidas em atendimentos individuais, em assessorias/consultorias e,


V

ainda, na formulação e gestão de planos, programas e projeto. Ou seja, a


SI

transmissão de informações está presente no cotidiano profissional e em


U

todos os espaços sócio-ocupacionais. Pode-se afirmar que se trata de um


CL

dos elementos centrais da ação profissional. Iamamoto (2010) ressalva que


a informação prestada
EX

[...] não se reduz ao mero repasse de dados sobre as normas e recursos


legais; é uma informação transmitida sob a ótica do direito social, em que
SO

os sujeitos individuais e coletivos são reconhecidos em suas necessidades


coletivas e demandas legítimas, considerando a realidade macrossocial de
U

que eles são parte e expressão (IAMAMOTO, 2010, p. 427).


RA

Resumindo o conteúdo deste capítulo, assinalam-se alguns pontos


para se pensar na relação entre política pública e ação profissional em sua
PA

cotidianidade.
Do lado das políticas públicas, deve-se reconhecer que a imple-
mentação implica em novas decisões para além das grandes definições
contidas nos planos nacionais, estaduais e municipais. A concretização
do formalizado supõe um rol de novos desafios decisionais para a sua
materialização. Exige uma competência não apenas técnica, mas política
132

do profissional em favorecer novos arranjos institucionais entre interesses


públicos e de grupos populacionais, aos quais se dirigem as políticas. Tais
arranjos frequentemente alteram o direcionamento de interesses contidos

S
nos processos decisórios iniciais, ou seja, a policy faz a politics.

PE
De outro lado, o fato de as políticas públicas se materializarem,
em grande parte, via setor de serviços, contendo uma peculiaridade que é

A
inerente ao serviço enquanto tal, igualmente favorece a autonomia profis-

/C
sional, especialmente na dimensão socioeducativa do serviço social. Essa

TA
peculiaridade sinaliza para dois aspectos. O primeiro seria o de entender a
ação profissional como trabalho em processo e não o resultado da ação do

LE
trabalho. Concorda-se com Meirelles (2006, p. 134), ao afirmar que, “[...] por
esta razão elementar, não se produz um serviço, e sim se presta um serviço”.

CO
Um segundo aspecto diz respeito ao que se exigiria em termos de
ampliar o conhecimento sobre os espaços ocupacionais dos assistentes
sociais, permitindo qualificar o processo de transmissão de informações,
O
aliado à dimensão socioeducativa inerente à profissão. A apreensão das ca-
D

racterísticas dos serviços serviria, ainda, como um anteparo a modalidades


O

de gestões gerenciais das políticas públicas, favorecendo aspectos relacio-


V

nais com usuários pautados em perspectivas democráticas e garantindo


SI

informações seguras.
Reconhecer a racionalidade intrínseca aos serviços contribui para a
U

distinção entre a lógica institucional e a profissional, identificando a natureza


CL

diferenciada e particular de cada uma. Reconhecer essa distinção e rever as


respostas oferecidas pelos assistentes sociais seria um terceiro aspecto da
EX

importância da apreensão da ação profissional enquanto serviço. Entretanto,


a subordinação institucional remete aos interesses hegemônicos dominantes
SO

e, no limite, aos interesses do capital. Não é uma subordinação somente na


ótica do assalariamento, mas igualmente no plano ideológico, obstaculizada
U

pela condição de serviço (NOGUEIRA, 1990).


Concluindo, importa ressaltar que a relativa autonomia outorgada
RA

pela ação profissional no âmbito dos serviços passa pelo reconhecimento


de que é o estatuto teórico que permite a definição dos procedimentos
PA

que concretizam a intervenção e se constitui em outro vetor da relativa


autonomia profissional. Ou seja, é o saber que orienta a intervenção,
possibilitando a descoberta das solicitações reais e potenciais, atinentes à
profissão, e permite a ponderação própria dos serviços em sua função de
mediar, organizar e normatizar o todo social na direção da universalização
e aprofundamento dos direitos (NOGUEIRA, 1990).
133

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V
O
D
O
CO
LE
TA
/C
A
PE
S
137

6.
Ação Profissional: processos e

S
PE
características técnico-operativas

A
Regina Célia Tamaso Mioto

/C
Telma Cristiane Sasso de Lima

TA
Este capítulo trata de um balanço de algumas produções anteriores

LE
que problematizaram a dimensão técnico-operativa das ações profissionais36
de assistentes sociais. Envolve reflexões acumuladas em anos de estudos,

CO
publicações, interlocução técnico-profissional com colegas inseridos em
diferentes espaços ocupacionais e inquietações vividas no processo de
O
ensino-aprendizagem em disciplinas ministradas em cursos de Graduação
D
e Pós-Graduação em Serviço Social.
Passados dez anos da publicação sobre o tema na Revista Textos
O

& Contextos37, alguns desafios apontados ainda persistem, especialmente:


V

a articulação entre os aportes teóricos e éticos que contribuem para o


SI

reconhecimento do terreno social e histórico sobre o qual a profissão se


U

movimenta, as competências e os aportes técnicos que particularizam o


CL

exercício profissional no atual mercado de trabalho que fragmenta as res-


postas exigidas pelas demandas/necessidades sociais dos usuários.
EX

Seja na intervenção profissional stricto sensu, seja no âmbito da


formação de novos profissionais, as bases conceituais e técnicas ainda
se deparam com dicotomias e lógicas lineares tradicionais, especialmente
SO

quando são tratados os aspectos técnico-operativos implicados na estrutu-


U

36
“Ação profissional” é a menor unidade de análise do nosso exercício profissional, por-
que condensa e demonstra todas suas dimensões constitutivas. São construídas e en-
RA

cadeadas em processo como um “[...] conjunto de procedimentos, atos, atividades per-


tinentes a uma determinada profissão e realizadas por sujeitos/profissionais de forma
responsável, consciente. Portanto, contém tanto uma dimensão operativa quanto uma
PA

dimensão ética, e expressa no momento em que se realiza o processo de apropriação


que os profissionais fazem dos fundamentos teórico-metodológico e ético-políticos da
profissão em determinado momento histórico. São as ações profissionais que colocam
em movimento, no âmbito da realidade social, determinados projetos de profissão. Estes,
por sua vez, implicam em diferentes concepções de homem, de sociedade e de relações
sociais” (MIOTO; LIMA, 2009, p. 36).
37
O artigo está disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/
article/view/5673.
138

ração dos processos interventivos e no atendimento a diferentes demandas


socioinstitucionais.
Por isso a insistência no debate da dimensão técnico-operativa.

S
Acredita-se que é possível fazê-lo sem cair no tecnicismo, fortalecendo

PE
nossa identidade difusa, uma vez que estamos inseridos em especialidades
técnicas e em espaços ocupacionais diversos, e melhorando nossa capacidade

A
de nomear e caracterizar as ações profissionais de modo a evidenciar nossa

/C
expertise. Reiteramos que nossa identidade se torna visível (para o Serviço

TA
Social e para as outras profissões) por meio da capacidade que desenvol-
vemos e dos esforços que empreendemos para compreender, materializar

LE
e transmitir nossas competências. Ou seja, a nossa identidade assenta-se
também na capacidade de dialogar com clareza entre pares sobre nossos

CO
dilemas e interdisciplinarmente, enfrentando simultaneamente o acriticismo
na incorporação de certos aportes teórico-técnicos das áreas afins com as
quais trabalhamos e a simples caracterização de nosso exercício profissional
O
por intermédio de “indicadores externos”38.
D

O uso de “indicadores externos” para descrever nossas ações


O

também dificulta a troca entre profissionais que desenvolvem ações de


V

uma mesma natureza, embora estejam em campos de trabalho ou políti-


SI

cas públicas diferentes. Por exemplo, a assistente social que trabalha com
Conselhos de Direitos na área da Criança e do Adolescente teria possibili-
U

dades muito maiores de contribuir com a discussão teórico-metodológica,


CL

aprofundando as reflexões sobre suas ações profissionais, com colegas que


também trabalham em Conselhos de Direitos na área da Seguridade Social
EX

do que com profissionais que trabalham no atendimento aos adolescentes


em cumprimento de medidas socioeducativas.
SO

Logo, verificamos que persiste a tendência de naturalizarmos os


procedimentos e os fundamentos técnicos que dão estruturas às nossas
U

ações, encarando como rotina e burocracia a realização de certos registros


RA

38
“Indicadores externos” referem-se às formas como a categoria define o “fazer pro-
fissional” dos assistentes sociais. Mesmo reconhecendo os avanços na produção e no
PA

exercício profissional, as definições seguem pautadas em “[...] afirmações genéricas e no


‘dever ser’ a partir de indicadores ‘externos’ à profissão, a saber: as ações profissionais são
nomeadas a partir da sua vinculação às áreas (ex: saúde, educação, assistências social), aos
usuários (ex: idosos, crianças, adolescentes etc.), aos instrumentos que também são comuns
a outras profissões (ex: entrevista, visita domiciliar, pareceres etc.), ou funções tradicionais da
profissão (ex: levantamento socioeconômico, encaminhamentos, estudo social etc.). Isso
tende a levar para um outro problema que é de natureza semântica: usamos denominações
diferentes para nomear ações de uma mesma natureza e uma mesma denominação para
nomear ações de naturezas diferentes” (MIOTO; LIMA, 2009, p. 30, grifos nossos).
139

ou detalhamentos. Isso contribui para que os assistentes sociais tomem


como óbvias as rotinas institucionalizadas, sem distinguir demandas ou
questionar e alterar protocolos. É ainda comum organizarmos nossas

S
ações em função das pautas institucionais e dos calendários nacionais. Por

PE
exemplo, na Política de Saúde com as ações de saúde da mulher, do homem,
campanhas de vacinas etc., desenvolver essas pautas é importante, mas aqui

A
estamos simplesmente chamando a atenção para o fato de os profissionais

/C
não organizarem seus próprios planos/projetos de intervenção, de modo

TA
a dar vazão às demandas reprimidas que abundam nos serviços.
Apesar do avanço espetacular que o Serviço Social obteve por meio

LE
do rompimento com a “tradicional metodologia” (caso, grupo e comunida-
de), ampliando a compreensão da profissão no contexto da divisão social

CO
e técnica do trabalho39, ainda não articulamos uma linguagem comum em
relação à dimensão técnico-operativa, no sentido de sermos capazes de
materializar amplamente nosso projeto profissional em sua direção ético-
O
-política sob bases teórico-metodológicas da teoria social crítica. Essa tarefa
D

nos parece urgente por, pelo menos, dois motivos: o primeiro vincula-se
O

à conjuntura nacional que se expressa pelo forte retrocesso político insti-


V

tucional e requer dos profissionais a capacidade de estabelecer estratégias


SI

político-profissionais para que sejam reforçados os interesses das classes


subalternas, alvo prioritário das ações profissionais (IAMAMOTO, 2017);
U

o segundo, ao movimento neoconservador existente dentro da profissão,


CL

que insiste em recuperar teses que acreditávamos superadas no escopo do


Serviço Social.
EX

Além disso, partilhamos da ideia de que o trabalho do assistente


social se caracteriza como um trabalho em serviço no qual o caráter rela-
SO

cional, a simultaneidade e a intangibilidade o definam como um processo,


dificultando que seja totalmente controlado, mas, exatamente por isso,
U

permite que as/os assistentes sociais imprimam-lhe direcionalidade. Ou


RA

seja, outorga aos profissionais uma “autonomia relativa”, apesar das atuais
condições de trabalho impostas nesse momento do desenvolvimento capi-
PA

talista e do controle estatal. É o exercício dessa “autonomia relativa” que faz


a diferença no encaminhamento das ações profissionais compromissadas
com o atendimento das necessidades da população/classe trabalhadora, na
defesa dos seus direitos sociais (SCHÜTZ; MIOTO, 2012; SCHÜTZ, 2013).

39
Para maior estudo, consultar o livro de Iamamoto e Carvalho (1982).
140

Diante dessas considerações, propomo-nos a abordar a dimensão


técnico-operativa do Serviço Social nesse rol de complexidades, tendo como
cerne a ação profissional. Recorre-se a três tópicos – ação profissional: breve

S
caracterização; ações profissionais e processos interventivos: particularida-

PE
des no Serviço Social; e considerações finais. Reconhecemos que esse debate
ainda é árduo, sendo explorado pela categoria, historicamente, com muito

A
esforço. Por isso, a reflexão apresentada é uma entre tantas possibilidades

/C
que se dedicam a caracterizar nosso exercício profissional. No entanto, ao

TA
elaborá-las, temos como meta reunir elementos que ajudem a transversalizar
o diálogo sobre as ações profissionais no cotidiano dos assistentes sociais.

LE
Ação profissional: breve caracterização

CO
Como pode ser verificado amplamente na produção bibliográfica
do Serviço Social, as ações profissionais possuem uma série de fatores que
O
as particularizam e que ajudam a compor a expertise própria do assistente
D

social, entre eles: os tipos de demandas que requerem modalidades operativas


O

flexíveis e personalizadas; a quantidade e a multidimensionalidade das expressões


V

da questão social dos quais emergem sempre novas demandas e necessida-


SI

des; a multiplicidade de contextos institucionais em interação com os seus


constantes conflitos de competências e coordenação; a incerteza em relação
U

aos recursos (humanos, insumos, financeiros etc.), devido à grande variação


CL

da disponibilidade de fontes de financiamento (públicas e privadas); a


complexidade das respostas somada à incerteza sobre seus efeitos, dado o grande
EX

número de variáveis intervenientes e da dificuldade em mensurá-las (TOSO,


1998; PIRES, 2003; ALVES, 2018). Tais fatores, de acordo com nosso en-
SO

tendimento, materializam-se e articulam-se em ato no processo coletivo de


trabalho, ou seja, o processo interventivo que compete ao assistente social
U

não é construído a priori, porque as decisões sobre o melhor itinerário e


repertório de ações e recursos são tomadas no trajeto e em relação com
RA

os sujeitos envolvidos em atender a certa demanda/necessidade concreta.


Além disso, significa que o processo interventivo reúne um conjunto
PA

variado de ações, recursos e instrumentos que se alargam ou se estreitam,


a depender do tipo de espaço ocupacional, da equipe multiprofissional,
para atenderem a determinados indivíduos e famílias demandantes. Essa
caracterização tem como ponto de partida a “natureza” da demanda que se
recebe (individual, familiar, grupal ou coletiva) e, em torno dela, reúnem-se
e delineiam-se os itinerários e os repertórios para a escolha qualificada dos
141

melhores e mais adequados recursos, abordagens, conteúdos e instrumentos


para atendê-la e que configuram a ação profissional.
Portanto, a ação profissional é o vetor fundamental que revela

S
os processos interventivos construídos em ato pelos assistentes sociais.

PE
O conjunto das particularidades desses processos compõe a “dimensão
técnico-operativa” porque nela evidenciamos como se organiza o espaço de

A
trânsito entre o projeto profissional e a formulação de respostas inovadoras

/C
às demandas que se impõem no cotidiano dos serviços. Nesse escopo, é

TA
necessário explicitar mais qualificadamente como se processa esse trân-
sito, quais as mediações que fazemos e como as fazemos, desvelando ou

LE
revelando quais os elementos e conteúdos presentes nesse processo e que
envolvem desde os conhecimentos alinhados à matriz teórico-metodológica

CO
e ético-política até os instrumentos técnico-operativos (MIOTO, 2012).
Significa afirmar que, operacionalmente, a ação profissional conden-
O
sa todas as dimensões constitutivas do nosso exercício profissional? Sim,
D
compreendemos que ela possui diferentes elementos que, em interação,
dão-lhes direção e materialidade e, para fins didáticos, denominamos esses
O

elementos como condicionantes e estruturantes.


V

Os elementos condicionantes expressam os valores que condicionam a


SI

finalidade das ações profissionais. São eles: a) o projeto ético-político, que


U

assume certa base teórico-metodológica, veiculando determinada visão de


CL

mundo/projeto societário; b) a natureza dos espaços ocupacionais, pois a


natureza pública ou privada ou de terceiro setor incide e condiciona de for-
EX

mas diferentes os objetivos das ações e a própria autonomia profissional40;


c) as demandas/necessidades dos usuários, porque norteiam os objetivos
da ação a ser desenvolvida, desencadeando todo o processo interventivo
SO

que unifica os elementos condicionantes e estruturantes, concretizando as


respostas técnico-profissionais (LIMA; MIOTO, 2009).
U

A sustentabilidade da ação profissional ancora-se nos elementos es-


RA

truturantes, que se referem, segundo Lima e Mioto (2009):


• ao conhecimento/investigação da realidade para reunir informa-
PA

ções quanto ao perfil dos usuários, o contexto organizacional/ambiente


laboral de modo a definir e organizar o planejamento necessário na delimitação
dos objetivos/metas de cada ação ou procedimento pertinente ao atendi-
mento de cada demanda em particular ou em conjunto;
40
Para aprofundamento da discussão sobre espaços profissionais e autonomia profissio-
nal, consultar obras de Iamamoto (1999), Couto (1999) e Raichelis (2011).
142

• aos objetivos41, às abordagens42, aos sujeitos/usuários e aos ins-


trumentos técnico-operativos, que são as maneiras como definimos nossas
escolhas quando as abordagens ocorrem de modo que estejam atentas às

S
metas/objetivos que pretendemos alcançar em cada ação empregada. Desse

PE
modo, não são aleatórios os instrumentos viabilizadores dessas abordagens,
sejam eles: a entrevista, as reuniões, as assembleias, os encaminhamentos

A
ou, ainda, combinações desses instrumentos, como: a visita domiciliar, a

/C
entrevista familiar, o trabalho com redes, entre outros;

TA
• a outros recursos técnico-operacionais, que são fundamentais na
execução da abordagem escolhida, por exemplo: ao implementarmos uma

LE
abordagem grupal, utilizamos a reunião como um instrumento que pode
exigir diversos outros recursos adicionais no momento da sua efetivação,

CO
tais como técnicas de dinâmica de grupo, escolhas e/ou elaboração de
materiais didáticos específicos etc.;
• ao desenho metodológico/itinerário das ações: momento de siste-
O
matização das escolhas dos repertórios técnicos. Trata-se do delineamento
D

consciente das formas de abordagens, dos instrumentos técnico-operati-


O

vos e de outros recursos pertinentes e necessários para executar a ação de


V

modo qualificado, enfocando a demanda. Aqui também nos referimos às


SI

escolhas das teorias metodológicas que traduzem as intenções ético-polí-


ticas que se deseja concretizar, ao mesmo tempo em que se respondem às
U

demandas/necessidades concretas daqueles para quem se destinam nossas


CL

ações profissionais;
• à documentação e à construção de banco de dados (físicos e
EX

digitais) – pertinentes ao setor/área no qual prestamos serviços: servem


para consolidar o histórico de cada caso individual, familiar ou coletivo dos
SO

usuários atendidos ou em atendimento. São dados fundamentais, para a


composição do perfil da demanda, para a sistematização e o planejamento
U

dos procedimentos técnicos a serem tomados, a composição de redes de


RA

apoio, intersetoriais e de protocolos de referência e contra referência dentro


da mesma política social ou para outras.
PA

A documentação e os bancos de dados, quando organizados de


41
Os objetivos não devem ser confundidos com as finalidades. Estas referem-se mais às
diretrizes políticas gerais, à filosofia de ação. Para Mioto e Nogueira (2006), as finalidades
apresentam as seguintes características: são abstratas, ideais, de longo alcance e estão mais
ligadas a valores, não permitindo avaliação direta; enquanto os objetivos são concretos,
reais, de alcance em tempo determinado e estão ligados ao mundo dos bens e serviços,
permitindo avaliação direta.
42
Grosso modo, as abordagens podem ser classificadas em: coletiva, grupal e individual.
143

forma intencional e inteligente, permitem a construção de indicadores de


avaliação que ultrapassam a quantificação de procedimentos empregados,
porque registram indicadores muito mais adequados às características

S
qualitativas dos nossos atendimentos ao compilarem dados de todo o

PE
processo que contextualiza a evolução ou a regressão da intervenção pro-
fissional prestada, dando visibilidade aos feixes de variáveis implicados em

A
um atendimento.

/C
Conforme já afirmamos, o fato de as ações dos assistentes sociais

TA
“[...] estarem calcadas basicamente no uso da linguagem, a visibilidade da
intervenção depende do seu registro eficiente” (LIMA; MIOTO, 2009, p.

LE
37). Registrar dados não é sinônimo de burocratização, mas sim de moni-
toramento das nossas metas profissionais na instituição e na comunidade,

CO
assumindo uma postura crítica, ativa e propositiva na definição de priorida-
des, de reconhecimento das demandas e dos entraves socioinstitucionais etc.
Ou seja, falamos aqui da proposição e da execução de planos, programas e
O
projetos atentos a uma Gestão Social43 que se ocupe eticamente de todos
D

os níveis de mediações necessárias para ampliar o raio de ação e o escopo


O

de conhecimentos sobre a profissão e a sociedade.


V

A dialética desses elementos (condicionantes e estruturantes) unifica


SI

em ato as três dimensões referidas ao Serviço Social: teórica, ética e técnica.


A partir das demandas postas pelos sujeitos (sejam de caráter coletivo ou singular),
U

o assistente social, com base na finalidade ético-política assumida como


CL

horizonte para suas ações, define o objetivo e o caráter da ação a ser empreendida,
ao mesmo tempo em que identifica os limites e as possibilidades colocados
EX

pela natureza dos espaços ocupacionais onde trabalha.


43
Gestão social é radicalmente diferente de gestão estratégica, porque é participativa e
SO

compartilha decisões entre sujeitos, construindo novos arranjos institucionais, menos competiti-
vos, que são definidos entre as escolhas feitas por sujeitos racionais a partir da sua realidade
U

e de suas necessidades, sem definir modelos rígidos e estáticos. Trata-se de uma categoria
assentada no princípio e nas práticas da cidadania deliberativa: presença ativa do cidadão
nas decisões da res-pública. Referimo-nos à gestão social que ultrapassa a visão atual restrita
RA

ao preparo de pessoas para implementar políticas compensatórias. Como categoria em


movimento, explica a realidade em uma perspectiva histórica e crítica, porque pressupõe
PA

que os profissionais precisam agir com responsabilidade e coerência em prol da mudança


do instituído, pois se comprometem em construir soluções para os problemas reais do
cotidiano. Nessa perspectiva, o Estado tem papel amplo, plural, democrático e regula-
dor do bem comum, porque expressa e reconhece a existência de forças e projetos de
sociedade em disputa. Assim, a concepção de gestão social não pretende gerar modelos de
sociedade e, tampouco, perder-se em proposições abstratas ou formalistas/burocráticas,
ou seja, sob um ponto de partida, estabelece-se a crítica (pensamento e ação), mantendo
atenção à dinâmica desigual das atuais relações sociais e intervindo nessa estrutura de
algum modo (TENÓRIO, 1988; CANÇADO; TENÓRIO; PEREIRA, 2011).
144

O diálogo ativo com o corpo de conhecimentos produzidos pela


e com a matriz teórico-metodológica permite aos assistentes sociais di-
recionarem praticamente as intenções ético-políticas vigentes no projeto

S
profissional. A clareza e a coerência na caracterização do itinerário das

PE
ações profissionais somente é possível quando ele conhece as necessida-
des da população a que atende, reunindo informações qualificadas sobre

A
as demandas e o contexto particular da realidade social que expressam as

/C
condições de vida dos usuários (LIMA; MIOTO, 2009). Trata-se de articu-

TA
lar operacionalmente os conhecimentos entre o universal, o particular e o
singular, ou, conforme as palavras de Iamamoto (2005, p. 95), estabelecer

LE
“[...] a relação indivíduo/sociedade; as relações entre as macro-análises e
as micro-situações enfrentadas no cotidiano profissional”.

CO
No escopo dessa discussão, destaca-se que a análise socioinstitucional 44
é inerente ao exercício profissional e que não é possível o desenvolvimento
O
de um trabalho consistente e consequente sem planejamento e documentação.
D

Ações profissionais e processos interventivos: particularidades no


O
V

serviço social
SI

Ações profissionais dos assistentes sociais, sob as bases do materia-


U

lismo histórico-dialético, unificam as formulações teóricas, éticas e técnicas


CL

produzidas pela profissão, sendo impossível concebê-las isoladamente.


Ocupamo-nos, neste capítulo, de caracterizar a dimensão técnico-operativa
EX

da área de Serviço Social porque, na lógica da unidade de contrários com


as bases teóricas e éticas, não é possível obtê-la automaticamente, ou seja,
SO

é necessário tomarmos consciência das particularidades operacionais que


traduzem45 nossas intenções sociopolíticas.
U

44
Abarca o conhecimento do contexto externo e interno pertinente a uma política/serviço
RA

público ou a uma empresa, no sentido de organizar dados referentes: ao organograma


organizacional; às oportunidades (legais, operacionais etc.); às ameaças (referenciar a rela-
ção público-privada etc.); ao histórico no cumprimento de sua função social, destacando
PA

missão; público-alvo; princípios/valores, equipe de trabalho multiprofissional etc.; ao flu-


xograma do setor/serviço/área; aos pontos fortes e fracos na dinâmica de trabalho em
equipes multiprofissionais e na acolhida e nas respostas às demandas concretas (atendidas
ou em retenção).
45
Tradução é usada aqui no sentido de que não há identificação entre teoria e prática,
mas um exercício contínuo de tradução dos elementos e das intenções que compõem os
esforços em intervir nos problemas sociais de uma época, ou seja, unidade de contrários
não contraditórios.
145

A partir das premissas expostas na seção anterior, organizamos


nossas particularidades interventivas em três eixos processuais, os quais
foram elaborados a partir das características referidas pela categoria pro-

S
fissional, tanto na sua base de dados bibliográfica e documental quanto

PE
nos depoimentos profissionais captados em diálogos extensionistas ou
em pesquisas que realizamos. Destacamos que a perspectiva dos Direitos

A
e da Cidadania46 pauta os três eixos processuais que propomos, porque

/C
reconhecemos os usuários como seres políticos que desenvolvem sua par-

TA
ticipação em diferentes espaços, sendo capazes de ascender em autonomia
no âmbito das relações sociais e institucionais (LIMA; MIOTO, 2009). A

LE
compreensão desses eixos depende da clareza/coerência e da competência
que demonstramos ao apresentarmos nossas bases técnicas47, isto é, o rol

CO
de nossas melhores escolhas procedimentais capazes de materializar os
preceitos teórico-metodológicos e ético-políticos, ao mesmo tempo em
que subsidiam o trabalho propriamente dito porque ajudam a descrever
O
com assertividade as opções tomadas do leque de possibilidades existente
D

em nosso modus operandi (o conjunto ordenado e encadeado das ações pro-


O

fissionais em processo).
V

Nessa perspectiva, expomos a dinâmica de trabalho e a organização


das ações profissionais a partir de demandas: gerenciais; singulares/grupais/
SI

familiares e coletivas da sociedade civil organizada, reunida e caracterizada


U

em três processos interventivos: gestão e planejamento; socioassistencial


CL

e político-organizativo48.
EX

46
Referimo-nos aos princípios ético-políticos do atual projeto profissional, cuja finalida-
de para as ações profissionais reside em construir um processo que oportunize aos indi-
víduos perceberem-se como sujeitos em sociedade, capazes de questionamentos sobre a
SO

ordem social estabelecida e de reivindicação por seus direitos, pretendendo a satisfação


de suas necessidades, sejam elas materiais ou culturais. A intenção consiste em efetivar
e ampliar a Cidadania sem abdicar da busca pela emancipação via transformação social.
U

Tal finalidade representa, para o Serviço Social, um horizonte paradigmático a ser per-
seguido na concretização das ações profissionais no âmbito do exercício e da formação
RA

profissional (LIMA, 2006).


47
Trata-se aqui do conjunto de teorias referentes a determinado campo particular de
conhecimento. Essas teorias estas que podem possibilitar a conexão/mediação entre o
PA

marco-teórico paradigmático e a aproximação com a realidade particular e singular.


48
A adoção desses três eixos como articuladores das ações profissionais não esgota todas
as possibilidades de debate, de definição e de apreensão do exercício profissional. Concen-
tramo-nos no âmbito da intervenção profissional voltada para a relação assistente social,
serviços e população. De acordo com os apontamentos realizados por Martinelli (2006),
em conversa pessoal, “[...] a formação profissional e a pesquisa no seu ‘sentido estrito’
também podem constituir eixos de intervenção profissional quando na divisão sociotécni-
ca do trabalho nos ocupamos do ensino e da pesquisa na Graduação e Pós-Graduação”.
146

Processos de Gestão e Planejamento

Nesses processos, abordamos os modos pelos quais os assistentes

S
sociais se apropriam e constroem ações na particularidade do campo das

PE
práticas administrativas (sejam privadas, públicas e/ou sociais). De acordo

A
com a definição de Ribeiro (2012, p. 80-81), compreendemos gestão como

/C
“[...] um espaço próprio de relações complexas de poder, isto é, espaço de
concepção, de gestação de um dado modo de relações sociais de produção

TA
e distribuição, um dado projeto social, projeto público ou projeto privado”.
Trata-se de ações que as/os assistentes sociais desenvolvem quando

LE
ocupam cargos gerenciais e administrativos no âmbito das políticas sociais,

CO
das instituições e seus setores, sejam em empresas públicas ou privadas.
Envolvem, ainda, aquelas ações de gestão que retratam as práticas de pla-
nejamento próprias ao setor de Serviço Social no âmbito das instituições,
O
dos programas e das empresas, ou seja, reúnem as ações implicadas às
D

diferentes formas de organizar o exercício profissional requerido pelas


O

particularidades das demandas no espaço ocupacional.


V

Nos processos de gestão e planejamento, chamamos a atenção para


SI

o conjunto de ações que, há muito, são consideradas como mera burocracia


U

institucional, mas que, sem a devida atenção, comprometem a efetividade


CL

e a qualidade dos serviços prestados, porque deixam de lado o raciocínio


acerca dos subsídios necessários, seja na tomada de decisão (orçamentá-
EX

ria, organizacional, controle social etc.), seja nas formas de realizar a ação
profissional a partir das melhores maneiras e recursos de execução frente
SO

às demandas/necessidades dos usuários.


Conforme Mioto e Nogueira (2006), esse conjunto de ações enfo-
U

cam o planejamento institucional como instrumento de gestão e gerência de


RA

políticas e serviços sociais, desde a idealização/proposição até a construção


de protocolos de execução nas e entre as diversas políticas sociais, organi-
PA

zando e alocando recursos e prioridades no âmbito das instituições públicas


e nas empresas privadas. De acordo com as autoras, esse enfoque implica
a construção de práticas efetivas de intersetorialidade, ou de gestão das
relações interdisciplinares e interinstitucionais para que equipes, serviços
e políticas cumpram sua função social ao atender a demandas concretas,
incorporando-as nas práticas cotidianas de gestão da informação.
147

Destacam-se, também, as ações de planejamento profissional dos setores


que demarcam institucionalmente as particularidades do exercício profissio-
nal dos assistentes sociais, ou seja, toda prática que organiza, sistematiza e

S
racionaliza o conjunto de recursos e contatos que dão suporte à intervenção

PE
específica, ao mesmo tempo que a localiza no processo coletivo de trabalho/
equipes multiprofissionais (MIOTO; NOGUEIRA, 2006).

A
Reconhecemos aqui as especializações técnicas que os assistentes

/C
sociais podem exercer nos diferentes espaços ocupacionais: a) na condi-

TA
ção de formuladores e gestores nas empresas e/ou de políticas públicas,
programas, projetos e serviços etc.; b) na condição de membro de equipe

LE
multiprofissional corresponsável no planejamento do processo coletivo
de trabalho, estabelecendo o melhor fluxo de trabalho para a execução

CO
de políticas, programas e projetos para que ocorra interdisciplinaridade,
intersetorialidade e cooperação técnica interinstitucional; c) na condição
O
de coordenadores de setor ou corresponsável na organização das ações
D
profissionais específicas: definição de prioridades e particularidades inter-
ventivas do Serviço Social nas políticas públicas e nas empresas.
O

Trata-se de todas as práticas que se transformam em conhecimento


V

e em tecnologias de gestão (tecnologias sociais), no sentido de conduzir,


SI

orientar algo/alguma coisa (uma intencionalidade) para algum lugar. Des-


U

tacamos as ações de consultoria/assessorias49 técnicas; de coordenação e


CL

capacitação recursos humanos; de produção de materiais didáticos e audio-


visuais; de formação de banco de dados (físicos ou digitais) e de indicadores
EX

sociais; de elaboração de protocolos de referência e contrarreferência e de


construção de redes de proteção social; de elaboração de instrumentos de
SO

registros das ações cotidianas (diário de campo, fichas, estudos etc.); de


fundamentação de pareceres, relatórios; de conhecimento/investigação da
U

realidade social, comunitária e institucional na qual intervém; de documen-


RA

tação do processo de trabalho (detalhamento das abordagens escolhidas,


definição dos tipos de instrumentos técnico-operativos e outros recursos
adequados à execução da ação) etc.
PA

49
Assessoria/consultoria é a ação desenvolvida por um profissional com conhecimentos
na área, que toma a realidade como objeto de estudo e detém uma intenção de alteração
da realidade. O assessor não é aquele que irá intervir, mas “[...] propor caminhos e estra-
tégias ao profissional ou à equipe que assessora e estes têm autonomia em acatar ou não
as suas proposições. Portanto, o assessor deve ser alguém estudioso, permanentemente
atualizado e com capacidade de apresentar claramente as suas proposições” (MATOS,
2006, p. 5).
148

Processos Socioassistenciais
Correspondem ao conjunto de ações profissionais desenvolvidas

S
no âmbito da intervenção direta com os usuários nos diferentes campos

PE
de intervenção a partir de demandas singulares, buscando condições con-
cretas no seio das relações socioinstitucionais para respondê-las em uma

A
perspectiva de construção e no fortalecimento da autonomia de indivíduos,

/C
grupos e famílias, prevendo e incentivando sua participação política ativa

TA
em diferentes espaços, entre os quais se incluem: as próprias instituições,
programas, serviços (conselhos gestores); os conselhos de direitos; os movi-

LE
mentos de base comunitária; os movimentos sociais na sua diversidade etc.
Os processos socioassistenciais envolvem interações e escolhas

CO
cujas fronteiras disciplinares ou características procedimentais são de
difícil distinção. No entanto, acreditamos que é possível caracterizar as
O
ações primordiais que compõem esse processo a partir de suas demandas
D
(trazidas pelos usuários), dos objetivos/metas (estabelecidos a partir das
demandas, dos recursos institucionais existentes) e dos marcos referenciais
O

que embasam a categoria profissional (na estruturação e na consecução


V

técnica dessas ações).


SI

Consideramos necessária essa caracterização porque, ao reunirmos


U

as particularidades operacionais de cada ação, podemos qualificá-las melhor


CL

e fundamentá-las com maior clareza e referência no rol de conhecimentos


já acumulados pela categoria. Assim, consideramos que as ações reunidas
EX

nos processos socioassistenciais respondem, basicamente, às demandas de


natureza educativa, de natureza emergencial e de natureza pericial50.
As ações educativas são concretizadas por meio de abordagens gru-
SO

pais/familiares ou individuais das demandas, para as quais os profissionais


estabelecem metas que buscam:
U

Os processos socioassistenciais nos têm instigado ao diálogo, à reflexão e ao debate no


RA

50

âmbito da categoria profissional e no âmbito interdisciplinar, pois neles aparecem as nossas


maiores dificuldades para o enraizamento do projeto ético-político, especialmente devido à
PA

alta influência de projetos profissionais e sociais de cunho conservador. Ao mesmo tempo


em que é uma conquista a grande inserção de assistentes sociais em cursos de especializa-
ção e pós-graduação em outras áreas disciplinares, também ocorre a apropriação acrítica
de inúmeros referenciais teórico-práticos. Um exemplo são as ações socioterapêuticas para
amparo de situações de traumas, de crises emocionais ou psiquiátricas, que têm ocorrido de
forma reducionista, calcadas em abordagens clínicas psicologizantes. Parece-nos que pre-
cisamos aprofundar os estudos e os diálogos em torno dessa e de outras questões porque
temos observado que as/os assistentes sociais realizam ações dessa natureza no cotidiano
profissional quando estão vinculados a determinadas áreas/espaços ocupacionais.
149

a) promover mudanças no campo das relações entre os usuários


e as instituições por meio de atos que tornam transparentes as
estruturas dos serviços, dão as condições e os meios de acesso aos

S
direitos / às políticas sociais, sem perder de vista a formação e o

PE
estímulo dos usuários à participação nas instâncias políticas. Essa
perspectiva de mudança é pressuposta desde a organização do co-

A
tidiano dos serviços para o acesso de indivíduos, grupos e famílias

/C
até o desenvolvimento da participação política no território e nos
espaços de controle social;

TA
b) socializar informações e contribuir para o desenvolvimento de
um processo reflexivo por meio da relação de vínculo e correspon-

LE
sabilização entre profissionais, equipes e usuários que concretize os
atos de acolhimento e de apoio aos indivíduos e suas famílias para

CO
que, em curto ou médio prazos, fortaleçam-se física e mentalmente
para enfrentar suas vulnerabilidades, sejam individuais, familiares
O
ou sociocomunitárias;
D
c) construir e articular, com os usuários e suas famílias, itinerários
para o acesso a bens e serviços que respondam às suas necessidades,
O

com foco na sua proteção social. Essa proteção social demanda que
V

profissionais e usuários-famílias compreendam as relações entre o


SI

conjunto de serviços que potencialmente possam atender às suas


U

necessidades, estabelecendo, juntos, os fluxos de acesso, monitoran-


CL

do as oportunidades e as dificuldades vividas no trajeto assistencial


que materializa os direitos sociais;
EX

d) reunir e potencializar as condições cotidianas que conectam os


usuários e suas famílias a práticas conscientes e ativas de participação
política, ativando a sociedade civil e suas instâncias de representação:
SO

conselhos de direitos, movimentos sociais, partidos políticos, sindi-


catos, ONGs etc. Por intermédio do processo informação/reflexão,
U

expande-se o diálogo político/cidadão, implicando as necessidades


RA

individuais/familiares imediatas, cujos atendimentos ultrapassam as


condições singulares ou das individualidades.
PA

As ações educativas partem da informação mais elementar sobre as


rotinas e o cotidiano dos serviços até chegar ao diálogo que busca efetivar,
dentro das possibilidades de cada um, a participação em projetos coletivos,
que debatam publicamente as demandas que comprometem o exercício da
cidadania individual, pois a maior parte das dificuldades e falências singulares
é expressão da questão social.
150

As ações emergenciais estão direcionadas a responder situações


imediatas de risco vividas pelos usuários e suas famílias. Trata-se de todos os
atos apoiados, principalmente, na oferta de recursos existentes (na instituição

S
ou fora dela) para enfrentar riscos iminentes. O atendimento prestado por

PE
intermédio dessas ações, geralmente, ocorre pela abordagem individual,
cujos instrumentos básicos são entrevistas e encaminhamentos. A natureza

A
da demanda que define esse tipo de ação profissional refere-se às violações:

/C
a) no direito ao acesso à alimentação (fornecimento de cestas básicas

TA
e acompanhamento nutricional);
b) no direito à mobilidade urbana e acesso ao lazer (fornecimento

LE
de passes e gratuidades; implementação do acesso e do uso de
equipamentos públicos de lazer);

CO
c) no direito à permanência em local protegido (acolhimento insti-
tucional ou familiar, em caso de violência doméstica); fornecimento
de kits nos casos de inundações, incêndios, entre outros sinistros;
O
d) no direito de amparo e assistência social àqueles que se encontram
D

em situação de risco ou estão vivenciando momentos de crise que


O

coloca em risco a si mesmo e/ou a terceiros (complementação de


renda; acolhimento institucional ou familiar de mulheres, crianças,
V

idosos, pessoas com deficiência, pessoas com transtornos psiquiá-


SI

tricos etc.).
U

As ações periciais abarcam todos os procedimentos técnicos que resul-


CL

tam na elaboração de parecer social. São as ações que oferecem subsídios


às decisões de outros profissionais, versando sobre determinada situação
EX

ou matéria. Tradicionalmente, concentram-se no âmbito do judiciário, em


que os assistentes sociais são instados a produzir laudos e pareceres para
SO

subsidiar as decisões dos juízes no proferimento de sentenças.


No entanto, as ações periciais têm sido, frequentemente, utilizadas
U

no campo das políticas de saúde e de assistência social para aferir o acesso


a determinados bens, recursos e serviços. Notamos que essas ações estão
RA

cada vez mais requisitadas devido: às restrições nos serviços e benefícios


sociais; ao aumento do controle e dos critérios para concessão de benefícios
PA

e de acesso aos serviços; aos processos de responsabilização/culpabilização


das famílias pela proteção social de seus membros.
No contexto dos processos socioassistenciais, as decisões sobre
as ações a serem empreendidas estão alicerçadas no conhecimento que o
assistente social obtém ou produz acerca das situações dos usuários que
buscam os serviços.
151

O estudo social é a ação profissional que compila esses conhecimentos,


porque cumpre com os objetivos de levantar ou de produzir indicadores
para delinear/projetar outras ações complementares, reunindo, ainda, dados

S
e argumentos em relatórios técnicos que demonstram os recursos a serem

PE
viabilizados para o atendimento das necessidades cotidianas postas aos
serviços e às instituições.

A
Dessa forma, o estudo social é fundamental ao exercício profissional

/C
de assistentes sociais, especialmente na constituição de banco de dados du-

TA
radouros que permitam uma atenção integral e interdisciplinar qualificada e
constante para os usuários e suas famílias – seja no caso do atendimento a

LE
demandas/necessidades temporárias, seja no caso do atendimento a deman-
das/necessidades de longo prazo, porque se referem a níveis complexos de

CO
vulnerabilidades individual, familiar e social. Aqui, fica evidente a dialética
existente entre os três processos interventivos elencados nessa proposta,
pois o conhecimento gerado pelo conjunto dos estudos sociais sobre as
O
situações singulares atendidas ou em retenção nos serviços constituem o
D

material/dados da realidade socioinstitucional necessários para desencadear


O

ações no âmbito dos processos de gestão e planejamento e dos processos


V

político-organizativos.
SI

Processos Político-organizativos
U
CL

Convergem as ações destinadas ao atendimento de demandas


coletivas dos segmentos organizados da sociedade civil, dinamizando a
EX

participação sociopolítica dos cidadãos, sempre respeitando seu potencial


político e seu tempo. O planejamento participativo é um instrumento im-
SO

portante para estruturar essas ações, pois seu ponto de partida reside nas
necessidades imediatas, ao passo que prospecta (em médio e longo prazos)
U

a construção de novos padrões de sociabilidade entre os sujeitos, porque


RA

estão guiadas pela premissa da democratização dos espaços coletivos e pela


criação de condições para disputa com outros projetos societários.
PA

A universalização, a ampliação e a efetivação do acesso aos Direitos


são debatidas nos mais diferentes espaços, especialmente nos Conselhos de
Controle Social51, de modo a questionar as relações existentes, comprome-
51
Conselhos são espaços de caráter deliberativo a partir da participação ativa de repre-
sentantes da sociedade civil nas políticas públicas. Funcionam como instrumentos de
Controle Social que incidem sobre as ações do Estado para que elas sejam orientadas a
atender aos interesses da coletividade. Denominam-se Conselhos Gestores de direitos
152

tendo-se na construção de novas práticas. Nesse sentido, as informações


transmitidas, os estudos realizados, o conhecimento profissional acumulado,
o saber popular e o vínculo profissional-usuário estão a serviço do bem co-

S
mum quando organizam politicamente as demandas e necessidades coletivas

PE
de sujeitos concretos que, por sua vez, participam ativa e organizadamente
da vida pública por meio de diversas entidades da sociedade civil, pelas quais

A
reivindicam e decidem sobre as formas de concretização dos seus direitos,

/C
considerando os problemas sociais que assolam sua comunidade/cidade etc.

TA
A assessoria técnica prestada pelos assistentes sociais, junto a con-
selhos gestores de diferentes políticas públicas, implica: o acompanhamento

LE
e a preparação de reuniões; a organização e mobilização política da comu-
nidade em questão; a elaboração de registros que consolidem os debates e

CO
as pautas reivindicativas, expressando a cultura política local e identificando
tensões e conflitos presentes nos debates sobre a efetivação das políticas e
O
serviços sociais. Tal assessoria pressupõe o estímulo constante das relações
D
horizontais, reconhecendo que todos os sujeitos envolvidos são portadores
de conhecimentos e capazes de expressar-se politicamente, construindo
O

pautas comuns a favor da sua comunidade/cidade.


V

As ações socioeducativas merecem destaque, devido às suas especi-


SI

ficidades, pois seus objetivos almejam a mobilização, a organização política


U

e a participação social no sentido de estabelecer diálogos problematizado-


CL

res e coletivização de demandas individuais, porque há uma compreensão


cada vez mais ampla e concreta: da sociedade, dos direitos pactuados nessa
EX

sociedade, da possibilidade de lutas, dissensos e reconhecimento de novos


direitos (individuais e coletivos).
SO

Nos processos político-organizativos, a responsabilização ética das/


os assistentes sociais expressa-se em ato por meio de todas as dimensões
U

assistenciais do seu trabalho, desde a relação de acolhimento, de criação


RA

de vínculo, de produção de resolutividade, até o estímulo à construção de


graus crescentes de autonomia no modo como os cidadãos se relacionam
(na família, na comunidade, no mundo) (LIMA; MIOTO, 2011).
PA

e/ou setoriais porque têm por objetivos avaliar, fiscalizar, acompanhar e deliberar so-
bre as políticas estatais implementadas. A participação cidadã, nos conselhos, interfere
concretamente no destino das políticas públicas, inclusive na definição da alocação dos
recursos etc., pois o Controle Social, como prática cotidiana de vigilância sobre as ações
do Estado/governos, foi institucionalizado na Constituição de 1988 como mecanismo
de participação social nas políticas públicas, e diferentes leis definiram os espaços perma-
nentes do seu exercício: os conselhos e as conferências (CORREIA, 2006).
153

Em resumo
Este capítulo consiste em uma sistematização possível, entre tantas

S
outras que poderiam e podem ser efetuadas, das ideias exploradas ou inexplo-

PE
radas nos textos lidos e relidos sobre o exercício profissional dos assistentes
sociais e na observação, direta e indireta, de seu cotidiano de trabalho.

A
A preocupação central segue aqui reiterada, e persiste na necessi-

/C
dade de ampliar o debate e o entendimento sobre as particularidades da

TA
dimensão técnico-operativa, atentando para formas de conduzir qualificada
e coerentemente as escolhas profissionais no âmbito do paradigma crítico-

LE
-dialético. Consideramos relevantes a coerência e a dialética no pensamento
e na ação. Portanto, o como fazer é fundamental no debate que busca garantir

CO
esse movimento, consolidando a legitimidade do atual projeto profissional.
Reiteramos que nosso modus operandi está diretamente relacionado à
O
escolha da matriz teórica. Isso implica o reconhecimento, em determinado
D
período histórico, da sua validade argumentativa e da sua capacidade de
responder concretamente às questões da realidade. Ao ampliarmos nossa
O

compreensão sobre o conjunto das ações profissionais e das maneiras de rea-


V

lizá-las, construímos uma intervenção profissional menos improvisada e mais


SI

legítima teoricamente, porque seremos capazes de demonstrar caminhos e


U

exercitar a coerência pelos quais valores são resgatados e mudanças realizadas.


CL

Retomando as premissas básicas da proposta apresentada, é im-


portante dizer que a ideia de que as ações profissionais – ao conterem em
EX

si as dimensões teórica, ética e técnica e ao estarem articuladas nos três


processos propostos – permitem uma leitura do “fazer profissional” sob
diferentes ângulos e, ao correlacioná-los, torna possível referenciar as ações
SO

nos diferentes espaços ocupacionais.


Nessa proposta, as ações profissionais são apreendidas para além
U

dos espaços e das áreas/campos onde são realizadas, sendo vinculadas


RA

sobremaneira ao projeto profissional. A adoção dos processos, como orien-


tadores das ações profissionais, indica uma perspectiva de transversalidade
PA

à medida que eles podem ser identificados em qualquer campo profissional


de inserção dos assistentes sociais. Aliados a isso, os processos interventivos
destacados encontram referência na Lei n. 8662/93 e, indiretamente, no
Código de Ética da profissão.
A ideia dos três processos possibilita, por um lado, a adoção de
uma perspectiva tridimensional das ações profissionais, em contraposição à
154

manutenção de uma perspectiva unidimensional, dada essencialmente pelos


espaços sócio-ocupacionais, aos quais os assistentes sociais se vinculam. Por
outro lado, pode ajudar o estudante e o profissional a compreender e refletir

S
sobre sua intervenção de forma integrada, ao identificar concretamente o

PE
alcance das ações que pretende realizar no escopo desses diferentes proces-
sos. Pode-se dizer, também, que as ações ganham particularidade a partir

A
dos processos aos quais se vinculam, porque estão atentas às demandas/

/C
necessidades às quais se quer atender. Por exemplo, uma ação de assessoria

TA
tem estatuto diferente quando realizada no âmbito dos processos político-
-organizativos, da gestão e do planejamento.

LE
Enfim, as possíveis contribuições dessa proposta visam a agregar
mais elementos ao debate, pois, ao realizar este trabalho de sistematiza-

CO
ção, foi possível observar o esforço que profissionais e intelectuais têm
empreendido para o enraizamento do projeto profissional dentro de um
O
cenário sociopolítico extremamente desfavorável. O estímulo de discussões
D
qualificadas sobre as ações profissionais pode contribuir para o fortaleci-
mento da nossa identidade profissional, distanciando-nos, cada vez mais, do
O

protótipo da “identidade atribuída” postulado por Martinelli (1997, p. 110).


V
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SO
U
RA
PA
157

7.
Demandas profissionais para o Serviço Social:

S
PE
conceitos e processualidade52

A
Francielle Lopes Alves

/C
TA
O desenvolvimento de uma discussão acerca das demandas profis-
sionais para o Serviço Social implica apontar que ela deriva de um debate

LE
dos fundamentos sócio-históricos da profissão no movimento de ampliação
do Estado. A inteligibilidade e o sentido dessa prática profissional53 en-

CO
contram-se na história da sociedade da qual é parte e expressão, de forma
que a constituição e a institucionalização do Serviço Social como profis-
O
são na sociedade foi dependente “de uma progressiva ação do Estado na
D
regulação da vida social, quando passa a administrar e gerir o conflito de
O

classe, o que pressupõe, na sociedade brasileira, a relação capital/trabalho”


V

(IAMAMOTO, 2001, p. 23).


Portanto, em um sentido amplo, o exercício profissional do assis-
SI

tente social é uma resposta a demandas sociais. A viabilização do projeto


U

societário capitalista deu ao direito um lugar de destaque no seu processo


CL

de hegemonia, assim como a consolidação das práticas modernas no campo


das políticas sociais. O direito, como expressão de relações sócio-históricas
EX

de natureza diversa e contraditória e formulações que consolida, participou


da constituição da viabilidade das sociedades capitalistas a partir de uma
SO

perspectiva de igualdade entre os indivíduos. Sob essa promessa, fixaram-se


condições dessas sociedades de se manterem relativamente estáveis. Assim,
U

ao se estabelecerem estrategicamente nas inter-relações que compõem o


RA

processo social hegemônico, as propostas de atenção no campo do direito


e das políticas públicas são constantemente atualizadas.
PA

52
Capítulo elaborado a partir de texto integrante da Tese de Doutorado de Franciele Al-
ves Lopes, sob orientação da Professora Doutora Regina Celia Tamaso Mioto, defendida
no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), em novembro de 2015. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/
bitstream/handle/123456789/189926/PGSS0202-T.pdf ?sequence=-1&isAllowed=y.
53
Sob essa lógica, a prática profissional se coloca entre “atividade criadora por excelência,
através da qual o homem se objetiva exteriorizando as suas forças genéricas na relação
com outros homens” (IAMAMOTO, 1994, p. 177).
158

Importantes estudiosos do Serviço Social brasileiro localizam na


discussão do papel dos intelectuais uma perspectiva acerca do desempenho
profissional no âmbito do trabalho coletivo na sociedade (IAMAMOTO;

S
CARVALHO, 1991; ABREU, 2002; YAZBEK, 2013; SIMIONATTO,

PE
1999; RAICHELIS, 2011). Sua utilidade e diferencial diante de outras
especializações do trabalho passa pela centralidade da defesa dos direitos

A
sociais. Trata-se da legitimação social da atividade do assistente social numa

/C
perspectiva consolidada no Brasil em seu projeto profissional firmado

TA
na década de 1990, mas gestado nos anos 1960, com o Movimento de
Reconceituação. Como profissão inscrita na divisão social e técnica do

LE
trabalho como uma especialização do trabalho coletivo, seu exercício
profissional é mediado pelo mercado de trabalho e, assim, submetido aos

CO
dilemas e constrangimentos comuns a todos os trabalhadores assalariados.
É a política social assumida pelo Estado como resposta ao conflito
de classes que cria as bases sociais que sustentam um mercado de trabalho
O
para o assistente social. Seu objeto de intervenção compreende determinado
D

aspecto de uma realidade total sobre a qual formulará um conjunto de pro-


O

posições para intervenção, e “se constrói historicamente no real, na tensão


V

permanente que existe entre o sujeito da ação que transforma (e, ao mesmo
tempo se transforma) e o segmento da realidade a ser transformado”, em
SI

que se localizam as expressões da questão social (BAPTISTA, 1995, p. 52).


U

Sob a leitura do Serviço Social, as reflexões sobre as demandas pro-


CL

fissionais estão majoritariamente atreladas à dinâmica das políticas sociais e


às questões inerentes ao processo de constituição dos direitos. Tal posição
EX

implica reconhecer a imbricada composição de conflitos, protagonistas e


interesses em cena (NETTO, 1996; MIOTO; NOGUEIRA, 2013).
SO

Nessa direção, este capítulo apresenta uma discussão acerca sobre a


“demanda” como um conceito atrelado à processualidade das práticas pro-
U

fissionais e que articula a compreensão do papel do objeto, das atribuições


e competências profissionais, particularmente, os conflitos entre demandas
RA

tradicionais e emergentes. Portanto, de início, a argumentação desenvolve-se


a partir da compreensão de que a demanda de atuação para os assistentes
PA

sociais se articula no reconhecimento de uma matéria-objeto profissional.


Por isso, debate-se, num primeiro momento, sobre duas perspec-
tivas do “social” e, posteriormente, recupera-se o conceito de demanda
e as linhas de discussão em que ganha centralidade no Serviço Social. É
um conceito articulador ao mesmo tempo empregado de forma dinâmica
que pode, por exemplo, designar a própria matéria-objeto de intervenção
159

do assistente social. Por último, busca-se explorar outro uso do conceito


de demanda, o qual indica as práticas de requisição (sociais, institucionais
e interprofissionais) de trabalho do assistente social nos diferentes espa-

S
ços de atuação. Ademais, discute-se a partir da experiência da atuação do

PE
assistente social em equipes de serviços de saúde e como as referências
legais da área participam da processualidade da demanda definindo para

A
a atuação profissional um cenário controverso em que controle e auto-

/C
nomia se interpõem.

TA
Questão Social e o social na construção da demanda profissional em

LE
Serviço Social

CO
O processo de trabalho dos assistentes sociais, assim como de
O
demais trabalhadores nos serviços, não ocorre isoladamente, e sim está
D
contemplado em uma rede de processos de trabalho que se alimentam reci-
O

procamente. Segundo Peduzzi (1998, p. 23), esses processos “se diferenciam


V

pela sua peculiar conexão dos elementos constituintes (objeto, instrumentos,


SI

atividades) e se integram por meio das relações entre as necessidades que


precisam internalizar para se realizar”.
U

Em Alves (2018), identifica-se que a demanda de atuação para os


CL

assistentes sociais no contexto do trabalho em equipes multiprofissionais


é feita a partir do reconhecimento de uma matéria-objeto, que se constitui
EX

contraditoriamente. Significa que esse processo tende a recuperar uma


contradição fundamental entre aquilo que os profissionais estabelecem
SO

como matéria-objeto para os assistentes sociais na divisão social e técnica


do trabalho e o que a categoria profissional define para si em um projeto
U

profissional emergente. A demanda de atuação para os assistentes sociais


RA

tende a ganhar sentido para os profissionais das equipes na ideia/concep-


ção de “social”. Para os profissionais, tal conceito tende a definir a matéria
PA

sobre a qual deverá atuar o assistente social.


No Serviço Social, parece ser possível afirmar a existência de duas
grandes perspectivas sobre o “social”, que, embora sinalizem complemen-
taridade e tenham fundamento crítico, no campo teórico-metodológico,
são distintas: primeira, como a “questão” estabelecida na emergência do
capitalismo – objeto de análise amparado pelo referencial marxista; segunda,
160

a concepção do “social” como um importante setor54 no qual se estabelece


o Serviço Social.
Nessa linha de compreensão, a emergência do setor “social” é possí-

S
vel na concentração de forças e interesses atrelados ao processo hegemônico

PE
em resposta à “questão social”. Forjaram-se novos quadros de intelectuais
que parcelaram as expressões da “questão social” como matéria/objeto,

A
junto com a definição de um conjunto de atribuições e competências que, na

/C
sua gênese, articulam-se a interesses das classes dominantes (ALVES, 2018).

TA
A natureza “educativa” da atuação do assistente social colocou-o
na busca de garantia da persuasão e do consenso a partir de um novo tipo

LE
de socialização do trabalhador e sua família. Como cientistas do saber prá-
tico no mundo moderno (SEMERARO, 2006), o assistente social amplia a

CO
interferência moral e política por parte do capital sobre o conjunto da vida
particular dos trabalhadores (IAMAMOTO; CARVALHO, 1991).
Na literatura contemporânea do Serviço Social brasileiro, a discus-
O
são sobre o “social” parece estar fundida à discussão da “questão social”
D

como matéria-objeto da atuação do assistente social sobre o qual incide a


O

ação, meios ou instrumentos de trabalho e a própria atividade que resulta


V

num produto.
SI

O “lugar do social”, em um contexto de complementaridade à


“questão social” matéria-objeto, é, por exemplo, recuperado por Yazbek
U

(2001), ao discutir as transformações estruturais do capitalismo. A autora


CL

afirma que essas novas expressões estão relacionadas aos processos de


redefinição dos sistemas de proteção social e da política social, em que o
EX

“social” é colocado em disputa.


O objeto de trabalho que o Serviço Social define como categoria
SO

redireciona o “social” que, até os anos 1990, era conceito-chave na definição


do objeto de trabalho do assistente social. A superação do arcabouço pro-
U

fissional tradicional passou por essa redefinição em decorrência do projeto


RA

desenvolvido pela categoria ao longo das últimas três décadas.


Na apreensão feita por Iamamoto (2001, p. 59), tornou-se de “domí-
nio público” na profissão que a questão social se “conforma como a matéria-
PA

54
Quanto ao “social” como setor, as análises de Donzelot (1980; 2007) e Castel (1998) in-
dicam a natureza das suas premissas morais e como organizaram as instituições e práticas
concretas de assistência às populações, especialmente as pobres, após o século XVIII, na
forma de assistência médica e social. O “social” como “setor” de intervenção do Estado
é retratado como abstração, que historicamente serviu para arrefecer as paixões políticas
e alimentar a lógica da garantia de coesão social face à questão social das sociedades oci-
dentais modernas (DONZELOT, 1980; 2007).
161

-prima do trabalho profissional, sendo a prática profissional compreendida


como uma especialização do trabalho, partícipe de um processo de trabalho”
(IAMAMOTO, 2001, p. 64). Ou seja, compõe um trabalho combinado – as-

S
sim, “[...] é parte de um conjunto de especialidades que são acionadas con-

PE
juntamente para a realização dos fins das instituições empregadoras, sejam
empresas ou instituições governamentais” (IAMAMOTO, 2001, p. 59-64).

A
Em correlação, as Diretrizes Curriculares para os cursos de Servi-

/C
ço Social já definiam que o assistente social é o “profissional que atua nas

TA
expressões da questão social, formulando e implementando propostas de
intervenção para seu enfrentamento” (BRASIL, 2002, p. 1). É competência

LE
e habilidade do profissional a “identificação das demandas presentes na
sociedade, visando formular respostas profissionais para o enfrentamento

CO
da questão social” (BRASIL, 2002, p. 1).
Entende-se que o assistente social deve intervir sobre o que lhe
O
é demandado, sob um projeto ético-político profissional, a partir de uma
D
“compreensão histórico-crítica”, que implica também identificar a signi-
ficação, os limites e as alternativas da ação focalizada. Ademais, uma das
O

contribuições efetivas da profissão foi sua inserção nos processos de luta


V

pela conquista e garantia com ampliação de direitos sociais com base na


SI

democratização da gestão pública. Isso se traduziu no reposicionamento dos


U

usuários na dinâmica das práticas institucionais como sujeitos de direitos


CL

(NETTO, 1996; ABREU, 2002).


Os assistentes sociais, como categoria profissional, têm definido
EX

para si a “questão social” como objeto, e suas ações se dispõem num


campo organizado de conhecimentos relativo à proteção social de sujeitos
singulares ou grupos de sujeitos, usuários das diferentes políticas setoriais
SO

(IAMAMOTO, 2001; MIOTO; NOGUEIRA, 2013). Contudo, a preo-


cupação com a especificidade em torno do social (matéria-objeto) é algo
U

crucial no debate das demandas de atuação do assistente social em saúde.


RA

O social tradicionalmente se expressa como problema de etiologia do


ambiente familiar e da responsabilidade dos indivíduos em gerir a própria
PA

vida, o corpo, recursos, ambientes.


Em serviços de saúde, por exemplo, o caráter de atenção excludente,
seletivo e a demanda pelo ajustamento social da população usuária ainda
são presentes (ALVES, 2018).
Constitui-se, portanto, na esfera das relações de trabalho estabele-
cidas nos espaços sócio-ocupacionais, um tensionamento do Serviço Social
162

no campo de suas demandas – essas, no sentido da matéria-objeto ou de


práticas de requerimento interprofissional, isto é, quando solicitado a atuar
por outros profissionais55. Tal movimento de tensão dos assistentes sociais

S
ocorre em direção à atuação profissional, a qual se preocupa em ampliar

PE
a identidade com o projeto profissional, enquanto no trabalho em equipe,
na demanda de outros profissionais pelo seu trabalho, pesa uma pauta de

A
ordem tradicional.

/C
Além dos instrumentos legais, o projeto ético e político profissio-

TA
nal se realiza em dimensões do universo profissional, como as expressões
coletivas da categoria; as articulações com outras entidades de Serviço

LE
Social no âmbito internacional, além de outras categorias profissionais
e movimentos sociais organizados; o ensino universitário, responsável

CO
pela qualificação teórica de pesquisadores e de profissionais; e o tra-
balho profissional desenvolvido nos diferentes espaços ocupacionais
(IAMAMOTO, 2012b). É justamente no campo do trabalho profissional
O
que os desafios se acirram: embora represente certa hegemonia para o
D

conjunto profissional, na dimensão dos espaços ocupacionais, o projeto


O

profissional situa-se, pois, contra-hegemônico. Nesse contexto, diferentes


V

questões emergem do exercício profissional na relação com suas condições


SI

concretas de realização.
Nessa direção, é preciso assentar a compreensão acerca do trabalho
U

do assistente social como parte de trabalho combinado, parte de um con-


CL

junto de especialidades que são acionadas para realização de uma finalidade.


Para o Serviço Social, essa finalidade não é idêntica, pois é preciso consi-
EX

derar as diferenças das várias inserções ocupacionais (IAMAMOTO, 2001;


2012b). Seu objeto de intervenção profissional, as expressões da questão
SO

social, remonta a ações que incidem na articulação de recursos (singulares


ou coletivos) necessários para viabilizar a proteção social (MIOTO; NO-
U

GUEIRA, 2013).
Alves (2018) verifica que a demanda tem designado tanto a forma
RA

fenomênica da matéria-objeto da profissão, sobre o que incide seu saber,


quanto as práticas de requerimento ou acionamento profissional, seja por
PA

usuários ou profissionais. É por meio da discussão das demandas que o


problema do trabalho profissional se coloca sintonizado com o projeto
profissional. O debate ganha distintas linhas, como o problema da atuação a
55
Isso pode ser verificado na análise etimológica do verbo “demandar”, que vem do la-
tim demandare, “comissionar, dar poderes a alguém” ou, literalmente, “colocar na mão de
alguém” (Cf. a página eletrônica http://origemdapalavra.com.br/site/).
163

partir de mera recepção passiva, imediata e subalterna à lógica institucional.


Além de falta/dificuldade da aplicação das referências teórico-metodológicas
ou a insuficiência/falta de referências técnico-operativas – essa sendo uma

S
questão relevante que tem gerado mais debates/embates que, por vezes,

PE
dificultam o respaldo para a efetiva produção de conhecimento sobre o
tema (ALVES, 2018).

A
Em ambos os casos (a forma fenomênica da matéria-objeto ou as

/C
práticas de requerimento), pela pauta da discussão das demandas, estão

TA
presentes possibilidades forjadas sob distintas formas de apreensão da
realidade social e as possibilidades de incidência dos campos de saber en-

LE
volvidos, particularizando-se no campo das políticas sociais, dos serviços e
práticas profissionais, e nos arranjos multiprofissionais ou interdisciplinares.

CO
No próximo item, busca-se desenvolver questões relativas e dinamicidade
desse conceito no Serviço Social.
O
D
A “demanda” como conceito e suas variações
O

No debate sobre o trabalho dos assistentes sociais, o conceito de


V

demanda é bastante explorado e articulador de argumentações bastante


SI

reconhecidas. Netto (2011) alicerça na abordagem crítico-dialética uma


U

elucidação da gênese da profissão e seu estatuto social. O autor identificou


CL

a importância de perquirir as demandas que lhes são socialmente colocadas


e suas projeções em torno de uma institucionalidade sociopolítica própria
EX

da sociedade burguesa consolidada.


Netto (1996) avaliou que mesmo com as transformações no
campo profissional se constitui no Serviço Social um campo imbricado
SO

entre demandas “tradicionais” e “novas”. O universo de usuários é mais


U

heterogêneo e complexo na atualidade, o que exige dos assistentes sociais


mais criatividade e eficácia em sua atuação. Novas demandas profissionais
RA

constituem também impasses aos profissionais:


PA

As novas demandas (potenciais e/ou reais, postas seja pelas transforma-


ções societárias, seja pelas alterações político-institucionais) são enfren-
tadas pelos profissionais em condições frequentemente desfavoráveis:
inseguros pelas fragilidades da sua formação [...], desmotivados pelas
baixas remunerações, pressionados pela concorrência de outros profis-
sionais [...], condicionados ainda por um lastro conservador em relação
aos seus papéis e atribuições [...] (NETTO, 1996, p. 111).
164

Figura na análise de Netto (1996; 2011) que as demandas são com-


ponentes intrínsecos à definição de um estatuto profissional, explicado a
partir de um duplo dinamismo: contempla as demandas que são socialmente

S
colocadas à profissão e às reservas próprias de forças (teóricas e prático-

PE
sociais) aptas ou não para responder às requisições extrínsecas. As demandas
são possibilidades objetivas que podem ser revertidas em realidade de acor-

A
do com a capacidade de respostas da profissão posta ao quadro societário.

/C
As demandas estão majoritariamente atreladas à dinâmica das políti-

TA
cas sociais, campo que resulta de um complicado jogo em que protagonistas
e demandas são atravessados por contradições e conflitos, isso considerando

LE
particularmente as características da sociedade brasileira e sua modalidade
de inserção (periférica e heteronômica) no sistema capitalista, que tende a

CO
não contrair a demanda objetiva de uma profissão como o Serviço Social
(NETTO, 1996; 2011).
O
As demandas para a profissão no campo de políticas sociais se cons-
D
tituem a partir da fragmentação e da parcialização da “questão social”, que
se deve à incorporação do substrato individualista da tradição liberal. As
O

refrações da questão social tornam-se alvo das políticas pelas quais se cabe
V

“categorizar” os “problemas sociais” e os vulnerabilizados, “não só com a


SI

decorrente priorização das ações (com sua aparência quase sempre fundada
U

como opção técnica), mas, sobretudo, com a atomização das demandas e a


CL

competição entre as categorias demandantes” (NETTO, 2011, p. 32). En-


tretanto, a expansão das políticas sociais é contraditoriamente determinada
EX

pelas transformações engendradas pelo capitalismo, assim como tem estreita


relação com a dinâmica das lutas sociais que se expressaram nos processos
de ampliação dos direitos de cidadania (PAIVA, 2003).
SO

É notória a importância da contribuição de Netto (1996; 2011) para


compreender a constituição da profissão de Serviço Social como expressão
U

de uma demanda social. Demanda é conceito importante na articulação


RA

explicativa sobre o movimento sócio-histórico sobre a constituição da


profissão. Alves (2018) identifica o emprego dinâmico desse termo. Ora
PA

designa a matéria-objeto de intervenção do assistente social – sendo central


a categoria “questão social” –, ora indica práticas de requisição (sociais,
institucionais e interprofissionais) de trabalho do assistente social nos di-
ferentes espaços de atuação.
Embora compreende-se que, de fato, sejam expressões de um mesmo
processo – condições de constituição sócio-histórica profissional, matéria
165

de intervenção e práticas de requisições profissionais –, entende-se que é


necessário apontar essa distinção, pois a precisão da aplicação de conceitos é
cara à produção de conhecimento e à sistematização das práticas profissionais

S
que se dirigem a contribuir para o exercício profissional em Serviço Social.

PE
Ainda no campo da importância da devida aplicação de conceitos,
é importante marcar o quanto muitas vezes o emprego dinâmico da ideia

A
de demanda vai se aproximar da discussão das atribuições e competências

/C
profissionais. Atribuição e competência têm sentidos tênues: a atribuição

TA
profissional é a “faculdade inerente à profissão”, tem sentido de prerrogativa;
já a competência “se insere na capacidade de apreciar e dar resolutividade a

LE
determinado assunto” (TERRA, 1998, p. 3). O conceito de demanda pode
ser utilizado na expectativa de compreender a ideia de atribuição profissional

CO
e de competência.
Os fundamentos sócio-históricos da profissão a partir de Netto
O
(1996; 2011) e Iamamoto (2012a; 2012b) dão ao conceito de demanda
D
uma projeção da matéria ou objeto socialmente conferido a essa categoria
profissional. No sentido etimológico, “matéria” se refere à substância, ou
O

objeto, ou assunto sobre o que particularmente se exerce a força de um


V

agente. As atribuições e competências confirmam que a “prerrogativa de


SI

auto-qualificação da profissão é dos seus agentes especializados e de seus


U

organismos representativos que, em determinados contextos societários,


CL

confirmam a necessidade ou utilidade social dessa especialização do traba-


lho” (IAMAMOTO, 2012a, p. 39).
EX

Como analisado por Alves (2018), são ideias-chave sobre a demanda


na direção dada pelos autores supracitados: a sua condicionalidade a um lastro
conservador e a sua constituição como possibilidade objetiva que, a depender
SO

da capacidade de respostas da profissão, pode ser revertida em realidade; a


sua constituição social, a contemplar os aspectos teóricos e prático-sociais
U

da profissão no campo de suas competências para responder às requisições


RA

extrínsecas; por fim, a sua permanente reelaboração no contexto da articula-


ção do conjunto de condições que informam o processamento da ação dos
PA

assistentes sociais e condicionam a possibilidade de realização dos resultados.


Outras áreas de conhecimento também estruturam importantes
linhas de discussão a partir do conceito de demanda, como ocorre com a
Saúde Coletiva. É profícuo abordar os estudos de Pinheiro (2001) e Pinheiro
et al. (2005) em torno desse conceito. Os autores levantam a discussão da
demanda em saúde e sua relação com a construção do direito à saúde e
166

entendem que as demandas se constroem cotidianamente e têm elementos


participantes que surgem de interações dos sujeitos (usuários, profissionais
e gestores). São “fruto de um inter-relacionamento entre normas e práticas

S
que orientam os diferentes atores envolvidos (indivíduo, profissional e

PE
instituição), que formulam e implementam políticas de saúde, seja de uma
localidade, de um estado ou país” (PINHEIRO et al., 2005, p. 12).

A
Na mesma direção da Saúde Coletiva, a da processualidade das so-

/C
licitações dirigidas aos serviços de saúde, Caetano, Barcelos e Mioto (2010)

TA
compreendem as demandas aos assistentes sociais por se apresentarem por
usuários, instituições e equipes, que incluem as de usuários recolocadas por

LE
profissionais e que se caracterizam por gestão dos serviços. Alinham-se a
Mioto (2009) para afirmar que as demandas estão na estruturação das ações

CO
dos assistentes sociais. Essa estruturação se alicerça também no conheci-
mento da realidade e dos sujeitos para as quais essas ações são destinadas.
O
A análise da demanda compõe, como momento fundamental, a ação pro-
D
fissional dos assistentes sociais. Daí são definidos objetivos, considerando
também o espaço em que se realiza, a escolha de abordagens dos sujeitos
O

destinatários da ação.
V

Refletir sobre as demandas ou referidas fontes das quais estas se


SI

concretizam requer considerar que a prática profissional com o usuário,


U

com outros profissionais e com a instituição é historicamente determinada


CL

e tem condições objetivas ligadas à conjuntura social, à divisão do trabalho,


à propriedade dos meios de produção, assim como condições subjetivas
EX

relativas aos sujeitos, ao grau de qualificação, ao preparo técnico e teórico


do profissional (CAETANO; BARCELOS; MIOTO, 2010).
A demanda do usuário deve ser analisada pelo assistente social e
SO

sempre é reveladora de processos sociais mais amplos que devem ser con-
siderados pelo assistente social no momento de sua intervenção. Caetano,
U

Barcelos e Mioto (2010) compreendem que a análise é indispensável, visto


RA

que as demandas dos usuários chegam ao assistente social a partir dos


profissionais das equipes dos serviços nos quais se inserem e que, muitas
PA

vezes, “filtradas” podem não condizer com o que é realmente inquirido


pelo usuário. Além disso, identificam que os demais profissionais da equipe
fazem uma “interpretação” da demanda do usuário, de modo que ela chega
ao assistente social permeada por valores morais, religiosos, culturais, por
exemplo, o que afeta a condução das situações, porque também busca definir
ações e encaminhamentos que devem ser feitos pelos assistentes sociais.
167

No que tange às demandas de gestão também colocadas aos as-


sistentes sociais por outros membros da equipe, as autoras verificam que
geralmente estão atreladas às contradições e limitações dos sistemas de ser-

S
viços, no caso do estudo, o sistema de serviços de saúde pública no Brasil.

PE
A falta de recursos ou a pouca efetividade desse sistema, por exemplo, que
repercutem em filas de espera, faz os profissionais recorrerem aos assistentes

A
sociais para atividades vinculadas à seletividade no acesso. Muitas vezes, a

/C
equipe de saúde vê o assistente social como profissional de solução, que

TA
poderá resolver as lacunas da gestão dos serviços.
Como já afirmado, o Serviço Social brasileiro acompanha a dinâ-

LE
mica das políticas sociais e, a partir dela, as complexas formas com que
se apresentam as demandas. Essa é uma pauta da discussão de Mioto e

CO
Nogueira (2013) sobre o Serviço Social na saúde. Para as pesquisadoras,
as demandas reservam questões inerentes ao processo de constituição do
O
direito à saúde. Embora se concorde com a complexidade dessa relação no
D
contexto das políticas e serviços sociais, essa é uma face da questão, pois é
preciso avançar no debate para o conjunto de condições do processamento
O

da demanda, tal como sugere Iamamoto (2012b). Isso indica que para os
V

assistentes sociais há uma articulação importante com a processualidade


SI

das práticas profissionais quando se fala de demanda.


U

Dessa maneira, além de incidir sobre forma fenomênica da matéria-


CL

-objeto da profissão, sobre o que incide seu saber, o debate sobre demanda
pode abarcar as práticas de requerimento ou acionamento profissional.
EX

Compreende-se que acionamento, objetos, atribuições e competências


são parte de um único processo. Contudo, na distinção desses momentos,
sem querer simplificar o jogo de contradições e disputas que se processam
SO

nesse entrecruzamento, pode-se avançar na abordagem da processualidade


das práticas. Quando comumente localizam-se termos como “demandas
U

postas”, “demandas colocadas”, “apresentadas”, “potenciais” ou “reais”,


RA

parece que se trata de processos divorciados, o que pouco converge com


as possibilidades de respostas que procuram elucidar. Também se corre o
PA

risco de suprimir elementos importantes que se expressam na relação com


os usuários, com profissionais de outras categorias, com gestores e entre
os próprios assistentes sociais.
Outra questão importante a ressaltar no campo da compreensão do
conceito de demanda é sua frequente utilização na análise da organização
dos serviços. Contudo, a análise da demanda não é algo que ocorre apenas
168

como etapa de planejamento ou pesquisa em exercício profissional a ser


aplicada na organização do serviço; ela é realizada cotidianamente, no mo-
mento da ação. Essa análise ocorre para desencadear a ação e é constituída

S
de valores, expectativas, desejos, história, como apontam Caetano, Barcelos

PE
e Mioto (2010). Nessa direção, fica evidente a “flexibilidade” e a importância
de demarcar os sentidos do uso desse conceito. Demonstra-se que o uso

A
dinâmico desse pode estar atrelado ao pleito de produção de conhecimento

/C
que aprofunde questões da processualidade das práticas do Serviço Social

TA
e da profissão no contexto do trabalho coletivo.
Como práticas de requerimento ou acionamento profissional, o

LE
conceito de demanda deve avançar na compreensão da processualidade da
atuação profissional, considerando que objetos, atribuições e competências

CO
são referências centrais. Dentre o que Franco e Merhy (2004) chamam de
“micropolítica da organização dos serviços”, perpassam nesse aspecto
O
os processos microdecisórios do cotidiano, articulados com as formas
D
estruturadas dos serviços, aquelas que informam e condicionam o proces-
samento da ação. Mas também as formas não estruturadas que funcionam
O

transversalmente dentro da organização e de um modo instituinte, o que


V

pode ser chamado de “arcabouço institucional”, que significa um conjunto


SI

de normas formais e informais, pré-estabelecidas, cuja apropriação e uso


U

é fundamental para demandar o atendimento de outro profissional ou


CL

ser demandado. Envolve ainda ter fluência em conhecer “questões” que


o usuário possa apresentar, o que se aprimora na experiência do trabalho
EX

(ALVES, 2018).
Demanda como práticas de requerimento ou acionamento pro-
fissional compreende comumente uma concepção sobre a matéria-objeto
SO

de atuação (em geral identificada como “social”) que se constitui contra-


ditoriamente entre referências tradicionais e contra-hegemônicas da área
U

profissional. A criação de respostas às necessidades da população depende


RA

de um tipo de interação e recomposição dos trabalhos especializados, em


que se expressa a demanda de atuação. Essa recomposição é mediada pelo
PA

uso de “tecnologias” ou conhecimentos (MERHY, 2002), próprias de cada


área, que permitem processar as necessidades a partir de respectivos objetos,
capturando-os ao mesmo tempo em que os recorta.
Nessa direção, as demandas se colocam num campo de possibi-
lidades que está em correspondência com certas condições e formas de
organização do trabalho. Para além disso, a demanda está vinculada a
169

recortes de objetos no processo de trabalho. Para demandar, é necessário


aplicar conhecimentos, técnicas e valores, traduzidos à especificidade de
uma área. Assim, a demanda conforma certas práticas de seleção que se

S
articulam no cotidiano, nas “rotinas institucionais”, em um processo que

PE
recobra elementos tradicionais e emergentes/contra-hegemônicos para a
atuação do assistente social (ALVES, 2018).

A
/C
A processualidade da demanda de assistentes sociais na relação com as

TA
políticas de serviços e do trabalho em equipes multiprofissionais a partir
da experiência na saúde

LE
A atuação do assistente social nos serviços que compreendem as

CO
políticas públicas está em correspondência com aspectos da organização
político-legal desses serviços. A relação com as referências político-legais
O
(como portarias ministeriais, resoluções, entre outras) para o debate da pro-
D
cessualidade das demandas coloca em pauta um importante contraponto,
aquilo que, para Nogueira (s. d., p. 59), é fundamental em um serviço de
O

saúde: a sua intensa inter-relação pessoal, fator principal da sua eficácia.


V

Na atualidade, os serviços de saúde se constituem com base no tra-


SI

balho de equipes multiprofissionais. O trabalho em equipe se refere a uma


U

variedade de trabalhos especializados e, portanto, às relações entre as ações


CL

e os sujeitos das ações. Busca recompor os trabalhos que se dividiram para


atender à racionalidade, no sentido da melhor relação meios-fins, da atenção
EX

às necessidades de saúde. As equipes, como forma de recomposição, pode-


rão responder a melhor maneira de racionalização, principalmente quando
SO

se mantêm os mesmos recortes de objeto e o mesmo modelo assistencial


(PEDUZZI, 1998). Espera-se, sob o ponto de vista ético-político, que as
U

distintas áreas profissionais focalizem no usuário e nas suas necessidades


as possibilidades dessa reconstrução.
RA

As equipes (grupo secundário, ligado por funções, atividades e


intervenções) podem ser agrupamentos de agentes ou profissionais, carac-
PA

terizadas pela fragmentação, ou pela integração de trabalhos, nesse caso,


consoante à proposta da integralidade das ações de saúde e à necessidade
contemporânea de recomposição dos saberes e trabalhos especializados.
Assim, quando um profissional demanda a atuação de outro profissional,
manifesta-se essa recomposição de saberes e trabalhos especializados, o
que compreende perceber, buscar informações que sirvam de justificativa
170

e ter antecedentes que possam subsidiar essa articulação. Depende da sen-


sibilidade às necessidades ou de certo estado de vigilância ou atenção às
falas dos sujeitos/usuários, o que eles fazem no espaço do serviço, como

S
chegam ou até como se comportam (PEDUZZI, 1998; ALVES, 2018).

PE
Isso tudo se localiza num campo de possibilidades que está em cor-
respondência com certas condições e formas de organização do trabalho que

A
afetam o desempenho para demandar a atuação de outros profissionais, como,

/C
a presença ou a disponibilidade do profissional na equipe; a possibilidade de ter

TA
ou não o tempo de trabalho dedicado em uma única equipe; a disponibilidade
de momentos de trocas e reflexões, pois é pelo diálogo que se pode gerar e

LE
redistribuir demandas de atuação no processo de acompanhamento do usuário.
Nesse contexto, colocam-se as relações possíveis dos sujeitos em

CO
processo com as formas institucionais, que têm espaço e importância funda-
mentais para a organização do trabalho em um serviço de saúde. A relação
da atuação profissional com as normas que orientam o funcionamento
O
dos respectivos serviços é muitas vezes uma relação variável. Conforme
D

analisou Alves (2018), muitas vezes a legislação sobre os serviços em que


O

atuam os assistentes sociais pode interferir pouco no campo das atribuições


V

das áreas profissionais. As políticas também se atrelam às possibilidades de


organização do trabalho em um coletivo, porém, a legislação pode também
SI

ser submetida a uma espécie de “releitura” de modo que nela se “projetem”


U

as práticas assumidas pelos profissionais naquela equipe.


CL

Embora possa ser conhecida a existência e a responsabilidade na


aplicabilidade dos aspectos legais, a ausência de referências mais claras sobre
EX

os objetivos, as competências ou atribuições de profissionais de algumas áreas


nas portarias e legislações específicas sobre serviços em saúde permite afir-
SO

mar que são poucas as referências para as práticas profissionais. Nos textos
legais, pouco se identificam referências ao Serviço Social (ALVES, 2018).
U

Além de pouca referência no campo das atribuições profissionais,


a incorporação dos profissionais nos serviços por meio da definição da
RA

composição das equipes previstas nos textos legais é, em si, uma forma de
manter sob controle a constituição de saberes e práticas que se envolverão na
PA

atenção às necessidades da população. À medida que as leis são publicadas,


elas interferem na vida organizativa dos serviços, reconhecem interlocuções
e respostas às necessidades que constituem alvo das ações, impõem formas
de articulação, diretrizes e determinados objetivos a alcançar.
Não obstante, as políticas procuram reproduzir o universo das
respostas tradicionalmente organizadas para responder às necessidades da
171

população Alves (2018) depreende duas questões da análise de textos legais


no campo da saúde: primeiro, que há uma incorporação controlada das áreas
especializadas no campo da saúde. Esse controle garante a manutenção do

S
status dos profissionais, num movimento de tensão entre formas tradicionais

PE
e formas alternativas ou emergentes, e de seus modos de interlocução. De
modo geral, os documentos reiteram o caráter da demanda no sentido de

A
recomposições possíveis dos trabalhos parcelares segundo interesses da

/C
agenda público-estatal. Uma segunda questão: a política incorpora deter-
minadas inovações que, à medida que possam ser aplicadas nos serviços,

TA
repercutirão no processo das demandas como parte de uma negociação
autônoma dos sujeitos nos seus trabalhos cotidianos.

LE
Nos textos legais, observa-se uma tensão para que as equipes res-
pondam tanto à racionalização como à recomposição de saberes, muito

CO
embora seja no trabalho cotidiano que essas dimensões se expressem. São
dimensões que convivem nos cenários das práticas e respondem às inter-re-
O
lações entre os profissionais das diferentes áreas que compõem um serviço.
D
Assim, as políticas geram outra tensão para incorporação de mudanças que
nem sempre encontram correspondência com os sujeitos envolvidos ou
O

condições objetivas que possam efetivá-las. Responde a isso a organização


V

das práticas baseadas fortemente na rotina e no compartilhamento de uma


SI

preocupação com a otimização do objetivo institucional.


A demanda de atuação profissional dos assistentes sociais será par-
U

te das inter-relações engendradas em serviços cujas referências legais, de


CL

forma tênue, porém, de modo suficiente, conciliam-se às formas e práticas


que têm a força de se instituírem nos espaços de assistência à população.
EX

Assim, atrelado ao movimento de captura do trabalho em ato a partir


de práticas de gerenciamento da atenção, alinha-se a outras estratégias que
SO

conferem à demanda de atuação uma articulação com questões já conhe-


cidas pelo Serviço Social. No caso da inserção nos hospitais, por exemplo,
U

os assistentes sociais se inseriram inicialmente para conhecer antecedentes


sociais e o ambiente em que os pacientes viviam, assegurar a realização do
RA

tratamento, preparar a família para o cuidado (VIEIRA, 1980).


A proposição de microferramentas de gestão56 encontradas na
PA

saúde, assim como na política de Assistência Social, impõem aos serviços


56
Incluem a implementação de ferramentas (protocolos, procedimentos operacionais,
manuais), que tratam, muitas vezes, de colocar o trabalho em ato sob formas de geren-
ciamento, previsibilidade e, portanto, de controle. O trabalho “protocolado”, “parame-
trado”, mais “capturado” é exigência que vem sendo acolhida em serviços públicos e
privados, o que significa que, à medida que é abrangente a sua aplicação, também são
restritos os “espaços” para dissonâncias.
172

em uma conciliação complicada, se observadas as condições de trabalho


no SUS e no SUAS e quando houver nas instituições um difícil processo
de ruptura com as práticas tradicionalmente desenvolvidas. Isso significa

S
que, como é comum na cena legal brasileira, há um descompasso entre o

PE
que a legislação preconiza hoje (a exemplo do trabalho multiprofissional
de forma horizontal) e o que de fato ocorre nos serviços.

A
É preciso observar que a aplicação de microferramentas, seu de-

/C
senvolvimento e implementação, é atravessada por traços da cultura orga-

TA
nizacional brasileira, que tende ao autoritarismo e ao incipiente controle
social. Por isso, é preciso preocupação para que os protocolos e diretrizes

LE
não sejam definidos de forma alheia aos seus protagonistas e interessados
(trabalhadores e usuários). Ademais, deve-se considerar o conjunto de

CO
pré-condições para que essas microferramentas sejam aplicadas, como um
quadro de recursos humanos suficiente.
O
A demanda de atuação dos assistentes sociais é capturada pelas
D
pressões de um contexto de combinações difíceis e contradições explíci-
tas nos textos legais, que colocam para a atuação profissional um cenário
O

controverso em que controle e autonomia se interpõem. Na área da saúde,


V

compreende-se que o trabalho vivo em ato, aquele que ocorre no exato


SI

momento da sua atividade produtiva, vai além dos limites do instituído e


U

provoca permanentemente novas instituições. Profissionais e seus projetos


CL

transformam-se nesse momento. As mudanças introduzidas nos processos


operacionalizados no cotidiano expressam o exercício de certa autonomia,
EX

pois não se está completamente aprisionado em um conjunto de normas,


que sempre buscam interferir sobre o modo como as ações serão efetivadas
(PEDUZZI, 1998; MERHY, 2002; ALVES, 2018).
SO

Ademais, é preciso considerar que os processos de trabalho na


saúde são fortemente atrelados a rotinas, em que estão compreendidas as
U

estratégias de recomposição do trabalho, que podem se fazer, em diferentes


RA

graus de integração/segmentação. A rotina é face dessa cotidianidade, em


que se operam os recortes da realidade sob processos de trabalho distintos,
PA

implicando o formal (incluindo aí o plano político-legal) e o informal. As


práticas rotinizadas são forças com grande significado e positivamente va-
lorizadas em serviços. A rotina manifesta o sentido de um “passado” que
se recrudesce no presente, geralmente garantindo a continuação daquilo
que é dominante. São previstas no âmbito legal e no cotidiano, valorizadas
para garantir o cumprimento das tarefas. As demandas de atuação dos pro-
173

fissionais se circunscrevem às rotinas, que são esse “lugar” de perpetuação


do passado, mas também o “lugar” das disputas e da emergência do novo,
tornando esse um permanente campo de negociações.

S
Nos serviços de saúde, por conseguinte, organiza-se um “arcabouço

PE
institucional” que manifesta propriedades do tradicional e do emergente,
do formal e do informal. As normas e legislações concernentes à área são

A
submetidas a espécies de “releituras” ou “realocações”, criando-se divergên-

/C
cias entre aquilo que “projetam” e o que de fato é executado nas práticas

TA
pelos profissionais nas equipes. Nessa direção, a “baixa adesão” a aspectos
das conformações legais, frente ao que se organiza como um “arcabouço

LE
institucional”, ocorre também por outras razões como, por exemplo: a
gestão inadequada da rede de serviços e a baixa interlocução institucional,

CO
quantitativo profissional defasado, a inadequação da estrutura física e a
falta de relação com a expressão das necessidades de saúde da população.
O
A vigência desse “arcabouço institucional” permite, então, apontar
D
que é comum que as diferentes áreas profissionais, não apenas o Serviço
Social, elaboram para si “critérios e regras” próprios para prestar assistência
O

a usuários e seus familiares e para organizar as atividades entre si: critérios


V

de atendimento ou práticas de priorização e trocas, conjugando um universo


SI

de perspectivas e condições objetivas de trabalho. Demandar o atendimento


U

de outro profissional ou ser demandado é fruto da possibilidade de poder


CL

conhecer esse conjunto de normas que circulam nos serviços, de fazer sua
apropriação e efetivar seu uso.
EX

No que se refere especificamente ao Serviço Social, importa destacar


que a demanda por outros profissionais está fortemente influenciada pela
sistematização e organização cotidiana do seu trabalho, expressão também
SO

das condições objetivas de sua realização, não esquecendo das diferentes


implicações relativas à precarização do trabalho e da retração que ocorre
U

no campo das políticas sociais.


RA

Complementa esse cenário a constatação de que os serviços se cons-


tituem em um campo para diferentes arbitragens e negociações ligadas à
PA

recomposição do trabalho – fundamental à atenção integral às necessidades


da população expressas na sua demanda aos serviços. Sem a presença do
assistente social, as “questões do social” serão exclusivamente apreendidas
sob recortes dos quais não participa da definição ou não ajuda a estabelecer.
A presença do assistente social recompõe esse campo de arbitragens, o
que facilita ou tensiona a fluência das atividades. É presente no serviço, a
174

partir da experiência, que o assistente social expressará a matéria ao modo


que elabora/aborda, não se prendendo totalmente às matérias definidas
por terceiros.

S
O Serviço Social se inscreve como profissão na formação social

PE
capitalista, na natureza contraditória do seu esquema de sobrevivência.
As contradições persistem em contextos particulares, principalmente, em

A
instituições, e expressam como o processo hegemônico que perfunde as

/C
práticas profissionais, de modo que compreendem uma relação complexa

TA
entre visões de mundo, relações de poder, estratégias, interesses, articulações,
enfrentamentos, tomadas de decisões.

LE
Como identificado por Alves (2018), a demanda de atuação para
os assistentes sociais, a partir de uma matéria-objeto, constitui-se contra-

CO
ditoriamente entre aquilo que se estabelece como matéria-objeto para os
assistentes sociais na divisão do trabalho e o que a categoria profissional
define para si em um projeto profissional emergente. Como indicam Netto
O
(1996; 2011) e Iamamoto (2012a; 2012b), a demanda conterá uma projeção
D

da matéria ou objeto socialmente conferido a essa categoria profissional.


O

Está em permanente reelaboração no contexto da articulação do conjunto


V

de condições, informando o processamento da ação dos assistentes sociais.


Embora um processo pouco investigado, o modo e o conteúdo
SI

do requerimento como campo de possibilidades, da maneira que Netto


U

(2011) assinala, constituem um mesmo processo, ainda que analiticamente


CL

seja possível observar especificidades. É preciso enfrentar as condições dos


sujeitos nesse processo, os referenciais que empregam para dar direção ao
EX

processo assistencial que, ao mesmo tempo, orientam formas de disposição


do trabalho coletivo, assim como aspectos de poder e dominação. Ainda,
SO

contemplar as expressões da imagem social da profissão entrecruzada à


imagem e características dos espaços sócio-ocupacionais, em diálogo com
U

a forma como assistentes sociais enfrentam os desafios cotidianos.


RA

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SO
U
RA
PA
PA
178
RA
U
SO
EX
CL
U
SI
V
O
D
O
CO
LE
TA
/C
A
PE
S
179

8.
Intersetorialidade como estratégia para a

S
PE
proteção social integral: congruências e paradoxos
ao trabalho profissional do assistente social57

A
/C
Mônica de Castro Maia Senna

TA
As mudanças que vêm se operando na dinâmica das sociedades capi-

LE
talistas nas últimas décadas impactam profundamente o trabalho profissional
do assistente social. A crise estrutural do capital que se manifesta desde os

CO
anos 1970 tem metamorfoseado o mundo do trabalho (ANTUNES, 2010),
reconfigurado a questão social (PASTORINI, 2004) e redefinido as relações
O
entre Estado e sociedade (FLEURY, 2003). No esteio do processo de rees-
D
truturação produtiva e da hegemonização do capital financeiro, assiste-se
ao agravamento do desemprego estrutural, à precarização dos vínculos e
O

condições de trabalho, ao aprofundamento das desigualdades sociais e à


V

retração do Estado e das políticas sociais.


SI

No Brasil, dada a sua posição periférica na dinâmica capitalista


U

mundial, o quadro é ainda mais alarmante. As reconfigurações postas pelo


CL

capitalismo contemporâneo acirram o já excludente padrão de desenvolvi-


mento econômico do país, ao mesmo tempo em que intensificam a persis-
EX

tente precarização do trabalho e o grau de expropriação dos trabalhadores,


restringem nosso frágil e limitado sistema de proteção social e acentuam
as abissais disparidades sociais que marcam a formação social brasileira.
SO

O trabalho profissional do Serviço Social é, desse modo, duplamente


afetado. De um lado, o agravamento da questão social e a redefinição das
U

políticas sociais incidem diretamente nos usuários dos serviços e atualizam


RA

suas demandas. De outro, a precarização dos vínculos empregatícios e das


condições de trabalho dos assistentes sociais condicionam as modalidades
PA

de intervenção e o conteúdo de seu trabalho em diferentes espaços sócio-


-ocupacionais (RAICHELIS, 2010).
57
Este capítulo foi desenvolvido a partir da palestra intitulada Intersetorialidade nas Políti-
cas Públicas, ministrada pela autora no Seminário Comemorativo pelo Dia do Assistente
Social, organizado pela Gerência de Desenvolvimento e Educação Permanente da Secre-
taria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH), da Prefeitura da
cidade do Rio de Janeiro, em 28 de junho de 2016.
180

No campo da política social, principal mediação do trabalho do


assistente social no enfrentamento da questão social, mas não a única
(RAICHELIS, 2009), novas requisições vêm sendo forjadas em meio a

S
esse cenário. Cabe aqui demarcar a compreensão da política social como

PE
resultado das históricas e contraditórias relações sociais, em diferentes
contextos, que participam de um processo global de regulação política e

A
legitimação na sociedade (BOSCHETTI, 2006).

/C
Nesses termos, a política social é, ao mesmo tempo e contradito-

TA
riamente, reprodutora das relações de dominação e espaço de disputa de
distintos projetos societários. Trata-se, nesse sentido, da compreensão da

LE
política social em seu caráter processual e não linear, permeado por confli-
tos e contradições. Como destaca Lobato (2009, p. 722), “o caráter desses

CO
conflitos e como são solucionados importa para a identificação dos rumos
que a política vai tomar”.
O
Sob essa perspectiva, reconhece-se aqui que, nas três últimas déca-
D
das, o Brasil fez importantes esforços para alterar o padrão tradicional de
intervenção do Estado na questão social e dotar o sistema de proteção social
O

de uma nova institucionalidade. Mas a noção abrangente de proteção social


V

inscrita no texto constitucional brasileiro de 1988, ao mesmo tempo em


SI

que promoveu inovações significativas no padrão de intervenção estatal na


U

questão social, trouxe também um conjunto de desafios bastante complexos.


CL

O alargamento da concepção da questão social, o reconhecimento


da cidadania e dos direitos sociais como garantias fundamentais do Estado
EX

brasileiro, e a introdução inédita de seguridade social na Carta Magna re-


presentaram uma ruptura, ao menos do ponto de vista legal, com o modelo
meritocrático e excludente que plasmou a trajetória das políticas sociais
SO

brasileiras. Por outro lado, tais avanços conviveram com constrangimentos


postos pelo legado prévio do padrão de proteção social, bem como pela
U

fragilidade de valores igualitários partilhados pela sociedade brasileira,


RA

agravados ainda pela crise do capital e pela estagnação econômica desde


meados dos anos 1970 e pela adoção da agenda neoliberal no país no pós-88.
PA

Sob o vigor constitucional, foi se consolidando, ao longo das três


últimas décadas, um padrão híbrido para as políticas sociais (LOBATO,
2009), marcado pela tensa convivência entre os significativos avanços na
institucionalidade do nosso sistema de proteção social e a persistência de
constrangimentos estruturais, como o subfinanciamento para a área, limi-
tações e barreiras de acesso às políticas sociais, precariedade na entrega dos
181

serviços e frágil integração das diversas áreas setoriais, tolhendo o alcance


da cidadania social. Esses constrangimentos se aprofundam no contexto
atual, quando ganham força ataques ao padrão constitucional do sistema

S
brasileiro de proteção social e aos direitos sociais conquistados ao longo

PE
de sua trajetória.
Em meio a esse cenário, a intersetorialidade ganha destaque como

A
um dos mecanismos considerados estratégicos para o alcance da proteção

/C
social abrangente prescrita no texto constitucional, sendo o assistente social

TA
um dos profissionais convocados a construir e implementar ações interse-
toriais. No entanto, esse processo também é complexo e atravessado por

LE
inúmeras contradições, o que coloca o risco de transformar a intersetoria-
lidade em uma espécie de panaceia capaz de remediar todas as debilidades

CO
da política social. De fato, são muitos os limites e desafios enfrentados na
construção de políticas públicas intersetoriais, o que exige o estabelecimento
O
de análises críticas e consistentes sobre o tema.
Com base nessas considerações, este capítulo se propõe a proble-
D

matizar alguns elementos que atravessam o debate em torno da construção


O

da intersetorialidade como estratégia para promoção da proteção social


V

integral na perspectiva da cidadania social sob a responsabilidade do Es-


SI

tado. Inicialmente, são destacadas algumas características que marcam a


U

trajetória histórica do sistema brasileiro de proteção social para, posterior-


mente, situar o debate sobre a intersetorialidade no contexto que se segue
CL

à Constituição Federal de 1988. A partir desse quadro, são traçados alguns


EX

apontamentos em busca de uma definição teórico-conceitual para o termo.


Por fim, o capítulo apresenta algumas reflexões a respeito dos desafios e
dilemas à construção das ações intersetoriais na construção das políticas
SO

sociais e algumas possíveis saídas.


U

Notas breves sobre a trajetória da política social brasileira


RA

Nas últimas décadas, tem crescido a produção acadêmica em torno


PA

da política social brasileira, acompanhando o próprio processo de reformas


e contrarreformas que está se construindo no país desde o texto constitu-
cional. O Serviço Social não está alheio a esse movimento, destacando-se
por sua profícua produção de conhecimentos sobre a relação entre questão
social e política social, associado ao movimento de fundamentação de um
projeto profissional construído coletivamente.
182

A complexidade que marca a questão social e as políticas sociais


coloca a necessidade de buscar aportes teórico-metodológicos capazes de
considerar a interseção dos múltiplos intervenientes que concorrem para

S
a conformação da política. Nessa direção, Fleury (2003) argumenta que,

PE
embora delimitado pelas ações públicas destinadas a responder a determi-
nadas demandas sociais, o conceito de política social é bastante complexo,

A
na medida em que envolve um conjunto de aspectos, dos quais a própria

/C
autora destaca:

TA
• uma dimensão valorativa fundada em um consenso social que responde

LE
às normas que orientam a tomada de decisões;
• uma dimensão estrutural que recorta a realidade de acordo com setores
baseados na lógica disciplinar e nas práticas e estruturas administrativas;

CO
• o cumprimento de funções vinculadas aos processos de legitimação e
acumulação que reproduzem a estrutura social;
O
• sendo uma política pública, envolve processos político-institucionais
e organizacionais relativos à tomada de decisões, ao escalonamento de
D

prioridades, ao desenho das estratégias e à alocação dos recursos e meios


O

necessários ao cumprimento das metas;


V

• um processo histórico de constituição de atores políticos e sua dinâmica


relacional nas disputas pelo poder;
SI

• a geração de normas, muitas vezes legais, que definem os critérios de


U

redistribuição, de inclusão e de exclusão em cada sociedade (FLEURY,


CL

2003, p. 3).
EX

A autora também destaca que cada sociedade estabelece, em cada


momento histórico, consensos em torno de valores compartilhados quanto
aos princípios de justiça social e aos níveis de desigualdades sociais tolerá-
SO

veis. No entanto, a existência desses valores compartilhados não implica


desconsiderar os conflitos e as disputas de interesses que ocorrem no
U

campo das políticas sociais, resultando em uma configuração e dinâmicas


RA

contraditórias. Nas palavras da autora, “esta disputa é, antes de tudo, uma


luta ideológica, uma competição pelos significados atribuídos a alguns
PA

conceitos-chave” (FLEURY, 2003, p. 4).


Se, nesse processo de luta, os diferentes sujeitos sociais se enfrentam
e reconstituem sua identidade, há que se considerar, por outro lado, que as
próprias políticas sociais atuam no sentido de interpelar os destinatários
dessas políticas de diferentes maneiras, conferindo-lhes também determi-
nada identidade (cidadão, consumidor, pobre etc.).
183

Fleury (2003) também destaca outros fatores determinantes do


formato, da dinâmica e das possibilidades e limites das políticas sociais,
dos quais dois são aqui enfatizados. O primeiro se refere à articulação das

S
políticas sociais ao processo econômico de reprodução do capital. Sobre esse

PE
aspecto, a autora enuncia que, na história de desenvolvimento das políticas
sociais, a reprodução da força de trabalho deixa progressivamente de ser

A
uma atribuição exclusiva dos capitalistas para ter seu custo socializado. Ao

/C
mesmo tempo, a mobilização dos trabalhadores por melhores condições

TA
de vida e trabalho contribuiu enormemente para o reconhecimento dos
direitos sociais e políticas de proteção social, favorecendo, ao mesmo tempo,

LE
a amortização dos conflitos sociais.
Para Werneck Vianna (2002), se essa é uma tendência geral das

CO
políticas sociais nas sociedades capitalistas, é preciso considerar que as
respostas dadas pelos diferentes países a essas demandas socialmente cons-
O
truídas foram historicamente distintas, mantendo-se diversas ainda hoje,
em função de suas estruturas político-institucionais, configurando modelos
D

diferenciados de proteção social58.


O

O segundo fator determinante das políticas sociais, destacado a


V

partir do texto de Fleury (2003), refere-se ao aparato administrativo e pres-


SI

tador de serviços, vinculados tanto ao padrão mais amplo de intervenção


U

estatal quanto à arena setorial específica a que se vincula. A autora reforça,


CL

assim, a importância de considerar a institucionalidade das políticas sociais


como um fator crucial para a análise das intervenções públicas no campo
EX

social. Os sistemas de proteção social podem ser mais ou menos descen-


tralizados, apresentar estruturas e culturas institucionais muito distintas,
variar em termos de capacidade técnica e de recursos humanos, apresentar
SO

distintas fontes de financiamento, modalidades e mecanismos de alocação


de recursos, interferindo de forma significativa na configuração e conteúdo
U

das políticas sociais.


RA

Há que se ressaltar ainda o que Fleury (2003) identifica como a


maior especificidade das políticas sociais: o entendimento de que, no inte-
PA

rior das políticas sociais, atualizam-se conhecimentos e práticas específicas,


nos quais se reificam e se reproduzem as relações de poder prevalecentes
58
Ao enfatizar a dimensão histórica e política da política social, a autora apresenta a
discussão em torno dos fundamentos das tipologias dos sistemas de proteção social,
tomando por referência os clássicos trabalhos de Titmuss e Esping-Andersen. A abor-
dagem dessa tipologia foge, no entanto, ao escopo deste capítulo. Para aprofundamento,
ver, dentre outros autores, Werneck Vianna (2002).
184

na estrutura social. É a partir dessa especificidade que a autora afirma que


as políticas sociais podem ser não apenas meras reprodutoras das relações
de dominação, mas um espaço privilegiado para a transformação social.

S
Isso porque, concordando com a autora, as políticas sociais configuram

PE
importante espaço de disputa de poder, abrindo a possibilidade de trans-
formar as relações de poder a partir do campo de práticas, conhecimentos

A
e instituições.

/C
TA
Em outras palavras, as políticas sociais, muito mais que simplesmente ser
um instrumento para possibilitar o acesso a um bem ou serviço (cesta
básica, escola etc.) são um poderoso mecanismo para forjar a sociedade

LE
que queremos criar, definindo as condições de inclusão na comunidade
de cidadãos (FLEURY, 2003, p. 5).

CO
A partir dessa perspectiva é que se insere a abordagem pretendida
O
neste texto. A grave situação econômica, política e social que o Brasil en-
D
frenta nesse novo milênio tem favorecido o debate em torno dos limites
das estratégias de inclusão social promovidas no país. Diante de um mundo
O

cada vez mais globalizado, com redefinição dos lugares ocupados pelos dife-
V

rentes países na estrutura produtiva das economias capitalistas, essa questão


SI

torna-se, de modo particular, relevante, especialmente ao se considerar que


U

o Brasil não experimentou um processo de desenvolvimento associado à


CL

distribuição da riqueza socialmente produzida. Tampouco potencializou


mecanismos de proteção social associados à estratégia de pleno emprego
EX

e/ou pautados na noção de direitos universais sob responsabilidade pública,


tal como grande parte dos países europeus.
De fato, é possível afirmar que até a promulgação da Constituição
SO

Federal de 1988 predominou no Brasil um padrão de proteção social as-


sentado sob uma lógica corporativista e meritocrática, em que os direitos
U

sociais estavam predominantemente vinculados à proteção de determinadas


RA

categorias profissionais baseadas na contribuição prévia, prevalecendo um


padrão de cidadania regulada tal como analisado por Santos (1987). Aos
PA

excluídos do mercado formal de trabalho, eram destinadas ações assisten-


ciais pontuais. Associada a essa característica, pode-se mencionar a intensa
fragmentação institucional que modelou a intervenção estatal brasileira no
campo social e o forte predomínio do clientelismo como uma das gramá-
ticas das relações entre Estado e sociedade (NUNES, 2004). Além disso,
não se pode esquecer o contexto autoritário em que as políticas sociais
185

foram desenvolvidas no país, o que contribuiu para perpetuar as já grandes


desigualdades sociais.
Esforços para alterar esse quadro foram ganhando espaço a par-

S
tir da Constituição Federal de 1988, marcados pela tensa e contraditória

PE
conciliação entre a instauração de uma ordem democrática e a adoção de
medidas de austeridade econômica. Sustentada pela noção de cidadania, a

A
carta constitucional introduziu inflexões importantes no sistema de proteção

/C
social brasileiro, merecendo destaque a instituição de um capítulo específico

TA
dedicado aos direitos sociais e a instauração de um modelo ampliado de
proteção social com base na seguridade social.

LE
Cabe destacar que o projeto da seguridade social pressupunha forte
articulação entre políticas econômicas e sociais, ancorada em um modelo de

CO
desenvolvimento capaz de promover crescimento econômico sustentado,
geração de renda e emprego, com redução das desigualdades e ampliação
O
dos direitos sociais. Ao mesmo tempo, impunha um novo ordenamento
D
do Estado em uma sociedade profundamente desigual, com baixo compar-
tilhamento de valores igualitários e solidários que lhe dessem sustentação.
O

Nas três décadas que se seguiram, houve, de fato, a construção de


V

um potente aparato institucional no campo social, com a constituição de


SI

sistemas nacionais de políticas públicas, notadamente nas áreas de saúde e


U

assistência social, ancorados na presença e pactuação entre os três níveis


CL

de governo e na instauração de mecanismos de participação e controle so-


cial (LOBATO, 2009). Por outro lado, esses avanços foram constrangidos
EX

pela agenda neoliberal implantada no país já nos anos 1990, resultando na


corrosão dos preceitos constitucionais e conduzindo à adoção de políti-
cas seletivas e focalizadas na extrema pobreza, submissão aos ditames da
SO

política econômica e expansão/atualização dos processos de privatização


dos sistemas.
U

Ainda que pressões e tendências de desmonte do padrão consti-


RA

tucional tenham vigorado ao longo de todo o período, é possível afirmar


que os preceitos inscritos na Carta Magna constituíram uma espécie de
PA

freio importante à redução das políticas sociais. No entanto, desde o início


dos anos 2010, a crise política e institucional que se abateu sobre o país,
associada ao avanço do conservadorismo e à adoção radical de medidas
ultraliberais de austeridade fiscal, tem apontado para a tendência de rup-
tura com a trajetória construída nas últimas décadas, configurando o que
Pochmann (2017) identifica como fim do ciclo político da Nova República.
186

Dadas essas fragilidades, associadas ao momento de instabilidade


política e econômica pela qual passa a sociedade brasileira e ao fortaleci-
mento de ideias neoliberais e neoconservadoras, existem sérios riscos de

S
retrocessos nas conquistas que haviam sido alcançadas na área social nesses

PE
últimos anos.

A
O contexto do debate sobre intersetorialidade no Brasil:

/C
TA
É possível afirmar que o tema da intersetorialidade entra na agenda
governamental brasileira no contexto de transição democrática dos anos

LE
198059. Impulsionada pelas críticas ao padrão de intervenção estatal erigido
no país nas décadas anteriores, a intersetorialidade aparece cercada de cono-

CO
tações fortemente positivas, na medida em que se vincula aos movimentos
em defesa da garantia e ampliação dos direitos sociais. Desde então, o tema
O
é recorrente nos debates em torno das intervenções públicas no campo
D
social, quase sempre articulado à perspectiva de alcance de maior eficiência
O

e/ou efetividade dessas intervenções.


V

Uma análise do debate sobre o tema ao longo das últimas décadas


SI

permite identificar três momentos distintos, marcados por diferenças e


nuances quanto a seu conteúdo. Ao longo dos anos 1980, a preocupação
U

com o resgate da dívida social brasileira ganha lugar de destaque na agen-


CL

da pública, informando o início do processo de reformas das políticas


sociais. Nesse contexto, há uma associação positiva entre democratização
EX

e descentralização, em contraposição ao caráter autoritário, centralizado


e excludente que modelou as intervenções públicas no campo social. Ao
SO

lado das diretrizes de universalização e participação social, a intersetoria-


lidade aparece como um dos mecanismos capazes de superar a histórica
U

fragmentação das políticas sociais e, ao mesmo tempo, garantir proteção


RA

integral a todos os cidadãos brasileiros. Essa perspectiva é encampada, de


certa forma, pela Constituição Federal de 1988.
PA

59
É importante situar que esforços de articulação intersetorial antecedem esse período,
em especial, nos campos da Saúde Coletiva e da Gestão Urbana. No entanto, tratava-se, em
geral, de iniciativas pontuais e geograficamente delimitadas, muitas identificadas como
experiências piloto inovadoras. No bojo do processo de transição democrática brasilei-
ra após duas décadas do regime autoritário militar, as denúncias quanto ao padrão de
intervenção estatal na área social contribuíram para que temas como descentralização,
universalização, intersetorialidade ocupassem lugar de destaque na agenda pública do
país, associados a noções de cidadania e justiça social.
187

Ainda que o texto constitucional não se refira explicitamente ao


termo intersetorialidade, ele advoga a ideia de proteção social integral
como uma das inovações no campo das políticas públicas, o que pressupõe

S
políticas sociais articuladas intersetorialmente (SCHUTZ; MIOTO, 2010).

PE
Exemplo disso é a incorporação da noção de seguridade social como “um
conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da socie-

A
dade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à

/C
assistência social” (BRASIL, 1988).

TA
Na década seguinte, mais precisamente a partir da segunda metade
dos anos 1990, a agenda governamental brasileira passa a ser fortemente

LE
influenciada pelas prescrições neoliberais de ajuste macroestrutural da eco-
nomia, com repercussões nefastas para as políticas sociais, configurando

CO
o que Behring (2003) denomina de contrarreforma da seguridade social.
Em contexto de restrição dos gastos públicos, a busca pela eficiência das
O
políticas sociais dá o tom do debate, restringindo o escopo e o alcance
D
das intervenções públicas, especialmente, na área social. No bojo desse
processo, a intersetorialidade é valorizada como parte das estratégias para
O

racionalização dos gastos públicos e otimização dos recursos, de modo a


V

tornar sua alocação mais eficaz (BURLANDY, 2003). Nesse sentido, asso-
SI

cia-se, em grande medida, ao processo de reforma gerencialista do Estado


U

em vigência no período.
CL

Ao mesmo tempo, assiste-se a uma “redescoberta” da pobreza, por


meio da qual políticas dirigidas a combatê-la ganham centralidade na agenda
EX

governamental. Essa situação se faz acompanhar do reconhecimento do


caráter multidimensional da pobreza e da impossibilidade de uma única po-
lítica pública responder ao conjunto de necessidades sociais dos segmentos
SO

mais vulneráveis (VEIGA; BRONZO, 2014), o que demanda esforços em


direção à construção da intersetorialidade.
U

Ao lado de tais tendências, ganha força a defesa de novas formas


RA

de articulação entre Estado, sociedade civil e mercado, envolvendo a parti-


cipação de Organizações Não Governamentais (ONG), das comunidades
PA

organizadas e do setor privado na provisão de serviços públicos, além da


introdução de novas formas de gestão nas organizações estatais, sob a
perspectiva de dotá-las de maior agilidade (FARAH, 1999). A defesa da
intersetorialidade se faz, assim, associada à ideia de estabelecimento de
parcerias entre setores governamentais nas diferentes esferas estatais e
organizações da sociedade civil, o que tanto permite a ampliação das are-
188

nas de participação e decisão em torno das políticas pública quanto pode


favorecer a transferência das responsabilidades estatais para a iniciativa
privada e as ONG, colocando em xeque a noção de dever do Estado posta

S
no texto constitucional.

PE
O exemplo do Programa Comunidade Solidária (PCS) é emble-
mático. Instituído pelo governo federal em 1995, o PCS configura uma

A
estratégia de articulação e coordenação de ações de governo no combate

/C
à fome e à pobreza. Ao advogar o estabelecimento de parcerias entre os
três níveis de governo, a sociedade civil organizada e o chamado Terceiro

TA
Setor, o programa reforça a intersetorialidade como um de seus princípios
balizadores. No entanto, como bem sinaliza Silva (2001), o PCS pautou-se

LE
pela agenda neoliberal, culminando na estratégia de focalização, na des-
caracterização da assistência social enquanto direito social, na diminuição

CO
do papel do Estado no combate à pobreza e no estímulo ao crescimento
do Terceiro Setor, indo na direção contrária dos princípios da Seguridade
O
Social contidos no texto constitucional.
D
Já nos anos 2000, sobretudo a partir da segunda metade da década,
a agenda governamental brasileira foi fortemente orientada pela estratégia
O

de combinar desenvolvimento econômico com estabilidade, distribuição de


V

renda e convergência entre ações universais e focalizadas (FAGNANI, 2011).


SI

A prioridade, então conferida pelo governo federal ao combate à fome e


U

à pobreza, reforçou a exigência de articulação entre as políticas sociais, ao


tempo em que trouxe o desafio de integração também com outros setores
CL

não tradicionalmente identificados de forma direta com a área social, como


as políticas ligadas à segurança alimentar, à agricultura e ao trabalho.
EX

De um lado, a ênfase na intersetorialidade está associada ao re-


conhecimento da complexidade que envolve as múltiplas expressões da
SO

questão social, em especial, aquelas vinculadas ao fenômeno da pobreza


e das desigualdades sociais. De outro lado, ela parte da ideia de que os
U

chamados wicked problems60, dada sua recorrência e persistência, exigiriam


a necessidade de um olhar embasado pela perspectiva de integralidade, o
RA

que implicaria na construção de arranjos intersetoriais envolvendo vários


setores governamentais e outros atores sociais, nem sempre pautados por
PA

agendas e interesses convergentes (VEIGA; BRONZO, 2014).


60
O termo wicked problems (problemas perversos, em tradução literal) se refere, no âmbito
do planejamento e das políticas públicas, a problemas complexos de ordem social ou
cultural de difícil resolução, seja devido ao conhecimento incompleto, seja pelo número
de pessoas e concepções distintas envolvidas, seja ainda por sua natureza interconectada
com outros problemas, além de grande ônus econômico. O enfrentamento dessa com-
plexidade traz a necessidade de articulação intersetorial.
189

Ao mesmo tempo, a crescente mobilização e luta de movimentos


sociais por reconhecimento trazem novos temas à agenda governamental,
reforçando a necessidade de aprimorar as intervenções públicas, de forma

S
a incorporar segmentos e temáticas específicas. Trata-se, por exemplo, das

PE
demandas de grupos historicamente em situação de desigualdade ou des-
vantagem social, como mulheres, negros, pessoas com deficiência, dentre

A
outros. Embora essas questões não sejam exatamente novas, posto que

/C
há muito tempo são debatidas pelos movimentos sociais e pela própria

TA
academia, apenas recentemente elas foram incorporadas na agenda gover-
namental. Nesse contexto, a transversalidade das políticas públicas aparece

LE
como uma exigência de integração de diversas estruturas setoriais, pautadas
por estratégias de intervenção capazes de abranger os distintos setores das

CO
políticas e a atuação conjunta de vários programas e iniciativas (VEIGA;
BRONZO, 2014).
Deve-se alertar para o fato de que essas tendências são predomi-
O
nantes em cada período, mas não exclusivas. De fato, um olhar atento para
D

esse debate ao longo dessas décadas permite observar uma mistura entre
O

tais tendências, ora assumindo um caráter complementar, ora marcado por


V

conflitos e disputas de concepções e estratégias.


SI

Um termo, múltiplos sentidos


U
CL

Apesar do lugar de destaque assumido pela intersetorialidade na


EX

agenda pública brasileira em anos recentes, a temática tem recebido um


tratamento analítico ainda genérico, carecendo de aportes teóricos sólidos
para aprofundar a questão e orientar metodologias interventivas (SCHUTZ;
SO

MIOTO, 2010).
A literatura que trata do tema é unânime ao afirmar que o termo
U

intersetorialidade encerra um conjunto bastante diverso e até mesmo diver-


RA

gente de abordagens e concepções. A questão também tem sido debatida


por diferentes áreas do conhecimento e por distintos segmentos sociais
PA

(gestores, policy makers61, profissionais, conselheiros de políticas, dentre


outros), agregando possibilidades de um enfoque interdisciplinar.
Ao fazer um balanço da literatura sobre intersetorialidade, Schutz
e Mioto (2010) identificam a presença de diferentes enfoques, agrupados
pelas autoras em três abordagens principais. A primeira corresponderia ao
61
Refere-se aos “fazedores” ou formuladores de políticas públicas.
190

sentido de complementariedade de setores. Segundo Junqueira (1998), os autores


que comungam dessa perspectiva entendem a intersetorialidade como

S
Articulação de saberes e experiências no planejamento, na realização e na

PE
avaliação de políticas, programas e projetos para alcançar efeitos sinérgicos
em situações complexas, visando o desenvolvimento social – distribuição

A
equânime de riquezas – e a superação da exclusão social (JUNQUEIRA,
1998, p. 14).

/C
TA
O reconhecimento das necessidades da população em toda sua
complexidade seria o ponto de partida para a definição das prioridades

LE
comuns a serem respondidas de forma articulada por cada política. Como
afirmam Veiga e Bronzo (2014), não se trata de justapor o que se faz sepa-

CO
radamente, mas construir algo novo, em conjunto, de forma a responder a
um problema complexo e, portanto, irredutível a soluções setoriais.
O
A intersetorialidade como prática social é outra perspectiva identifica-
D
da na categorização feita por Schutz e Mioto (2010). Esse enfoque se pauta
no entendimento de que as práticas intersetoriais permitem a abordagem
O

e o enfrentamento conjunto das necessidades da população. Tal sentido


V

enfatiza o constante aprendizado possibilitado pelo encontro dos acúmulos


SI

setoriais, na abordagem de determinada realidade territorialmente localizada


U

(ANDRADE, 2006), conformando ações concertadas que transcendem a


CL

expertise setorial, embora dela se nutram.


O terceiro enfoque identificado pelas autoras demarca a interse-
EX

torialidade como princípio do trabalho com redes. Essa noção destaca as ações
conjuntas que visam atender aos segmentos socialmente “vulnerabilizados”,
por meio de conexões horizontais entre “atores governamentais, não go-
SO

vernamentais e informais, comunidades, profissionais, serviços, programas


sociais, setor privado, bem como as redes setoriais” (BOURGUIGNON,
U

2001, p. 6). Nesse sentido, segundo Junqueira (2004), a intersetorialidade


RA

implica compartilhar saberes e experiências, informando uma nova maneira


de planejar, executar e controlar a prestação de serviços, para garantir um
PA

acesso igual dos desiguais. Ainda de acordo com o autor, “Isso significa
alterar toda a forma de articulação dos diversos segmentos da organização
governamental e dos seus interesses” (JUNQUEIRA, 2004, p. 27).
De forma semelhante, Carmo e Guizardi (2017) realizaram uma revi-
são da literatura sobre intersetorialidade, no âmbito da seguridade brasileira
no período de 2004 a 2017, e identificaram uma escassa produção científica
191

sobre a temática, com predomínio das produções no âmbito da saúde. As


autoras apontaram alguns elementos recorrentes em grande parte dessas
produções, entre elas o reconhecimento da imprecisão conceitual da noção

S
de intersetorialidade, as resistências de profissionais e da burocracia estatal

PE
à atuação intersetorial e a localização quase exclusiva da intersetorialidade
nos processos de implementação das políticas e programas sociais.

A
Esse conjunto de abordagens permite identificar alguns elementos

/C
centrais a serem contemplados na definição de intersetorialidade. De iní-

TA
cio, destaca-se que a intersetorialidade implica em saberes e práticas com-
partilhadas. Trata-se de um esforço de estruturar novos conceitos, novas

LE
linguagens e um novo saber em torno de um objeto comum, perspectiva
afinada com a concepção de interdisciplinaridade, conforme destacam

CO
Comerlatto et al. (2007).
Contudo, a intersetorialidade exige também a construção de ações
integradas a partir da definição de objetivos comuns, em que as respostas aos
O
problemas de ordem social estejam no centro da estruturação das interven-
D

ções públicas, afinando-se com as noções de inclusão social e a garantia de


O

direitos de cidadania (JUNQUEIRA, 2004). Desse modo, a intersetorialidade


V

ultrapassa a justaposição de ações, provocando alterações nas estruturas e


SI

dinâmica existentes nos diversos setores e a introdução de novos pontos


de vista e novas linhas de trabalho (VEIGA; BRONZO, 2014).
U

Outro aspecto a considerar na definição de intersetorialidade se


CL

refere ao envolvimento de vários setores da administração pública, nos


diferentes níveis de governo (União, estados e municípios), mas também
EX

de outros atores sociais, especialmente, da sociedade civil e dos stakeholders62


das intervenções públicas. Esse envolvimento permite alargar as arenas de-
SO

cisórias em torno das políticas sociais, uma das condições necessárias para
conferir maior sustentabilidade às ações, todavia, ela também é atravessada
U

por conflitos e disputas em torno de agendas e interesses não necessaria-


RA

mente convergentes.
Como argumenta Campos (2000), a intersetorialidade não se cons-
PA

titui de forma espontânea, mas de uma ação deliberada que requer respeito
à diversidade e às particularidades de cada setor ou participante. A construção
de ações intersetoriais abrange, assim, de acordo com o autor, espaços
62
Stakeholders são sujeitos e grupos sociais envolvidos e/ou afetados por determinada
política pública. O campo de análise de políticas destaca a importância dos stakeholders
na construção das políticas públicas, seja influenciando, implementando ou contribuindo
para modificar ações e decisões.
192

comunicativos, capacidade de negociação e de intermediação de conflitos,


para a resolução ou enfrentamento final do problema principal. Mais do que
o envolvimento de diferentes setores governamentais, a intersetorialidade

S
se refere também à relação entre Estado e sociedade.

PE
Essas concepções apontam na direção de um conjunto de inova-
ções no âmbito na gestão pública, em que o padrão gerencial “clássico” ou

A
“tradicional” – pautado por sistemas técnicos especializados e estruturas

/C
fortemente hierarquizadas – é confrontado com novos objetivos e demandas

TA
políticas e sociais. A partir esse ponto de vista, a intersetorialidade implicaria
em mudanças organizacionais e de gestão, em modificações nas concepções

LE
dos profissionais, na cultura organizativa de diferentes setores e na alocação
de recursos financeiros, técnicos, dentre outros aspectos.

CO
Veiga e Bronzo (2014) sustentam a hipótese de que a noção de in-
tersetorialidade envolve um continuum que abrangeria desde a articulação e
O
coordenação de estruturas setoriais já existentes até uma gestão com forte
articulação entre setores. As autoras argumentam que, dependendo do grau
D

de articulação e da intensidade de mudanças introduzidas nas práticas e nos


O

arranjos organizacionais, os arranjos intersetoriais expressariam o que deno-


V

minam – com base no trabalho de Brugué (2010) – de intersetorialidade de


SI

baixa ou de alta densidade. Os arranjos de alta densidade corresponderiam


U

àqueles capazes de promover alterações nas dinâmicas e processos institu-


cionais e no desenho e conteúdo das políticas setoriais.
CL
EX

Limites e desafios dos arranjos intersetoriais


A noção de intersetorialidade que orienta o debate trazido neste
SO

capítulo acena para a necessidade de considerar três níveis de ação em que


o esforço de articulação intersetorial se faz presente (BRONZO; VEIGA,
U

2007): no âmbito da decisão política, marcada pela dinâmica de interação


RA

entre os diferentes atores políticos em determinado contexto histórico e


estruturalmente delimitado; nos arranjos intersetoriais, relacionados à confor-
PA

mação político-institucional dos setores envolvidos e das arenas e espaços


de interlocução; e na dimensão técnico-operacional, balizada pelo processo de
implementação das ações e da gestão dos recursos e das responsabilidades.
No entanto, se a intersetorialidade é reiteradamente defendida nos
textos e debates sobre as políticas sociais em anos recentes, sua transfor-
mação em eixo estruturante das intervenções públicas não é uma tarefa
193

simples. Isso porque a construção de ações intersetoriais demanda enorme


esforço para intermediar interesses nem sempre convergentes – e até mesmo
antagônicos – e estabelecer consensos políticos.

S
De fato, a intersetorialidade esbarra nas distintas lógicas organizacio-

PE
nais que regem as arenas setoriais, decorrentes da “pirâmide hierarquizada
e fatiada da estrutura governamental” (INOJOSA, 2001, p. 107) construída

A
no país. Essa autora identifica três grandes empecilhos organizacionais à

/C
construção da intersetorialidade: o fatiamento do aparato estatal por saberes,

TA
conhecimentos e corporações, refletindo “as clausuras das disciplinas”; “a
hierarquia verticalizada, piramidal, em que os processos percorrem vários

LE
escalões, mas as decisões são tomadas apenas no topo” (INOJOSA, 2001,
p. 103); e o loteamento político-partidário e de grupos de interesses.

CO
É importante ressaltar que a construção dessas arenas setoriais
foi historicamente importante no sentido de conferir institucionalidade e
robustez a determinadas áreas específicas, definindo suas competências e
O
funções, conformando seus marcos regulatórios e comandando a alocação
D

de recursos organizacionais. De fato, a institucionalização das políticas so-


O

ciais no Brasil, e não exclusivamente aqui, deu-se de modo a recortar áreas


V

específicas de atuação, permitindo “trabalhar com um recorte identificável


SI

no conjunto das necessidades e demandas sociais” (PEREIRA, 2004, p. 58).


No entanto, contribuiu enormemente para formatar tradições institucionais
U

fundadas em uma visão fortemente fragmentada dos problemas sociais e


CL

no insulamento burocrático dos policy makers envolvidos com essas políticas.


Conforme sintetiza Burlandy (2009),
EX

As estruturas de proteção social no Brasil, especialmente até meados da


SO

década de noventa, caracterizavam-se pela fragmentação institucional e


pela predominância dos objetivos setoriais sobre estratégias que viessem
a alterar a distribuição dos recursos de poder, tanto no sentido horizontal
U

(entre setores) quanto vertical (entre níveis de governo). Consequentemen-


RA

te, geraram uma alocação pouco eficiente dos recursos, superposição de


ações e clientelas, além de limitar a construção de pactos nacionais mais
amplos para o enfrentamento de problemas complexos, como saúde e
PA

segurança alimentar e nutricional (BURLANDY, 2009, p. 852).

Esse legado configura um sério entrave às iniciativas de construção


de ações intersetoriais, agravado por disputas políticas e pela defesa de
interesses circunscritos à esfera setorial. Resistências a uma atuação mais
“concertada” entre os diferentes atores, instituições e áreas interventivas são
194

comumente relatadas nos estudos sobre experiências concretas de cunho


intersetorial, e passam por conflitos de caráter corporativista pelas disputas
por recursos orçamentários, espaços de poder e pelo forte componente

S
clientelístico que molda as relações sociais no Brasil.

PE
Segundo Andrade (2006), agregam-se a isso as dificuldades das
áreas setoriais em lidarem com a complexidade que reveste as diferentes

A
expressões da questão social. Ainda como salienta esse autor, um dos gran-

/C
des desafios da intersetorialidade é justamente romper com a tradição da

TA
Ciência Moderna, que opera com uma lógica parcializada de organização e
produção do saber, gerando, como consequência, uma intensa especializa-

LE
ção disciplinar e práticas sociais fragmentadas. Nesse sentido, a adoção da
intersetorialidade implica na construção de um novo paradigma capaz de

CO
integrar saberes e práticas, conhecimento e ação, em direção à valorização
da participação coletiva e da consolidação dos direitos sociais.
O
Do ponto de vista da gestão intersetorial, um aspecto crucial diz
D
respeito à coordenação das ações, o que implica na adoção de estratégias que
vão desde a coleta e disseminação de informações, de forma a possibilitar
O

uma compreensão partilhada dos problemas, até o planejamento integrado


V

com os setores envolvidos e os próprios destinatários das intervenções,


SI

passando ainda pelo estabelecimento de canais formais de comunicação e


U

interação entre os stakeholders (BURLANDY, 2009). Mais do que uma ques-


CL

tão de ordem técnico-gerencial, trata-se de um processo político marcado


por conflitos, negociações e acordos capazes de forjar o comprometimento
EX

e a adesão dos atores aos projetos integradores, para além de seus objetivos
específicos, setoriais.
Cabe ainda destacar o fato de que o debate sobre a intersetorialidade
SO

não se faz desvinculado do reconhecimento de que as políticas públicas se


expressam a partir da relação entre Estado e sociedade, determinada por
U

condições histórico-estruturais de desenvolvimento de uma formação social.


RA

Nesse sentido, o processo de constituição de políticas públicas possui espe-


cificidades que demandam considerar não apenas as organizações política
PA

e social vigentes, mas também as condições econômicas e, em maior ou


menor proporção, as condições culturais e tecnológicas.
Nesse sentido, é forçoso reconhecer, conforme alertam Junqueira,
Inojosa e Komatsu (1997, p. 24), que a “intersetorialidade não é um fim
em si mesma e nem irá, por si só, promover o desenvolvimento e a inclu-
são social”. Vale reforçar que o enfrentamento das desigualdades sociais,
195

componente estrutural das sociedades capitalistas, extrapola o âmbito de


atuação das próprias políticas sociais e demanda intervenções de ordem
macroeconômica.

S
A defesa da intersetorialidade tem sido reiteradamente associada

PE
às suas possibilidades de superar a fragmentação das políticas sociais e
sua baixa capacidade de responder às necessidades e demandas de amplos

A
contingentes populacionais. Parte-se do reconhecimento de que tais neces-

/C
sidades e demandas são multifacetadas e multidimensionais, o que exige a

TA
articulação entre diferentes saberes e setores como mecanismo fundamental
para garantia da proteção integral enquanto direito de cidadania. No campo

LE
da assistência social, essa defesa se adensa devido tanto ao legado histórico
dessa área de intervenção pública quanto às características das próprias

CO
necessidades e demandas que configuram seu campo específico de atuação.
Se a defesa da importância da intersetorialidade é um aspecto
O
consensual, as estratégias para construí-la têm sido tema de discussões e
D
divergências. Além disso, sua construção esbarra em desafios nada triviais,
sobretudo porque implica em mudanças de diferentes ordens: paradigmá-
O

ticas na forma de conceber os problemas sociais e como enfrentá-los, nas


V

concepções de gestores e profissionais, na cultura organizativa dos diferentes


SI

setores, nos mecanismos de alocação de recursos, nas estruturas e processos


U

decisórios, nas arenas e espaços de interlocução etc.


CL

Desse modo, muito mais do que um processo de ordem técnica,


racional e gerencial, a construção da intersetorialidade envolve decisão po-
EX

lítica e exige estratégias deliberadas, capazes de estimular o diálogo entre os


diversos agentes – gestores, profissionais, organizações da sociedade civil,
SO

movimentos sociais, público-alvo das ações – na direção de construção de


saberes e práticas comuns em defesa da garantia e alargamento dos direitos
U

de cidadania.
RA


PA

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U
CL
EX
SO
U
RA
PA
199

S
PE
A
/C
TA
LE
Parte IIICO
O
D
O

Ação profissional nas Políticas Públicas:


V

desafios e respostas
SI
U
CL
EX
SO
U
RA
PA
PA
200
RA
U
SO
EX
CL
U
SI
V
O
D
O
CO
LE
TA
/C
A
PE
S
201

9.
Intersetorialidade e a formação de redes como caminho

S
PE
para a garantia de direitos de crianças e adolescentes

A
Zelimar Soares Bidarra

/C
Eugênia Aparecida Cesconeto

TA
Este capítulo incumbe-se de problematizar o caminho pelo qual

LE
deve acontecer a concretização “Da Política de Atendimento” para crianças
e adolescentes, prevista na “Parte Especial” do Estatuto da Criança e do

CO
Adolescente (ECA), Lei nº 8069/1990 – atualizações. Esse caminho consta
no Art. 86, cuja partícula central de redação pressupõe a intersetorialidade
O
pela existência de um “[...]conjunto articulado de ações governamentais e
D
não-governamentais [...]” (BRASIL, 1990). A lógica para tornar efetiva essa
política prevê a construção da intersetorialidade e sua consequente expressão
O

material sob o formato de redes de políticas públicas. O Estatuto requer


V

que a arquitetura da garantia de direitos para crianças e adolescentes esteja


SI

vinculada à existência de arranjos institucionais intersetoriais que movimen-


U

tam pactos, ou acordos, entre os agentes das redes de políticas públicas.


CL

Essas redes espelham as tramas das relações institucionais e profissionais


no que se refere à atenção sobre demandas e problemáticas no exercício
EX

dos direitos fundamentais, de que são titulares crianças e adolescentes.


Ao longo deste texto, busca-se dar visibilidade para tema comple-
xo no campo das políticas públicas: a construção de estratégias concretas
SO

que viabilizem o estabelecimento da ação intersetorial e em redes. Não há


U

discordância entre os diversos estudiosos, bem como entre os profissionais


que atuam nos contextos da implementação de políticas públicas setoriais
RA

sociais, sobre a imperiosa necessidade de avanços práticos, sustentados por


patamares mais consistentes e duradouros de articulação, para a organização
PA

intersetorial na esfera operativa dessas políticas (INOJOSA, 2001; BROZO;


VEIGA, 2007; BIDARRA, 2009; MIOTO; SCHÜTZ, 2011; MONNERAT;
SOUZA, 2014).
Contudo, se por um lado, tem-se o consenso sobre quão promis-
sora para o acesso aos direitos sociais (previstos no Art. 6 da Constituição
de 1988) é a implementação das políticas públicas resultante da pactuação
202

em dimensão intersetorial, por outro lado, tem-se o consenso de que essa


trama intersetorial não existe aprioristicamente (BIDARRA, 2009), o que
não deixa dúvida sobre a dificuldade para torná-la realidade.

S
De acordo com a tradição intelectual que analisa a intervenção

PE
do Estado na esfera da conflitividade social, explicitada pela ampliação e
agravamento das desigualdades, a ação intersetorial articulada em redes

A
de prestação de serviços não é uma condição dada e nem natural do flu-

/C
xo de operacionalização dos programas e serviços das políticas setoriais.

TA
Pelo contrário, o viés prevalecente é o da fragmentação, da setorializa-
ção e do isolacionismo (PEREIRA, 2004; 2014; SPOSATI, 2004; 2006;

LE
TUMELERO, 2015).
Dessa forma, atuar na perspectiva da intersetorialidade significa ter

CO
a capacidade de compartilhar responsabilidades e organizar as atribuições
necessárias à realização de uma tarefa, para a qual é preciso contar com
O
igual compromisso dos sujeitos sociais envolvidos. Esses sujeitos partici-
D

pam como “atores estratégicos que ocupam espaços onde a circulação e


O

a estruturação de significados constituem um terreno sólido para forjar


V

representações e práticas garantidoras de direitos humanos” (BAPTISTA,


SI

2012, p. 196).
Encontrar mecanismos e caminhos que favoreçam a articulação
U

da ação intersetorial e em redes ainda representa um imenso desafio para


CL

os profissionais cujas intervenções materializam as ações, os serviços e os


EX

programas de diferentes políticas públicas. Entretanto, essa articulação pre-


cisa ser insistentemente buscada porque ela não ocorre de forma natural e
imediata. Por meio dela, pode-se ter novos horizontes para a elaboração de
SO

propostas interventivas que favoreçam o usufruto de direitos por crianças e


U

adolescentes, não só quando estão em condição de vítimas de violações e/


ou de violências, mas como sujeitos que têm direito à preservação de suas
RA

vidas e ao desenvolvimento de suas humanidades. Para isso, o ECA previu


a existência de um sistema de garantia de direitos63 (SGD) estruturado em
PA

três eixos (defesa, promoção, controle da efetivação), integrado e articulado


por atuações profissionais e por práticas sociais e políticas comprometidas
com a garantia de direitos para a proteção integral.
63
A configuração do Sistema de Garantia dos Direitos (SGD) da criança e do adolescente
está expressa na Resolução nº 113/2006/CONANDA, no Capítulo I, Artigo 1º, atualiza-
da pela Resolução nº 117/2006/CONANDA (CONANDA, 2006a; 2006b).
203

Para Baptista (2012, p. 190) “Essa estruturação [do SGD] não


contemplaria uma política setorial apartada, mas iria ressaltar a perspectiva
de integralidade da ação, que deveria cortar transversa e intersetorialmente

S
todas as políticas públicas [...]”. Com isso, todos os envolvidos com os

PE
processos de implementação de políticas públicas setoriais que concretizam
a Política de Atendimento têm responsabilidades com a interpenetração das

A
atuações e complementaridade das ações, para que a proteção integral de

/C
crianças e adolescentes possa se tornar realidade.

TA
Nesse sentido, não se pode deixar de abordar a participação e a
atuação do assistente social como integrante do SGD e do compromisso

LE
ético-político dessa profissão com a realização da justiça social. Isso desafia
esse profissional a buscar formas e mecanismos para que, no cotidiano da

CO
atuação, elaborem-se alternativas para a concretização de prerrogativas que
fortaleçam as interlocuções entre aqueles que ocupam posições estratégicas
nas instâncias governamental e não-governamental, com vistas a alcançar o
O
satisfatório funcionamento desse SGD. Todavia, como esse sistema não se
D

finda em si mesmo, é fundamental trabalhar para sua ampliação e interação


O

com as demais instâncias da vida social e das dinâmicas estatais, que são
V

imprescindíveis para o exercício da cidadania.


SI

Políticas públicas e a atuação dos burocratas do nível de rua (agentes


U

implementadores/profissionais/funcionários): o Estado em ação


CL
EX

Tratar do Estado em ação também significa refletir sobre o papel


desempenhado pelos burocratas do nível de rua64 no processo de imple-
mentação das políticas públicas setoriais para a efetivação da intersetoriali-
SO

dade, a qual refere-se a um princípio organizativo da execução e da gestão


dessas políticas.
U

As políticas públicas implementadas por um governo dependem da


RA

concepção de Estado e do programa de governo que se tornou vitorioso


em uma eleição. Além disso, essa implementação também é influenciada
PA

pela compreensão que tais burocratas têm sobre a organização da sociedade,


do Estado e sobre o papel que vão desempenhar na execução da política
64
Burocratas do nível de rua (burocratas de rua), Agentes Implementadores, Profissionais,
Funcionários e Pessoal do Estado são terminologias utilizadas de formas diferentes pelos
autores (vide Referências ao final do capítulo) que tratam de teorias do Estado e de proces-
sos de implementação de políticas públicas para se referir àqueles que executam de forma
direta tais políticas. Ao longo deste capítulo, optamos por utilizá-las como sinônimos.
204

pública setorial a que estão vinculados. Divergências quanto a essas com-


preensões podem gerar distorções no curso da implementação e compro-
meter o alcance dos resultados esperados. Nem sempre isso é intencional

S
ou prejudicial, são processos intrínsecos aos aparelhos de Estado que são

PE
“regulados” e se determinam por contradições e antagonismos.
As políticas implementadas por um governo expressam fatores de

A
diferentes natureza e determinação. Assim, torna-se importante conhecer

/C
sua complexidade quando se pretende aferir, redirecionar ou alterar o rumo

TA
das políticas, o que exige um grande esforço, uma vez que esses diferentes
fatores se referem, sempre, a uma concepção de Estado, no interior da qual

LE
se movimentam.
Para a compreensão e análise dessa movimentação, Hirsch (2010)

CO
e Mascaro (2013) consideram o Estado uma “forma política” derivada
da “forma social”65 capitalista, portadora de contradições que marcam
as disputas e o atendimento aos distintos interesses de classes (e de seus
O
segmentos). “Ele [o estado] não é nem expressão de uma vontade geral,
D

nem o mero instrumento de uma classe, mas a objetivação de uma relação


O

estrutural de classes e de exploração” (HIRSCH, 2010, p. 32). O Estado é


V

a expressão de uma “forma social” determinada que assume as relações de


domínio, de poder e de exploração nas condições capitalistas.
SI

O Estado, a “forma política”, é considerado por Hirsch (2010) e


U

Mascaro (2013) como um “campo de ação” que possui condições e di-


CL

nâmicas próprias, materializadas em organismos estatais e em um “vasto


conjunto de instituições sociais (concretas e autônomas), consolidando-se
EX

em aparatos que lhe são específicos e próprios” (MASCARO, 2013, p. 30);


constituídos por núcleos dirigentes e corpos burocráticos. As instituições
SO

sociais e os organismos estatais são postos em movimento pela ação hu-


mana, reproduzindo ou modificando-as em consequência das estratégias
U

65
Segundo Hirsch (2010, p. 49): “Formas sociais designam a relação de articulação entre estru-
tura social – o modo de socialização, as instituições e as ações”. Complementando esse
RA

entendimento, Mascaro (2013, p. 21-22) define as formas sociais como: “[...] modos relacio-
nais constituintes das interações sociais, objetificando-as (relações objetivas exteriores e
PA

reificadas face aos indivíduos). Trata-se de um processo de mútua imbricação: as formas


sociais advêm das relações sociais, mas acabam por ser suas balizas necessárias. Exemplo,
valor, mercadoria e subjetividade jurídica, balizadas por meio dos vínculos contratuais.
O processo de constituição das formas, no entanto, é necessariamente social, histórico
e relacional. É por meio de interações sociais que elas mesmas se formalizam. [...] A
forma representa uma objetivação de determinadas operações, mensurações, talhes e va-
lores dentro das estruturas históricas do todo social [...]. As interações sociais capitalistas
forjam formas que são específicas e necessárias às suas estruturas, distintas de todas as
demais até então havidas”.
205

dos atores sociais. Há, no Estado, um espaço político de negociação, de


organização do consentimento, de legitimação e de oportunidade de acesso
aos direitos expresso nas políticas públicas.

S
As “políticas públicas”, neste capítulo, são entendidas como o

PE
“Estado em ação”, uma vez que as demandas das classes se encontram
em constante disputa. O processo de formulação da política pública é per-

A
meável à influência de grupos privilegiados, cuja solução de disputas não

/C
deve pautar-se por atos violentos, mas pela construção de consensos com

TA
vista à proteção dos direitos, a qual é um domínio reservado ao Estado
(MASCARO, 2013; SOUZA, 2006).

LE
A produção dos direitos, como instância do domínio estatal, está em
um campo de lutas, que só consegue se materializar mediante a existência

CO
das políticas públicas. Por esse motivo, estas são consideradas como o locus
em que os embates em torno de interesses, preferências e ideias se desen-
volvem dentro dos projetos de governos. A sua implementação é, portanto,
O
resultado das interações entre os diversos atores nos espaços institucionais
D

em que o Estado põe sua marca de condução da vida social.


O

Dentre esses atores estão os agentes implementadores de políticas


V

públicas, também chamados de “burocratas de rua”, “burocratas imple-


SI

mentadores”, “burocratas da linha de frente”, “agentes de rua”, ou seja,


são os profissionais que trabalham diretamente com o atendimento aos
U

usuários. Sua atuação é variavelmente relevante para o sucesso ou fracasso


CL

das políticas públicas, pois são eles que diretamente atuam na tradução dos
programas, na distribuição e/ou interdição de bens e serviços públicos,
EX

utilizando, para isso, o seu poder discricionário. Existe, entre os autores


consultados, o reconhecimento de que a discricionariedade66 dos agentes
SO

tem influenciado os processos de implementação das políticas públicas.


Os agentes implementadores das políticas públicas, portanto, têm
U

uma margem para a interpretação destas, seja quando seu desenho é claro,
RA

mas a realidade local não o comporta como tal, seja quando seu desenho
não está “claro ou é dúbio” (OLIVEIRA, 2012, p. 1554). Dessa forma,
PA

admite-se que os agentes vão além da “decisão de aplicá-las ou não e isso


inclui o julgamento sobre o que elas significam e que resultados elas alme-
jam” (LOTTA, 2008, p. 3). Logo, as políticas são perpassadas pela ação e
66
Discricionariedade, segundo Lipsky (1980), se refere à atuação dos burocratas de rua
quanto ao reconhecimento e compreensão de que eles constroem suas ações em uma es-
trutura institucional e programática e, ao mesmo tempo, têm o poder de implementarem
as políticas públicas (LOTTA, 2008; OLIVEIRA, 2012).
206

decisão desses agentes; bem como por “fatores relacionais, institucionais


e organizacionais” (OLIVEIRA, 2012, p. 1554).
Os agentes implementadores logram de autonomia de decisão so-

S
bre quem serão os beneficiados e os não-atendidos, dessa forma, eles não

PE
apenas executam as políticas públicas (policies), eles fazem também política
(politics). Essas discussões ganham destaque juntamente com o desenho e a

A
execução das políticas públicas no contexto da adoção de políticas restritivas

/C
de gastos, inclusa na agenda da maioria dos países (OLIVEIRA, 2012).

TA
Essa argumentação parece bastante atual quando se trata da imple-
mentação das políticas públicas, uma vez que as decisões dos burocratas

LE
de rua têm grande peso no rumo das políticas, ao estabelecer o ritmo e
o número de cidadãos a serem atendidos, bem como proteger o local de

CO
trabalho. Mas há de se reconhecer as inovações e os artifícios criados por
esses burocratas que muitas vezes passam desapercebidos pelos adminis-
tradores, gerentes e pela própria população. Dentre as inovações possíveis,
O
pretende-se, neste capítulo, dar visibilidade às contribuições dadas para
D

o aprimoramento dos processos de garantia de direitos decorrentes das


O

mediações e das interações em que se constroem a intersetorialidade e o


V

trabalho em redes entre as políticas públicas setoriais.


SI

Intersetorialidade e Redes de políticas públicas para a garantia de direitos:


U
CL

a encomenda que não vem pronta!


EX

A construção do trabalho intersetorial e em redes tem como pre-


missa a aproximação e articulação entre as intervenções profissionais en-
carregadas de efetivar as atividades fins, isto é, aquelas que se localizam nas
SO

estruturas de ponta (as “portas abertas”) dos órgãos e dos equipamentos.


U

Dito de outro modo, são atuações configuram a prestação de serviços direta,


o acesso a bens, a serviços e os direitos operacionalizados no âmbito das
RA

políticas públicas. Porém, a construção desse trabalho requer o apoio e a


concordância daqueles que ocupam posições de comando nas estruturas
PA

de gestão. Com base nessa assertiva, assume-se que a construção (a trama)


das articulações é o modus operandi para a intersetorialidade e a existência
das redes.
Corrobora-se o entendimento de que a ação para a intersetorialidade
compreende a articulação de saberes e de experiências para melhor agregar
componentes ao planejamento e à execução de políticas públicas, com vista
207

a tornar efetivas as condições que proporcionam melhores níveis de desen-


volvimento social (INOJOSA, 2001) a serem alcançados por cada localidade.
A trama de articulações se constrói a partir das necessidades dos

S
burocratas de rua para que consigam realizar a prestação de serviços de que

PE
estão incumbidos. Desse modo, compreende-se que nenhuma trama pode
existir ex ante, isto é: ser concebida de modo exterior à realidade da confi-

A
guração dos serviços e à ação constituinte dos quadros técnicos presentes

/C
em cada território de implementação das políticas públicas.

TA
Isto significa que a intersetorialidade e a atuação em redes jamais
têm condições de serem entregues prontas por estruturas hierárquicas

LE
distantes/apartadas das requisições cotidianas apresentadas por usuários
e demais profissionais que interagem nas problemáticas afetas. Elas origi-

CO
nam-se dos próprios agentes das interações, dos contatos, das trocas de
quem têm o domínio sobre contextos específicos de cada realidade. São
O
esses que têm as condições para discutirem e refletirem sobre as alterna-
D
tivas que são adequadas e convergentes em determinada realidade; bem
O

como para elaborarem as respostas sobre as articulações construídas – as


V

resolutividades pactuadas.
É fato inconteste que a atuação intersetorial e em redes, cuja forma
SI

concreta pode ser expressa nos acordos e fluxos construídos e comparti-


U

lhados coletivamente, não pode ser endereçada por encomenda, por pacote
CL

de entrega, isto é: por malote! Ainda que, até os dias atuais, inúmeros bu-
rocratas de rua persistam acreditando nessa possibilidade e por isso suas
EX

atuações profissionais permaneçam aguardando o “malote que não vem”!


Toda articulação resulta da decisão de atuar para fazer convergir
SO

os contatos e as conexões necessárias para que as diferentes rotinas ins-


titucionais tenham condições de dar respostas mais abrangentes para as
U

necessidades explicitadas por referenciamentos (encaminhamentos), por


RA

demandas ou “queixas” diretas que sejam apresentadas por usuários das


políticas públicas em alguma esfera de uma política setorial.
PA

É importante ressaltar que a articulação para a atuação intersetorial


é uma condição forjada pela fluidez da comunicação, pelos encontros, pelas
proximidades, pelas identidades, pelas trocas, pelos compartilhamentos de
ideias e de projetos. Enfim, pelos arranjos institucionais que expressam,
em cada realidade local, como se tornou possível organizar e pactuar a
regulação participativa e com responsabilidade compartilhada das trocas.
208

A partir dessa referência de análise, pode-se afirmar que interseto-


rialidade e redes só existem como realidade empírica, como modus operandi,
como experiência prática que os burocratas de rua de cada território esta-

S
belecem para concretizarem suas rotinas de atendimentos para diferentes

PE
expressões da “questão social” reconhecidas como problemas públicos e
transformadas em desenho de política pública setorial pelos policy makers.

A
Intersetorialidade e rede não existem no papel. No limite, o papel serve

/C
para guardar seu registro, ser sua forma de documentação e tornar acessí-

TA
vel a disseminação de conhecimentos sobre as diversificadas experiências,
e seus formatos correspondentes, que demonstram a potencialidade e a

LE
pluralidade do que podemos nominar como casos concretos de atuações
intersetorial e em redes.

CO
Com base nessas argumentações, questiona-se por que preferir
e reivindicar essa forma de atuação se intersetorialidade e redes não são
O
encadeamentos naturais e apriorísticos das rotinas institucionais de imple-
D
mentação das políticas públicas. Para responder a esse questionamento,
considera-se oportuna a recomendação de Bidarra (2009), segundo a qual
O

a decisão em favor da existência prática da atuação intersetorial e em redes


V

se reporta diretamente a compromissos que estão para além de uma escolha


SI

individual ou particular de um profissional. Essa escolha tem correspon-


U

dência com garantia de direitos porque


CL

[...] a) investe numa lógica de organização da prestação de serviços, a


qual está pautada num tipo de gestão que considera o cidadão e busca
EX

superar a fragmentação das políticas; b) investe no aprendizado sobre


como lidar com as tensões produzidas quando se tem diferentes setores
SO

e atores, com diferentes concepções de mundo67, tendo que negociar e


construir respostas compartilhadas para os problemas que lhe são comuns
U

(BIDARRA, 2009, p. 489).


RA

Deve-se ter em foco que intersetorialidade e rede não se referem a


uma preferência, mas são princípios orientadores para concretizar empiri-
PA

67
Gramsci (1987) entende que uma “concepção do mundo” está impregnada das con-
dições históricas, das experiências e das estratégias para as lutas políticas empreendidas
pelos sujeitos. Nesse sentido, a “concepção do mundo” não se refere às vivências indivi-
duais e expectativas subjetivas, mas trata do modo como se constrói, nas e por meio das
experiências, coletivamente compartilhadas, as possibilidades de redefinição das inúme-
ras visões de mundo particulares que os sujeitos assimilam e carregam como parte da sua
herança histórico-cultural. Lembrando Marx: os homens são aquilo que vivem, sentem e
experimentam nas condições objetivas e concretas das suas vidas, no seu tempo histórico.
209

camente a gestão participativa da implementação de políticas públicas, que,


no entanto, nem sempre obtêm a devida visibilidade e reconhecimento. Não
raro se enfatizam outras dimensões da gestão participativa, principalmente

S
as que se reportam aos resultados das interveniências produzidas pelos

PE
conselhos gestores de políticas, conferências e fóruns. Nem sempre se dá
atenção para o viés de uma efetiva gestão participativa para a produção

A
de respostas a demandas e queixas apresentadas pelos usuários. Por meio

/C
da ação intersetorial e do trabalho em rede, é possível dar visibilidade aos

TA
arranjos institucionais que expressam de modo prático acordos e fluxos,
protocolos, intra e interpolíticas setoriais, os quais orientam as atuações

LE
cotidianas e são referência para os atendimentos profissionais.
A intersetorialidade e rede não vêm por encomenda. Da mesma forma

CO
que não acreditamos que seja um caminho definido por imposição vertical
e hierárquica, de cima para baixo, daqueles que ocupam posições de mando.
O
As redes são formadas por pessoas, que se encontram em um espaço de
D
mediação e convívio. Elas estão representando instituições, contudo, ao
“caírem na rede”, lutarão pela constituição de um outro organismo, não
O

havendo a necessidade de estar formalmente instituído. A rede pode se


V

manter como movimento instituinte, flexível à dinâmica das demandas e


SI

dos fluxos das instituições e dos grupos, mas não deixa de ser um espaço
constituído, com objetivos e metas a atingir [...] (RIZZINI et al., 2006,
U

p. 122).
CL

A intersetorialidade tem como prerrogativa fundadora a atuação


EX

do burocrata de rua, isto é, de cada profissional que está em algum órgão


ou serviço que caracteriza a interação direta com o usuário/paciente/as-
SO

sistido. Então, questiona-se como é possível começar a tramar essa atuação


intersetorial e em rede(s) de políticas públicas, e se existe modelo que possa
U

ser copiado.
Parte-se da convicção de que não há modelo a ser transposto para
RA

ser copiado. O que se tem são experiências que podem e devem servir de
referência e/ou parâmetro de orientação para os agentes que se encarregam
PA

de iniciar essa construção em um território. Em vista da importância de dis-


seminar conhecimentos sobre os caminhos e a necessidade de compartilhar
experiências, descreve-se o percurso feito em uma realidade municipal para
a construção do trabalho intersetorial e em rede. Considera-se pertinente
indicar alguns elementos/condições que são relevantes para a construção
da experiência intersetorial, quais sejam:
210

• abranger um território concreto (por exemplo: um município, uma


regional);
• tratar-se de um trabalho coletivo que requer engajamento e que preserve
a horizontalidade nas relações;

S
• organizar-se a partir de um projeto de intervenção que orienta o desen-

PE
volvimento da ação;
• constituir um “coletivo de referência” (grupo, equipe, comissão) que

A
assegure a representação das diversas políticas setoriais e das profissões

/C
(interdisciplinaridade);
• cuidar do registro/da documentação da experiência;

TA
• usar o tempo reconhecido por parte da jornada de trabalho;
• ter disponibilidade para flexibilizar pontos de vistas, para que se possam

LE
construir acordos e pactuações;
• fomentar a comunicação mediante a constante publicização dos estágios/

CO
etapas em que se encontra a construção da intersetorialidade;
• fazer monitoramento dos acordos e pactos para as interações profissionais.
O
A experiência descrita ocorreu no município de Toledo-PR, situado
D
na região oeste do estado do Paraná. Segundo as referências da Política
O

Nacional de Assistência Social-Sistema Único de Assistência Social (PNAS-


-SUAS, 2009) e da Política Nacional de Promoção da Saúde-Sistema Único
V

de Saúde (PNPS-SUS, 2006), Toledo é considerado um município de “gran-


SI

de porte”, uma vez que sua população é de mais de 100 mil habitantes, exatas
U

119.313 pessoas (IBGE, 2010). O enquadramento na condição de “grande


CL

porte” significa contar com equipamentos e serviços compatíveis com o


nível de gestão plena das citadas Políticas (para maiores esclarecimentos,
EX

vide normativa de gestão do SUS e do SUAS). O município conta com


diversificada estrutura de serviços que cobre as problemáticas atinentes ao
SO

nível da gestão da proteção/atenção básica até o da proteção/assistência


de alta complexidade.
U

Por que e quando em Toledo se resolveu construir a ação interseto-


rial e em rede de políticas públicas? Primeiro, porque os serviços das políticas
RA

públicas setoriais são integrados por quadros técnicos especializados que


conhecem as exigências, as diretrizes centrais e as referências normativas;
PA

bem como os princípios organizativos das políticas a que estão vinculados.


Isso significa que são sabedores do requisito de processar suas intervenções
técnicas com base na ação intersetorial. Segundo, que, em dado momento, as
dificuldades em produzir respostas mais consistentes e satisfatórias em suas
atuações para algumas circunstâncias que envolviam temáticas complexas,
como a violência sexual e as violações de direitos, principalmente quando
211

relativos à vida de crianças e adolescentes, tornou evidente a necessidade


de mudar de postura e de suspender a rotina de isolamento para assim
iniciar a construção de um trabalho mais aproximado e com a definição

S
do compartilhamento de responsabilidades, fomentador de respostas mais

PE
abrangentes para as demandas e os desafios postos.
O empreendimento intersetorial iniciou-se no primeiro semestre

A
de 2015, quando foi realizada atividade alusiva ao Dia 18 de Maio (Data

/C
Nacional de Mobilização para o Enfrentamento e o Combate à Violência

TA
Sexual contra Crianças e Adolescentes). Realizou-se atividade de capaci-
tação para atores do SGD e para profissionais da rede de atendimento

LE
local (governamental e não-governamental), promovida, em parceria, pelo
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA)

CO
e pela Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS). Nesse contexto,
admitiu-se que não era mais possível adiar a construção do trabalho inter-
O
setorial em Toledo.
D
Motivadas pelos debates e reflexões experimentados na atividade de
capacitação, e premidas pelas necessidades e dificuldades que vivenciavam
O

em suas rotinas de trabalho, duas assistentes sociais (uma vinculada ao


V

Ministério Público e outra à Proteção Especial da Secretaria Municipal de


SI

Assistência Social) assumiram a responsabilidade de mobilizar os demais


U

participantes para a organização da experiência da atuação intersetorial no


CL

município de Toledo. Em busca de auxílio para começar essa experiência,


uma delas fez contato com a docente do Curso de Serviço Social da Uni-
EX

versidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), a qual havia ministrado


a atividade de capacitação e que é integrante de uma longeva atividade de
extensão universitária, por meio do projeto intitulado: Projeto de Apoio à
SO

Política de Proteção à Criança e ao Adolescente (PAPPCA).


Em vista disso, destaca-se o papel da universidade, segundo Bidarra
U

e Cesconeto (2020), como instituição social catalizadora de saberes e práticas


RA

e sua relevância para a interlocução com os atores que compõem o SGD.


Além da perspectiva das dimensões interventiva e investigativa do Serviço
PA

Social, mediante as quais pode-se fomentar a capilaridade das ações entre


os atores institucionais que trocam experiências e saberes com vista ao acú-
mulo, à difusão e à disseminação de conhecimentos. Essa é uma condição
para que processos de transformação ganhem visibilidade e concreticidade.
Do contato com o PAPPCA, restou a orientação sobre um cami-
nho a ser trilhado para a construção da atuação intersetorial e em rede, a
212

qual precisaria estar embasada em um projeto de intervenção/atuação (o


projeto de trabalho68), o qual seria a referência para a condução da ação e
para possibilitar avaliar o alcance e o cumprimento dos objetivos traçados.

S
A existência desse projeto tornava clara aos que a ele se integraram

PE
que se tratava de um trabalho profissional, referenciado em instrumentos
técnicos que lhe dão legitimidade. Assim, o percurso de definição do tra-

A
balho intersetorial em Toledo foi tomando forma com o próprio processo

/C
de redação-revisão do projeto de intervenção, concomitantemente à mo-

TA
bilização de outros agentes.
No segundo semestre de 2015, houve a aproximação entre alguns

LE
profissionais das áreas do Serviço Social, da Psicologia, da Enfermagem e
do Direito, que, na condição de burocratas de rua, porque eram provenientes

CO
de órgãos governamentais implementadores de políticas públicas, formaram
um arranjo multi e interdisciplinar. A partir disso, esforços e iniciativas
O
foram deflagrados para construir um ambiente favorável à elaboração de
D
procedimentos pactuados (protocolos) e executáveis em fluxos de redes
para a concretização da proteção social aos usuários das políticas públicas.
O

Assim, esses burocratas de rua iniciaram a criação de uma prática


V

intitulada “Rede Intersetorial de Proteção Social de Toledo/PR (RIPS)”69,


SI

que é um espaço aberto e constituído por agentes implementadores dos


U

órgãos governamentais e das entidades não-governamentais. Contudo, a


CL

despeito de convites e de ser um espaço aberto a adesão espontânea, des-


de o início dessa experiência não se conta com profissionais do segmento
EX

não-governamental na composição da equipe que tem sido a responsável


por mobilizar, organizar, articular e sistematizar o trabalho intersetorial.
Porém, esses profissionais têm a possibilidade de opinar e de interferir no
SO

processo, seja nos encontros ampliados da rede, seja por envio de sugestões
U

para a referida equipe.


RA

O projeto RIPS surgiu diante da necessidade de aperfeiçoamento da


interlocução entre as políticas públicas setoriais, com vistas a oferta de
PA

68
Para maiores esclarecimentos sobre a formulação dessa modalidade de projeto, ver
Couto (2009).
69
Desde a segunda metade de 2015, o desenvolvimento do projeto de intervenção para
a implantação da RIPS no município de Toledo compreende a atuação em parceria de
profissionais de várias áreas disciplinares das seguintes instituições: Ministério Público
do Estado do Paraná, Secretaria Municipal de Assistência Social, Secretaria Municipal de
Educação, Secretaria Municipal de Saúde, Poder Judiciário da Comarca de Toledo, Curso
de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).
213

atendimentos melhores qualificados tecnicamente. A proposta se fortale-


ceu a partir da formação de uma “Equipe de Mobilização para a Interseto-
rialidade”, a qual passou a reunir-se com o intuito de pensar um “modelo”
de estruturação de “Rede” adequado às especificidades do município de

S
Toledo (PR), bem como estratégias para sua efetiva operacionalização,

PE
o que se encontra em curso. O desenvolvimento dessa proposta tem
oportunizado momentos de interação entre profissionais de formação/

A
áreas de atuação diversas, mobilizando-os e desafiando-os a formular e

/C
experimentar alternativas que vão na direção a uma prática intersetorial.
Essa iniciativa de trabalho tem dado ocasião a um maior conhecimento

TA
dos órgãos e de suas respectivas atribuições para com a proteção social,
bem como resultado na construção de fluxos e protocolos de atendimentos

LE
(SASSON et al., 2016, p. 1).

CO
A finalidade da RIPS é elaborar formas para assegurar dimensões
da proteção social para sujeitos sociais, de diferentes segmentos etários e
O
que vivem em circunstâncias de vulnerabilidade social, de risco, de viola-
ção de direitos e de violências, no município de Toledo. Desde o início,
D

o registro dessa experiência é documentado por meio de “Memórias” e


O

trabalhos acadêmicos, tendo sido, o primeiro70, elaborado por membros da


V

denominada Equipe de Mobilização (EM-RIPS) para a intersetorialidade da


SI

RIPS. É importante esclarecer que as autoras deste capítulo são membros


U

da EM-RIPS desde 2015, e a participação se concretiza por meio de ações


de extensão universitária e de pesquisa.
CL

Ao abordar esse tipo de experiência, não é demais destacar quão


EX

imprescindível é a interdisciplinaridade para o processo de valorização da


intersetorialidade e da constituição de redes, tendo em vista que ela pro-
picia a diversidade e complementariedade dos saberes, na medida em que
SO

uma rede potencializa a atuação mais abrangente e interdisciplinar entre


os burocratas de rua. No caso da Política de Atendimento aos direitos da
U

criança e do adolescente, a rede dá organicidade à cooperação e fluidez


RA

aos diálogos e trocas entre os atores do SGD que se encontram em arenas


setoriais, vinculados às diversas instituições.
PA

Do até aqui exposto, demonstra-se que a construção do trabalho


intersetorial e em rede precisa contar com a sensibilização e disponibilidade
de alguns profissionais para assumirem a tarefa de começar a mobilização
dos demais e para formular projeto que oriente cotidianamente a ação. O
projeto do trabalho intersetorial precisa ser colocado em prática por um
70
Ver Sasson et al. (2016).
214

grupo, uma equipe ou uma comissão, no caso de Toledo, temos a denomi-


nada Equipe de Mobilização (EM-RIPS).
Destaca-se que, sem a existência desse grupo/equipe/comissão (que

S
pode ser entendido como um “coletivo de referência”), torna-se muito difícil

PE
operacionalizar as exigências e rotinas para concretizar a intersetorialidade
(BIDARRA, 2009; GONÇALVES; GUARÁ, 2010; PEREIRA, 2014; RI-

A
ZZINI et al., 2006). Esse “coletivo de referência” assume a incumbência

/C
de incentivar e realizar as intervenções no sentido de articular os encontros

TA
de trabalho, bem como de sistematizar as propostas que são apresentadas
e discutidas em plenárias ampliadas com os profissionais dos órgãos e dos

LE
serviços que integram a rede de proteção. Além disso, o coletivo se incumbe
de desenvolver atividades de monitoramento e exercer as cobranças para

CO
que as atuações convirjam no sentido da intersetorialidade. Logo, são muitas
atividades que não têm como ficarem concentradas em uma única pessoa,
O
na medida em que ela também tem as demais exigências de sua rotina
D
profissional para serem cumpridas. O trabalho intersetorial e em rede não
deve produzir sobrecargas; caso isso aconteça, corre-se o risco de não ser
O

possível dar seguimento.


V

Há experiências em que apenas uma pessoa se encarregou da


SI

coordenação do trabalho de uma rede intersetorial. Contudo, ainda que


U

seja necessário respeitar o processo de construção de cada realidade, não


CL

é recomendável que essa tarefa fique concentrada em um único profissio-


nal, por ao menos duas razões: por um lado, pela ampla exigência que essa
EX

tarefa de mobilização e de organização envolve; e, por outro, em razão das


tensões e conflitos que lhe são inerentes, em virtude da divergência de opi-
niões, compreensões e interesses. Ter com quem contar para compartilhar e
SO

encontrar caminhos/alternativas que viabilizem uma rotina de construção


do trabalho intersetorial é imprescindível e mais coerente com a própria
U

dinâmica de trabalho que se quer desenvolver.


RA

A partir da configuração de um “coletivo de referência” e de espe-


cificado seu projeto de intervenção/atuação, a tarefa subsequente é a de
PA

sensibilizar, mobilizar e convencer os quadros técnicos das políticas pú-


blicas setoriais de que o trabalho intersetorial não lhes ameaça, muito pelo
contrário, que serve para fortalecer os setores que passam a compartilhar
as linguagens e as rotinas em prol de alcançar a melhor resolutividade para
suas atuações. Essa tarefa não é simples e nem fácil, porque incide sobre
espaços de poder e implica em que profissionais aceitem sair de zonas de
215

conforto para incorporarem mudanças em suas rotinas. Esse é um desafio


com o qual se deve lidar cotidianamente no ambiente do trabalho interseto-
rial e em rede, pois envolve processos de poder e de disputas de interesses.

S
É preciso ter clareza de que o equacionamento dos conflitos é

PE
sempre pontual e provisório porque, a cada vez que o redimensionamento
da ação intersetorial precisar tocar no âmbito institucional de um órgão ou

A
entidade e nas competências instituídas, novos conflitos de interesses se

/C
delineiam. Dessa forma, a habilidade para gerir conflitos, conter as possi-

TA
bilidades destrutivas nas disputas e fomentar as respostas aproximadas é o
que define a legitimidade da atuação do “coletivo de referência”, incumbido

LE
de tornar viável a operacionalização da intersetorialidade.
Na medida em que a intersetorialidade é resultado da construção da

CO
articulação e da pactuação entre as intervenções dos agentes implementa-
dores das políticas públicas setoriais, para que essa construção se materia-
lize, é preciso lhe dar a configuração de trabalho rotineiro. Nesse sentido,
O
não é possível haver intersetorialidade e trabalho em rede se não houver a
D

dedicação de algumas horas na semana de alguns profissionais para que as


O

condições para isso se tornem reais. Assim, o “coletivo de referência” de


V

cada realidade local precisa estabelecer uma pauta de trabalho e uma agenda
SI

regular de reuniões para ir desenvolvendo as ações e atividades previstas


no projeto de atuação.
U

Ressalta-se que esse trabalho de organização da atuação intersetorial


CL

e em rede é parte integrante das competências profissionais de todos que


aceitam se engajar na complexa tarefa de atuar de forma mais abrangente
EX

do que as demarcações iniciais dos campos de competências de cada política


setorial. O que move esse grupo é a compreensão dos benefícios a serem
SO

alcançados pela localidade, que pode ser o município ou uma regionalização,


e não exclusivamente pela “sua” política setorial.
U

O que se pretende ressaltar é que não é possível construir a inter-


RA

setorialidade sem efetiva dedicação de horas e sem efetivo engajamento


profissional. Porém, aqueles que se engajam em sua organização precisam
PA

contar com o reconhecimento, o apoio e o suporte de seus colegas e de suas


chefias setoriais para que possam se dedicar a essa tarefa mais abrangente.

[...] Fundamental é comprometer os gestores no trabalho que se está pro-


pondo. A experiência mostra que sem o comprometimento dos gestores,
as redes têm imensas dificuldades em executar suas ações, devido à falta
de apoio político e financeiro (RIZZINI et al., 2006, p. 122).
216

Pode-se afirmar que nenhum profissional consegue permanecer


integrado a um “coletivo de referência” de organização do trabalho in-
tersetorial se não contar com seus colegas de setor para dar cobertura de

S
trabalho, e sem contar com a validação de sua chefia para o uso das horas

PE
que precisam ser destinadas à realização das atividades que tornam possível
a atuação intersetorial e em rede.

A
Com essa observação, procura-se deixar claro a indispensável co-

/C
laboração de todos, na medida em que cada profissional de uma política

TA
setorial que integra o “coletivo de referência” passa a ser elo e interlocutor
de seus pares setoriais. Esse, ao assumir a tarefa de participar das discus-

LE
sões e das pactuações, torna-se um mediador dos pontos de vistas e das
propostas dos órgãos/serviço a que se vincula, ao mesmo tempo em que

CO
tem a responsabilidade de fazer fluir a comunicação reversa, isto é: manter
seus pares informados e atualizados sobre o andamento dos trabalhos que
estão sendo feitos dentro dos espaços de encontro e das sistematizações
O
operadas pelo “coletivo de referência” (BIDARRA, 2009; GONÇALVES;
D

GUARÁ, 2010; SENNA; GARCIA, 2014). Assegurar o fluxo constante e


O

atualizado da comunicação é imprescindível para alimentar o sentimento


V

de pertencimento e participação de todos aqueles que são parte, elos, da


rede, mas que não integram o grupo articulador dos trabalhos. Todavia,
SI

o desafio é ter momentos regulares de disseminação das informações e


U

neles contar com o interesse e a atenção daqueles que em determinados


CL

momentos estarão na posição de receptores.


Estabelecidas algumas das condições estruturais para iniciar a cons-
EX

trução do trabalho intersetorial e em rede, o próximo passo é a definição


do caminho a ser percorrido: se será por questões temáticas/problemáticas
SO

ou por segmentos etários. No caso de Toledo, a partir da constituição da


EM-RIPS, houve o entendimento de que seria mais efetivo para a realidade
U

local buscar trabalhar por questões temáticas/problemáticas. Na época,


acreditou-se que esse era o caminho mais viável para mobilizar e juntar
RA

os interessados em elaborar alternativas e respostas para aspectos que os


afligiam profissionalmente e obstaculizavam suas rotinas.
PA

Com base nesse entendimento, a EM-RIPS organizou a primeira


atividade coletiva com os órgãos, entidades e serviços das políticas públicas
setoriais, com o objetivo de alinhar o entendimento sobre a intersetorialidade
e eleger temáticas prioritárias para serem objeto da construção intersetorial
e da pactuação em rede. Essa atividade aconteceu em novembro de 2015
e foi designada como o I Encontro ampliado da RIPS, cujo resultado foi a
217

definição das três temáticas prioritárias (matérias-primas) da articulação e


pactuação intersetorial: acolhimento institucional de crianças e adolescentes,
violência sexual e violação de direitos da pessoa idosa.

S
No início de 2016, a EM-RIPS formulou uma proposta para pro-

PE
piciar que os atores do SGD pudessem desenvolver e estabelecer suas
negociações e pactuações, as quais tomaram o formato documental de

A
protocolos e fluxos, para aquela que foi definida como a primeira temática:

/C
acolhimento institucional de crianças e adolescentes. Como nenhuma pac-

TA
tuação se origina do desconhecimento, a EM-RIPS definiu uma estratégia
para produção de diagnóstico-rápido sobre como se dava a ação de atores

LE
do SGD em circunstâncias relacionadas com o acolhimento institucional
de crianças e adolescentes. O diagnóstico é o componente de identificação

CO
de problemas, entraves, equívocos, limites e propostas de soluções.
O citado diagnóstico-rápido nasceu de encontros de trabalho entre
os membros da EM-RIPS com profissionais das políticas setoriais da as-
O
sistência social, da educação, da saúde, profissionais do sistema de justiça
D

(Oficiais de Justiça, Vara da Infância e Juventude e Promotoria da Infância)


O

e conselheiros tutelares. Nesses encontros, pôde-se perceber as situações


V

geradoras de divergências e conflitos entre os técnicos, ao mesmo tempo


em que foram apontadas algumas propostas relacionadas ao encadeamento
SI

interdisciplinar e intersetorial que poderiam repercutir em resultados me-


U

lhores para os usuários envolvidos na problemática.


CL

De posse dessas informações, a EM-RIPS refletiu e elaborou


uma sistematização preliminar de alternativas para a atuação intersetorial
EX

e passou a discuti-la em reuniões de trabalho setoriais com cada quadro


profissional dos órgãos/equipamentos que têm atuação sobre esse acolhi-
SO

mento institucional.
Desse processo, originaram-se os acordos, deu-se melhor visibi-
U

lidade às competências dos órgãos e das atuações profissionais, e foram


construídos, ao longo de 2016 e 2017, os protocolos e fluxos que regulam
RA

a atuação intersetorial e em rede em Toledo para a temática do acolhimento


institucional de crianças e adolescentes. Faz-se a ressalva sobre um aspecto
PA

muito significativo que tem impacto no trabalho intersetorial: o longo pe-


ríodo de tempo que precisa ser investido nos processos de aproximação, de
construção de diálogo distensionado, de compreensão das necessidades, de
articulação e de pactuações para que se alcancem resultados objetivos. Essa
questão do tempo, muitas vezes, pode ter efeito adverso e ser entendida
como elemento/condição para a desmobilização, pois, além de a atuação
218

intersetorial e em rede não vir por encomenda, ainda requer extensiva de-
dicação de períodos de tempo para evidenciar seus produtos.
Porém, se a definição e a sistematização de um protocolo podem

S
demorar um longo tempo para nascer, os acordos processuais que vão se

PE
construindo nas tramas das interações entre os profissionais têm efeitos
imediatos sobre suas rotinas. O que é acordado pela aproximação e diálogo

A
pode ser colocado em prática prontamente. Nesse sentido, as práticas que

/C
têm correspondência com a temática em tela podem começar a usufruir

TA
dos resultados das pactuações/acordos, mesmo antes que os protocolos
estejam finalizados e assimilados por todo o percurso de intervenção das

LE
políticas públicas.
Em vista de a operacionalização do trabalho intersetorial envolver

CO
muitos profissionais e ter repercussões sobre muitas práticas, é fundamen-
tal que os produtos das pactuações/acordos possam ser disseminados e
apreendidos pelo conjunto que intervém sobre a problemática, o qual nem
O
sempre participou de forma direta, mas que no cotidiano coloca em prática
D

os entendimentos construídos coletivamente. Na experiência na RIPS-To-


O

ledo, sempre privilegiou-se fazer um encontro/reunião, de forma amplia-


V

da, para apresentar as propostas mais acabadas, submetê-las à discussão,


SI

proposição de ajustes, e para a validação da plenária dos profissionais dos


U

serviços da rede implicados com o tema. Essa mesma atitude é adotada para
o lançamento de versão de protocolo que tenha sido finalizada. A iniciativa
CL

de publicidade é fundamental como estratégia de prestação de contas e de


EX

valorização das atuações de todos que se implicaram no percurso de ela-


boração de cada um dos protocolos construídos. Na sequência de cada ato
de lançamento, prossegue a atuação da EM-RIPS com capacitações para
SO

disseminar e enraizar no cotidiano das atuações setoriais os compromissos


e decisões que configuram um caminho de atuação intersetorial e em rede.
U
RA

A contribuição do Serviço Social para a intersetorialidade


PA

O Serviço Social é uma profissão imbricada com os processos de


implementação de políticas públicas e por esse motivo precisa se envolver
com a construção do trabalho intersetorial e em rede. Reconhece-se que
não são todas as profissões que se debruçam sobre o arcabouço explica-
tivo-interpretativo sobre o que define o significado da intersetorialidade.
Muitos pronunciam o termo, mas poucos têm clareza sobre do que se trata.
219

Como consequência, desconhecem as exigências e os rigores inerentes a


tal construção. Dentre eles estão a disponibilidade de tempo e a tenacidade
de propósito para suportar longos períodos e muitas idas e vindas que são

S
necessárias para elaborar os acordos e estabelecer as pactuações, isto é,

PE
participar da construção das conexões que fazem as sínteses e dão impulso
para que as ações aconteçam de modo encadeado, em rede.

A
O Serviço Social é permeado por diversos desafios, muitos dos

/C
quais perpassam o cotidiano profissional, principalmente aqueles direta-

TA
mente relacionados aos retrocessos de direitos sociais e ao avanço de uma
modalidade vertical de controle social que visa a reduzir a atuação cidadã. A

LE
consequência desses processos está no enfraquecimento da capacidade de
luta dos sujeitos sociais na defesa de seus direitos civis, sociais e políticos.

CO
Esse tipo de contexto exige constante debate profissional para fortalecer
a resistência e a capacidade de enfrentamento coletivo às ações de precari-
O
zação do trabalho e de desmonte das políticas públicas.
D
Como argumenta Yazbek (2009, p. 161), o diálogo com matrizes de
pensamento social é necessário para subsidiar os processos de elaboração
O

de respostas profissionais aos desafios postos pela realidade social. Essas


V

respostas não são homogêneas, mas devem ser criativas e competentes,


SI

principalmente, porque, por meio delas, materializa-se a representação social


U

do exercício profissional, a qual deve estar comprometida com o combate


CL

e a superação das desigualdades sociais, expressas sob a forma fenomênica


de expressões da “questão social”.
EX

Para tanto, torna-se imprescindível o reconhecimento das contribui-


ções da dimensão interventiva do trabalho do assistente social para a cons-
trução dos processos de atuação intersetorial e em rede no curso da imple-
SO

mentação das políticas públicas em determinado território. O assistente social


pode contribuir com a construção de espaços de informação, de diálogo, de
U

escuta, de articulação e de pactuação entre os diversos saberes profissionais


RA

que precisam ser mobilizados para discutirem os caminhos e as formas de


efetivar o trabalho intersetorial. Na divisão das tarefas entre um “coletivo de
PA

referência”, o assistente social pode se responsabilizar pelo monitoramento


do projeto de atuação que implementa a intersetorialidade em cada realidade
local. Diante disso, esse profissional tem a possibilidade de acompanhar o
desenvolvimento dessa prática de modo que ela mantenha correspondência
com o alinhamento conceitual e as referências norteadoras estabelecidas no
projeto. A intersetorialidade sintetiza a relação teórico-prática.
220

Ao participar ativamente da tarefa de fomentar a construção do


trabalho intersetorial e em rede, o assistente social pode lançar provoca-
ções que contribuam para a reconfiguração das decisões dos agentes im-

S
plementadores e das rotinas estabelecidas de forma setorial (e, por vezes,

PE
individualizadas e pessoalizadas) que possam ser obstáculos às negociações
que materializam essa modalidade de trabalho.

A
Ao pensar em uma das contribuições possíveis, leva-se em conta

/C
que “[...] o Serviço Social é uma profissão capaz de intervir na realidade
social, de forma crítica e criativa; de produzir conhecimentos sobre essa

TA
realidade, e sobre sua própria intervenção” (YAZBEK, 2005, p. 149). Com
isso, é capaz de projetar alternativas profissionais que reforcem os compro-

LE
missos expressos em seu projeto ético-político-profissional com a defesa
intransigente de direitos.

CO
São necessárias formas de superar o prevalecente funcionamento
setorial das políticas públicas recorrente na geração de insatisfações com
O
a quantidade e a qualidade dos serviços ofertados por essas políticas, no
D
que se refere ao acesso e à garantia de direitos. Quando predomina a im-
possibilidade e/ou a precariedade em usufruir de direitos, o exercício da
O

cidadania se torna frágil. Em vista disso, comprova-se a pertinência do


V

engajamento do assistente social (como um dos agentes implementadores)


SI

com a elaboração e a operacionalização de propostas de ação intersetorial e


em rede no campo das políticas públicas (BIDARRA, 2009), uma vez que
U

essa modalidade de ação tem potencial de minimizar conflitos e ampliar


CL

aprendizados profissionais.
Existe um espaço para o ato/decisão do fazer, que se concretiza por
EX

meio da apropriação da competência profissional, que põe em movimento


suas relações e interesses sociais no contexto da política pública em que
SO

atua. Isto é, como afirma Yazbek (2014), poder ser protagonista nas me-
diações políticas e ideológicas expressas sobretudo por ações de resistência
U

e de alianças estratégicas no jogo da política em suas múltiplas dimensões.


RA

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TA
LE
CO
O
D
O
V
SI
U
CL
EX
SO
U
RA
PA
225

10.
A reincidência da violência contra mulheres e meninas:

S
PE
elementos estruturantes e exigências para
uma intervenção emancipatória

A
/C
Fernanda da Fonseca Pereira

TA
Vini Rabassa da Silva

LE
Transcorrido já quase um quarto do século XXI, pode parecer

CO
surpreendente nos ocuparmos de tema como a violência reiterada contra
meninas e mulheres. Parece inacreditável que ainda seja atual pesquisar,
O
investir na produção de conhecimento científico e na denúncia de tal rea-
D
lidade. No entanto, a necessidade revelada pelo campo do Serviço Social
de discutir sobre a atuação dos(das) profissionais com meninas e mulheres
O

vítimas de reincidência de violência retrata a mais nítida evidência do fra-


V

casso de um modelo societário que ainda não fomos capazes de superar.


SI

Essa sociedade não só produz violência de gênero como também mantém


U

sua reprodução. Por um lado, não consegue romper com o regime eco-
CL

nômico responsável pela exploração e coisificação do ser humano, o qual


não reconhece como trabalho – por não gerarem mais-valia – as atividades
EX

atribuídas historicamente à mulher, ainda que responsáveis pela reprodução


da força de trabalho. Por outro lado, resguarda os mecanismos institucionais
funcionais à manutenção da cultura patriarcal, associada à banalização da
SO

miséria. Como se entende que “a cultura é determinada nas e pelas relações


U

sociais, não de forma linear, homogênea ou fragmentada em exacerbações


de diferenças, mas dentro das contradições que determinam a produção e
RA

a reprodução desta sociedade” (CISNE, 2002, p. 4), a atuação no enfrenta-


mento da reincidência da violência de gênero deve partir de uma concepção
PA

de totalidade, segundo a qual é necessário analisar as questões de gênero no


bojo da contradição entre capital e trabalho e das forças sociais conflitantes
das classes fundamentais que determinam essa contradição.
Com base em tais pressupostos, pretende-se, neste capítulo, evi-
denciar a importância de a atuação profissional ser direcionada por uma
perspectiva teórico-metodológica e ético-política em que os fenômenos
226

sociais com os quais o(a) profissional se defronta cotidianamente sejam


apreendidos como aparências que ocultam múltiplas determinações, as quais
precisam ser conhecidas para serem enfrentadas de forma objetiva, tendo

S
em vista a emancipação dos sujeitos. Para isso, entende-se, também, que é

PE
indispensável saber a direção a imprimir nos processos socioassistenciais,
a fim de que a prática consiga ser crítica, criativa, propositiva e contagiante

A
de um fazer profissional capaz de produzir alterações objetivas e subjetivas

/C
na vida das pessoas com quem é desenvolvido o trabalho, ainda que dentro

TA
dos limites do sistema capitalista.
Essa concepção possibilitou descobrir e compreender, no desen-

LE
volvimento da ação profissional, que as políticas públicas implementadas
no atendimento de situações de reincidência da violência enfrentadas por

CO
meninas e mulheres são focadas exclusivamente nas marcas físicas ou psi-
cológicas, as quais são a forma de aparecimento da violência sofrida. Assim,
O
a intervenção não se destina à integralidade da pessoa em sofrimento, e
D
o não atendimento das reais necessidades dos sujeitos, na perspectiva que
Lagarde (2012) menciona como “cidadania plena”, provoca a reincidência
O

das situações de violência, tanto intrafamiliar como institucional, marcando


V

o status quo favorável à preservação da ordem patriarcal.


SI

É importante registrar que essa compreensão, sobre a reincidência da


U

violência, somente possibilitará movimentos de ruptura, na prática cotidiana,


CL

se resultar de uma análise crítica, que a faça surgir como “concreto pensado”
(MARX, 1982, p. 14), pois, como em outra passagem afirma Marx (1983,
EX

p. 20), “o ideal não é nada mais que o material, transposto e traduzido na


cabeça do homem”. De fato, verifica-se, muitas vezes, a afirmação que a
teoria não é transposta para a prática, o que revela, por parte dos(as) assis-
SO

tentes sociais, certa incapacidade de apreender o movimento da realidade,


com suas determinações e contradições, bem como a particularidade do
U

Serviço Social, como profissão inserida na realidade. Essa incapacidade, que


RA

tanto pode decorrer de uma frágil formação profissional quanto da opção


por perspectivas teóricas conservadoras, produz uma prática meramente
PA

imediatista, a qual acaba acomodando o(a) próprio(a) profissional, que passa


a sentir-se cercado por uma série de impossibilidades.
Por outro lado, a prática direcionada por uma perspectiva crítica
será concomitantemente investigativa, conduzindo a um estudo mais apro-
fundado, que possa explicar a realidade de forma que indique estratégias e
táticas para transformá-la. Assim, uma prática desenvolvida por sete anos
227

junto ao Setor de Serviço Social do Centro de Atenção Integral à Criança


e Adolescente da Universidade Federal do Rio Grande (CAIC/FURG)71,
ao evidenciar a reincidência da violência contra meninas e mulheres po-

S
bres atendidas pela assistente social do Setor, tornou-se objeto de estudo.

PE
O desenvolvimento da pesquisa visou descobrir e explicar os fatores que
determinam esse fenômeno de forma concreta e objetiva, a partir de sua

A
totalidade, e considerando a particularidade da Zona Oeste do Município do

/C
Rio Grande, a fim de descobrir pistas para qualificar a atuação profissional.

TA
Caracterização e “exploração” do contexto de reincidência da violência

LE
contra mulheres e meninas pobres e seus elementos estruturantes

CO
A realidade pesquisada tem como contexto o Município do Rio
Grande, localizado na faixa de fronteira brasileira, no Rio Grande do Sul,
O
no extremo sul do País. Um estudo realizado em 2013 pela Fundação de
D
Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser (FEE) sobre a extrema
pobreza no Estado do Rio Grande do Sul anunciou o Município do Rio
O

Grande como 4º lugar no ranking dos municípios em extrema pobreza no


V

Estado, de acordo com os critérios estabelecidos para acesso à política de


SI

assistência social no Brasil. Segundo tais parâmetros, a pobreza é caracte-


U

rizada principalmente pela renda, mas também leva em conta outros tipos
CL

de pobreza, como a absoluta e a relativa. A pobreza absoluta refere-se, em


geral, a situações de desnutrição crônica, epidemias, doenças mentais e
EX

psicológicas, maior risco de catástrofes ambientais e efeitos climáticos, re-


sultando em baixa expectativa de vida. A pobreza relativa se refere à situação
SO

de desvantagem de uma parcela da população em relação à distribuição dos


bens, serviços e renda produzidos socialmente (FEE, 2013).
U

Rio Grande é o principal porto marítimo do sul do Brasil. Com


os investimentos realizados a partir do ano 2000, resultado da política de
RA

retomada industrial e da descentralização da indústria naval brasileira, seu


PA

71
A atuação foi realizada pela autora deste capítulo, Fernanda Pereira, assistente social da
FURG com o registro de todos os atendimentos prestados, constituindo assim um banco
de dados sobre a realidade das mulheres e meninas pobres daquele território e, ao mesmo
tempo, sobre a intervenção desenvolvida pela assistente social, descrita nos relatórios.
O banco de dados, após autorização de uso pela autoridade institucional competente,
mediante compromisso firmado de sigilo sobre a identidade dos sujeitos, foi usado como
uma das fontes de dados empíricos para a sua tese de doutorado em Política Social no
PPG da UCPEL, orientada por Vini Rabassa da Silva. Este capítulo é resultado de um
recorte da tese com algumas adaptações e revisões.
228

Polo Naval gerou crescimento no número de empregos industriais, com


forte impacto no crescimento econômico. Entretanto, apesar do aumento
do PIB per capita, que no ano de 2000 era equivalente a R$ 9.870,00 e em

S
2010 correspondeu a R$ 39.434,00, não houve uma significativa redução

PE
proporcional do emprego desprotegido. Ainda, em 2010, as mulheres foram
presença majoritária entre os empregados sem carteira, representando 53%

A
desses trabalhadores (VARGAS, 2014). Outro dado importante que revela o

/C
estudo é a diferença entre homens e mulheres nos rendimentos: em 2000, o

TA
rendimento médio das mulheres era de 65% do rendimento médio mascu-
lino e, em 2010, essa diferença teve uma leve queda, representando 64,8%.

LE
Soma-se a isso o fato de 24.635 pessoas estarem registradas à mar-
gem do sistema de proteção social, no ano de 2010, no município do Rio

CO
Grande. Destas, 65,2% eram mulheres, revelando ao longo dos anos de
2000 a 2010 uma persistente desigualdade de gênero, marcada pela despro-
O
teção social, inserção das mulheres em trabalhos de baixo rendimento e
D
sem garantia de direitos, responsabilização da mulher, muitas vezes, como
O

única cuidadora e fonte de renda no sustento da família (VARGAS, 2014).


V

Concomitantemente à marca da desigualdade de gênero e à pobreza, mes-


mo em tempos de crescimento do Polo Naval, destacava-se o alto índice
SI

de violência. Em 2010, o município entrou para o ranking dos municípios


U

gaúchos que apresentaram as maiores taxas de registros de ocorrência de


CL

crimes com vítima mulher (4,87 por 100 mil habitantes), totalizando 4.976
ocorrências (LOPES; SILVA, 2013).
EX

Convém, ainda, lembrar que o desemprego, quando atinge homens,


resulta diretamente na sua incapacidade de ser o provedor da família e,
SO

segundo Saffioti (2015), essa pode ser a experiência mais significativa de


impotência masculina, a qual eles terão dificuldade de suportar, já que
U

historicamente foram associados ao uso do poder e da força, podendo


RA

acarretar no uso da força contra a mulher e as filhas, em momentos de ira,


para fazer valer o seu poder no âmbito doméstico. Essa análise é corrobo-
PA

rada pelas inúmeras evidências de que é na vivência da impotência que os


homens praticam atos violentos e encontra eco no contexto socioeconômico
pesquisado, no qual a reincidência da violência contra meninas e mulheres
pobres está relacionada ao crescimento do desemprego em um município
de zona portuária, com histórico marcado pela prostituição infantil e pela
desigualdade social.
229

Considerando o pressuposto de que o mundo que se manifesta às


mulheres e aos homens na práxis fetichizada não expressa a sua totalidade,
mas apenas a aparência (KOSÍK, 1986), a pesquisa foi desenvolvida com

S
101 famílias entrevistadas pela assistente social do Setor de Serviço Social

PE
do CAIC/FURG, com o objetivo de desvendar o mundo real das mulheres
e meninas, integrantes dessas famílias, ultrapassando a aparência. A análise

A
buscou descobrir o que está por trás do movimento visível da reincidên-

/C
cia da violência, investigando o movimento real interno, isto é, a essência

TA
(KOSÍK, 1986), a fim de extrair da trama oculta que constitui o fenômeno
as suas reais determinações, pois somente dessa forma é possível descobrir

LE
como romper com aquilo que é responsável por sua reprodução.
A pesquisa valeu-se tanto do estudo quantitativo como do estu-

CO
do qualitativo, conformando um enfoque misto (CRESWELL; PLANO
CLARK, 2013) ou quanti-qualitativo. No primeiro momento, foram ana-
O
lisadas as entrevistas realizadas com 101 famílias atendidas no período de
D
2008 até 2015 pelo Setor de Serviço Social do Centro de Atenção Integral
à Criança e Adolescente da Universidade Federal do Rio Grande (CAIC/
O

FURG) e que constituíram o Banco de Dados empíricos. No segundo


V

momento, foi realizado o estudo da trajetória de três daquelas famílias, que


SI

foram encaminhadas à rede de proteção do Município do Rio Grande, com


U

situações reincidentes de violência e atendidas no Conselho Tutelar e no


CL

Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Nesse


segundo momento, usou-se a pesquisa documental para analisar os aten-
EX

dimentos prestados às famílias nessas duas unidades da rede de proteção,


após protocolo firmado para uso sigiloso e restrito à finalidade científica
da referida documentação.
SO

Compreende-se que a violência é um fenômeno multifacetado, que


abarca diversas manifestações. É uma categoria histórica, originada pelas
U

condições sociais e, antes de tudo, econômicas de uma sociedade repleta


RA

de antagonismos, que envolve contradições e luta de classes. Cada forma


de manifestação desse fenômeno distingue-se pelos métodos específicos e
PA

formas concretas de aplicação da violência na vida social. Assim, desvendar


a natureza, o papel e o lugar da violência entre os demais fenômenos sociais
impõem “[...] descobrir la naturaleza y las raíces genuínas de la violencia
estableciendo la ligazón organica de sus diversas formas y tipos con los
intereses de determinados grupos sociales” (DENÍSOV, 1986, p. 49). A
reincidência da violência contra mulheres e meninas pobres é parte dessa
230

trama de relações sociais e jogos de forças político-econômicas, proveniente


da fábrica de violência (IANNI, 2002), estruturada pelas relações de classe,
inter-relacionadas com gênero e etnia/raça. A tensão entre essas catego-

S
rias, na luta pelos diferentes interesses, mantém, para além da violência do

PE
corpo, também uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia como
na violência, caracterizando uma organização social de gênero que, por

A
meio da dominação-exploração patriarcal, edifica diversas desigualdades

/C
(SAFFIOTI, 2009).
O termo “reincidência” remete à repetição das situações de violên-

TA
cia numa mesma família, seja pela negligência dos serviços públicos ainda
ineficazes, seja por outros aspectos que atravessam a questão. Os dados de

LE
reincidência de violência detectados na atuação profissional não são atípicos
e são revelados, também, no Mapa da Violência do ano de 2012 (WAISEL-

CO
FISZ, 2012), o qual mostra que, das 70 mil mulheres vítimas de violência
atendidas no Sistema Único de Saúde (SUS), no ano de 2011, 51,6% dos
O
atendimentos representavam reincidência (WAISELFISZ, 2012). O Mapa
D
da Violência de 2015 também revela o alto índice de reincidência da violên-
cia contra mulheres e aponta que a reincidência acontece em praticamente
O

metade de todos os casos de atendimento feminino (49%) registrados no


V

Sistema de Informação de Agravos de Notificação, especialmente quando


SI

se trata de mulheres adultas (54%) e idosas (60,4%) (WAISELFISZ, 2015).


U

Esses dados sobre a reincidência da violência contra as mulheres


CL

permitem, segundo Waiselfisz (2015), afirmar que ela é mais frequente e


recorrente do que aquela contra os homens e tem como segmentos priori-
EX

tários a idade adulta e idosas, o que pode ser resultado da frágil política de
prevenção a situações de violência.
Em 2013, o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
SO

(CPMI) que visava a investigar situações de violência contra a mulher no


Brasil, bem como apurar denúncias de omissão do poder público na prote-
U

ção de mulheres em situação de violência, já apontava o elevado índice de


RA

situações de reincidência da violência contra mulheres. A partir de diversos


estudos realizados no país, afirmava-se que a reincidência estava presente
PA

em 60% dos casos, a partir dos 30 anos (MORAES; OTA; RITA, 2013). O
mesmo documento, ao apontar especificidades do Estado do Rio Grande do
Sul, destacava que as instituições que integravam a rede de enfrentamento
à violência relatavam

[...] falta de recursos humanos básicos, como apoio administrativo, quadro


técnico fixo, de caráter multidisciplinar, psicólogos e assistentes sociais,
231

de efetivo de segurança pública e de defensores no acesso à justiça. Além


disso, foram destacadas a falta de capacitação, ou a capacitação descon-
tinuada, a rotatividade de pessoal com desmonte de equipes, bem como
a falta de infraestrutura adequada, como viaturas, retaguarda, espaço

S
(MORAES; OTA; RITA, 2013, p. 667).

PE
Outros elementos podem também interferir na reincidência da

A
violência. O relatório da CPMI destaca o desconhecimento por parte da

/C
população quanto aos recursos das redes especializadas de atendimento às

TA
vítimas de violência. Igualmente, são agravantes situações como ausência de
articulação entre os órgãos integrantes da rede e indefinição das competên-

LE
cias (MORAES; OTA; RITA, 2013), bem como a fragilidade na resolução
dos atendimentos proporcionados pela rede, uma vez que

CO
[...] o relatório apontou que apenas 15% consideram que os casos são bem
solucionados, pouco mais de um quarto (26%) não sabe o que ocorreu
O
depois do encaminhamento e 43% admitem que “há dificuldades”. O
D
problema, segundo as respostas, não é de má vontade para atender (MO-
RAES; OTA; RITA, 2013, p. 668).
O
V

Ou seja, a ineficiência no acompanhamento dos casos de violência


SI

fica explícita, potencializando situações de reincidência. Ao referir-se aos


U

dados do Tribunal de Justiça do Estado, o referido relatório cita a fragili-


CL

dade de recursos humanos no Juizado de Violência Doméstica e Familiar


do Estado, apontando que esta seria outra variável de influência para as
EX

situações de reincidência da violência. Por fim, ressalta-se a fragilização das


redes e instituições de atendimento a situações de violência, no Estado do
Rio Grande do Sul, apontada pelo mesmo relatório, e a endemia da violência
SO

doméstica na sociedade brasileira, tornando o âmbito doméstico um espaço


U

de risco para mulheres das diversas faixas etárias. Conforme análise realizada,
as residências já não são espaços seguros para quase 80% das mulheres da
RA

nossa população e a reincidência ocorre em 60% das situações de violência,


em casos a partir dos 30 anos (MORAES; OTA; RITA, 2013).
PA

A atualidade e importância desse tema em nível nacional serve para


ratificar o destaque que ele merece por parte do Serviço Social. A pesquisa
realizada após sete anos de atuação do Serviço Social no Centro de Atenção
Integral à Criança e Adolescente da Universidade Federal do Rio Grande
(CAIC/FURG) revelou um percentual de 81,19% de ocorrência de rein-
cidência da violência contra meninas e mulheres do núcleo familiar. Esse
232

alto índice acontece em um espaço geográfico que é produto e produtor de


violências sobre as mulheres e meninas e no qual a violência tem se acirrado
nos últimos anos. Por isso, em meio às várias manifestações da questão so-

S
cial que foram objeto de intervenção do Serviço Social, esta foi a escolhida

PE
para a pesquisa, ao se constatar que meninas e mulheres pobres enfrentam
no seu cotidiano as determinações da violência estrutural, além de muitas

A
delas sofrerem diversos tipos de violências reincidentes, que marcam seus

/C
corpos. Na maioria das vezes, são as mulheres que chefiam famílias nas

TA
quais se agregam várias situações deflagradoras dos processos de opressão
(dominação-exploração) que sofrem, tais como pobreza extrema, trabalho

LE
informal, prostituição, desemprego, baixa escolaridade, responsabilidade
exclusiva pelo cuidado dos filhos e/ou dependentes. Nesses contextos,

CO
o trabalho reprodutivo, ou seja, voltado ao cuidado e à sobrevivência da
família, assume o caráter de jornada contínua de trabalho no cotidiano e as
profundas marcas da desigualdade sofrida, muitas vezes, não são visíveis nos
O
seus corpos, mas reduzem-nas, abaixo da condição de sujeito, à condição
D

de coisas (MARX, 1983).


O

Mesmo que a intervenção profissional tenha ocorrido em um


V

período em que era vigente o Estado democrático de direito, sob a égide


SI

da democracia e dos direitos humanos72, a reprodução da reincidência


da violência de gênero não teve retrocesso no país. Naquele contexto, as
U

mulheres permaneceram numa condição de opressão caracterizada por


CL

um conjunto articulado que lhes impõe situações de subordinação e discri-


minação nas suas relações com os homens, com o conjunto da sociedade
EX

e com o Estado. A histórica presença do patriarcado como fundamento


da sociedade brasileira conserva marcas da sociedade colonial escravista e
SO

repete os valores que influenciaram a família patriarcal e que continuam


influenciando as relações sociais ao longo da história do país. Assim, as
U

diferenças e assimetrias reforçam as relações de opressão e exploração.


RA

Apesar de o contexto nacional apontar avanços femininos em in-


dicadores de gênero, como em relação ao nível educacional, no contexto
pesquisado as mulheres chefes de família apresentam um baixo nível de
PA

72
É importante considerar que este capítulo se origina de uma ação profissional realizada
antes de o Brasil adentrar um momento reconhecidamente de retrocessos de direitos
sociais e humanos, com o afastamento do Estado do investimento no social, como pode
atestar a “Emenda Constitucional 95”, cujo projeto ficou conhecido como “PEC da
morte”, por congelar o gasto público federal por 20 anos, ocasionando sérios desmontes
nas políticas públicas sociais, acompanhada da Reforma Trabalhista (2017) e da Reforma
da Previdência (2019).
233

escolaridade. Já a forma de inserção das mulheres no mercado de trabalho


coincide com o observado em nível nacional, ratificando que ainda não
foram superadas as desigualdades de gênero no mercado de trabalho, no

S
qual as mulheres enfrentam inúmeros desafios para alcançarem o trabalho

PE
formal com garantia de direitos. Grande parte das mulheres ainda sobre-
vive do trabalho informal, sendo subjugadas à economia do cuidado (AL-

A
VES; CAVENAGHI, 2013). O trabalho reprodutivo, realizado no âmbito

/C
doméstico, ainda constitui uma sobrecarga de trabalho, não reconhecida

TA
economicamente, que traz como uma de suas consequências a dificuldade
de inserção no mercado formal de trabalho.

LE
Outra face da violência contra mulheres e meninas captada na
pesquisa foi a prostituição e a exploração sexual, as quais, mais do que um

CO
retrato da realidade local das famílias da Zona Oeste do Município do Rio
Grande, representam uma triste realidade nacional. No cotidiano das mu-
O
lheres e meninas da Zona Oeste do Rio Grande, prostituição e exploração
D
sexual infantil estão aliadas às formas de trabalho informal. Assim, a cata
do lixo, o trabalho como tarefeira, o trabalho doméstico etc. são atividades
O

exercidas em paralelo à mercantilização dos corpos. Essas são diferentes


V

expressões da desigualdade social, que se tornaram acirradas quando a ex-


SI

ploração do trabalho e a propriedade privada construíram os fundamentos


U

das relações entre os seres sociais. Nessa lógica, a riqueza é social e coleti-
CL

vamente produzida, mas privadamente apropriada por uma minoria, sendo


a sociedade dividida entre aqueles que detêm poder econômico e político,
EX

com o controle dos meios de produção e da propriedade privada, e os que


possuem apenas a força de trabalho para vender. Nesse caso, a venda da
força de trabalho de mulheres e meninas (pobres, com baixa escolaridade
SO

e com direitos violados) atende às formas de trabalho precárias e escusas


que atingem pessoas e grupos marcados por ideologias que naturalizam
U

inferiorizações e desvalorizações em torno da sua diversidade. Assim, numa


RA

sociedade racista, heterossexista e patriarcal, as diferenças próprias da di-


versidade humana são transformadas em desigualdades, que particularizam
PA

as condições de vida e de trabalho de uma mesma classe (CISNE, 2018).


A prostituição, bem como todas as demais formas de violência
sexual, demarca que a sociedade brasileira sustenta um padrão de masculi-
nidade que transforma os homens em demandantes de sexo e as mulheres
e meninas em corpos coisificados, mercantilizados, destinados a atender à
insaciabilidade da relação de autoafirmação permanente da masculinidade
234

e da relação de mando-obediência. Dessa forma, as relações patriarcais que


sustentaram o Brasil colonial e naturalizaram o estupro de negras e indíge-
nas escravas por aqueles que detinham o poder econômico e político, ainda

S
sustentam a violação contra mulheres e meninas pelo poder econômico e

PE
ideológico. No Brasil, contabiliza-se 1,5 milhões de mulheres prostitutas,
na imensa maioria das vezes, pobres e chefes de família. Entre as mulheres

A
que se prostituem, 28% estão desempregadas e 55% afirmam que precisam

/C
se prostituir para ajudar no sustento da família. Ainda do conjunto das mu-

TA
lheres que se prostituem, 59% são chefes de família e sustentam sozinhas
os seus filhos, 45,6% possuem baixo nível escolar, não tendo terminado

LE
sequer o ensino fundamental e 70% delas não estão inseridas no mercado
de trabalho formal (BERTOLIN et al., 2018). As mulheres e meninas da

CO
Zona Oeste do Rio Grande, submetidas à prostituição e exploração sexual,
somam-se a esses dados, que representam o histórico e contínuo controle
da sexualidade feminina, ora adequando-as a um modelo da família centrada
O
no poder masculino, ora moldando-as a tipos de trabalho determinados a
D

satisfazer masculinidades e suas relações de opressão (dominação-explora-


O

ção), mantendo o status quo necessário para a organização social de gênero


V

da sociedade patriarcal e capitalista.


Outro dado evidenciado na pesquisa, que igualmente reflete uma
SI

realidade constatada em nível nacional, é a baixa participação das mulheres


U

na esfera pública. O Brasil, de modo geral, apresenta uma baixa repre-


CL

sentação feminina nas cadeiras do parlamento e nos executivos estaduais


e municipais, ganhando como destaque a 161ª posição no Ranking de
EX

Presença Feminina no Poder Executivo, entre 186 países analisados pelo


Projeto Mulheres Inspiradoras (PMI) e ainda, classificando a inserção das
SO

mulheres em cargos de chefia, nos governos, como uma das piores no


mundo e a pior da América Latina (MARTINS, 2018). Essa realidade nos
U

apresenta outra característica da sociedade patriarcal, que mantém uma


despótica hierarquia no reconhecimento daqueles que podem, ou não, ser
RA

considerados sujeitos políticos e define aqueles que detêm o poder e os que


são subjugados. Assim, o outro (no caso, as mulheres) não é reconhecido
PA

como sujeito político e as diferenças e assimetrias no acesso ao poder po-


lítico são sempre transformadas em desigualdades. Mais uma vez, esse é o
modus operandi do sistema que reforça a típica e histórica relação patriarcal
de mando-obediência.
Dessa forma, os poderes despóticos que mantêm as mulheres na
invisibilidade capilarizam em toda a sociedade múltiplas formas de violência,
235

que partem da família e se espalham nas mais diversas instituições (relações


comunitárias, escola, hospital, relações de trabalho, meios de comunicação
etc.), moldando o comportamento social e o tratamento destinado aos “ci-

S
dadãos”, inclusive pelas instituições públicas. Esse despotismo que alicerça

PE
a sociedade brasileira, operando historicamente para o encolhimento do
espaço público e o alargamento do espaço privado (da vontade arbitrária),

A
naturaliza as desigualdades econômicas e sociais, bem como as diferenças

/C
étnicas e as diferenças de gênero, levando à aceitação de todas as formas

TA
visíveis e invisíveis de violência, dificultando a luta contra a opressão
(CHAUÍ, 2017).

LE
Mesmo quando na família há meninos e meninas, a pesquisa revelou
que a violência é majoritariamente exercida sobre as meninas, que sofrem a

CO
violência psicológica e a violência física, que marcam os seus corpos perver-
samente, no espaço em que deveria predominar o afeto e a proteção social.
O
Mas é justamente no espaço doméstico que elas são ameaçadas, humilhadas
D
e têm seus corpos marcados pela agressão física, caracterizando a família
como instituição reprodutora da violência. Portanto, destaca-se, aqui, que
O

a violência doméstica e a violência intrafamiliar reproduzem a violência


V

de gênero. Assim, essas são violências manifestadas de múltiplas formas,


SI

atingindo mulheres em todas as idades, tendo como espaço privilegiado o


U

doméstico, que reproduz a violência de gênero. Nos atendimentos prestados,


CL

também, as mães foram nomeadas, inúmeras vezes, como as agressoras,


desempenhando o papel de dominação-exploração patriarcal, pelo qual
EX

reproduzem a violência que um dia sofreram e a que, muitas vezes, ainda


são submetidas numa estrutura moldada para implementar, dentre outras
violências, a violência social. Em síntese, a violência que atinge mulheres e
SO

meninas é também praticada por mulheres, apresentando a face do patriar-


cado por meio da atuação das próprias mulheres e mantendo o caldo de
U

cultura, no qual tem lugar a violência de gênero que edifica diversas formas
RA

de desigualdades, inclusive entre homens e mulheres (SAFFIOTI, 2001).


Os registros investigados não se restringem às características das pes-
PA

soas atendidas, mas abrangem, também, conforme destacado anteriormente,


os tipos de atendimento que receberam nos diferentes órgãos públicos, aos
quais recorreram as mulheres e meninas vítimas de violência. Assim, eles
permitiram desvelar também uma relação contraditória entre proteção social
e tolerância institucional. O comportamento de alguns profissionais diante
de denúncias de violência contra mulheres e meninas revelava a vigência de
236

valores patriarcais, que concorriam para a perpetuação de juízos de valor que


colaboram para manter a naturalização de uma condição inferior atribuída
a mulheres e meninas. Nessa lógica, expressa-se a reincidência da violência

S
na trajetória percorrida na rede de proteção social.

PE
Os resultados da pesquisa realizada em Rio Grande detectaram um
conjunto de práticas, valores e comportamentos expressos por servidores

A
públicos, incluindo médicos, enfermeiros, direções de escola, assistentes

/C
sociais, conselheiros tutelares, psicólogos, educadores sociais, promotores e

TA
juízes, que evidenciam o favorecimento da reincidência da violência contra
mulheres e meninas. São atos em que se manifesta a omissão dos deveres e,

LE
até mesmo, práticas discriminatórias, envolvendo a questão de gênero, tal
como se apresenta na síntese, a seguir, que foi extraída da análise documental

CO
sobre os atendimentos prestados na rede de proteção social:
• peregrinação da vítima pela rede de proteção social e constrangi-
O
mento à repetição do relato de denúncia da violência;
D
• acusação precipitada, durante o acolhimento de situação de vio-
lência, motivada por juízos de valor, bem como julgamentos de crimes
O

sexuais contra meninas e mulheres tendo como fundamento a maior ou


V

menor suposta “honestidade” da vítima;


SI

• negligência em acionar os recursos da Lei 11.340/2006 (Lei Maria


U

da Penha) (BRASIL, 2006), caracterizando claramente a omissão e a tole-


CL

rância institucional à violência contra mulheres e meninas;


• indeferimento de medidas de proteção social, mesmo diante de
EX

Boletim de Ocorrência com relato de agressão física e suspeita de violência


sexual, sem requisição de quaisquer exames periciais pela autoridade policial
e, nem mesmo, intimação de testemunhas e/ou do possível agressor para
SO

audiência. Soma-se a isso a desconsideração de depoimentos, indicativos


de violência, realizados por profissionais do CREAS e constantes dos autos
U

do inquérito;
RA

• desconsideração de documentos auxiliares na investigação de


situações de violência, como processos anteriores que tramitavam na 2ª
PA

Vara da Violência Doméstica, acusando o mesmo agressor e envolvendo as


mesmas vítimas em anos anteriores, bem como outros tipos de documentos,
como parecer social emitido pela assistente social da Casa da Acolhida e
pelos profissionais do CREAS;
• negligência institucional identificada pelo não acionamento de
qualquer medida de restrição ou suspensão de visitas aos dependentes me-
237

nores pelo suposto agressor, ignorando a possibilidade posta em suspeita de


violência, tal como anuncia o art. 22 da Lei 11.340/2006 (BRASIL, 2006);
• negligência institucional no encaminhamento de acompanhamento

S
terapêutico (como previsto nas Leis 8.069/1990 e 13.257/2016) em situação

PE
reincidente de denúncia de violência;
• negligência institucional, caracterizada pela omissão no ato rein-

A
cidente de denúncia de violência na Delegacia de Polícia, sem a devida

/C
requisição pela autoridade policial do exame de corpo e delito e de outros

TA
exames periciais necessários, tal como prevê a Lei 11.340/2006, art. 12
(BRASIL, 2006);

LE
• superficialidade da prática interventiva do Conselho Tutelar, com
permissividade das situações de negligência educacional, sem a necessária

CO
investigação, pelos órgãos competentes, das determinações do fenômeno
(envolvendo, muitas vezes, outras situações de violência e/ou outras ex-
O
pressões da questão social);
D
• omissão do Conselho Tutelar em situações de encaminhamento
para programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento
O

a toxicômanos (Lei nº 8069/1990), visando ao fortalecimento de vínculos


V

familiares e resgate da responsabilidade parental;


SI

• negligência do Conselho Tutelar diante de denúncia em parecer so-


U

cial de trabalho infantil, desconsiderando os ditames da Constituição Federal


CL

de 1988, da Consolidação das Leis Trabalhistas, do Estatuto da Criança e do


Adolescente, do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho
EX

Infantil (2011) e Proteção do Adolescente Trabalhador (2011/2015). Isto


é, descumprimento de todas as normativas legais existentes, que asseguram
a proteção social de crianças e adolescentes.
SO

Como forma de ilustrar essas constatações, que são fruto de pes-


quisa realizada sobre a prática profissional desenvolvida com meninas e
U

mulheres vítimas de violência, acrescentam-se algumas manifestações feitas


RA

por usuários(as), conselheiros(as), trabalhadores(as) e gestores(as) da área,


após uma introdução sobre as políticas destinadas à proteção de vítimas
PA

de violência, por ocasião de um evento realizado em agosto de 2018, no


Município do Rio Grande, para análise das práticas das políticas destinadas
à prevenção da violência contra a mulher no município. São elas:
• frágil estrutura da Delegacia da Mulher, com pessoal e horário
de atendimento não integral, dificultando e, algumas vezes, até impedindo
o registro de Boletim de Ocorrência. Essa fragilidade se reveste de maior
238

importância se considerarmos o relato de uma usuária, vítima de violência


física, sugerindo que os Boletins de Ocorrência fossem feitos na Delegacia
da Mulher, sob o argumento de que, na Polícia Civil, geralmente a mulher

S
é considerada culpada pela violência sofrida.

PE
• pouca ou nenhuma abordagem, pelos profissionais, do tema re-
lativo à prevenção da violência contra meninas e mulheres nas Unidades

A
Básicas de Saúde, assim como em outras instituições da “ponta” da rede

/C
de proteção social;

TA
• frágil capacitação dos profissionais da Delegacia da Mulher e da
Patrulha Maria da Penha para o acolhimento e atendimento humanizado

LE
de situações de suspeita de violência;
• burocratização do acesso aos direitos e demora no encaminha-

CO
mento das Medidas de Proteção de urgência em situações de violência;
• fragilidade no acolhimento de situações de suspeita de violência,
revelando falta de ética dos profissionais que identificam as denúncias
O
apresentadas;
D

• fragilidade ou falta de suporte psicológico aos profissionais da


O

rede de proteção social que acolhem situações de suspeita de violência;


V

• escassez de recursos financeiros e humanos para a implementa-


ção de políticas voltadas às mulheres, bem como para o enfrentamento da
SI

violência contra mulheres e meninas;


U

• fragilidade da rede de proteção e enfrentamento da violência no


CL

atendimento às mulheres vítimas de violência e às dependentes químicas,


evidenciando que não existe apoio para dependência química feminina, ou
EX

seja, espaço adequado de atendimento e tratamento.


Embora a listagem, aqui apresentada, seja resultado de manifestações
SO

em um evento realizado, convém lembrar que a aceitação das mesmas pela


diversidade de pessoas presentes no evento, citada anteriormente, permite
U

atribuir credibilidade às manifestações.


Enfim, mesmo com o avanço conquistado pelo movimento fe-
RA

minista, principalmente após a reabertura democrática, em 1980, com a


conquista, por exemplo, da implementação das Delegacias Especiais de
PA

Atendimento às Mulheres (DEAM), cuja iniciativa brasileira se tornou


referência e posteriormente foi adotada em diversos países da América
Latina, ainda assim, na atualidade, essas Delegacias enfrentam dificuldades
para se constituírem, de fato, como espaço para validação de um direito
social coletivo (BANDEIRA, 2014). A característica marcante que influen-
ciou a construção das DEAM foi a consolidação de um ordenamento de
239

valores diferenciados, que possibilitasse a escuta sensível e o olhar distinto


em relação aos parâmetros masculinos sobre a compreensão da violência
(BANDEIRA, 2014). No entanto, a escassez de recursos financeiros e

S
humanos vem dificultando o seu real papel.

PE
A análise realizada sobre a intervenção evidencia que, para além
da fragilidade na garantia da acolhida de situações de violência contra mu-

A
lheres e meninas, existe uma parcela violenta da sociedade que se opõe à

/C
ética, porque trata seres racionais e sensíveis como coisas, ou seja, como

TA
seres irracionais, insensíveis, mudos, passivos, simples instrumentos para
uso de outrem.

LE
Conforme afirma a filósofa Marilena Chauí, no Brasil, há uma mi-
tificação da violência, adensando uma falsa ideia de que os brasileiros são

CO
acolhedores e convivem em harmonia com as diferenças raciais, étnicas,
de gênero ou quaisquer outras (CHAUÍ, 2017). De fato, ao desvendar a
aparência, constata-se que há inclusive uma violência institucional praticada,
O
muitas vezes, pelos órgãos que deveriam proteger os direitos humanos e
D

sociais, uma vez que o mito da sociedade não violenta coloca “um nós-bra-
O

sileiros-não-violentos e um eles-não-brasileiros-violentos. Eles (Vândalos,


V

desordeiros, bandidos) [...]” (CHAUÍ, 2017, p. 40). Dessa forma, o Estado


é isento de qualquer responsabilidade, a partir de uma inversão do real que
SI

permite dissimular comportamentos, ideias e valores violentos, como se


U

não fossem violentos (CHAUÍ, 2017).


CL

É exemplar desse fenômeno a omissão e tolerância institucional


diante da violência contra mulheres e meninas. Não é raro o(a) profissional
EX

que atende a vítima de violência, ao fazer contato com outro(a) profissional


da Rede de Proteção para obter informações sobre o encaminhamento fei-
SO

to, ser questionado(a) quanto à veracidade dos fatos relatados pela vítima
e que geraram o encaminhamento. Muitas vezes, o(a) assistente social é
U

criticado por partir do princípio de que os fatos narrados pela denuncian-


te são sempre verdadeiros. Esse tipo de situação é comumente reforçado
RA

quando se trata de profissional do gênero feminino diante de profissionais


masculinos atuantes nos serviços da área da saúde ou sociojurídicos, o
PA

que exige, dessa profissional, sólido conhecimento sobre o caso e as leis


atinentes a ele, bem como postura ética e convicta da defesa dos direitos
humanos perante qualquer situação, inclusive quando há ameaças veladas,
oriundas dos próprios agressores.
A manutenção do mito da não violência, que opera por meio de um
conjunto de mecanismos ideológicos, negando a violência na sociedade,
240

também age pelo mecanismo da distinção (CHAUÍ, 2017), pelo qual se


distingue o essencial do acidental. No mecanismo jurídico, a violência fica
circunscrita ao campo da delinquência e da criminalidade, definindo como

S
crime o ataque à propriedade privada. Esse mecanismo permite determinar

PE
que os “agentes violentos” são aqueles que, de forma geral, são ladrões e
assassinos pertencentes às classes populares.

A
Aliado a isso, órgãos de proteção a vítimas de violência perdem

/C
importância e legitimidade em uma sociedade incapaz de se perceber vio-

TA
lenta e regida por uma ordem neoliberal, em que o encolhimento do espaço
público, o alargamento do espaço privado e a recusa dos marcos regulatórios
estatais ou da lei e dos direitos, é perpassada pela concepção de que seres

LE
humanos são instrumentos descartáveis, diante da busca incessante pela

CO
maximização dos lucros a qualquer preço. Nessa perspectiva, o desemprego
torna-se estrutural, já que nessa lógica o capitalismo opera pela exclusão,
que se realiza não só pela introdução de novas tecnologias, mas também
O
pela velocidade e rotatividade da mão de obra, que se torna desqualificada
D
e obsoleta em função da velocidade das mudanças tecnológicas (CHAUÍ,
O

2017). Logo, a violência social e todas as desigualdades advindas do regime


tornam-se o fundamento dessa sociedade.
V
SI

Algumas exigências para uma intervenção em busca da emancipação


U
CL

Antes de iniciar a abordagem mais especificamente relacionada


às exigências para que a intervenção na reincidência da violência contra
EX

mulheres e meninas pobres seja direcionada por uma perspectiva emanci-


patória, considerando o exposto até o momento, convém chamar atenção
SO

para aspectos inter-relacionados que podem passar desapercebidos no


contexto desta escrita.
U

Destaca-se como algo resultante da prática profissional aqui apresen-


tada que o(a) profissional de Serviço Social, ao registrar documentalmente
RA

sua atuação, tanto com dados sobre as pessoas atendidas como com a des-
crição sobre o tipo de atendimento prestado, acumula fonte rica de dados
PA

brutos. Ao serem criticamente analisados, esses dados não apenas poderão


explicar/anunciar a produção da realidade como também denunciar as
conexões e as relações sociais estabelecidas, que produzem concretamente
os fenômenos sociais.
Desse modo, as condições de trabalho (excesso de demandas, fal-
ta de equipamentos nas unidades de prestação de serviços, entre outras)
241

que impedem a realização dos registros e a sua análise estão diretamente


relacionadas com o uso instrumental da profissão para apaziguamento do
sistema. Portanto, valorizar os momentos usados para a documentação,

S
leitura e análise dos dados registrados e, mais ainda, a sua socialização e

PE
discussão com a equipe de trabalho, enriquecendo-os com outras análises,
oriundas ou não de uma equipe multidisciplinar, constitui-se, também, como

A
estratégia de resistência à banalização de uma prática profissional focalizada

/C
no atendimento imediato das demandas apresentadas.

TA
Os achados da pesquisa confirmam que a reincidência da violência
contra meninas e mulheres pobres, no Brasil, é resultado de um Estado

LE
que mantém a organização social de gênero, tendo no patriarcado um dos
determinantes da violência na sociedade brasileira, assentada na desigualdade

CO
social. A predominância da violência contra meninas e mulheres pobres
mostra-se, também, como um mecanismo enraizado na sociedade brasileira
patriarcal e capitalista. Portanto, a sua superação requer o efetivo enfrenta-
O
mento das desigualdades de gênero, raça/etnia e classe numa perspectiva
D

de totalidade, dirigida para a construção de um novo projeto societário.


O

Isso deverá demandar um atendimento integral às vítimas de violência,


V

realizado por uma rede interinstitucional com profissionais devidamente


capacitados para lidarem com as manifestações de violência para além das
SI

marcas visíveis nos corpos. Nessa perspectiva, a Rede de Proteção Social


U

precisa ter, além de serviços de proteção imediata, mecanismos capazes


CL

de gerar condições para o desenvolvimento da autoestima e da autonomia


das mulheres, como um meio para minimizar a reincidência da violência,
EX

uma vez que a sua superação definitiva só será possível com um projeto
societário que permita a emancipação humana.
SO

Nesse sentido, urge o resgate e o comprometimento do poder pú-


blico, nas diversas instâncias de governo, com os princípios pautados no
U

Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2013-2015). É preciso que o


Estado garanta, de fato, os princípios da autonomia, da transversalidade e da
RA

participação. Trata-se de promover a autonomia, por meio da universalidade


dos serviços e benefícios ofertados pelo Estado, com acesso garantido às
PA

mulheres e meninas vítimas de violência. Além disso, trata-se de resguardar


a transversalidade como princípio orientador, em todas as ações de enfren-
tamento da violência contra meninas e mulheres. Por fim, simultaneamente
à garantia dos princípios anteriores, deve-se impulsionar o real incentivo
da participação ativa das mulheres em todas as fases das políticas públicas,
destacando o investimento para a sua autonomia econômica, por meio
242

do trabalho formal, e enfatizando a continuidade do investimento para a


erradicação da pobreza, iniciado em governos anteriores.
Nesse cenário, faz-se igualmente necessário o comprometimento

S
com outras ações, tais como:

PE
• validação efetiva, por meio de investimento governamental e
formação adequada dos profissionais, para a implementação da “escuta

A
especializada” nas situações de violência contra crianças e adolescentes,

/C
limitando o relato sobre situações de violência ao estritamente necessário

TA
ao cumprimento da garantia da proteção social e das medidas adequadas,
para a preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha,

LE
tal, como descrito na Lei 13.431/2017 (BRASIL, 2017);
• fiscalização permanente dos Conselhos da Mulher e da Criança

CO
e do Adolescente, especificamente sobre o cumprimento das medidas de
“Assistência à Mulher em situação de violência doméstica e familiar” (Cap.
II da Lei 11.340/2006), proporcionando a real garantia da integração de
O
mulheres vítimas de violência em programas assistenciais dos governos
D

federal, estadual e municipal, bem como a preservação da integridade física


O

e psicológica da vítima e a garantia de serviços do Sistema Único de Saúde


V

e do Sistema Único de Segurança Pública, entre outras ações emergenciais


necessárias à proteção, quando necessário;
SI

• articulação entre o Conselho da Mulher, o Conselho da Criança


U

e do Adolescente e o Ministério Público, a fim de garantir a intervenção


CL

nas causas civis e criminais consequentes da violência doméstica e familiar


contra mulheres e meninas, impedindo a negligência institucional, asse-
EX

gurando serviços públicos de saúde, educação, assistência social, entre


outros, amparados numa perspectiva de gênero. Tal articulação é também
SO

necessária para sanar as irregularidades constatadas em relação à omissão


de órgãos públicos na garantia de direitos sociais de meninas e mulheres
U

em situação de violência.
Enfim, a busca pela superação da reincidência da violência contra
RA

mulheres e meninas só poderá se concretizar em um sistema no qual a auto-


nomia exercida por um(a) profissional ético(a) supere a imposição de regras
PA

e normas calcadas em valores de uma sociedade patriarcal e excludente.


Entende-se que o(a) assistente social, ao atuar nas manifestações
de violência contra mulheres e meninas, precisa compreender as múltiplas
determinações que as produzem e reproduzem e que são responsáveis pela
reincidência da violência, a fim de poder direcionar a sua atuação. Desde a
primeira acolhida à vítima de violência, deve buscar estratégias que possam
243

proporcionar sua autonomia como ser individual e social, alicerçando sua


emancipação. A mulher pobre, presa aos grilhões do não acesso à educa-
ção, da reprodução da ordem patriarcal, da cultura machista, da submissão,

S
da exploração, necessita de uma escuta qualificada, capaz de superar a

PE
apreensão de dados objetivos de sua realidade, fornecendo informações e
esclarecimentos que permitam, muitas vezes, a primeira descoberta de seu

A
valor enquanto ser humano, como ponto de partida para a sua insurgência

/C
contra a violência.

TA
Por outro lado, o acionamento da Rede de Proteção, com o devido
encaminhamento aos serviços especializados necessita ser acompanhado

LE
pelo(a) assistente social, superando entraves burocráticos, alguns eviden-
ciados anteriormente, a fim de evitar que a mulher ou menina não chegue

CO
a usufruir do serviço, ou por falta de conhecimento sobre como acessá-lo,
ou pela precariedade do atendimento recebido. No caso de violência contra
crianças, é fundamental que o(a) profissional consiga conquistar a confiança
O
na relação estabelecida com a vítima, bem como consiga descobrir, entre
D

suas relações, a pessoa com melhores condições de exercer sua proteção.


O

Essa pessoa deve ser orientada a impedir a exposição da criança a maior


V

sofrimento psicológico e protegê-la, inclusive no acompanhamento a órgãos


SI

especializados (exames clínicos e outros).


U

Violência contra mulheres e meninas: um amplo campo de atuação


CL

profissional
EX

A intervenção profissional no fenômeno circunscrito pela reinci-


dência da violência contra mulheres e meninas pobres ultrapassa um cam-
SO

po delimitado de atuação profissional, pois pode ser efetivada em vários


U

espaços sócio-ocupacionais. Tendo em vista sua complexidade, amplitude


e significado na sociedade brasileira atual, entende-se como importante dar
RA

ênfase específica na formação profissional do(a) assistente social. A inclusão


de conteúdos básicos sobre o tema no currículo da graduação pode melhor
PA

habilitar os(as) profissionais para uma atuação qualificada nos diferentes


tipos de serviços da Rede de Proteção, a exemplo do que já ocorre com a
abordagem sobre várias políticas sociais. Com isso, pretende-se alertar que
a atuação do Serviço Social nesse campo não deve restringir-se somente
à mera execução da política de enfrentamento da violência, por meio da
acolhida, da escuta sensível e do encaminhamento a medidas protetivas,
244

mas também agir no controle social sobre o funcionamento dos diversos


órgãos públicos integrantes da Rede de Proteção e, ainda, na proposição
de novas estratégias de prevenção e de enfrentamento da reincidência da

S
violência, tanto para qualificar os serviços existentes como para ampliá-los

PE
e transformá-los.
Outro aspecto que nos parece fundamental para a atuação nesse

A
campo é que o(a) assistente social reconheça seus limites profissionais

/C
e a importância de uma equipe interdisciplinar no desenvolvimento da

TA
intervenção. É importante, também, que ele(a) seja capaz de estabelecer
articulação com a Rede de Proteção à Violência contra a Mulher, conquis-

LE
tando parceiros para uma atuação ética e comprometida com a superação
da reincidência da violência.

CO
Reiteramos, aqui, a necessidade apontada por Lessa (2015) de uma
intervenção guiada por princípios norteadores que deverão primar: 1) por
uma ética que desempenhe uma função social, que poderá ser expressa
O
num conjunto de valores que materializem uma relação não antinômica do
D

indivíduo com o gênero; 2) pela superação da sociabilidade que possui na


O

mercadoria sua forma elementar, tornando o indivíduo um mero guardião da


V

propriedade privada; 3) pelo rompimento da dinâmica reprodutiva imanente


ao capital, que produz a incompatibilidade entre a abundante produção e o
SI

caráter despótico e concentrador de riqueza; 4) pela superação da redução


U

das relações sociais a relações entre mercadorias, que se converte na forma


CL

elementar das relações sociais; 5) pela suplantação da propriedade priva-


da e da exploração do homem pelo homem; 6) pelo rompimento com o
EX

Direito, como um complexo social que surge e se mantém para atender às


necessidades da sociedade de classes, com a afirmação da propriedade da
SO

classe dominante contra os trabalhadores e todas as categorias subjugadas


(negros, mulheres, gays etc.).
U

Atuar para enfrentar a reincidência da violência contra meninas e


mulheres pobres, portanto, supõe ter claro que a sua superação definitiva
RA

somente ocorrerá com o desenvolvimento de um novo projeto de sociedade,


que rompa com todo e qualquer tipo de desigualdade social, quer seja de
PA

gênero, classe, raça/etnia. Porém, enquanto isso não acontece, a atuação


qualificada do(a) assistente social no enfrentamento desse fenômeno pode
contribuir para a criação de condições que possibilitem o desenvolvimen-
to da emancipação das mulheres vítimas de violência, para que sejam elas
próprias, com o apoio dos mecanismos de proteção social existentes, as
agentes de transformação de sua realidade de exploração, dominação ou
245

opressão, bem como poderá interferir para que o ciclo de reprodução da


violência contra meninas e mulheres pobres seja rompido.

S
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SI
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CL
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SO
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PA
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RA
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CO
LE
TA
/C
A
PE
S
249

11.
Una mirada desde Trabajo Social acerca de las nuevas

S
PE
corrientes migratorias en Uruguay

A
Silvia Rivero

/C
TA
Este análisis se enmarca en la línea de investigación sobre poblacio-
nes migrantes y derechos humanos que se desarrolla en el Departamento de

LE
Trabajo Social de la Facultad de Ciencias Sociales (FCS) de la Universidad
de la República, Uruguay (UDELAR). La información trabajada se recaba

CO
a partir de documentación de organismos públicos, entrevistas con las or-
ganizaciones que nuclean las poblaciones inmigrantes, así como grupos de
O
discusión con inmigrantes provenientes de Cuba, Venezuela y República
Dominicana.
D

El capítulo tiene como objetivo presentar las características y los


O

obstáculos que presentan los procesos de integración de las nuevas corrien-


V

tes inmigratorias en el contexto sociopolítico actual, desde la perspectiva de


SI

Trabajo Social. En ese sentido, el volumen, la diversidad y complejidad de


las nuevas corrientes inmigratorias hace necesario repensar el sistema institu-
U

cional del país en función de los nuevos desafíos que se le presentan para la
CL

integración de estas poblaciones desde una perspectiva de derechos humanos.


En este trabajo, abordaremos el tema desde el análisis de tres
EX

contradicciones que nos permiten pensar la complejidad de la temática y


observar los obstáculos que se presentan en el desarrollo de cada proceso
SO

dialéctico. Este enfoque analítico permitirá identificar las estrategias de


intervención requeridas para abordar los obstáculos coyunturales en los
U

diferentes contextos.
Partimos presentando el enfoque conceptual a partir del cual
RA

abordamos la temática y el proceso histórico respecto a la migración en


Uruguay, entendiendo que este proceso permite una mejor comprensión
PA

de la situación actual.
En el segundo capítulo trabajamos las tres contradicciones que nos
permiten acercarnos a la complejidad de los procesos migratorios actuales:
local – global; ciudadano/a – habitante; nativo/a – extranjero/a. Además,
en este capítulo se realiza una primera aproximación al análisis de los obs-
táculos que limitan el proceso.
250

A modo de contexto: características de los procesos migratorios


Podemos decir que durante las últimas décadas han aumentado los

S
flujos migratorios en prácticamente todos los países del mundo. Mora (2013)

PE
plantea que los procesos migratorios constituyen actualmente una temática
de atención política y científica dada la complejidad que ha adquirido esa

A
problemática, lo que hace necesario profundizar en un análisis detallado

/C
y profundo que permita comprender la realidad migratoria nacional e in-

TA
ternacional. En términos generales, se entiende que las razones expuestas
para migrar son muy variadas. Podemos señalar que se debe básicamente a

LE
motivos de carácter económico y familiar, a esto es necesario agregar razo-
nes motivadas por guerras locales, regionales o internacionales, represiones

CO
y persecución política, movimientos y desplazamientos étnicos derivados
del avasallamiento de las tierras y territorios, creencias y persecuciones
O
religiosas, catástrofes naturales y problemáticas ecológicas, fuga de profe-
D
sionales, entre otros.
Las razones para la migración tienen su raíz en aspectos que hacen
O

tanto a las consecuencias del modo de producción, como a las propias ca-
V

racterísticas de este. En ese sentido, entonces, los procesos migratorios no


SI

constituyen fenómenos recientes, sin embargo, las características de estos


U

procesos han ido variando.


CL

Para Bauman (2017), las migraciones masivas han acompañado a


la modernidad desde sus inicios ya que
EX

este modo de vida moderno nuestro comporta en sí mismo la producción


de personas superfluas (localmente inútiles – excedentes e inempleables –
SO

por culpa del progreso económico, o bien localmente intolerables, es decir,


rechazadas por el descontento, los conflictos, la agitación causados por
U

las transformaciones sociales/políticas…) (BAUMAN, 2017, p. 10-11).


RA

Actualmente el proceso de globalización tiene varias consecuencias


directas sobre la migración: por un lado, se produce el bloqueo de lo que
PA

Bauman (2008) llama las válvulas de escape, que anteriormente permitían que
los relativamente escasos países modernizados y en vías de modernización
pudieran regular la población excedente, superflua, supernumeraria y prescin-
dible que el modo de vida moderno ha producido en una escala creciente; por
otro lado, ya no existen nuevos territorios vacíos a conquistar. Por lo tanto,
Bauman (2008) entiende que como consecuencia de este doble proceso – el
251

del bloqueo de las antiguas vías de escape unido a la inexistencia de nuevos


conductos de evacuación exterior –, las sociedades modernas y las sociedades
en vías de modernización vuelven las prácticas excluyentes contra sí mismas

S
(RIVERO; INCERTI; MARQUES, 2009). Cuando las herramientas y estra-

PE
tagemas de intervención habituales, que funcionaban cuando eran aplicadas
a una anormalidad que se reconocía como temporal, ya no bastan para tratar

A
con el “problema de los desechos”. Según Bauman (2008),

/C
[…] las nuevas políticas que pronto se inventarán como respuesta a este

TA
nuevo avatar del viejo problema comenzarán, muy probablemente, subsu-
miendo las políticas diseñadas en su momento para abordar el problema

LE
en su antigua forma. Por si acaso, se preferirán las medidas de emergencia
dirigidas al “desecho interno” y, tarde o temprano, se les dará prioridad

CO
frente a todos los demás modos de intervención en los problemas de la
superfluidad como tal, tanto la temporal como la que no lo es (BAUMAN,
2008, p. 25).
O
D
Por otra parte, los países circundantes no están dispuestos a recibir
los excedentes de otras poblaciones nacionales ni quieren que se los obligue
O

a aceptarlos y darles cabida. A diferencia de los productores de excedentes


V

poblacionales de antaño, que buscaron y encontraron soluciones globales a


SI

problemas que ellos mismos producían localmente, ahora se requiere a los


U

países que encuentren soluciones locales para problemas globales.


CL

Uruguay no escapa a estas condiciones. Hasta mediados del siglo


XX, ese país fue receptor de la emigración fundamentalmente europea,
EX

la cual era formada por poblaciones que escapaban de la pobreza y de las


persecuciones religiosas y políticas. El país se constituyó un territorio para
SO

conquistar, pensado como vacío, al que hay que poblar y en el que hay que
instalar el modo de producción capitalista.
U

Los primeros procesos emigratorios se produjeron en la década de


los años 1960, productos de un contexto de severo estancamiento econó-
RA

mico y de inestabilidad social y política del país.


A partir de 1985, con el advenimiento de la democracia, comienza el
PA

retorno de la emigración política con el regreso de los exiliados políticos. En


ese momento se realiza una serie de políticas específicas para la reinserción
de estas poblaciones, en general, llevadas adelante por organizaciones no
gubernamentales (ONG) y financiadas por la cooperación internacional.
A finales del siglo XX, en la década de los 1990, se reinician los
procesos inmigratorios, pero con características diferentes a los produci-
252

dos hasta mediados del mismo siglo dando cuenta del cambio que poste-
riormente será más evidente: ahora las corrientes migratorias provienen
del territorio latinoamericano, fundamentalmente peruanos, y también,

S
en menores números, bolivianos y paraguayos (RIVERO; INCERTI;

PE
MARQUEZ, 2019).
A fines de esta década del 1990, y en los primeros años del siglo

A
XXI, se produce el proceso emigratorio más alto del país debido a la

/C
importante crisis económica que impactó en la región desde 1999 hasta

TA
2002 (PELLEGRINO, 2009). “Esta emigración siguió los trayectos de las
décadas anteriores, fundamentalmente, por la existencia de comunidades

LE
de uruguayos que resulta un apoyo importante sobre todo en las primeras
etapas de instalación” (RIVERO; INCERTI; MARQUEZ, 2019, p. 104).

CO
Esa importante emigración producida hace que, por primera vez,
el Estado uruguayo ponga su atención en los procesos emigratorios de su
población. En el año 2001, se crea la Comisión Nacional para la vinculación
O
de uruguayos residentes en el extranjero. Sin embargo, la escasa institucio-
D

nalidad se une a leyes muy antiguas que poco dan cuenta de las necesidades
O

del país. Fue a partir del 2005 que se inició un proceso de mejora en el
V

tratamiento del tema migratorio. Es en ese mismo año fue creado, desde el
Ministerio de Relaciones Exteriores, la Dirección de servicios consulares y
SI

vinculación con los uruguayos en el exterior llamado “Departamento 20”


U

(RIVERO; INCERTI; MÁRQUEZ, 2019), que incluye a los uruguayos


CL

emigrados con un estatus relevante. En el año 2008 se aprobó una nueva


ley de migración (18.250), aún en vigencia actualmente, en la que se es-
EX

tablece que el Estado respetará la identidad cultural de los inmigrantes y


sus familias, y fomentará el mantenimiento de los vínculos con sus países
SO

de origen (artículo 14). En la misma ley se propone la creación de la Junta


Nacional de Migración como órgano asesor del Poder Ejecutivo y coor-
U

dinador de las futuras políticas migratorias. También se genera el Consejo


Consultivo Asesor de Migración integrado por: el Ejecutivo (a través de
RA

varios Ministerios); organizaciones de migrantes; y organizaciones de De-


rechos Humanos (URUGUAY, 2008).
PA

El Censo de Población realizado en el año 2011 arroja datos impor-


tantes sobre la inmigración. Surge que en Uruguay (hasta el 2011) residen apro-
ximadamente 77 mil inmigrantes. En cuanto a la inmigración reciente (hasta 5
años), los datos muestran que hay 18 mil que llegaron al país a partir del 2006,
de acuerdo al informe sobre Inmigrantes Internacionales y Retornados en Uru-
guay del Instituto Nacional de Estadística (KOOLHAAS; NATHAN, 2013).
253

Se observa que en los años anteriores al censo del 2011 prevalecieron


la inmigración desde Argentina y Brasil, y un escalón debajo otros países
como Paraguay, Chile, Perú y países centroamericanos y del Caribe como

S
Cuba y México. Uno de los fenómenos más significativos en este sentido es

PE
el incremento de personas originarias de Perú, en el país, el número creció
un 171%, ya que pasó de 428 en 1996 a 1433 en 2011. En consecuencia, se

A
trata de la nacionalidad que más creció en el país desde 1996 hasta la fecha

/C
del censo. En segundo lugar, aparece Estados Unidos, una vez que las ci-

TA
fras incluyen los hijos de uruguayos que emigraron a ese país a partir de la
crisis de 2002. En cuanto a los retornados, 33% provienen de España, con
que este origen se destaca como el principal país de donde los uruguayos

LE
regresan; en segundo lugar, aparece Argentina con 19%.

CO
Luego del Censo 2011, se vio incrementada la presencia de inmi-
grantes extranjeros en Uruguay. Con base en un análisis integrado de regis-
tros administrativos (entradas y salidas de pasajeros, residencias iniciadas
O
y otorgadas, cédulas de identidad emitidas para ciudadanos extranjeros) y
D
datos estadísticos producidos por el INE (Censo de Población de 2011
O

y ECH de 2012 a 2015), en el informe del Ministerio de Desarrollo (MI-


DES, 2017) se muestra el incremento de los inmigrantes extranjeros de
V

nuevos orígenes latinoamericanos en el período de 2011 a 2015 (RIVERO;


SI

INCERTI; MÁRQUEZ, 2019). Las distintas fuentes de datos señaladas


U

apuntan un crecimiento de la inmigración extranjera en los últimos años y,


CL

específicamente, se observa un crecimiento de la inmigración proveniente


de países latinoamericanos no limítrofes: “las tres fuentes administrativas
EX

consultadas y la ECH posicionan a República Dominicana, Venezuela, Co-


lombia, y, en menor medida, Cuba, como los tres orígenes más dinámicos
del período” (MIDES, 2017, p. 44).
SO

En función de lo expuesto podemos afirmar que Uruguay se en-


cuentra frente a una nueva problemática para la integración de las diferentes
U

corrientes migratorias lo cual aparece como un desafío para la intervención


RA

del Trabajo Social (RIVERO; INCERTI; MÁRQUEZ, 2019).


PA

Las nuevas corrientes inmigrantes: desafiando al Trabajo Social


Para analizar el proceso de integración social de las nuevas corrientes
migratorias en Uruguay, se trabaja desde el análisis de tres contradicciones
que dan cuenta de diferentes dimensiones de la problemática: local – global;
ciudadano/a – habitante; nativo/a – extranjero/a.
254

Local – Global: Lo global es un concepto complejo que abarca dife-


rentes aspectos. En este trabajo vamos a definir la globalización, desde la
perspectiva económica, como “un proceso-fenómeno de creciente integra-

S
ción de economías a través de diversos factores conectores de las mismas,

PE
fundamentalmente en materia de intercambio de bienes, servicios, capitales,
personas y tecnología” (COPPELLI, 2018, p. 63).

A
El fenómeno de la globalización lleva, según Canclini (2014),

/C
a procesos de desconfiguración de los Estados nacionales. Por una parte, las

TA
migraciones masivas llevan fuera de los territorios a importantes números
de la población; y, por otro lado,

LE
la fractura de las naciones, al replicarse en su interior divisiones interna-

CO
cionales y agudizarse las propias, desarticula la cohesión imaginada entre
sus partes. Las naciones […] no están contenidas enteramente dentro
O
de sus territorios. Y las fronteras no sólo separan un territorio nacional
de otros: pueden segregar dentro del propio país y también pueden ser
D

zonas de intercambio y solidaridad. Esta es otra de las razones por las


O

que es poco creíble la afirmación rotunda de cada nación como entidad


V

nítidamente diferenciada (CANCLINI, 2014, p. 46).


SI

Desde la perspectiva económica, la globalización, impacta en la vida y


U

relación de las personas, las sociedades y los Estados. Coppelli (2018) afirma:
CL

En este sentido, el efecto más directo de la globalización es la pérdida de


EX

autonomía y soberanía de los Estados para actuar con libertad, cediendo,


en alguna medida, atribuciones o decisiones a organizaciones internacio-
nales o foros internacionales que resuelven o instruyen asuntos que los
SO

Estados se ven obligados a cumplir (COPPELLI, 2018, p. 69).


U

Para Bauman (2010), la movilidad adquirida por los que poseen el


RA

capital genera una desconexión de éstos con las obligaciones, con los deberes
con los empleados, con la responsabilidad social hacia las generaciones por
PA

nacer y la reproducción de las condiciones de vida de la comunidad local.


De acuerdo con ese autor, “aparece una nueva asimetría entre la naturaleza
extraterritorial del poder y la territorialidad de la ‘vida en su conjunto’ que
el poder -ahora libre de ataduras, capaz de desplazarse con aviso o sin él-
es libre de explotar y dejar librada a las derivaciones de esa explotación”
(BAUMAN, 2010, p. 17).
255

Por tanto, el mundo globalizado genera una serie de lógicas con


respecto al intercambio de bienes y servicios, así como la movilidad de las
poblaciones. Sin embargo, los Estados nacionales responden con lógicas

S
locales a esos movimientos globales.

PE
Los instrumentos internacionales reconocen el derecho a salir de un Es-

A
tado del cual se es nacional pero no así el derecho a entrar a otro Estado
del cual la persona no es nacional. Si no hay un derecho a desplazarse

/C
libremente a través de las ficciones jurídicas que constituyen las fronteras

TA
difícilmente pueda hablarse de un derecho a migrar (ESPAÑA, 2018b,
p. 207).

LE
Se constituye el derecho a migrar como un valor. Según Bauman

CO
(2010), la movilidad asciende al primer lugar entre los valores codiciados,
pero “la libertad de movimientos, una mercancía siempre escasa y distri-
buida de manera desigual, se convierte rápidamente en el factor de estra-
O
tificación en nuestra época moderna tardía o posmoderna” (BAUMAN,
D
2010, p. 8). Entonces, se define como derecho la movilidad humana, pero
quienes pueden migrar con “derechos” no son todos y todas: “Los procesos
O

globalizadores incluyen una segregación, separación y marginación social


V

progresiva” (BAUMAN, 2010, p. 9).


SI

En la historia de Uruguay, como vimos en el apartado anterior, se


U

han producido importantes movimientos migratorios. Se identifican básica-


CL

mente dos obstáculos en el proceso actual: por un lado, los aspectos legales
para radicarse en el país (Visa, Documento de Identidad, Residencia, etc.);
EX

por otro, la reválida de los estudios universitarios.


Los ciudadanos de países europeos, norteamericanos y latinoa-
mericanos, a excepción de tres de ellos – Cuba, República Dominicana y
SO

Haití – no requieren la tramitación de visados para el ingreso al Uruguay.


Dos de los tres países para los que existe el tratamiento diferencial de la
U

visa, Cuba y República Dominicana, presentan un importante colectivo de


RA

residentes en el país (MIDES, 2017). En total, Uruguay exige visa para entrar
al país a 80 orígenes nacionales, de los cuales, como ya señalamos, tres son
PA

caribeños: Cuba, Haití y República Dominicana. En el caso de República


Dominicana, la exigencia de visa es reciente. En general, los motivos por
los que se les pide visa son múltiples y diferentes. España (2018a) entiende
que esta exigencia,
lejos de disuadir la llegada desde estos orígenes, en el caso latinoameri-
cano favorece el enriquecimiento de las redes de tráfico que operan en el
256

corredor Guyana-Brasil-Uruguay. En los últimos años, como forma de


sortear la restricción del ingreso al país, por carecer de una visa habilitante
para ingresar, personas provenientes de República Dominicana y Cuba,
principalmente, recurrieron a la vía de la solicitud de refugio como for-

S
ma de acceso regular al territorio nacional. Las solicitudes de refugio de

PE
forma “masiva” pusieron en evidencia las limitaciones de las políticas en
materia de movilidad humana en Uruguay, la falta de recursos y la certeza

A
de que ser refugiado en Uruguay es una categoría jurídica que, si no se da

/C
en el marco de un plan o programa, no implica ningún tipo de garantía
específica o trato diferencial (ESPAÑA, 2018a, p. 205).

TA
La situación es diferente con relación a los países integrantes del

LE
Mercado Común del Sur (MERCOSUR) y asociados. Las exigencias son
menores, tanto en la no solicitud de visa como en la tramitación de la docu-

CO
mentación identificadora y los requisitos para la tramitación de la residencia.
El Ministerio de Relaciones Exteriores (MRREE), en informaciones
O
públicas, nos permite aproximarnos al conocimiento del flujo migratorio de
D
aquellos extranjeros provenientes de los Estados parte del Mercosur y de
los Estados asociados, así como de familiares extranjeros de uruguayos que
O

amparados en la ley 19.254 solicitan la residencia permanente. Los datos


V

publicados dan cuenta de que son tres los orígenes que en mayor medida
SI

se han acogido a esta ley: Argentina y Brasil que forman parte de un flujo
U

migratorio histórico y constante para el Uruguay, al que se agrega Venezue-


CL

la que se ubica incluso por encima de Brasil en el número de residencias


concedidas para el período.
EX

Si se analizan solamente los datos publicados por el Ministerio de


Relaciones Exteriores (URUGUAY, 2018a) respecto de las solicitudes de
residencia permanentes realizadas en el año 2018, se observa un incremento
SO

en el número de estas en comparación con igual período del año 2017. En


el año 2018 se destaca la gran cantidad de solicitudes de venezolanos, los
U

cuales son mayores a las solicitudes de argentinos y brasileños. Luego le


RA

siguen Colombia y Perú con una importante cantidad de residencia solici-


tadas y en menor medida Chile, Paraguay, Ecuador y Bolivia.
PA

Según Rivero, Incerti y Márquez (2019), el flujo migratorio pro-


veniente de Cuba y República Dominicana se mantiene en el período de
2016 a 2018.
Esto lo sugieren los datos de las residencias definitivas tramitadas por la
Dirección Nacional de Migración - DNM muestran que en el período de
2016 a 2018, Cuba y República Dominicana son los países a quienes más
257

se les ha concedido dicho trámite. Además, de acuerdo a los datos de los


ingresos y egresos de pasajeros de la DNM, el saldo migratorio positivo
que se observa entre los extranjeros en el país apunta a este mismo di-
namismo proveniente desde países latinoamericanos no limítrofes y que,

S
además, comienzan a ingresar en importante proporción por las fronteras

PE
secas del país (RIVERO; INCERTI; MÁRQUEZ, 2019, p. 107).

A
Arcarazo e Freier (2015) plantean que en Uruguay, así como otros

/C
países, el Estado se encuentra en la obligación de otorgar a la persona un

TA
periodo en el cual pueda regularizar su estatus

LE
La ley se limita sin embargo a disponer que dicha regularización depende
del parentesco con un nacional y de las condiciones personales y sociales

CO
del migrante y que en caso de no llevarse a cabo se procederá a la expulsión.
Por tanto nos encontramos con el hecho de que el mecanismo ordinario
de regularización […] tiene importantes trabas y no se corresponden
O
completamente con un derecho universal a migrar de la persona como
establecen sus leyes (ARCARAZO; FREIER, 2015, p. 184-185).
D
O

Uriarte (2019) plantea que la construcción de una política migra-


V

toria con perspectiva de derechos humanos cimentada en los procesos


SI

de documentación requiere analizar las posibilidades del sistema de dar


respuesta en los diferentes momentos de las dinámicas de movilidad. En
U

un principio el objetivo que se perseguía era que se realizara un proceso


CL

paralelo y coordinado entre el acceso a la documentación y los trámites de


la radicación, lo cual funcionó durante los períodos en que la demanda de
EX

documentación se mantuvo estable.


SO

A medida que el ingreso de población se fue intensificando, la capacidad


de respuesta administrativa no ha acompañado el número de solicitudes,
U

y en algunos períodos puntuales, llegó a registrarse un año de demora


entre la solicitud del inicio del trámite de residencia y la obtención del
RA

documento de identidad. Esto ha sucedido, tanto para las residencias ini-


ciadas en Ministerio del Interior, de ciudadanos originarios de países extra
PA

Mercosur, como en las iniciadas en el Ministerio de Relaciones Exteriores,


de ciudadanos del Mercosur y países asociados y solicitudes de residencia
por reunificación familiar (URIARTE, 2019 p. 46).

Según Bauman (2010, p. 115), la exigencia de visas de ingreso y los


controles de inmigración “tiene un profundo significado simbólico; podría
considerarse la metáfora de una nueva estratificación emergente”, la cual
258

desnuda “el hecho de que el ‘acceso a la movilidad global’ se ha convertido


en el más elevado de todos los factores de estratificación. También revela
la dimensión global del privilegio y la privación” (BAUMAN, 2010, p. 115).

S
Según Prieto, Robaina y Koolhaas (2016), en Uruguay el mercado de

PE
trabajo es el eje vertebrador de los procesos de integración de los migrantes
laborales y de sus familiares, pues la inserción laboral es la puerta de entrada

A
al ejercicio de derechos de salud, educación y para los derechos derivados

/C
de gran parte de la política social. Una de las características relevantes de

TA
las corrientes migratorias actuales es la alta calificación,
tanto los resultados del censo de población de 2011, como de las en-

LE
cuestas de hogares combinadas para el período 2012-2015 indican que
los inmigrantes recientes de cualquier origen alcanzan en mayor medida

CO
niveles superiores de instrucción (PRIETO; ROBAINA; KOOLHAAS,
2016, p. 126).
O
A su vez, la Encuesta Continua de Hogares también
D

permite analizar la incidencia de la inadecuación entre educación alcan-


O

zada y competencias requeridas por la ocupación desempeñada, según


V

condición migratoria. Los resultados indican que la incidencia de sobre-


SI

-calificación es el principal problema de inadecuación entre los inmi-


grantes recientes, entre quienes alcanza 18% entre varones y 26% entre
U

las mujeres. Respecto a la población nativa, ello supone una prevalencia


CL

tres veces superior entre los varones y cuatro veces entre las mujeres. Sin
embargo, entre quienes llevan más de cinco años en el país se observa un
EX

significativo descenso de la incidencia de este problema de desajuste entre


escolaridad alcanzada y calificación demandada (PRIETO; ROBAINA;
KOOLHAAS, 2016, p. 131).
SO

Las corrientes inmigratorias que presentan mayoritariamente esta


U

dificultad se concentran en las provenientes de Cuba y Venezuela. Según la


información relevada, desde la perspectiva de los inmigrantes, genera mu-
RA

chas dificultades las exigencias de documentación para el reconocimiento de


los títulos universitarios. La población inmigrante proveniente de Venezuela
PA

y, en mayor medida, proveniente de Cuba tiene un nivel educativo alto pero


dificultades para poder acreditarlo con la documentación pertinente. Esta
situación, en general, se debe a problemas económicos para poder solventar
los gastos de la tramitación.
El tema de las reválidas involucra a la Universidad de la República,
que ha realizado algunos cambios que permiten asegurar el tratamiento
259

más rápido de las solicitudes, así como considerar la inscripción de los ex-
tranjeros (con menos de tres años de residencia) en los Consejos de cada
Facultad. El problema mayor parece estar localizado en la dificultad para

S
cumplir con los requisitos formales de certificación, tanto por no tener la

PE
documentación como (en caso de tenerla) por el costo de los tramites de
apostillado, eso hace que el número de reválidas realizadas por la Universidad

A
de la República aún sea escaso para aportar al tratamiento de la problemática

/C
de inadecuación entre calificación y empleo.
Ciudadano/a – Habitante: En general, cuando se discuten las

TA
diferentes problemáticas del fenómeno migratorio, los análisis se focalizan
en la problemática del empleo y en los aspectos socioculturales de los pro-

LE
cesos de integración. La incorporación del debate sobre los Derechos y su

CO
colocación en la agenda política ha caracterizado este período en Uruguay,
por tanto, analizar esta temática incorporando esta perspectiva nos parece
un aspecto necesario para comprender el desarrollo del fenómeno migra-
O
torio. Si bien la lucha por los Derechos ha caracterizado gran parte de los
D
procesos sociales del Siglo XX. España (2018a) entiende que
O

esgrimir derechos de las personas migrantes –frente al Estado del cual


V

no son nacionales– es uno de los grandes desafíos del siglo XXI carac-
SI

terizado por estrategias restrictivas, institucionalmente discriminatorias,


y en algunos casos incluso criminalizadoras (ESPAÑA, 2018a, p. 207).
U
CL

Para Uriarte (2019) la política migratoria uruguaya se organiza a


partir de un número importante de articulaciones entre dependencias de
EX

tres ministerios: Relaciones Exteriores, Ministerio del Interior y Ministerio


de Educación y Cultura (Registro civil). En este sentido, la autora entiende
SO

que la política relativa a la inmigración al Uruguay se basa en el supuesto


de que la residencia formal implica la posibilidad de acceso a todos los
U

programas de apoyo a población en situación de vulneración de derechos,


inicialmente implementadas para la población nacional. 
RA

En el relevamiento realizado de las políticas públicas con relación a


las poblaciones inmigrantes se detecta que la mayor parte de las entidades
PA

públicas han avanzado en la identificación del tema y planteado iniciativas


– a veces puntuales, a veces más estructurales – en respuesta a la cada vez
más visible presencia de inmigrantes en el país.
Si bien el Sistema de Cuidados no contempla explícitamente el cuida-
do para personas migrantes, los servicios de primera infancia incorporados
al Sistema – Centros de atención a la infancia y la familia (CAIF), Centros
260

diurnos de Instituto del Niño y el Adolescente del Uruguay (INAU), Centros


“Nuestros niños”, Programa de Cuidados e inclusión socio-educativa para
la primera infancia (CISEPI) – parecerían ser importantes receptores de la

S
migración infantil, además de constituirse en opciones de cuidado para las

PE
familias migrantes recientes. Según datos del SIPI (INAU, 2018), en 2017,
los programas de INAU trabajaron con 736 niños y niñas extranjeros, de los

A
cuales casi la mitad vivía en Montevideo, siendo más de 30% (232) menores

/C
de tres años vinculados a CAIF o a una protección puntual (URWICZ, 2018).

TA
En la misma línea, datos del Sistema de Información Integrada del Área Social
(SIIAS) muestran que CAIF es uno de los programas sociales a los que más

LE
acceden los hijos de madres con documento extranjero (127 prestaciones),
antecedido sólo por el Plan Aduana, con 252 prestaciones (MIDES, 2017).

CO
También, desde la perspectiva de la niñez y la garantía de derechos,
el Consejo de Educación Inicial y Primaria (CEIP) creó la Comisión de
Migraciones y el documento “Movilidad Humana y Migrantes y Educación
O
Primaria”, presentados en mayo de 2018, con el objetivo de “preparar a
D

todos los centros educativos públicos del país para recibir a los niños y a
O

sus familias” (A LAS ESCUELA, 2018). Según datos del año 2018, Ri-
V

vero, Incerti y Márquez (2019), plantean que concurren a las escuelas de


Montevideo 900 niños y niñas migrantes, cifra que, según declaraciones del
SI

consejero de Educación Inicial y Primaria, está previsto que se triplique en


U

poco tiempo (LARED21, 2018).


CL

En mayo de 2017 fue creada la Unidad de Migración por parte de


Ministerio de Trabajo y Seguridad Social (MTSS), para conocer y analizar
EX

la situación respecto al empleo de las personas migrantes en Uruguay, con


el objetivo de aprovechar la nueva migración desde la perspectiva de la
SO

inmigración como derecho humano (ANTE DESAFÍO, 2017). En ese


sentido, el MTSS aprobó un acuerdo que habilita a los migrantes cubanos
U

a trabajar provisoriamente con su pasaporte y un documento expedido


por la Cancillería – Ministerio de Relaciones Exteriores, hasta obtener la
RA

cédula uruguaya.
En mayo de 2018, se inauguró el Punto de Atención a las Personas
PA

Migrantes en la sede de la Dirección Nacional de Impresiones y Publica-


ciones Oficiales (IMPO), “con el objetivo de generar un lugar de consulta
donde centralizar la información sobre instituciones educativas y guiar a los
migrantes sobre a dónde ir y con qué documentación contar” (ÁLVAREZ,
2018, s. p.), recogiendo consultas de migrantes con hijos y migrantes que
quieren continuar sus estudios.
261

Con relación al derecho a la vivienda, el Ministerio de Vivienda,


Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente (MVOTMA), además de
acciones puntuales, otorga garantía de alquiler para uruguayos retornados

S
y extranjeros, acordado a través de un convenio firmado en 2010 con el

PE
Ministerio de Relaciones Exteriores (MRREE). Para acceder a este beneficio,
la población inmigrante debe tener un ingreso o forma comprobable de

A
solventarse. A su vez, existe una línea de acceso solo por convenios firmados

/C
que es la de subsidios de alquiler (firmado con el MRREE). Este convenio

TA
es para los programas de refugio o reasentamiento en el marco de acuerdos
con ACNUR y no se aplica a refugiados que vienen por cuenta propia.

LE
Los Refugios del Ministerio de Desarrollo Social (MIDES) también
se han presentado como solución habitacional de emergencia para algunos

CO
migrantes. En entrevista publicada por el sitio Espectador.com en 2018,
la Ministra titular informó que el Departamento de Identidad de MIDES
– antes responsable de que las personas regularicen su documentación
O
identitária – estaba transformándose en el Departamento de Migraciones,
D

de forma tal de acompañar los procesos de documentación de las personas


O

extranjeras que llegan a Uruguay.


V

El Decreto 118/18 del Ministerio del Interior, de mayo de 2018,


que “autoriza a conceder la residencia permanente a los migrantes que se
SI

encuentran en especial situación de vulnerabilidad […]”, establece que el


U

MIDES “[…] deberá realizar un análisis de riesgo de cada caso, compro-


CL

bar la vulnerabilidad y expedirse al respecto habilitando (o no) el inicio del


proceso” (URUGUAY, 2018b, s. p.).
EX

En lo que concierne a la regularización de la documentación, en


agosto de 2018, el Ministerio de Relaciones Exteriores (MRREE) anunció
SO

que iba a simplificar y agilizar el trámite de residencia para extranjeros (EL


PAÍS, 2018), el cual implicaría presentarse una sola vez al ministerio, en lugar
U

de dos veces como era antes. También, en la línea de agilizar los trámites de
regularización de la situación migratoria, en octubre de 2018, el Presidente
RA

Tabaré Vázquez firmó un decreto mediante el cual se diversificaran los tipos


de visa para aquellas nacionalidades que así lo requieran. A las existentes
PA

visas de turismo y negocios, se les agregan las visas de trabajo, estudio, de


reunificación familiar, humanitaria y de urgencia, y para congresos, conven-
ciones y seminarios con carácter nacional o internacional (IMPO, 2018).
Desde que comenzó a funcionar en 2012, el Instituto Nacional de
Derechos Humanos y Defensoría del Pueblo (INDDHH) ha realizado
distintas acciones vinculadas a la cuestión migratoria, tales como la par-
262

ticipación y organización de Jornadas, Encuentros y Seminarios sobre la


temática, además de recibir y atender denuncias vinculadas a personas mi-
grantes. En 2012, el INDDHH presentó el “Informe sobre trabajadores/

S
as migrantes, trata de personas, y explotación laboral: las obligaciones del

PE
Estado uruguayo” que incluye una serie de recomendaciones referentes a
migración y derechos en Uruguay.

A
El Instituto Nacional de Empleo y Formación Profesional (INE-

/C
FOP) tiene por cometido desarrollar acciones de formación para el empleo

TA
con el objetivo de ensayar modalidades de intervención que se orienten a
fortalecer los procesos de desarrollo local y sectorial. El INEFOP tiene un

LE
programa dirigido a la población de interés de ACNUR, atendiendo a pobla-
ción refugiada o solicitante de asilo derivada por el SEDHU. El programa

CO
propone la realización de talleres socioeducativos laborales, con énfasis en
la comprensión de las características de la sociedad uruguaya y su mercado
de trabajo. La población objetivo es la refugiada o solicitante de asilo de
O
menos de dos años de residencia. Actualmente ha cambiado los países de
D

procedencia de la población atendida, incrementándose los países latinoa-


O

mericanos (principalmente Cuba, Venezuela, Haití) y ha descendido el peso


V

relativo de los países no hispanohablantes (procedentes de África y Siria).


Si bien se ha avanzado en el abordaje del tema migratorio, aún se
SI

observan algunas dificultades para el pleno desarrollo de los derechos de


U

los inmigrantes. España (2018a) señala que aún existe discriminación en


CL

materia de derechos sexuales y reproductivos, ya que las mujeres inmigrantes


que deseen interrumpir un embarazo deben tener un año de residencia para
EX

tener derecho a los beneficios de la Ley de Interrupción Voluntaria del Em-


barazo. También se da discriminación en el acceso al derecho al cuidado ya
SO

que de acuerdo con el Decreto N.º 428/016 de la Ley del Sistema Nacional
de Cuidados (N.º 19.353) la población usuaria del sistema debe reunir las
U

siguientes condiciones: estar en situación de dependencia leve o moderada,


tener 14 años o más, ser ciudadana natural, legal o con residencia de 10 años
RA

o más en el país y que resida en su domicilio particular dentro del territorio


nacional. Estas condiciones no se aplican a los programas educativos ya
PA

existentes a la aprobación de la Ley como es el caso del Plan CAIF.


En relación con el problema de la vivienda, aunque existan algunas
líneas de atención, éstas no parecen ser suficientes ni totalmente pertinentes
a la problemática planteada por los migrantes, además el precio no es ac-
cesible. El tema de la vivienda, así como otros, es problema de la Sociedad
Uruguaya que se ven agudizados en la población inmigrante.
263

En este sentido la migración permite visibilizar algunos problemas


estructurales que trascienden el fenómeno específico, tanto en lo que re-
fiere a los vacíos en las políticas sociales como en diversos aspectos de la

S
vida cotidiana.

PE
Nativo/a – Extranjero/a: Entender el proceso de integración
desde la contradicción nativo/a – extranjero/a nos permite complejizar

A
estos conceptos y analizar desde una perspectiva que abarque tanto a las

/C
poblaciones inmigrantes como a las poblaciones residentes en el país de

TA
destino. En este sentido, resulta interesante la perspectiva planteada por
Canclini (2014), que pone como ejemplo

LE
una de las experiencias de extranjería perturbadoras respecto de lo propio

CO
es la del migrante o exiliado que retorna a su país de origen diez años des-
pués y, al expresarse frente a sus connacionales con gestos o palabras que
ya no se usan, escucha que le preguntan “¿usted no es de aquí, verdad?”
O
(CANCLINI, 2014, p. 47).
D

Ante la crítica a los fenómenos migratorios se pude preguntar


O

cuanta extranjería hay en la población nativa ya que las sociedades no son


V

homogéneas y presentan diferentes niveles de aceptación a lo diferente aún


SI

dentro de las poblaciones nacidas en el territorio.


U

Lo propio y lo ajeno se entremezclan: pertenecemos a redes que cruzan


CL

las fronteras nacionales y a veces nos sentimos extraños en la propia so-


ciedad. Podemos sentirnos extranjeros, no solamente debido a cambios
EX

territoriales sino al tener experiencias de alteridad que suceden en el lugar


donde vivimos (CANCLINI, 2014, p. 46).
SO

En cuanto a las poblaciones inmigrantes, desde la perspectiva de


la integración socio cultural, según Delgado (2007), se puede basar en las
U

siguientes cuestiones: por un lado la situación de las sociedades de acogida


RA

en relación a las políticas y recursos institucionales puestos en juego para


abordar esta problemática; y también, desde la perspectiva de los migrantes,
PA

aquellos recursos de capital social que permitan tanto el desplazamiento


como el apoyo en la llegada, lo cual puede aportar elementos de reafirma-
ción de sus identidades en los países de acogida.
Con relación a las formas que las sociedades de acogida plantean
la integración de las poblaciones inmigrantes, Delgado (2007) plantea 4
modelos de integración:
264

Modelo de incorporación corporativista: Este modelo se observa


en países como Suecia y Holanda. Algunos de los elementos centrales a
señalar son que la población inmigrante se define por su identidad colectiva

S
y como grupo se relaciona con el Estado, asemejándose su relación a la de

PE
cualquier grupo social corporativizado (como los sindicatos y las asocia-
ciones gremiales). Si bien se desarrollan políticas instrumentalizadas para

A
la incorporación de inmigrantes individualmente, en su discurso político

/C
se refieren a ellos abiertamente como minorías étnicas. De esta forma, “las

TA
mismas políticas que promueven la integración de los inmigrantes, refuer-
cen la ‘diferencia’ en la categorización de etnicidad en el imaginario social”

LE
(DELGADO, 2007, p. 48).
Modelo individualista: El segundo modelo de incorporación de

CO
inmigrantes al que la autora hace referencia es el individualista o liberal. Este
modelo se observa en países como Suiza y Inglaterra. Al contrario que en el
modelo anterior, los inmigrantes no son definidos por su identidad colecti-
O
va o corporativización de grupo, sino que se los considera exclusivamente
D

como individuos. La categorización en la sociedad de acogida se determina


O

por su participación en el mercado de trabajo (DELGADO, 2007).


V

Modelo estatista: El ejemplo más notorio de este modelo es el


desarrollado en Francia. El estado francés considera a los inmigrantes como
SI

individuos al igual que el modelo liberal, pero lo hace desde una perspectiva
U

más centralizada. La presencia del Estado es más fuerte para la integración


CL

de las poblaciones inmigrantes que la de modelo liberal-individualista. “Al


contrario de Inglaterra y Suiza, el estado francés participa y tiene más res-
EX

ponsabilidades hacia los inmigrantes para mejorar su bienestar, pues muchas


de las funciones sociales están centralizadas y organizadas por el propio
SO

estado” (DELGADO, 2007, p. 48). En este sentido, entonces, la política


de inmigración francesa no se refiere a categorías colectivas, los principales
U

instrumentos de integración son el mercado y la educación. Desde una


perspectiva individual existen políticas del Estado dirigidas a esta población,
RA

“sobre todo para dotarles de habilidades y competencias específicas para


tener acceso a las instituciones de la sociedad francesa en condiciones de
PA

igualdad con la población nativa o autóctona” (DELGADO, 2007, p. 49).


Modelo mixto: Este modelo se observa en Alemania, país que
presenta aspectos tanto del modelo de incorporación corporativista como
del modelo estatista. A pesar de que oficialmente la política de integración
en Alemania señala que los inmigrantes no deben ser considerados como
minorías étnicas, se desarrolla un proceso de incorporación de ellos en forma
265

centralizada y corporativizada desde el Estado, en concordancia con otras


estructuras institucionales del país. A su vez, la definición del concepto de
integración no está dirigida a grupos colectivos, el instrumento más impor-

S
tante para la integración en la política alemana es la capacitación vocacional

PE
y la educación, sobre todo dirigida para los inmigrantes de segunda gene-
ración. Esta política se orienta a que las poblaciones inmigrantes se ajusten

A
a las categorías ocupacionales y fortalezcan su posición en el mercado de

/C
trabajo como principal herramienta de movilidad económica y social para

TA
estas poblaciones (DELGADO, 2007).
Los modelos expuestos se plantean como forma de cuestionamiento

LE
a las políticas asimilacionistas donde los inmigrantes deberían adaptarse a
las sociedades de los países de acogida. Las lógicas de integración se basan

CO
en conceptos multiculturalistas que plantean la aceptación de las diferencias
culturales. Sin embargo, se observa en todos los modelos una perspectiva
O
en que
D

se cae en una especie de antagonismo, pues la población nativa puede


O

percibir y creer que realmente existe una “cultura nacional” tan propia
V

de su Estado-nación como legítima, y que por supuesto se encuentra en


SI

un estadio superior con respecto a esas minorías étnicas, o bien de la


población extranjera (DELGADO, 2007, p. 50).
U
CL

En un primer análisis, en Uruguay las políticas referidas a las pobla-


ciones inmigrantes se acercan a las características descriptas en el Modelo
EX

Estatista, donde no se privilegian políticas específicas para inmigrantes, sino


que se los considera con los mismos derechos que la población nativa. En
SO

este sentido debemos nos preguntar si es equitativo tratar como iguales a


los que presentan una situación diferente.
U

La población del país de acogida no escapa a los miedos universales que


RA

están presentes en la mayoría de los países: la inseguridad y la pérdida de


empleos. Estas situaciones son percibidas por los inmigrantes también
PA

en Uruguay. Según la encuesta Nacional de Actitudes de la Población


Nativa hacia Inmigrantes Extranjeros y Retornados realizada por Koo-
lhaas, Prieto y Robaina (2017) […] el 45% de los uruguayos mayores de
edad expresan desacuerdo con la afirmación según la cual la inmigración
es positiva para el país, mientras un 15% declara indiferencia frente a la
misma o no responde a consulta. Esta cifra señala que la mayoría de los
uruguayos que tiene una opinión definida discrepa con que la inmigración de
266

personas nacidas fuera de Uruguay sea positiva (KOOLHAAS; PRIETO;


ROBAINA, 2017, p. 22).

A su vez,

S
PE
[…] las afirmaciones que adquieren mayor adhesión (mayor al 60%) son
las que indican que a la hora de permitir a una persona extranjera venir a

A
vivir a Uruguay es importante que el migrante: i) esté dispuesto a adoptar

/C
las costumbres y el modo de vida de Uruguay; ii) tenga una calificación

TA
laboral de las que Uruguay necesita; iii) tenga buen nivel educativo; y iv)
hable español (KOOLHAAS; PRIETO; ROBAINA, 2018, p. 32).

LE
Eso pone en evidencia la posición de asimilación de la población
nativa en contraposición a la postura de integración de las poblaciones

CO
inmigrantes. Desde la perspectiva de los inmigrantes la demanda por inte-
gración se plantea en distintos niveles.
O
Según la información relevada de las Organizaciones de Inmigrantes
D
se identifica un choque cultural ya que perciben que las colectividades son
identificadas por algunas características como, en el caso de Venezuela,
O

las Arepas o las Novelas. Sin embargo, otros aspectos culturales como la
V

música y el baile no tienen el reconocimiento esperado.


SI

La integración vista desde este enfoque implica una revalorización


U

del aporte de cada cultura de origen, desde sus fortalezas y no desde los
CL

estereotipos sociales. En ese contexto, es posible percibirse también una


apelación al nativo para reconstruir una identidad que revalorice las raíces
EX

latinoamericanas. Los testimonios relevados muestran un cuestionamiento


a la posición de los nativos en relación al rechazo a los inmigrantes olvidán-
dose de su propia experiencia como población emigrante.
SO

La aceptación de la diferencia presente tanto en la población inmi-


U

grante como en la nativa es un desafío que involucra a toda la sociedad. La


población nativa en Uruguay tiene ante sí la tarea de interpelarse y cuestio-
RA

narse los mitos que han construido su identidad como país. Ese proceso
implica la coexistencia en el imaginario uruguayo donde “subsiste aún la
PA

épica del migrante europeo, del país de puertas abiertas, pero que se resiste
culturalmente a una apertura a la diversidad” (ESPAÑA, 2018b, p. 16).
Para finalizar, entendemos que parte de la construcción del Uru-
guay como nación se basa en el concepto de país de inmigrantes, pensado
como un territorio vacío que fue construido con el aporte de poblaciones
migrantes. Pero no cualquier migrante, la institucionalidad creada a fines
267

del Siglo XIX, y vigente hasta principios del siglo XXI, “promueve un tipo
de población: blanca, judeo-cristiana, proveniente de Europa. Se establece
una política discriminatoria, que muestra un ideal de modernidad asociado

S
a un pensamiento evolucionista donde se mira a Europa como modelo a

PE
seguir” (RIVERO; INCERTI; MÁRQUEZ, 2019, p. 114). Fue en el año
2008 que el país se replanteó el tema migratorio generándose una nueva

A
institucionalidad basada en los Derechos Humanos, construyendo políticas

/C
y ámbitos de participación para la Sociedad Civil. Políticas que creemos son
aún insuficiente, pero marcan un inicio en el abordaje del tema.

TA
La actual configuración del tema migratorio y las urgencias que se
ponen de manifiesto han exigido al país construir institucionalidad a un

LE
ritmo que no es históricamente habitual, lo que constituye un desafío que

CO
involucra también al Trabajo Social.
En ese sentido, pensar desde Trabajo Social este tema en función de
las tres contradicciones propuestas nos permite tanto entender la comple-
O
jidad del Trabajo Social como, también, pensar instrumentos conceptuales
D
y operativos para su abordaje desde una perspectiva ético-política.
O
V

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PA
270
RA
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LE
TA
/C
A
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S
271

Sobre os autores
Ademar Bogo – Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade Federal

S
da Bahia – Licenciado em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado

PE
da Bahia – Departamento de Educação, Campus X. Bacharel em Filosofia
pela Universidade Sul de Santa Catarina – UNISUL. Licenciado em Filosofia

A
pela Universidade Metropolitana de Santos. Integrante dos grupos de pes-

/C
quisa: Estudos sobre Dinheiro Mundial e Financeirização – UFES e Marx

TA
no Século XXI. Professor assistente da Faculdade do Sul da Bahia – FASB.
Membro do corpo editorial do blog marxismo21. Membro da Academia

LE
Teixeirense de Letras – ATL. É poeta, escritor e agricultor.

CO
Eugênia Aparecida Cesconeto – Professora Adjunta do Curso de Ser-
viço Social, do Programa de Mestrado em Serviço Social UNIOESTE.
O
Graduação em Serviço Social (FACITOL); Mestrado em História Social
D
(UFF); Doutorado em Serviço Social (PUC-SP); Pós-Doutoranda em
Serviço Social (UFSC). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Defesa dos
O

Direitos Humanos Fundamentais da Criança e do Adolescente. Membro


V

do Projeto de Extensão Projeto de Apoio às Políticas de Proteção à Criança


SI

e ao Adolescente (PAPPCA). 
U
CL

Fernanda da Fonseca Pereira – Graduada em Serviço Social pela Uni-


versidade Católica de Pelotas (UCPEL), mestre em Política Social e doutora
EX

em Política Social e Direitos Humanos, também pela UCPEL. Atualmente,


é assistente social da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), atuando
no Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente. Sua área predo-
SO

minante de estudos é a violência contra mulheres e meninas.


U

Francielle Lopes Alves – Mestre e Doutora em Serviço Social pela Uni-


RA

versidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Assistente social do Hospital


Universitário da UFSC (HU/UFSC) e Preceptora do Programa de Resi-
PA

dência Integrada Multiprofissional do HU/UFSC.

Maria Lúcia Teixeira Garcia – Graduada em Serviço Social e em História


pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), mestre em Psicologia
pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), doutora em Psicologia
Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutora na Universidade
272

de Brasília (UnB). Professora titular da Universidade Federal do Espírito


Santo. Foi coordenadora da área de Serviço Social da CAPES entre 2014
e 2018. Bolsista de Produtividade do CNPq. Tem experiência na área de

S
Serviço Social, com ênfase em Política Social, atuando nos seguintes temas:

PE
política pública, política social, saúde e alcoolismo.

A
Maria Luiza Amaral Rizzotti – Doutora e pós-doutora pela PUC/SP

/C
em Serviço Social e Política Social. Pesquisadora da FAPESQ-PB/CNPq,

TA
junto ao Programa de Pós Graduação em Serviço Social da UFPB.  Área
de concentração de estudos e pesquisa – gestão de política social. Foi pro-

LE
fessora na Universidade Estadual de Londrina de 1987 a 2017.

CO
Mônica de Castro Maia Senna – Assistente Social, Mestre e Doutora em
Ciências – Saúde Pública, Professora Associada do Programa de Estudos
Pós-graduados em Política Social (Mestrado e Doutorado) e da Escola de
O
Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Vice-coorde-
D

nadora do Núcleo de Análise e Avaliação de Políticas Sociais (NAP/UFF).


O

Bolsista Produtividade CNPq, dedicando-se  aos estudos sobre sistemas


V

de proteção social e à análise de políticas sociais no campo da seguridade


social brasileira.
SI
U

Paulo Nakatani – Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade


CL

Federal do Paraná, com D.E.A. em Système de l´Économie Mondiale na


Universidade de Paris 10 – Nanterre, Doutorado em Ciências Econômicas
EX

pela Universidade de Picardie e Pós-doutorado pela Universidade de Paris


13. Professor titular da Universidade Federal do Espírito Santo, atuando no
SO

Departamento de Economia e no Programa de Pós-Graduação em Política


Social. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP),
U

membro do Observatório Internacional da Crise e do Fórum Mundial


de Alternativas e membro do Conselho Editorial da Revista da SEP e da
RA

revista Crítica Marxista.


PA

Regina Célia Tamaso Mioto – Assistente Social, Professora do Programa


de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Ca-
tarina (UFSC), membro do Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar Sociedade,
Família e Política Social (NISFAPS), bolsista de produtividade em pesquisa
do CNPq. Como pesquisadora tem se dedicado aos temas: Família e Pro-
teção Social e Serviço Social, intervenção profissional e ações profissionais.
273

Silvana Marta Tumelero – Graduada em Serviço Social (PUC-PR), Mestre


em Ciências Sociais (PUC-RS) e Doutora em Serviço Social (UFSC). É pro-
fessora adjunta na Universidade Federal do Paraná, com atuação na Câmara

S
de Graduação de Serviço Social, no Setor Litoral. É pesquisadora na área da

PE
Política Urbana, com ênfase na participação do Estado na produção social
do espaço e em temas relacionados à Habitação de Interesse Social. Integra

A
o Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Territorial Sustentável da UFPR.

/C
TA
Silvia Rivero – Trabajadora Social, Master em Servicio Social (UFRJ),
Doctora em Ciencias Sociales opción Trabajo Social (FCS – UDELAR).

LE
Profesora Titular del Departamento de Trabajo Social, Facultad de Ciencias
Sociales (UDELAR). Las líneas de investigación se concentran en dos temá-

CO
ticas: Politicas Sociales actualmente en relación al abordaje de lãs poblaciones
inmigrantes; y la formación en Trabajo Social en cuanto a los contenidos y
metodologias de intervención. Fue Directora del Departamento de Trabajo
O
Social (FCS-UDELAR) - 2007 y 2010. Fue Presidenta Del Servicio Central
D

de Bienestar Universitario - 2013 y 2016.


O
V

Telma Cristiane Sasso de Lima – Assistente Social, Professora adjunta


na Faculdade de Serviço Social (FSSO) da Universidade Federal de Alagoas
SI

– Campus Maceió – UFAL. Graduação (2004), Mestrado (2006), Doutorado


U

(2017) em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


CL

Vice-líder do Grupo de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Movimentos


Sociais e Controle Social (UFAL).
EX

Vera Maria Ribeiro Nogueira – Assistente Social. Professora do Programa


SO

de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos (UCPEL) e do


Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de
U

Santa Catarina (UFSC). Doutora em Enfermagem pela UFSC e pós-doutora


pela Universidade Autônoma de Barcelona. Vice-líder do Núcleo de Estudos
RA

de Estudos e Pesquisa Estado, Sociedade Civil, Políticas Públicas e Serviço


Social – NESPP. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Área de
PA

estudos e pesquisa: política de saúde em áreas fronteiriças, ação profissional,


análise e avaliação de políticas públicas.

Vini Rabassa da Silva – Assistente Social, professora no Programa de


Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos e no Curso de Ser-
viço Social da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Mestre e doutor
274

em Serviço Social pela PUC-RS. Líder do Grupo de Pesquisa e Extensão


em Política Social, Cidadania e Serviço Social (GPE PSCISS). Tem como
principal área de interesse as Políticas Sociais, particularmente a Política

S
de Assistência Social, o controle social de políticas públicas, a participação

PE
social e a ação profissional do/a assistente social.

A
Zelimar Soares Bidarra – Assistente Social. Professora Associada da

/C
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Docente do Pro-

TA
grama de Pós-graduação (Mestrado) em Serviço Social e do Programa de
Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Desenvolvimento Regional e

LE
Agronegócio. Professora visitante da École de Travail Social et Criminologie
da Université Laval – Québec/Canada, desde 2013. Bacharel e mestre em

CO
Serviço Social; doutora em Educação; pós-doutora em Educação; Estágio
Sênior de Pesquisa na École de Travail Social et Criminologie/Université
Laval – Québec/Canada. Líder do Grupo de Pesquisa e Defesa dos Di-
O
reitos Humanos Fundamentais da Criança e do Adolescente. Pesquisa em
D

desenvolvimento: Análise de fatores inibidores à implantação de protocolos


O

intersetoriais de atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência


V

(CNPq/Bolsa Produtividade).
SI
U
CL
EX
SO
U
RA
PA

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